PSICANÁLISE E VELHICE Glória Maria Castilho · perturbation du deuil lors de la vieillesse. Pour...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FOSOFIA INSTITUTO DE Ps1d:OGIA PROGRAMA DE Pós-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA PSICANÁLISE E VELHICE Glória Mia Castio o de Jeiro, Julho de 2011 U.F .R.J .

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

INSTITUTO DE Ps1d:1LOGIA

PROGRAMA DE Pós-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA

PSICANÁLISE E VELHICE

Glória Maria Castilho

Rio de Janeiro, Julho de 2011

U.F.R.J.

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PSICANÁLISE E VELHICE

Glória Maria Castilho

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Angélica Bastos

Rio de Janeiro, julho de 2011

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PSICANÁLISE E VELIDCE

Aprovada por:

Glória Maria Castilho Tese submetida ao Programa de Pós­Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título Doutor em Teoria Psicanalítica.

Profa. Dra. Angélica Bastos (Orientadora) - UFRJ

Profa. Dra. Ana Beatriz Freire - UFRJ

Prof Dr. Juan Carlos Cosentino - Universidad de Buenos Aires

Prof Dr. Paulo Vidal - UFF

Profa. Dra. Clara de Góes - UFRJ Rio de Janeiro Julho de 2011

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Castilho, Glória Maria. '

Psicanálise e velhice / Glória Maria Castilho. - Rio de Janeiro, UFRJ / PPGTP, 2011.

2011.

ix, 146 f: il.; 30 cm.

Tese (doutorado) - UFRJ/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica,

Orientadora: Angélica Bastos

Referências Bibliográficas: f 156-165. 1. Psicanálise. 2. "Idoso". 3. Sujeito. 4. Angústia. 5.

Trabalho de luto. 6. Desejo. I. Bastos, Angélica (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós­graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.

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RESUMO

Partimos da escuta de "idosos" no ambulatório NAI/UNATI/UERJ: quedas, dores e esquecimentos freqüentes rapidamente apreendidos como distúrbios e dé:ficits pelo discurso médico vigente na área de saúde. Esta apresentação do mal estar na cultura em nossa época recobre a complexidade de uma queixa na velhice, que implica a realidade psíquica. A escuta de "idosos" evidencia pontos de fixação de dificil dialetização e a decorrente pergunta acerca de como intervir em uma economia de gozo. Relatos freqüentes de um sentimento de estranheza e a magnitude e concomitância das perdas relatadas conduziram à pergunta acerca da perturbação do luto na velhice. Para Lacan a experiência do luto está do lado da privação e requer trabalho a partir da perda para situar-se do lado da castração. Tomando Hamlet e Ophelia da literatura universal e Frida, da literatura psicanalítica situamos que apreender-se como falta é condição de possibilidade para que ocorra trabalho de luto e seja reinstaurado o circuito do desejo. Frases como "eu não faço falta" situam a função da angústia ao localizar a falta. Daí a importância do manejo da angústia sob transferência. Fragmentos de análises, frases de velhos que intervieram no campo social e dois velhos da literatura, Lear e Édipo, balizaram as indicações éticas acerca da irrupção do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro e o necessário remanejamento de gozo, compatível com alguma circulação da falta, traduzido em recortes clínicos, especialmente na leitura de um chiste produzido em análise.

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RESUMÉ

Nous sommes parties de l' écoute de personnes âgées, lors de consultations au NAI/UNATI/UERJ, qui se plaignaient de chutes, de douleurs et d' oublis fréquents, trop rapidement identifiés comme dysfonctionnements et déficiences par le discours médica! en vigueur dans le milieu de la santé. Impliquant la réalité psychique, cette apparition du mal-être dans la culture de notre époque dissimule la complexité des plaintes des personnes âgées. Leur écoute met en lumiere des points de fixation qui sont difficiles à dialectiser et souligne la question de comment intervenir dans une économie de jouissance. Le récit fréquent d'un sentiment d' étrangeté, en relation à l' ampleur et à la concomitance des pertes exprimées, nous conduisent à soulever la question de la perturbation du deuil lors de la vieillesse. Pour Lacan, l' expérience du deuil se tróuve du côté de la privation et requiert un travail à partir de la perte pour se situer du côté de la castration. Utilisant les personnages shakespeariens d'Ophélie et d'Hamlet et Frida de la littérature psychanalitique, nous établissons que s 'appréhender comme manque est une condition pour rendre possible le travail de deuil et que soit réinstallé le circuit du désir. Des phrases comme " je ne manque à personne " exprime la fonction de l 'angoisse à situer le manque. D· ou l 'importance du maniment de l 'angoisse dans le transfert. Des fragments d' analyse, des phrases de personnes âgées qui sont intervenues dans le champ social et deux vieux rois de la littérature, Lear et Oedipe, balisent les indications éthiques quant à l'irruption du discours analylitique à chaque traversée d'un discours à r autre et le nécessaire réaménagement de la jouissance, compatible avec le déplacement du manque et traduit par des extraits de cas cliniques, spécialement dans la lecture d'un Witz produit en analyse.

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Dedico este trabalho ao Luís Moreira de Barros, ao Rodrigo Castilho Barros, à Lucy Castilho, aos 86 anos e à Maria da Glória G. F. de Araújo (in memoriam) que viveu até os 96 anos.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço àqueles que das mais variadas formas me ajudaram à viabilizar este trabalho, em especial à: Diana Lídia Mariscal, Neusa Santos Souza (in memoriam) e Maria da Penha J. Guimarães. Quanto à delimitação do texto agradeço: À Angélica Bastos por sua leitura cuidadosa e pela delicadeza com que conduziu a orientação. Ao Luís Moreira de Barros por suas pontuações que me ajudaram a situar o eixo do trabalho. Ao Prof Juan Carlos Cosentino por suas precisas contribuições ao texto e por aceitar o convite para participar da banca. Aos meus interlocutores e pares do Nai/Unati e da Escola Letra Freudiana.

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A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o por do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?

Freud, 1926

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INTRODUÇÃO .. . .. . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . 12

CAPÍTULO I - PARA INTRODUZIR A COMPLEXIDADE DE UMA QUEIXA NA VELIDCE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . ... . . . . . . 19

1 - Velhice e destino . . . .. ... . . ... . . . .. .... . . . .. . . .. . . . . . . . . ...... . . .. . . .. ...... . ... . .. ... . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

2 - Uma satisfação de outra ordem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . .. .. . . . . . . . . 28

3 - Um tribunal particular que implica dor . .. . . . . ....... . .. . . .... . . . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . 32

CAPÍTULO II - VELIDCE E PERDA NA NEUROSE I: TRABALHO A PAR.TIR DA PERDA . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . .. . . . . . . . . . . . . . ..... . . . .. . . .. . . .. . . . . . . . . . . . . 38

1 - Trabalho de análise: Durcharbeitung e construção . . . . ... . . . . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

2 - Do efêmero ao estranho-familiar .. .. . . . .. . .. . . . . . . .. ... . .. ... .. . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .... 4 7

3 - Freud e o estranho-familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

4 - Acerca da função da angústia ... . . . . .. . . . .. .. . . . . . . .. . . . ... . . .. . ..... . . .... . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . 53

5 - De repente, subitamente, no momento de entrada do Unheimlich ..... . .. . . . . 62

6 - Algumas pontuações acerca das operações de alienação e separação . . .... . 65

6 .1- Sobre a operação de alienação e a afãnise como efeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 66

6.2 - A operação de separação e a "função afãnise" .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . 67

CAPÍTULO III - VELIDCE E PERDA NA NEUROSE II: DA PERDA NO LUTO AO RODEIO DO DESEJO OU DA PRIVAÇÃO À CASTRAÇÃO . . . . 72

1 - A perda buscada e a perda no luto . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 73

2 - Da privação à castração . . .. . .. .. . . . . . . . .. .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . .. . 78

3 - Luto e acting-out ...................................................................................... 80

4 - Solidão não é isolamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

5 - Do sentimento de estranheza ao esforço para situar o desejo - como desejo do Outro - em análise . . . . . . . .. . . . . . . .... . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

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5. 1- A entrada em jogo de uma escuta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . .. . . . . 89

5. 2 - "Eu não faço falta" . .. .... . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . ... . . .. . .. . .. . . . . . . . . . . ... . 91

5 3 "Q ~ . ~ . " 96 . - uem nao arnsca nao petisca . . . ... . . . . . . . . . .. . ....... . . ..... .. .. . . . .. . . . . . . .. . . . .. . . .

CAPÍTULO IV - DISCURSOS E ECONOMIA DE GOZO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . 102

1 - A apresentação da contra-indicação formulada por Freud . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . 106

2 - O que fazer com o resto? . . .. , .. . . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .... . . . . ...... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 109

3 - Como intervir em uma economia de gozo? ... ..... . . . . .. . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . ... 113

4 -:- Há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro . . . . . . . . . . .. . .. . . . . ..... . . . .. . . . ..... . . .. .. . . . ... . . ..... . . . . . ... . . . . .... . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . . .. .... . . . . . 122

CAPÍTULO V - A "TRAGICIDADE" DA CONDIÇÃO HUMANA: DO TRÁGICO AO TRAGICÔMICO ... . .... .. . . . . .. . . . ...... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 128

1 - Lear e Édipo em Colono . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. . .... .. .. .. . .. . .. .. . . . .. .. . . . ..... . ... . .. .. 132

1.1- Primeiro tempo: um campo de desconhecimento . . .. . . . . .. . . . . .. . . . . . . . . . .. . . . 134

1.2 - Segundo tempo: o herói não recua, afirma seu percurso . . ..... . . . . . . . .... 136

1.3 - Terceiro tempo: alguma leitura só-depois . . . . . . .. . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . 138

2 - Agiste conforme o desejo que te habita? . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . .... . . . . . . .. . . . . 141

CONCLUSÃO .. . ... . . ...... . .. . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . ... . .. . .. . . ... . . . . . .. . . . . 149

REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . ... . ... . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . ... . . ... . ... . .. . . . 156

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INTRODUÇÃO

Os constantes avanços da ciência indicam como tendência - no Brasil e no mundo (V eras, 1994) - o aumento da expectativa de vida, a diminuição da taxa de natalidade, a diminuição da taxa de mortalidade em geral e o decorrente envelhecimento da população. Dados recentes do IBGE, referentes ao Censo 20101, confirmam que a população acima de 60 anos foi a que mais cresceu nos últimos dez anos e há projeções para 2025 que apontam mais de 31 milhões de idosos no país (Veras, 1999). Neste enquadre, a demanda de atenção multiprofissional a "idosos2

" tem se mostrado uma questão de relevância social em nossos dias.

Em resposta a esta tendência, na última década foram criados espaços como a Universidade Aberta da Terceira Idade - UNA TI/UERJ - que oferece e promove a interação entre os "idosos" - a partir de 60 anos - através de oficinas e cursos com temas diversificados. Há também uma face assistencial do trabalho desenvolvido pela UNATI: o Núcleo de Atenção ao Idoso -NAI/UNATI - que se localiza no Campus da UERJ e constitui-se como uma unidade docente assistencial do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ). Cabe ressaltar a relevância, o valor do trabalho desenvolvido pela UNATI, de forma geral, e do ambulatório NAI, mais especificamente. Há vários relatos de "idosos" que encontram em iniciativas como esta uma via para encaminhar dificuldades, bem como estabelecer e consolidar laços sociais ou mesmo inventar algo a partir do seu repertório singular de interesses.

O ambulatório NAI foi criado no início dos anos noventa e conta com uma equipe multiprofissional - geriatras, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, dentre outros - e interdisciplinar. O trabalho tem como perspectiva a atenção integral à saúde de idoso visando o treinamento de profissionais e a produção de conhecimento sobre o

1 Confira os dados no endereço eletrônico do IBGE: http://www.ibge.gov.br. 2 Ao longo de todo o trabalho utilizaremos aspas no termo "idoso", para indicar a dissimetria entre o idoso como categoria construída e o sujeito dividido da experiência analítica, confrontado com as questões - sempre singulares - colocadas pelo processo de envelhecimento.

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envelhecimento, com enfoque no cuidado e na promoção da saúde. A equipe também presta assistência a idosos internados nas enfermarias do HUPE/UERJ. Este enquadre articulado ao ensino e à pesquisa e implicado na transmissão de uma experiência clínica das diversas áreas, mas também "dentro-fora" da cintura hospitalar do HUPE, confere ao ambulatório um ambiente, em certos aspectos, mais aberto à interlocução entre os pares da equipe multiprofissional e interdisciplinar. Constatamos que o "idoso" assistido por diferentes profissionais da área de saúde requer, muitas vezes, uma escuta diferenciada que acolha e possa dar direção a conjunturas que se apresentam em seu discurso como traumáticas e implicam em sofrimento psíquico. Assim, encontramos no NAI/UNATI/UERJ um contexto institucional e público propício à pesquisa e à práxis psicanalítica -já que muitos "idosos" precisam falar, trabalhar a partir das inúmeras perdas com que o processo de envelhecimento os confronta. O convite para integrar a eqmpe da UNATI/UERJ, mais especificamente do ambulatório NAI, ouvindo "idosos" e recebendo residentes e estagiários, como supervisora, mostrou-se oportuno em vários aspectos. Por um lado, por ser compatível com a minha própria trajetória na universidade, sempre pautada pela clínica e por outro lado, por tratar-se de uma área de investigação pouco trabalhada, no sentido próprio à pesquisa em psicanálise. Poucos psicanalistas até aquele momento - e de certa forma até hoje - haviam levantado questões e escrito a partir de sua clínica com sujeitos ditos "idosos". De modo que a experiência de integrar a equipe do ambulatório NAI, se traduziu ao longo dos últimos dez anos na formulação de algumas questões que o presente trabalho procura encaminhar. Uma questão fortemente assinalada pelos profissionais da área é a importância de situar os termos velhice e envelhecimento. O envelhecimento é um conceito de fácil definição já que é localizado como um processo que se desdobra ao longo de toda a vida. Já a velhice é quase uma unanimidade, em termos da dificuldade de sua demarcação. Ao suspendermos as balizas fornecidas pela lei, tais como aquelas previstas pela Política Nacional do Idoso

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14 (Brasil, 1996): quem é o velho? Velho em relação a que parâmetros? Além disso, velho para quem? Messy (1999) coloca em relevo o fato de que sempre somos o "velho" de alguém. Gustavo Borges (2007), em uma matéria no Jornal

do Brasil acerca do atleta Fernando Scherer que se aposentou das competições de natação antes do Pan de 2007 - aos 32 anos - inicia o texto dizendo que " . . . chega uma hora na carreira em que nem o fisico nem o mental funcionam mais como gostaríamos, e temos que tomar a dificil decisão de parar". (p.Cl). Se colocarmos entre parêntesis o contexto, a que idade se refere tal afinnação? Beauvoir (1970) em seu clássico A Velhice avalia: "O velho tem um destino biológico que acarreta fatalmente uma conseqüência econômica: torna­se improdutivo. Mas sua involução é mais ou menos precipitada segundo os recursos da comunidade: em algumas delas, a decrepitude começa aos 40 anos, em outras aos 80" (p.107). Por esta via, vislumbra-se uma outra questão, a saber: a prevalência do discurso capitalista - própria à nossa época - e segundo o qual o velho improdutivo rapidamente torna-se obsoleto, em um mundo em que predominam as máscaras do novo (Mucida, 2004). A revista Le Nouvel Observateur, em uma matéria de Pénicaut (2010) intitulada Permanecer Jovem (Rester Jeune) disserta sobre os inúmeros avanços científicos na área do envelhecimento humano, bem como a decorrente produção de infindáveis técnicas colocadas à disposição do e no mercado. Em determinado momento, o Professor Etienne-Emille Baulieu, apresentado como " ... pai da luta contra o envelhecimento na França" (p.18), aos 83 anos comenta que nos EUA emprega-se uma expressão terrorífica para falar dos "idosos": a "peste cinzenta" ("la peste grise") e diante disso posiciona-se afinnando que sua luta visa que ninguém seja colocado de lado, como "pestilento" (pestifere). Ainda que importantes, os escrúpulos do cientista não nos liberam de apreender a conjunção do discurso capitalista com os progressos da tecnociência, em nossos dias. Beauvoir (1970) interroga a vigência de uma "conspiração do silêncio" com relação ao tratamento dado à velhice. Embora deixe claro que não se propõe, em sua investigação, a realizar uma história da velhice, fornece

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indicações preciosas sobre o lugar do velho em diferentes contextos. Groisman

(1999) em seu artigo Velhice e História: Perspectivas Teóricas esclarece que a

construção da categoria "idoso" foi sendo tecida, sobretudo, ao longo do último

século pelo discurso geriátrico-gerontológico, pela prática asilar e pelo advento

das aposentadorias e pensões. Nas últimas décadas, as questões ligadas à área

do envelhecimento foram ganhando destaque e relevância e Debert (1999)

avalia que a visibilidade alcançada pela velhice tornou-se " ... um compromisso

com um tipo determinado de envelhecimento positivo ... " (p. 23), em um

contexto em que as rugas e a flacidez se transformaram "... em indícios de

lassitude moral e devem ser tratadas ... " (p.20).

O caráter moral que o envelhecimento dito bem sucedido assume é

tornado um novo mercado de consumo que acena com a eterna juventude,

orquestrada pela máxima "só é velho quem quer". Com este enquadre, Debert

(1999) levanta como questão se a denúncia de Simone de Beauvoir acerca de

uma "conspiração do silêncio" não ganharia atualidade já que, uma vez mais,

não haveria lugar para a velhice que " ... tende a ser vista como conseqüência do

descuido pessoal, da falta de envolvimento em atividades motivadoras, da

adoção de formas de consumo e estilos de vida inadequados" (p.227).

É assim que além do velho como obsoleto e pestilento, o

envelhecimento tornou-se, de forma bastante evidente, um mercado de

consumo. Despejam-se incessantemente no mercado novas técnicas e produtos

na luta contra o envelhecimento, visando recobrir, por exemplo, o que há de

inexorável nas mudanças de um corpo que sofre a ação do tempo. O que

importa ressaltar aí é que o necessário reconhecimento da pluralidade de

experiências de envelhecimento, não implica supor que não haja "limites ao

investimento cultural e tecnológico nos processos biológicos" (Debert, 1999, p.

228).

Desta forma, o relato de sentir-se aquém dos ideais veiculados pelo

discurso científico apresenta-se muitas vezes no discurso dos velhos do lado da

impotência, tal como dizia uma "idosa" após a consulta com o geriatra: "... o

médico manda, mas eu não tenho ânimo para caminhar ... ". É assim que para

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segurr caminhando na vida e, eventualmente, de acordo com a prescrição médica, é preciso, por vezes, um primeiro tempo de trabalho psíquico a partir de conjunturas de perda com valor de trauma, para o "idoso".

Desde Freud e Lacan, apreendemos que o sofrimento psíquico, as conjunturas traumáticas não se articulam de forma direta, linear com os acontecimentos. Há uma dissimetria, para a psicanálise, entre causa e efeito que implica que efeitos traumáticos só possam ser situados um a um e a posteriori.

É a partir da escuta que se torna possível situar o valor de trauma ou não de um dado evento, para o sujeito da experiência analítica. É assim que trabalharemos ao longo da tese com fragmentos, recortes de análises em andamento, ou seja, frases ditas sob transferência, que permitem localizar questões acerca da velhice, formuladas a partir da experiência psicanalítica.

No primeiro capítulo, Para introduzir a complexidade de uma queixa

na velhice, procuramos indicar que queixas, comuns na velhice, tais como quedas recorrentes, dores diversas, esquecimentos freqüentes, encerram uma complexidade e apontam à realidade psíquica. Partimos do nexo estabelecido por Freud (1895, 1930) entre desamparo primordial e o campo moral. Neste enquadre, Freud (1939) situa o valor de trauma de certos eventos para o sujeito. Freud (1930) procura localizar os marcos do mal-estar na cultura: os paradoxos do supereu, a resistência do isso e o enlace da libido com a pulsão de morte no masoquismo, podendo convergir para certa erotização da dor frente à má sorte e ao infortúnio que se apresentam na velhice. É como evento inexorável da vida que situamos a velhice. Visando evidenciar a complexidade de queixas e, especialmente a complexidade de uma queixa de dor - tão presente nas situações em que ocorre uma perda significativa - apresentamos o nexo entre o supereu e o imperativo categórico que, para Kant, situa um tribunal particular que implica dor. Nesta direção, procuramos assinalar a importância, para a psicanálise, de afirmar a distinção entre o imperioso dever ser do supereu, implicado na satisfação pulsional, própria a uma economia de gozo, e o imperativo ético freudiano: wo es war sol! ich werden que sustenta a pergunta acerca do desejo.

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No segundo capítulo, Velhice e perda na neurose 1: trabalho a partir

da perda, iniciamos localizando o trabalho de análise que, para Freud, implica duas dimensões: elaboração (Durcharbeitung) e construção. Seguimos situando elementos clínicos advindos da experiência com "idosos", a partir das pontuações de Freud em Efimero3 e O Estranho. Por esta via, chegamos a demarcar a distinção, para Lacan, entre a angústia como fenômeno e como lugar estrutural e sua função, em articulação com o objeto a e o desejo do Outro. Procuramos destacar a relevância da angústia como operador na práxis com idosos. Seguindo nesta direção, abordamos ainda as operações de alienação e separação, visando situar a perda buscada na operação de separação. No terceiro capítulo Velhice e perda na neurose li: da perda no luto

ao rodeio do desejo, apresentamos a necessária diferença entre a "perda buscada" e a perda no luto que, para Lacan, é da ordem da privação e não da castração. Procuramos extrair consequências desta distinção a partir da escuta de idosos em análise. Seguimos localizando alguns pontos que se apresentam como recorrentes no discurso de idosos e que levantam a pergunta em tomo de alguma especificidade desta clínica, sobretudo, em termos do manejo transferencial em jogo. No quarto capítulo Discursos e Economia de Gozo iniciamos afirmando o impacto da lógica capitalista sobre a velhice ao apreender o velho como obsoleto e o envelhecimento como "mercado de consumo". Por estas duas vias, é como objeto que o velho é abordado. Seguimos indicando a importância de re-situar a contra-indicação freudiana acerca da psicanálise com sujeitos confrontados com as questões colocadas pela velhice. Procuramos localizar a noção de entropia psíquica em Freud e Lacan, como termo :freudiano mais próximo do mais-de-gozar, situado por Lacan. Examinamos a formulação de um reforço pulsional por ocasião do climatério, equivalente para Freud àquele que se apresenta na puberdade. Em tomo da pergunta acerca de como intervir em uma economia de gozo, procuramos situar os giros discursivos na experiência analítica, sobretudo, a afirmação de Lacan de que a cada giro discursivo, em

3 Confira a nota de rodapé nº 15 .

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18 uma análise, há irrupção do discurso analítico. Finalizamos com a apresentação de um recorte clínico que localiza algumas questões abordadas

No quinto capítulo A "Tragicidade " da Condição Humana: do trágico ao tragicômico iniciamos com breves referências a velhos cuja intervenção no campo social alude a uma relação mais desejante com seu trabalho e com sua vida, de forma geral. Tomados como recurso à ficção, algumas falas e atos permitem interrogar o estereótipo geral de fragilidade na velhice, veiculado pelo senso comum. Seguimos apresentando a leitura de Lacan acerca de dois velhos no âmbito da literatura universal: Lear e Édipo em Colono. Procuramos indicar a necessária distinção entre drama e tragédia, distinção que atravessa a leitura feita por Lacan do texto trágico e permite demarcar certa "tragicidade" da condição humana. Nesta trajetória, encontra-se pelo viés do tragicômico, ressaltado por Lacan, a importância do cômico como campo que inclui o humor, mas também o chiste, cuja relevância na práxis com idosos é indicada através de um fragmento de análise. Situamos ainda que um chiste, ratificado em análise, apresenta-se como um terreno dentre outros, em que algum remanejamento de gozo viabiliza certa circulação da falta compatível com o rodeio próprio ao desejo.

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CAPÍTULO 1 - PARA INTRODUZIR A COMPLEXIDADE DE UMA

QUEIXA NA VELHICE

A comicidade dos médicos de Moliere provém em grande parte disso. Eles tratam o doente como se este tivesse sido criado para o médico.

Bergson

Uma pergunta que importa situar na chegada de um "idoso" ao tratamento é: de que lugar ele será ouvido em análise? Trata-se aí do lugar do especialista em envelhecimento ou de uma escuta que acolhe e recolhe as questões de um sujeito confrontado com a velhice como evento inexorável da vida? Localizar-se do lado do discurso analítico permite interrogar aquilo que um "idoso" - ao tomar a palavra sob transferência - tem a dizer sobre o seu processo singular de envelhecimento.

Iniciamos afirmando a importância de que o analista dirija-se ao sujeito dividido, ou à bela por detrás do postigo (Lacan, 1963/4) e não ao "idoso" como categoria construída (Groisman, 1999). Por outro lado, não se trata de desconhecer que a chegada ao tratamento é marcada pela presença maciça de significantes veiculados pelo discurso científico: depressão, pânico, fibromialgia, déficit de memória, fragilidade óssea, dentre outros. Estes significantes obscurecem e dificultam que se estabeleça um sintoma analisável e, por isso, requerem certo tratamento na chegada, tratamento da demanda inicial que permita abrir espaço para que o "idoso" situe em sua história, por exemplo, o que há de singular em sua depressão (Leguil, 1996). Questões tais como: " . . . porque será que eu deprimi naquele momento?" ou ainda, com relação às recorrentes queixas de quedas : " . . . por que será que naquela época eu caí tantas vezes?". Forma de colocar a questão, que se contrapõe à idéia

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20 corrente entre os especialistas de que as quedas na velhice são apenas uma decorrência natural da fragilidade óssea ou da precariedade do equilíbrio e da marcha.

É preciso apontar, em nossa época, a conjunção do discurso capitalista com a ciência tecnológica, engendrando um contexto que tem conseqüências específicas para o "idoso", que rapidamente encarna a figura do velho, do obsoleto, do ultrapassado, ali onde predominam as máscaras do novo (Mucida, 2004 ), do descartável. Além disso, abre-se, em torno do envelhecimento, todo um viés de mercado de consumo que implica a incessante oferta de técnicas e produtos que visam escamotear o inexorável processo de envelhecimento. Interessa-nos pontuar, ao longo da tese, algumas questões que focalizem, sobretudo, o impacto desta lógica sobre o discurso médico e a pergunta acerca do lugar da psicanálise neste contexto (Lacan, 1966). Nosso ponto de partida é a práxis psicanalítica com "idosos" e grande parte dos fragmentos clínicos ( embora nem todos) têm como enquadre o ambulatório NAI/UNATI e, como interlocutores e pares, profissionais da área de saúde. O acento recai, portanto, sobre o discurso vigente na área de saúde, fortemente atravessado por técnicas e procedimentos ditados pelos progressos da tecnociência. Voltaremos a este ponto no Capítulo IV. Há, portanto, como resposta ao mal estar na cultura (Freud, 1930), em nossos dias, uma inequívoca prevalência de significantes veiculados pelo discurso científico. Por esta via, tanto os especialistas como o próprio "idoso" consideram natural, por exemplo, que haja um humor algo deprimido na velhice, certa tristeza no dito fim da vida, ainda que a experiência mostre que o limite da vida não se restringe a uma faixa etária. É também considerado natural que haja todo tipo de déficits com relação ao padrão adulto normal, ideal, já que a perda é lida, em geral, do lado do déficit pelo discurso científico. É ainda considerado natural que o idoso sinta dores em decorrência de doenças crônicas que vão sendo "administradas", ao longo do tempo, pelos diversos especialistas: geriatras, enfermeiros, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, dentre outros.

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21 Na contramão da naturalização das questões, a experiência com "idosos" indica uma forte e talvez específica aderência do sujeito a esses significantes, veiculados pelo discurso científico. Este fato só reforça e esclarece a dificuldade de subjetivação das questões na velhice, além de situar o grau de fechamento com que se confronta a escuta do analista, em certas conjunturas. Consideramos que seja em tomo deste ponto que Freud chegue a formular a contra-indicação da psicanálise com pessoas "idosas", afirmando certa inércia psíquica, certa perda de plasticidade que aumentaria com o passar dos �os. Voltaremos a este ponto no Capítulo IV. V ale indicar um efeito interessante, a partir da interlocução - ao longo do tempo - com os especialistas na área de envelhecimento, do ambulatório NAI/UNATI. Trata-se da substituição, com certa freqüência, do diagnóstico de depressão pela expressão "luto não elaborado", em alguns pedidos de parecer. O que aparentemente é uma questão retórica, na verdade tem conseqüências muito precisas, já que a expressão "luto não elaborado" não é capaz de gerar qualquer protocolo médico. Depressão, por outro lado, gera um protocolo com prescrição de medicação antidepressiva por um período longo de tempo e que pode ainda ser associada a outras medicações. Freud ( 191 7) adverte quanto à especificidade do trabalho de luto, o qual exige tempo e intensos esforços daquele que sofreu uma perda significativa, para que possa chegar a termo o trabalho e seja possível alguma substituição. Concordamos com Mucida (2004) que chama a atenção, neste contexto, para a dificuldade "a mais" que se apresenta, quando o "idoso", tomado pela dor de uma perda valiosa, e que precisa trabalhar a partir da perda - trabalho de luto - encontra-se entorpecido, sob o efeito de remédios. É preciso esclarecer que há, entretanto, aquelas situações em que a entrada da medicação torna viável que "um idoso" levante-se da cama e venha falar, tamanho o grau de prostração em que se encontrava. Desta forma, cabe avaliar, a cada vez, a função e o lugar da medicação, ali onde se impõe um árduo trabalho de luto. De modo geral, na "era científica" (Lacan, 1966) há uma tendência no sentido de que a falta seja lida como déficit e como passível de ser eliminada.

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Góes (2008) esclarece que: "De um desejo articulado à falta enquanto dado estrutural, o capitalista não quer ouvir falar. Em seu lugar, formula a promessa de eliminar a falta pela aplicação da ciência à tecnologia que ofereça, no mercado, os meios de obter satisfação e negar a falta" (p.47). Já para o discurso analítico, em outra direção, a falta, a perda, a hiância remetem à estrutura e levantam a pergunta acerca de uma dimensão subjetiva. Neste sentido, a presente investigação procura introduzir algumas questões, "desnaturalizando­as". Consideramos que a sustentação deste vjés vá abrindo vias para que o "idoso" chegue a um lugar para falar e possa situar, por exemplo, de que dor se trata em sua queixa, bem como a possibilidade de chegar a construir que nem tudo em sua experiência tem a ver com a doença diagnosticada pelo saber médico.

A complexidade de uma queixa seJa ela de dor, ou de quedas recorrentes, ou ainda de esquecimentos - só se formula como tal, se houver uma escuta que possa recolher, naquilo que é relatado em análise, uma dimensão subjetiva. Entretanto, a experiência indica que há falhas, há lapsos que chamam a atenção por seu caráter obscuro. Por vezes são perturbações da lembrança, nos moldes relatados por Freud (1936) em Uma Perturbação da Lembrança na

Acrópole4, São relatos de esquecimentos, bem como de estranhamentos

(Entfremdung) com relação a "um pedaço da realidade" (p.19) ou com relação a seu próprio corpo, a partir dos quais o sujeito demonstra grande dificuldade em localizar-se. É o caso, por exemplo, de mais de um "idoso" que, ao perder-se nas ruas, não consegue retomar para sua casa e convidado a dizer algo, se cala, não há subjetivação possível. Trata-se, aí, de episódios marcados por um forte sentimento de estranheza e pela exacerbada dificuldade de situar-se frente ao ocorrido. Voltaremos a este ponto no capítulo II em tomo do estranho-familiar -Unheimlich - e no capítulo IIT em tomo do estranhamento - Entfremdung.

4 Trata-se da narração de um episódio autobiográfico. Em uma viagem à Grécia, frente à Acrópole, Freud surpreende-se com sua própria divisão, com certa hesitação com relação à existência ou não da Acrópole. Freud ( 1 936) qualifica este acontecimento de uma perturbação da lembrança, diferenciando-o de um esquecimento que implique o recalque.

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23 É assim que a chegada à análise do "idoso" costuma implicar uma complexidade que comporta a presença maciça de significantes veiculados pelo discurso científico, com a decorrente naturalização das questões. Além disso, trata-se de um momento da vida marcado por perdas significativas e não raro concomitantes, que convocam ao trabalho de luto, o qual nem sempre se realiza, fato que não é sem conseqüências para o sujeito. Há ainda um aspecto não menos importante a considerar e que é avaliado por Freud (1937) do lado de uma perda da plasticidade, uma inércia psíquica que aumentaria com o passar dos anos (voltaremos a este ponto no capítulo IV). Essa conjuntura torna fortemente exacerbada, na chegada do "idoso" ao analista, a dificuldade de implicação do sujeito em análise, tão pregnante em nossos dias. Assim, ao longo do capítulo, procuramos localizar a complexidade da realidade psíquica para o ser falante, especialmente na velhice, apreendida como evento inexorável da vida. Abordamos o nexo estabelecido, por Freud (1895), entre desamparo primordial e o campo moral. Passamos à demarcação, por Freud (1930), da resistência do isso, dos paradoxos do supereu e do masoquismo originário, próprios ao mal estar na cultura. Apontamos a dimensão pulsional e o valor de trauma de certos eventos para o ser falante. Assinalamos o enlace do supereu com o masoquismo do eu podendo convergir para a erotização da dor frente à má sorte e ao infortúnio que se apresentam na velhice como evento inexorável da vida. Apresentamos, ainda, alguns elementos da moral kantiana, que localizam o imperativo categórico - aproximado por Freud (1923) do imperioso "dever-ser" do supereu - e permitem situar uma vertente ética compatível com o desejo e diferenciada do gozo próprio à exigência de satisfação pulsional, sempre em fracasso.

1 - Velhice e destino

A velhice apreendida com evento inexorável da vida implica perdas súbitas de referências significativas, por vezes concomitantes, que acarretam urna dor "dilacerante" e apresentam-se no discurso, muitas vezes, como 23

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insubstituíveis. Para alguns idosos tais conjunturas podem chegar a situar-se em sua fala com valor de trauma ou como decorrência de uma sina, um destino obscuro que infinitiza a dor e o sofrimento.

Não é raro que um "idoso" se queixe, em análise, de um erro de cálculo formulado em outro momento de sua vida, tal como: " . . . eu achei que teria uma velhice tranquila . . . " ou, ainda, em tom de avaliação: " . . . parece até um castigo ... o que eu fiz para merecer isso?" A alusão a uma sina ou destino ou ainda ao castigo imposto nos deixa entrever que o infortúnio vivido como merecido, tende a ser lido como aplicado por uma instância que examma e julga, em termos freudianos, o supereu (Freud, 1923).

Vale lembrar que para Freud as dificuldades, os pontos de impasse na clínica, sempre funcionaram como bússola para fazer avançar a psicanálise sem cair , na "hipertrofia da especulação" (Freud, 1933). A teoria das pulsões, por exemplo, longe de ser ratificada em termos puramente energéticos, é localizada pelo próprio Freud ( 1933) como "nossa mitologia" (p.119), reintroduzindo aí a complexidade com que se lida.

Em A Negativa, ao abordar a dimensão pulsional, em um tempo primordial de fundação, de estruturação, Freud (1925) demarca a incidência de dois processos na formação do eu prazer originário: a afirmação (Behajung) e a expulsão (AusstofJung) que result� na partição primordial: em mim/fora de mim. O que resta excluído constitui o mal, o estranho. Freud retoma aí alguns elementos já antecipados desde 1895, em tomo de algo que se subtrai ao juízo e que resta inassimilável. Vale lembrar que A Negativa é um texto posterior à afirmação da pulsão de morte e da compulsão à repetição (Freud, 1920), bem como do supereu (Freud, 1923) e ainda do masoquismo originário (Freud, 1924). Situa-se, portanto, em um contexto em que o princípio do prazer implica o mais além do princípio do prazer, ou seja, implica a repetição de um esforço, sempre em fracasso, de ligar no solo do prazer (Freud, 1920), aquilo que se apresenta como resto inassimilável.

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É, portanto, neste enquadre que Freud (1925) demarca, em um tempo originário, a função do juízo que se desdobra em "duas decisões" (p.11 ) : atribuição e existência5

. Em tomo do juízo de atribuição, Freud aponta aquilo que se expressa "na língua das mais antigas moções pulsionais orais: '(Eu) quero comer isto ou quero cuspi-lo"' (p. 11). Vidal (1988) avalia que " . . . ao abordar a pulsão como língua, Freud afasta toda possibilidade de pensar as pulsões ditas primárias como constituídas fora do campo da linguagem. O que se ordena, em termos da pulsão, padece da estrutura gramatical que uma língua impõe" (p.25). Abre-se aqui a via, trilhada por Lacan, em que a pulsão é abordada como implicada na linguagem, como estrutura. Lacan formalizará o matenia da pulsão como $<>D, indicando a implicação da demanda do Outro na dimensão pulsional. Uma vez mais em A subversão do sujeito e a dialética do

desejo Lacan (1966) define a pulsão como " . . . o que advém da demanda quando o sujeito aí desvanece." (p. 831 ), indicando por um lado o caráter acéfalo da pulsão, mas também a implicação da linguagem ao situar aí a dimensão da demanda.

Para fins de nossa pesquisa, há uma referência valiosa em Análise finita .. . . Trata-se da afirmação de Freud (1937) de que por duas vezes no curso da vida, " .. . emergem reforços consideráveis de certas pulsões: durante a puberdade e, na mulher, próximo à menopausa" (p.229). Consideramos que Freud procure indicar aí, um evento no curso da vida do ser falante - assim como a puberdade - em que se apresentam questões, para o sujeito, que configuram uma exigência de trabalho. Por esta razão, tomaremos a referência à menopausa 6 como referência ao climatério, termo também presente no texto de Freud (1894) com relação a homens, na senescência. Desta forma, ao privilegiarmos o termo climatério pretendemos focalizar questões que configuram uma exigência de trabalho psíquico para o ser falante.

5 Voltaremos ao juízo de existência em correlação com a prova de realidade, que comanda o trabalho de luto, no capítulo III. 6 Nos limites desta pesquisa não aprofundaremos a menopausa como questão específica. Cabe, entretanto, indicar a relevância de trabalhos que possam situar questões referentes, por exemplo, ao nexo entre a menopausa e a questão do feminino.

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Retornando ao texto, Freud (1937) faz o seguinte comentário: " . . . Em nada nos surpreende que pessoas que antes não eram neuróticas, tomem-se nessas épocas. A dominação das pulsões que haviam conseguido quando estas eram de menor intensidade, fracassa agora com seu reforço" (p.229). O que é surpreendente nesta indicação é a apresentação do climatério como equivalente, em termos de reforços pulsionais, à puberdade. Surpreende, por apresentar-se na contramão dos relatos tanto de sujeitos em análise, quanto de alguns analistas como F erenczi que referem uma diminuição, um decréscimo libidinal e não um reforço neste momento da vida. Como entender esta indicação de Freud? O reforço pulsional em jogo na puberdade seria da mesma ordem daquele referido ao climatério ou seria necessário fazer aí, alguma distinção? Voltaremos a essa discussão no capítulo IV. Vale apontar que Freud conclui o parágrafo esclarecendo que o mesmo impacto produzido por esses dois reforços pulsionais, pode ocorrer de maneira irregular em qualquer outra época da vida ". . . em virtude de novos traumas, frustrações impostas . . . " (p. 229) . Temos aqui, portanto, duas referências fundamentais: a primeira diz respeito a um excesso, um "a mais", um reforço pulsional que, como procuramos indicar, não se situa sem a linguagem. Já a segunda referência, em tomo do conceito de trauma, requer que a demarquemos um pouco mais. O questionamento de Freud acerca da dimensão traumática atravessa toda a sua obra. Inicialmente, em tomo da teoria da sedução, a qual não se sustenta frente ao que da clínica vai se apresentando (Freud, 1897). Também a pergunta que insiste em sua discussão com Jung acerca do real traumático (Freud, 1914), tendo como pano de fundo os elementos situados pela análise do "homem dos lobos" (Freud, 1918) e a demarcação da realidade psíquica como decisiva na neurose, como tendo eficácia de realidade (Freud, 1917). Finalmente em Moisés . . . , Freud (1939) apresenta uma definição de trauma que o localiza em relação à entrada na linguagem. Aponta que:

Os traumas correspondem à primeira infância, até os cinco anos aproximadamente. As impressões do período em que

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se m1c1a a capacidade de linguagem destacam-se como de particular interesse; o período entre os dois e os quatro anos aparece como o mais importante; não se pode estabelecer com certeza o momento, a partir do nascimento, em que se m1cia este período de receptividade 7. (p. 7 1 )

Com relação àquilo que se registra neste "período de receptividade", Freud esclarece que " . . . os traumas são ou vivências no corpo próprio, ou percepções sensoriais, na maioria das vezes de algo visto ou ouvido, vale dizer, vivências ou impressões." (p. 72). Acrescenta que tais vivências caem sob esquecimento, incidem no período de amnesia infantil e relacionam-se a impressões de natureza sexual e agressiva, bem como a danos precoces ao eu. Eschrrece que as crianças, nesta época, não distinguem ainda entre atos sexuais e agressivos.

Do lado dos efeitos do trauma, Freud assinala os efeitos positivos e os negativos. Acerca dos efeitos positivos, que visam atualizar o trauma esquecido, assinala poder resumir " . . . tais empenhos como fixação no trauma e compulsão à repetição" (p. 72/3) . Do lado dos efeitos negativos indica, contrariamente, esforços para que nada do trauma seja recordado ou repetido. Qualifica estes esforços de reações defensivas expressas por evitações, chegando a inibições e fobias. Sobre a articulação com os sintomas neuróticos agrega que, como formação de compromisso, ora expressam uma vertente, ora outra vertente do trauma.

A localização do trauma - referido a um tempo primordial de constituição subjetiva - situa a especificidade do conceito de trauma para a psicanálise. Para que um evento defina-se como traumático, é preciso no mínimo dois tempos, já que só-depois - Nachtrãglich - é possível afirmar o valor de trauma ou não de um evento para o sujeito, ou seja, somente a partir dos seus efeitos.

Exemplar para situar a questão do valor de trauma, construído em análise, só-depois, é o sonho do "homem dos lobos" relatado por Freud (1918). Trata-se de um sonho ocorrido quando Sergei Petrov tinha quatro anos e

7 A tradução é nossa dos trechos da edição em espanhol, citados ao longo da tese.

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28 narrado, em análise, cerca de vinte anos mais tarde. O fato é que após seu sonho com os lobos, acorda sob intensa angústia, demonstrando que este evento - um sonho - teve valor de trauma para o sujeito. Este fato pode ser estabelecido, "só­depois", pelo trabalho de construção em análise, que - ainda que fragmentário -sempre toca o infantil. 2 - Uma satisfação de outra ordem

Desde muito cedo, Freud (1895) confronta-se, em sua investigação, com enigmas e paradoxos próprios ao campo moral. Já no "Projeto", faz importantes indicações. A demarcação feita em tomo de das Ding como alteridade absoluta, inassimilável ao juízo, permite afirmar a questão do objeto, par� a psicanálise, como desde sempre perdido, em tomo do qual se articula um aparelho desiderativo. O desejo como impulso indestrutível, consiste na busca sempre renovada e impossível de uma satisfação originária. Vale assinalar que a demarcação feita por Freud em tomo de das

Ding é retomada por Lacan (1959/60) em A Ética da Psicanálise. É com esta referência :freudiana que Lacan (1963/4) decanta o objeto a como vazio que a pulsão contorna permitindo que se opere, clinicamente, com a importante indicação de que não há objeto no campo da demanda, que responda pela questão do desejo. Para Lacan (1962/3) o objeto do desejo é o objeto que causa o desejo e a perda não é contingente, é estrutural e está implicada na localização do desejo como desejo do Outro. Trataremos desta questão no Capítulo II. Para Freud (1895, 1900), a primeira experiência mítica de satisfação localiza a forma como a variação da tensão interna - correlata, por exemplo, à fome - leva à possibilidade de que o grito seja apreendido como apelo no campo do Outro, conduzindo a uma "ação específica". Tal ação específica é apresentada como capaz de reduzir a tensão e relançar o movimento, cavando -via repetição, sempre em :fracasso, que visa o reinvestimento do traço correspondente à percepção do objeto implicado na satisfação - o campo da

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demanda e do desejo indestrutível, como dissimétricos à necessidade. Neste ponto, cabe destacar o comentário de Freud de que ali onde o grito como descarga é apreendido como apelo: " . . . Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação ... " (p.422), em uma precisa referência de Freud ao campo da linguagem, em um tempo de fundação que implica o Outro. Logo a seguir, no texto, afirma: ". . . e o desamparo [Hilflosigkeit] inicial dos seres humanos é a fonte primordiaz8 de todos os motivos morais ... " (p. 422).

Cabe ressaltar que o nexo estreito estabelecido por Freud entre a condição de desamparo primordial do infans e o campo moral é de grande importância para nossa investigação, pois situa claramente a possibilidade de que conjunturas traumáticas que relancem a primordial condição de desamparo tenham como derivação "motivos morais" que serão posteriormente localizados por Freud, a partir de 1920, em tomo de conceitos tais como pulsão de morte, supereu e masoquismo originário. O fato é que desde 1895, Freud situa a complexidade do campo moral, que na velhice pode chegar a se tomar exacerbado, hipermoral.

Uma das importantes contribuições da psicanálise é exatamente demonstrar - a partir de sua práxis - que o ser falante é muito mais moral do que supõe e muito menos do que gostaria. Freud (1930) chega a afirmar que quanto mais moral um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento, evidenciando a lógica do supereu segundo a qual quanto maiores as concessões, maiores as exigências (Lacan, 1959/60).

Em O Mal estar na cultura, Freud (1930) assinala o paradoxal efeito da má sorte sobre o homem, ou seja, aponta que enquanto a vida de alguém transcorre tranqüilamente "sua consciência moral é clemente e permite ao eu empreender todo tipo de coisas" (p.122). Entretanto, quando o infortúnio sobrevém, o homem "... se mete dentro de si, discerne sua pecaminosidade, aumenta as exigências de sua consciência moral, se impõe abstinências e se

8 - Os termos encontram-se em itálico no texto de Freud.

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castiga mediante penitências" (p.122). Freud atribui este efeito ao fato de que o destino é encarado como o derradeiro representante da instância parental. Na medida em que sobrevém a infelicidade, a má sorte, isso significa que não se é amado por esses poderes supremos. Assim, sob a ameaça da perda de amor, o eu submete-se à representação dos progenitores no supereu, que se toma mais e mais exigente.

Freud (1930) aponta ainda a reação terapêutica negativa, a consciência de culpa e a necessidade de castigo, correlata ao sentimento inconsciente de culpa (Castilho, 1997) como indicativas da ocorrência do am�gamar e desamalgamar pulsional. Interroga as condições em que ocorrem, aventando a possibilidade de que haja porções da pulsão de morte operando não apenas de forma ligada, mas, também, de forma livre9

. Vemos aparecer no texto de Freud (1937) a seguinte questão: "É possível tramitar de maneira duradoura e definitiva, mediante a terapia analítica, um conflito da pulsão com o eu?" Freud explica que o desenlace depende da "intensidade pulsional" (228) e, um pouco adiante, conclui: " . . . a transmutação se consegue, mas, só parcialmente . . . setores do mecanismo antigo permanecem intocados" (232). A indicação da parcialidade dos processos, que sempre deixam restos, é uma constante neste texto : vestígios da velha neurose, "restos transferenciais" (p.221) e com respeito à incidência da pulsão, avalia que sempre há "fenômenos residuais" (231). Retornaremos à discussão acerca do resto como inassimilável no Capítulo IV.

Freud (1937) afirma, a partir da experiência, certos elementos clínicos - a viscosidade da libido, a inércia psíquica - que o levam a inferir uma "resistência do isso", chegando a situar uma "resistência à descoberta de resistências" (241 ). Com relação aos "idosos" faz referência à força do hábito em pessoas de mais idade, bem como em A questão da análise leiga (Freud, 1926) avalia a dificuldade que se coloca diante da expectativa de que: " . . . um processo pulsional que tenha seguido um caminho específico durante décadas, de súbito siga uma nova trilha que acabe de ser aberta para ele." Neste ponto

9 Sobre esta questão confira Freud ( 1924, 1933) em O problema econômico do masoquismo e Por quê a guerra?

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conclui avaliando que " . . . isso poderia ser denominado de resistência do Isso" (p. 254). Cabe assinalar que esta indicação geral, em tomo de uma dimensão estrutural da resistência, ganha relevância em se tratando da experiência com idosos, já que Freud agrega aí uma surpreendente diminuição da plasticidade da libido. Há, portanto uma importante indicação com respeito aos velhos, já que tanto Freud (1904, 1937) apóia sua contra-indicação, neste ponto, como a escuta da queixa de alguns "idosos" em análise o ratifica: há velhos, mas, é preciso dizer, também há jovens que têm dificuldades para inventar, para inovar.

Importa ressaltar, seguindo o texto freudiano, que capturado em uma lógica fantasmática na qual "... a realidade psíquica é a realidade decisiva" (Freud, 1917, p.430), o ser falante se orienta por uma realidade segundo a qual até mesmo o infortúnio e o sofrimento que se apresentam na vida, tomam-se ocasiões para o incremento das exigências do supereu.

Freud (1924) aponta o supereu, como o imperativo categórico de Kant e sobre isto comenta que contrariamente ao que supõe a ética tradicional, a gênese da consciência moral depende, deriva da instauração do supereu (Freud, 1930). Por esta via - em sua investigação acerca do caráter hipercruel, hipermoral a que podem chegar as relações de um supereu tomado sádico e de um eu tomado masoquista - Freud (1924) aponta a possibilidade de uma re­sexualização da moral e localiza o enlace da libido com a pulsão de morte no masoquismo. Neste enlace, Freud (1923, 1924) afirma uma satisfação de outra ordem, além do princípio do prazer, que lhe permite esclarecer, por exemplo, o enigma do suicídio na melancolia. Trata-se de uma satisfação pulsional, que, podemos dizer com Lacan, implica uma economia de gozo. Vejamos, em seguida, alguns elementos da moral kantiana que permitem esclarecer a aproximação feita por Freud entre o supereu e o imperativo categórico, bem como situar a indicação de Lacan (1959/60) acerca do " ... caráter complexo da dor. .. " (p . 78), queixa que se apresenta de forma recorrente no relato de "idosos", em análise.

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3 - Um tribunal particular que implica dor

A articulação estabelecida por Freud (1923) entre o imperativo categórico e o supereu é ratificada por Lacan ( 1966) que interroga os paradoxos da moral kantiana10

. Partimos aqui desta indicação de ambos, apresentando algumas considerações sobre o imperativo categórico e a Lei moral buscando esclarecer, assim, a indicação de Freud (1923) segundo a qual " . . . o eu se submete ao imperativo categórico 1 1 de seu supereu" (p.49). Procuramos apontar alguns elementos que levam Kant 12

( 1 788) a afirmar o exercício da Lei moral como "um tribunal particular" (p. 104) que implica dor (p. 88). Tal afirmação permite demarcar com Kant, um viés moral que aponta ao particular e, portanto, diferenciado de uma moral compartilhada. Trata-se de uma distinção que Lacan (1959/60) privilegiará visando localizar uma ética do desejo, por sua vez, distinta do imperioso dever-ser do supereu. Por esta via, pretendemos apontar a complexidade que pode chegar a ter uma queixa de dor, tão presente nos momentos em que se é convocado ao trabalho de luto, por uma perda valiosa, na velhice. Iniciemos com uma citação de Kant ( 1788) acerca da Lei moral :

O pensamento a priori de uma legislação universal possível . . . é ordenado incondicionalmente como lei , sem nada tirar da experiência ou de qualquer vontade exterior. . . À consciência desta lei fundamental pode chamar-se um fato (Faktum) da razão . . . importa observar , a fim de considerar, sem falsa interpretação, esta lei como dada, que não é um fato empírico mas o fato único da razão pura, que assim se proclama como originalmente legisladora . . . (p.43) .

Podemos apreender nesta citação alguns pontos fundamentais. Por um lado, vemos o estatuto de Lei que ordena de forma universal, logo, incondicionalmente e não de forma contingencial. Por outro lado, sua expressão

10 - Confira Lacan em Kant com Sade e também no Seminário A Ética da Psicanálise. 1 1 Vale conferir também a frase de Freud ( 1 924) segundo a qual : " . . . o imperativo categórico de Kant é a herança direta do complexo de Édipo" (p. 1 73). 12

-Transcrevemos aqui algumas considerações acerca da moral kantiana, que foram estabelecidas como produção de final de cartel na Escola Letra Freudiana, do qual fiz parte junto com Eduardo Vidal, Renato Bonfatti e Maria Islai de Gusmão.

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na consciência é apresentada como fato único da razão pura e, portanto, não se encontra articulada nem a uma vontade exterior, nem a um fato empírico.

Este fato da razão, do qual se tem consciência, remete ao conceito de liberdade já abordado por Kant, embora em um sentido estritamente negativo, ou seja, liberdade como ruptura da causalidade natural que " . . . nos transfere para uma ordem inteligível das coisas . . . " (Kant, 1788, p.55), abrindo um campo de possibilidades, de escolhas, de livre arbítrio, no qual é possível conceber tanto a espontaneidade do agir como a imputação de responsabilidade pelos atos. Neste âmbito propriamente humano, racional, não são mais os mecanismos naturais que regulam os atos.

Uma tal concepção de liberdade, entretanto, não é passível de ser ordenada incondicionalmente e sim segundo leis empiricamente condicionadas. Para ,Kant é fundamental situar algo que a restrinja. Kant busca determinar em oposição à heteronomia aberta pelo sentido negativo da liberdade, a autonomia da vontade.

É na Fundamentação da Metafisica dos Costumes e na Critica da Razão Prática que Kant confere à liberdade um sentido positivo, articulando-a à Lei moral. Por esta via, pode-se, então, falar de uma vontade livre, auto­legisladora, que tem um fim em si mesma, independentemente da experiência e cuja expressão na consciência se dá de forma coercitiva. Kant restringe, assim, o campo até então aberto pelo sentido negativo da liberdade, tomando possível ordenar o que seja moralmente bom, incondicionalmente. A liberdade, neste sentido positivo, engendra uma realidade que implica a Lei moral.

Ao falar em uma vontade autônoma, livre, é importante que possamos apontar alguns ângulos desta faculdade - a vontade - para Kant ( 1785) : " Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo representação de leis, isto é, segundo princípios ou: só ele tem vontade . . . " (p.217). Em outro lugar, Kant explicita que " . . . a vontade está colocada entre o seu princípio a priori, que é formal e o seu móbil a posteriori, que é material, por assim dizer em uma encruzilhada . . . " (p.208). É

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interessante notar a referência aqui usada por Kant - uma encruzilhada. Como situar esta indicação? Por um lado, Kant concebe uma vertente da vontade a priori, formal, livre no sentido positivo e, enquanto tal, coercitiva; por outro lado, deixa claro que dada a condição humana, há princípios subjetivos do querer, expressos por máximas, as quais podem ter ou não valor moral.

Kant ( 1 788) reconhece que o homem é afetado por necessidades que situam um aspecto da razão meramente instrumental, ou seja, a razão indica o quê fazer ( como meio) para atingir um determinado fim. Reconhece, ainda, que a imperfeição subjetiva do humano pode levá-lo a agir sob condição, segundo a " . . . matéria da faculdade de desejar ( objetos da inclinação, quer da esperança, quer do temor)" (p.89-90). Desta forma, vemos que as máximas que determinam as ações podem ou não coincidir com a forma da Lei moral.

Nesta direção, a referência a uma encruzilhada parece indicar um campo de conflitos entre a dimensão moral que é coercitiva e uma dimensão sujeita a ser afetada pela faculdade de desejar. Situada esta complexidade, esta especificidade da vontade acompanhemos, com Kant (1785), como se expressa a dimensão coercitiva da lei: "A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento ( da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo" (p.218). Kant segue esclarecendo que "todos os imperativos mostram . . . a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que segundo a sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada". Acrescenta ainda que os imperativos " . . . são fórmulas para exprimir a relação entre leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva . . . da vontade humana" (p.218). Kant pondera que com respeito a u ma vontade santa não podemos situar um imperativo, pois, o querer coincide necessariamente com a lei. Desta forma, os imperativos indicam a imperfeição subjetiva da vontade e, nesta direção as máximas que expressam princípios subjetivos do querer, constituem-se como a via pela qual o homem pode "esquivar-se" transformando o que é moral, logo, incondicional em condicionado, sem valor moral.

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Como pode, então, o homem orientar-se com relação à Lei moral? Como se faz representar a Lei, de forma a nortear a vontade inequivocamente, expressando-se por uma máxima que esteja em conformidade com a Lei? Neste ponto, Kant (1788) enuncia a fórmula da Lei universal das ações em geral - o imperativo categórico - o qual deve servir de princípio único à vontade: "Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal (p.42)". Alerta para o fato de que o imperativo categórico não pode se ap01ar em nenhum pressuposto, diferentemente do que ocorre com os imperativos hipotéticos. Vejamos a conseqüência imediata para Kant ( 1785):

"Não se pode demonstrar por nenhum exemplo, isto é, empiricamente, se há por toda parte um tal imperativo; mas há a recear que todos os que parecem categóricos possam afinal ser disfarçadamente hipotéticos. . . Neste caso. . . o pretenso imperativo moral que como tal parece categórico e incondicional , não passaria . . . de uma prescrição pragmática que chama a nossa atenção para as nossas vantagens e apenas nos ensina a tomá-las em consideração" (p. 222).

E Kant exemplifica: " Não deves fazer promessas enganadoras" (p.222), que em um primeiro momento explicita uma ação que é má por si mesma mas que, entretanto, pode trair um pressuposto como o que se segue : "Não deves fazer promessas mentirosas para não perderes o crédito quando se descobrir o teu procedimento .. . " (p.222), tornando, assim, o que é incondicional em condicionado , sem qualquer valor moral.

É importante introduzir aqui um conceito que é central na discussão conduzida por Kant - o conceito de dever. Kant enuncia que " . . . todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (Sollen} 13

. . . " (p.218) e este é articulado à necessidade de ação por respeito à lei. Podemos apreender claramente a diferença para Kant (1788), com relação ao dever, nos dois tipos de imperativo. No imperativo categórico, a ação é "por dever" e no imperativo hipotético é "conforme ao dever" (p.97) ou, dito de outra forma, no imperativo

13Vale lembrar que o imperativo ético estabelecido por Freud e retomado por Lacan, apresenta­se conforme esta fórmula delimitada por Kant: wo es war soll ich werden

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categórico a vontade apenas reconhece e aceita a necessidade de agrr por respeito à lei e no imperativo hipotético a vontade busca alguma justificativa, parte de algum pressuposto. Retornemos agora, de posse do que até então expusemos, a alguns aspectos referentes à prática moral, propriamente dita. Acompanhamos com Kant, o quanto é impossível discernir sobre o valor moral ou não de um ato praticado por outrem. O que confere ao ato seu valor moral é, para Kant, em última instância, uma disposição de agir por dever, uma intenção que seja congruente com a possibilidade de universalização das máximas, uma intenção que afirme a necessidade da ação por respeito à lei, devendo as máximas deixarem de ser princípios subjetivos do querer, para objetivarem-se segundo a forma da Lei. É exatamente neste ponto que a fórmula da Lei universal das ações, em geral - o imperativo categórico - ganha todo o seu alcance, servindo de bússola para a prática moral de um homem. E aqui podemos situar a indicação de Kant ( 1788) de que se trata de um "tribunal particular":

A dignidade do dever em nada se coaduna com a satisfação de viver; tem a sua lei específica e também o seu tribunal particular, e ainda que se quisesse agitá-las as duas em conjunto para, misturadas as dar à maneira de remédio à alma doente, logo se separariam espontaneamente . . . (p. l 04). Desta forma, a Lei moral constitui-se como um ordenador incondicional que, entretanto, só se decide no particular. Importa ressaltar ainda uma dupla implicação, apontada por Kant ( 1 788), com relação à prática moral. Por um lado, enfatiza uma vertente que é de respeito, interesse pela Lei, que configura uma "elevação", uma "auto-aprovação" (p.96), despertados pelo exercício de uma prática ordenada pela Lei moral. Por outro lado, entretanto, deixa claro que o caráter coercitivo da Lei causa danos aos fins das inclinações. Chega mesmo a situar um tal exercício da Lei moral como capaz de " provocar um sentimento que pode chamar-se dor. . . " (p.88).

Lacan ( 1959/60) chama a atenção para o nexo entre o exercício da Lei moral e a dor (p. 1 02). Vemos aparecer no texto kantiano uma satisfação 36

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referida ao campo moral, que pode enlaçar-se à dor, ecoando aquilo que Freud chega a precisar, a partir de 1920, com a afirmação da pulsão de morte e, sobretudo, em 1924 ao situar o enlace da libido com a pulsão de morte no masoquismo. É assim que com Freud e Lacan, o imperioso dever-ser do supereu - imperativo categórico kantiano - fica estabelecido como imperativo de gozo. Trata-se de um enquadre que nos permite afirmar a complexidade de uma queixa de dor, tão frequente na queixa de "idosos" e que retomaremos ao abordar as pontuações de Freud acerca da economia da dor em Inibição . . . , no capítulo III.

Vimos com Kant que todo imperativo se exprime pelo verbo dever (sollen). Vimos também a importância para Kant de situar uma dimensão particular da moral, diferenciada de uma moral compartilhada. O fato é que desde a práxis psicanalítica, importa ainda diferenciar particular e singular, como o situa Lacan ( 197 5): ". . . vale a pena se arrastar por uma série de particulares para que . . . alguma coisa de singular não seja omitida" (p.23). Por esta via, pretende-se precisar a distinção entre o particular referido ao universal 14

, tal como Kant apresenta o imperativo categórico: um "tribunal particular" e o singular - mais do lado do sujeito da experiência psicanalítica -já que não haveria universo de discurso (Lacan, 1966). Trata-se de uma diferenciação que possibilita localizar o imperativo categórico kantiano como distinto do imperativo ético estabelecido por Freud e retomado por Lacan (1959-60) - Wo es war sol/ ich werden - referido ao campo do desejo e não ao gozo ordenado pelo supereu e implicado na exigência, sempre em fracasso, da satisfação pulsional.

14 Vale conferir o artigo Huit theses sur l'universel, de Alain Badiou disponível em: http://ww,.v. lacan.com/baduniversel.htm

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CAPÍTULO II - VELHICE E PERDA NA NEUROSE I: TRABALHO A

PARTIR DA PERDA

Acho que isso se chama o 'desapego da velhice ' . . . A mudança que está se verificando talvez não seja muito visivel: tudo é tão interessante como antes, as qualidades não são muito diferentes, mas falta um certo tipo de ressonância; nada musical como sou, imagino que a diferença seja algo assim como usar ou não o pedal.

Freud, 1925

Freqüentemente a queixa de "idosos", em análise, gira em tomo das inún:\eras e, em muitas ocasiões, concomitantes perdas que relatam ter sofrido. Por vezes, trata-se da perda de um filho amado e ou do cônjuge, companheiro de toda uma vida. Frente à magnitude das perdas, relançadas por acontecimentos deste porte, é comum a presença do seguinte relato: " .. . é como se tivessem arrancado um pedaço meu: um braço, uma perna . .. ". Frase que situa, claramente, a afirmação de Freud de que a perda de alguém amado é vivida como perda no próprio eu (Freud, 1915) e convoca a um trabalho que requer e implica tempo para que seja possível re-situar o campo narcísico e, também, o rodeio do desejo (Freud, 1895) : o trabalho de luto.

Neste capítulo iniciamos localizando o trabalho de análise que, para Freud, implica duas dimensões: elaboração e construção. Seguimos situando elementos clínicos a partir das pontuações de Freud em Efimero15 e O Estranho. Pretendemos por esta via, chegar a demarcar a distinção, para Lacan, entre a angústia como fenômeno e como lugar estrutural e sua função, em articulação com o objeto a e o desejo do Outro. Avançando nesta direção, abordaremos as operações de alienação e separação.

1 5 Ao longo da tese utilizaremos a termo proposto por Vidal (2009): Efêmero, como tradução para o texto de Freud ( 1 9 16) Verganlichkeit, traduzido pela Imago ao português como Sobre a Transitoriedade e pela Amorrortu como La Transitoriedad

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1 - Trabalho de análise: Durcharbeitung e construção

Freud (1915) em Nossa atitude para com a morte aproxima a vida a uma partida de xadrez em que um "movimento em falso" (p. 329) pode nos forçar a desistir do jogo, com a diferença de que não haveria outra partida possível. Também em Sobre o início do tratamento, Freud (1913) faz a aproximação entre uma partida de xadrez e uma psicanálise onde é possível dizer algo apenas sobre o início e o término e afirma, entre o início e o término, a s�gularidade do trabalho analítico, sob transferência.

A noção de trabalho, A rbeit, em Freud possui ressonâncias em direções diversas. Dentre elas temos a referência ao cotidiano trabalho, livre:µiente escolhido e que é apontado por Freud (1930), juntamente com o amor, como as atividades humanas fundamentais. Cabe assinalar que nesta indicação podemos vislumbrar a especificidade e a força do trabalho sob transferência, o qual implica o amor de transferência. Com relação aos sonhos, temos o trabalho de ciframento do sonho (Freud, 1900) lido em um segundo tempo, quando do endereçamento ao analista "só-depois". Há ainda o trabalho de luto (1915), crucial para a presente investigação e a necessária distinção entre trabalho de elaboração - Durcharbeitung - e construção como vertentes do trabalho de análise que procuramos especificar nos parágrafos que se seguem.

Os conceitos freudianos de construção e trabalho de elaboração abordam, portanto, dimensões próprias ao trabalho de análise. Procuramos articulá-los tomando como eixo textos tardios tais como Inibição, Sintoma e

A ngústia (1926), A nálise Finita e Infinita (1937) e Construções em Análise

(1937). Este ponto de partida mostra-se fundamental para situar a posteriori, o trabalho de elaboração e a construção em textos anteriores à virada teórica de Mais além do Princípio do Prazer (1920), onde Freud extrai conseqüências da afirmação da pulsão de morte.

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O termo Durcharbeitung tem levantado problemas de tradução ao longo do tempo. Trata-se de um termo coloquial da língua alemã, escolhido por Freud para falar do cotidiano trabalho de uma análise. Durcharbeitung evoca a realização de uma tarefa que supõe algum franqueamento, como, por exemplo, um trabalho que é realizado de um extremo ao outro, do início ao fim - tal como o corte de um tecido que pela via do trabalho chega, finalmente, ao vestido acabado - implicando, assim, alguma travessia. Ao referir-se à Durcharbeitung, Lacan costuma usar o próprio termo em alemão ou, trabalho de elaboração, trabalho de análise ou, ainda, em inglês: working through. Seguiremos, aqui, a opção feita por Lacan de sustentar a tradução do termo como uma questão.

É em articulação com o texto Análise Finita . . . que a construção situa­se de forma mais específica em tomo da pergunta sobre a duração de uma análise. Freud (1937) indica a importância da construção, em análise, de algo da "pré-história esquecida" (p.262) e faz recair a ênfase no efeito produzido pela construção. Interessa menos o conteúdo da construção e mais o efeito que produz. Por exemplo: a abertura ao trabalho proporcionada por um sonho que confirme determinada construção. E, ainda, em um sentido mais estrito, a convicção que se produz na verdade da construção, como um efeito. Freud se apressa em esclarecer que está em jogo na construção um substituto parcial, não integral. Deixa mesmo, como questão, de que maneira é possível que um fragmento da construção exerça efeito. Sustenta, entretanto, que a construção, ainda que parcial, tem efeitos e refere-se a algo da "pré-história esquecida". Desde Bate-se numa criança Freud (1919) procura demonstrar o caráter necessário da construção frente ao limite da rememoração. Comenta, a propósito da terceira frase da fantasia de espancamento, ter obtido invariavelmente a mesma resposta : "não sei nada mais sobre isso: bate-se numa criança" (p.179). Importa aqui, sobretudo, a abertura à construção presente nesta frase "não sei nada mais sobre isso". No conjunto do texto, a abertura referida a um ponto limite do saber, parece confirmar-se ao acompanharmos Freud em

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seus comentários sobre a construção do segundo tempo da fantasia: "sou açoitado pelo pai" (p.183). Vejamos o que diz ele:

Esta segunda fase é de todas a mais importante e plena de conseqüências, mas em certo sentido pode dizer-se dela que nunca teve uma existência real . Em nenhum caso é recordada, nunca chegou a se tomar consciente. Trata-se de uma construção da análi se, mas, nem por isso é menos necessária (p. 1 83) .

Tal é, para Freud, a especificidade da construção. A construção toca um ponto do trabalho analítico, que escapa ao campo de rememoração. Para que seja estabelecida, a construção tem que ser trazida à luz a partir de indícios deix_ados. Segundo Freud (1918), na construção em análise de neuróticos, opera certo constrangimento de uma herança arcaica, de um " . . . patrimônio regular de seu tesouro mnêmico .. . " (p.57). Os indícios deixados reportariam tanto à pré­história esquecida, quanto a ". . . precipitados da história da cultura humana" (p.108). Chega mesmo a afirmar que nos casos em que " . . . as vivências não se adequam ao esquema hereditário chega-se a uma refundição delas na fantasia . . . " (p.108). Esta dimensão originária, fantasmática, sinaliza que, efetivamente, a construção escapa ao campo da rememoração e, por outro lado, reafirma o necessário lugar de tal construção, em uma análise.

Trata-se, portanto, de uma construção, sob transferência, a ser estabelecida a partir de indícios deixados e que é necessária, ainda que não toda, não integral. V ale reiterar que, para Freud, o efeito que se produz é de convicção (Überzeugung) na verdade da construção em análise.

Em Análise Finita . . . Freud interroga o limite da operação analítica. O problema do término de uma análise vai fazendo surgir duas vertentes de limite em jogo no trabalho analítico. Por um lado, o limite colocado pelo que a interpretação não esgota. O trabalho da cadeia associativa sempre alude a outro sentido possível. Trata-se de uma conseqüência direta da própria equivocidade da linguagem. A propósito da análise do Homem dos Lobos, Freud (1937) faz referência a " . . . vestígios de sua velha neurose . . . restos transferenciais" . . . (p.221 ). Por outro lado, outra vertente de limite vai sendo circunscrita no texto, ligada às conseqüências da incidência da pulsão. A intensidade pulsional impõe

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outra vertente de limite ao trabalho analítico já que "quase sempre há fenômenos residuais" (p.231), retomaremos a esse ponto no capítulo IV.

Em conexão com essa dupla dimensão de limite, Freud afirma a partir dos impasses, dos fracassos na experiência analítica, uma resistência de outra índole. Trata-se, aqui, de ". . . uma resistência à descoberta das resistências .. . " (p.241), implicada na resistência do isso. Já em Inibição . . . Freud (1926) articula o trabalho de elaboração (Durcharbeitung) à resistência do isso. Esta direção, permite retomar e reavaliar a posteriori as conexões feitas por Freud (1914) em Recordar, Repetir e Elaborar entre Durcharbeitung e resistência. Freud acentua neste texto que, ao avançar, o trabalho analítico encontra resistências. A partir de 1 926, entretanto, ao afirmar diferentes dimensões da resistência, Freud ( 1926) é levado a precisar que, em função da resistência do isso, há abertura ao trabalho analítico e não o contrário. Por esta via, 'depreende-se que há uma dimensão da resistência, estrutural, que responde, que é " . . . responsável pela necessidade da elaboração . . . " (p.150).

Fica demarcado, aqui, um giro teórico que permite distinguir diferentes dimensões da resistência e localiza a resistência do isso como fundamental, estrutural. Neste contexto a Durcharbeitung define-se, sobretudo, como um trabalho que se ordena em relação ao limite colocado, por um lado, pelo inesgotável trabalho da cadeia associativa e, por outro lado, referido à

incidência da pulsão. Lacan ( 1969, lição de 05/2) corrobora esta direção no comentário que se segue:

Quem está num divã percebe que ela [a Durcharbeitung] . .. consiste em voltar o tempo todo à mesma coisa, que em todas as viradas se é levado para o mesmo troço, e isso precisa durar, para chegar justamente. . . ao l imite, ao término . . . (p. 1 6 1 )

Vemos a afirmação do limite como próprio à experiência analítica e em relação ao qual se ordena a duração, o tempo do trabalho de análise. Da mesma forma, Freud (1914) enfatiza a temporalidade em jogo ao apontar a Durcharbeitung como uma árdua tarefa para aquele que se encontra em análise e " uma prova de paciência " ( 15 7) para o analista. Evidencia-se, assrm, a

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dimensão temporal que se impõe em uma análise, para lidar com a resistência própria à estrutura.

Em Sobre o Início do Tratamento, Freud (1913) avalia que " . . . o motor mais direto do tratamento é o sofrimento . . . " (p.143). De forma análoga, Lacan (1975) aponta como autêntica demanda de análise, "desvencilhar-se de um sintoma" (p.32). Há no sofrimento do sintoma uma pressão que faz avançar no trabalho, sob transferência. Este ângulo é fundamental porque coloca em evidência a implicação do sujeito como própria ao trabalho analítico. Para Freud (1914), a Durcharbeitung é a peça do trabalho que produz o máximo efeito transformador sobre o analisando e que "distingue o tratamento analítico de toda influência de sugestão" (p. 157.).

Em Análise Finita . . . Freud apresenta como vã a tentativa de antecipar conflitos que possam prevenir futuros conflitos ou mesmo vir a encurtar o caminho de uma análise. Freud alerta para o fato de que na tentativa de antecipar conflitos, o que se consegue é o aumento do "... saber do paciente, sem alterar nada mais nele . . . " (p.236). Compara com o esclarecimento sexual das crianças que nem por isso abandonam suas teorias infantis: "As crianças sabem agora o que antes ignoravam, mas não atinam em nada com as novas notícias que lhe são dadas" (p. 236). Uma vez mais em Psicanálise Silvestre

(1910), Freud aproxima a indicação de textos analíticos para aqueles que se encontram em análise, à distribuição de cardápios a quem tem fome. Isto é, para o psicanalista, é preciso fazer a experiência do inconsciente, é preciso atravessar a árdua tarefa. O que se produz em análise, em termos da relação com o saber, sempre fragmentário, requer trabalho de elaboração, bem como construção. Um saber oferecido não opera, tampouco produz efeito de convicção.

Vale notar que os conceitos de Durcharbeitung e construção não se superpõem. Freud sustenta cada um, em sua especificidade, como próprios ao campo de uma análise. Só há trabalho de elaboração se houver um sujeito implicado neste trabalho. A construção só opera se puder ser estabelecida em conexão com a Durcharbeitung.

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Cabe retomar, neste sentido, a análise do Homem dos Lobos. É como unpasse, fracasso na clínica que a pergunta em tomo do que ocorreu nesta análise retoma em A nálise Finita . . . , mais de vinte anos depois. Por um lado, a construção em análise do Homem dos Lobos constitui-se como referência, em Freud, para situar a singularidade de uma construção. Segundo Lacan (1962/3), no sonho dos lobos ". . . se trata, essencialmente, e de ponta a ponta, da relação do fantasma com o real . . . " (p. 85). Por outro lado, é um dos textos onde se apresenta, de maneira mais marcante, a Durcharbeitung como uma questão, já que o Homem dos Lobos, como também nos lembra Lacan (1966), não chegou a ". . . integrar sua rememoração na sua história . . . " (p. 311).

Em um de seus comentários sobre sua análise com Freud, Sergei Petrov, o Homem dos Lobos, chega a formular que se sentia como colaborador de um pesquisador (Gardiner, 1981). Esta avaliação sinaliza algo de uma inversão ao localizá-lo como quem colabora e não como quem, ativamente, encontra-se implicado no avanço de uma pesquisa que, até certo ponto, coincide com o próprio tratamento. Vejamos, neste contexto, um fragmento de análise que indica a implicação do sujeito no avanço do trabalho de análise :

Enúlia, 7 4 anos, desde os 65 anos em análise, é encaminhada pelo psiquiatra que diagnostica uma "depressão grave" e mostra-se preocupado com o risco de uma passagem ao ato. Muito inibida na chegada à análise, conta ter sido assim ao longo de toda a sua vida. Sempre teve muitas dificuldades para falar em público, para falar com seu chefe na época em que trabalhava em uma repartição e atualmente, para dirigir sua própria casa. Fala das inúmeras dificuldades em lidar com sua filha que é muito autoritária e também para orientar ou dar alguma ordem para a empregada, no dia a dia. Há uma queixa recorrente que é formulada da seguinte forma: "Tenho muita perturbação com o meu neto que perturba o cachorro . . . ". Neste ponto pergunto: " . . . o que perturba 16? Esta pergunta vai sendo reiterada ao longo de vários anos quando

16 Aqui vale lembrar a indicação de Lacan ( 1962/3) em tomo do quadro construído entre os eixos da dificuldade e do movimento, em que um dos termos, émoi, no eixo do movimento é traduzido por turbação, bem como por perturbação.

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surgem os significantes "perturbar", "perturbação", "perturba", "perturbado" (referindo-se ao neto, por exemplo).

Frente à reapresentação da pergunta, em análise, acerca do que perturba, advêm três direções de leitura, ao longo de vários anos e não sem dificuldades, pois me diz a partir de sua crença espiritualista: ". . . é preciso deixar os mortos descansarem .. . ". O primeiro ponto indicado refere-se a uma cena fantasmática em que seu padrasto muito irritado por sua "dificuldade com os problemas de matemática", bate em sua cabeça enquanto ensina. Em uma das diversas voltas a essa cena chega a situar uma conexão com o cachorro que se esconde quando seu neto vem perturbá-lo. Diz referindo-se ao padrasto: " . . . quando ele chegava em casa eu me escondia no banheiro, pois já sabia que ele ia querer que eu estudasse com ele . . . era uma tortura . . . que nem o meu neto faz com o cachorrinho". Uma segunda direção de leitura é referida aos barulhos vindos do quarto do casal, que não a deixavam dormir e sobre isto diz: " ... eu era pequena e aquilo me perturbava muito . . . ", localizando por esta via o valor traumático da dimensão sexual. Ainda uma terceira direção de leitura é circunscrita em tomo da relação com sua mãe que a "subjugava", que a "dominava".

É interessante assinalar os efeitos sobre ela, de estar falando em análise e situando pontos fragmentários - como vimos com Freud ( 1937) - que vão sendo elaborados e construídos. Passa a interessar-se pelos trabalhos de casa do neto, muitas vezes estudando junto com ele e brinca: ". . . às vezes até mais que ele . . . ". Relata uma importante diminuição da inibição. Começa a trabalhar no comércio montado pelo filho e interessa-se pelas conversas com os clientes, pelo troco que é preciso calcular a cada vez e surpreende-se com a facilidade com que passa a se movimentar nas situações. Certa ocasião comenta rindo: " . . . parece que finalmente eu amadureci . . . ". Comentário com um acento cômico, evidenciado pela risada que o acompanha e que brinca com os ideais de maturidade, ao ser dito aos setenta anos. Neste contexto, conta que fica muito irritada com a empregada por causa dos restos que são jogados no ralo da pia. Peço que fale mais. " . . . eu disse a ela: o lixinho você joga na lixeira . . . jogar

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restos, dentro do ralo, entope o ralo e eu tive "muuuiito" trabalho para desentupir o ralo . . . " Acrescenta ter ficado contente e surpresa por ter conseguido falar com sua empregada sobre algo que vinha incomodando tanto a ela. Acompanhamos, nesta seqüência, a forma como estar falando ao analista propiciou certa alteração na economia de gozo deste sujeito. Certa circulação da falta, indicada pelo trabalho, "muuiiito trabalho", que viabilizou que o vazio próprio ao ralo e também ao desejo do Outro - onde é fundamental que não se acumulem resíduos, restos que o obturem - pudesse funcionar. A distinção e a articulação entre Durcharbeitung e construção permitem cernir a especificidade da operação analítica. Frente ao duplo limite intrínseco à experiência, é preciso um sujeito implicado no trabalho de elal}oração e algo da ordem da construção, sempre fragmentária e estabelecida a partir de indícios deixados, sustentada pelo desejo do analista, em função. Rabinovich (1993) assinala a aproximação entre a construção em análise e o termo bricolage, tomado do texto de Lévi-Strauss 17 (1976), por Lacan. A apropriação feita por Lacan (1962/3) procura indicar a complexidade da textura fantasmática, a saber: a presença de elementos diversos e heterogêneos, em ação, no plano fantasmático. Por esta via, Rabinovich (1993) explora a prática do bricoleur, tanto com relação ao sujeito às voltas com certa montagem da cena, quanto do analista que, com sua escuta recolhe, a partir de indícios deixados, elementos diversos que permitem que se chegue a estabelecer a construção em uma análise: "A chave a tem o sujeito que fala, nossa função é escutar e tal como um bricoleur começar a juntar, a acumular os elementos que permitirão esse bricolage que Freud chamou 'construções em análise' (p. 49/50)".

17 Bastos (2004) esclarece que o bricoleur foi originalmente descrito por Lévi-Strauss ( 1976) em contraposição ao engenheiro. Tal oposição situaria, de um lado, " . . . a ciência do concreto, o pensamento mítico e mágico que elabora seus sistemas com o que está disponível na natureza, e de outro, a ciência contemporânea que constrói objetos de conhecimento e, à medida que informa concei.tualmente a técnica, produz artefatos tecnológicos projetados pelo engenheiro." (p. 262)

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2 - Do efêmero ao estranho-familiar

Vidal (2009) propõe Efêmero, como tradução para o texto de Freud (1915) Vergdnglichkeit, traduzido pela Imago ao português como Sobre a

Transitoriedade. Dentre as definições encontradas no dicionário Houaiss, efêmero aparece como aquilo que é temporário, que dura pouco. Já finito é definido como aquilo que tem um fim, um limite. Segundo o dicionário Aurélio, transitório é o que é finito, mas também comporta a idéia de algo em trânsito, passagem de um ponto a outro. Diferentemente do campo semântico de transitório, o termo efêmero situa a questão, veiculada por Freud, mais do lado daqµilo que dura pouco, que tem limite irrevogável: "Com o significante efêmero, tenta-se cingir o instante em que algo existe e passa a não mais existir . .. (p. 19).

Drummond (1999) em uma entrevista postumamente publicada, aos 82 anos, propõe o seguinte: "Não é a idéia de estar velho que nos preocupa, é a idéia da morte, de quando ela chegará. Eu acredito que essa idéia é fecunda . . . ". Nessa mesma direção, Lacan (1959/60) em A Ética da psicanálise comenta a propósito do momento da morte de Édipo, em Colono, que " . . . Édipo nos mostra onde pára a zona limite da relação com o desejo" (p. 367). A introdução da referência ao desejo aponta uma via para que, sob transferência, a pergunta em tomo do efêmero, do limite, da própria finitude possa enodar-se com a pergunta acerca do desejo. Retornaremos a este ponto ao abordarmos o texto trágico a partir de Lacan (1959/60) no Capítulo V.

Para o senso comum o nexo entre velhice e morte é quase natural. Freud (1915), entretanto, avalia em Nossa atitude para com a morte que cada um de nós está convencido, no inconsciente, de sua própria imortalidade tornando, assim, enigmática a referência à morte tão presente no discurso dos idosos. O fato é que a convicção na própria imortalidade vacila sob certas circunstâncias. É o que ocorre frente a uma perda valiosa, significativa, vivida como perda no próprio eu (Freud, 1915), mas também em situações com valor de trauma que nos confrontem com a própria finitude, independentemente da idade cronológica.

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É na esteira de Introdução ao narcisismo que Freud ( 19 14) procura delimitar questões que permitam diferenciar a melancolia do luto� situar nossa atitude para com a morte e o efêmero, a finitude. Através de Lou Andréas Salomé, Freud (19 16) conhece Rainer Maria Rilke e nos brinda com a narração em Efemero, de um passeio com o poeta e um amigo taciturno. Um passeio em companhia de Freud que se eterniza como um breve texto que interroga a atitude do ser falante para com o finito, o efêmero. É assim que em Efêmero, Freud (191 6) discute a posição de Rilke e seu amigo, para quem o caráter finito, efêmero dos eventos, dos objetos e da própria vida interfere na possibilidade de fruição dos mesmos. Causa perplexidade ao analista tal leitura. Ao contrário, diz Freud: "Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela" (p. 346). A escassez no tempo eleva o valor de gozo, de fruição diante da iminência da perda. Vidal (2009) nos lembra que a questão do valor ganha precisões em diferentes contextos. Na economia, com Marx e a distinção entre valor de uso e valor de troca. A forma do valor implica o equivalente como alteridade e importa situar aí o trabalho que, embutido na operação, comporta um resto que não se inscreve na forma do valor : a mais valia que Lacan (1969/70) situa como homóloga ao mais-de-gozar. No Capítulo IV, em tomo da formalização dos quatro discursos, retomaremos esse ponto. Na lingüística estrutural, a partir de Saussure (2006), a língua se especifica como sistema de oposições de elementos a partir dos quais o valor é

d 1 . º t d E l ' . 1 " d " " d " e uni a o. m seu c ass1co exemp o: . . . eu apren o. . . e . . . eu a pren o . . . , Saussure evidencia que apenas em função do contexto, é possível delimitar o valor de um termo. Com Jakobson (1995) avançando na direção aberta por Saussure, chega-se a situar que o significante como elemento isolado não significa nada, sendo necessário um mínimo de dois significantes para que se delimite o valor de um termo na língua. Na psicanálise, Freud (1916 ) situa em Efêmero um nexo entre valor, gozo e falta que se apresenta não como desvalorização, não como diminuição do valor diante da iminência da perda e sim como um aumento do valor frente à escassez no tempo.

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Há, entretanto, outra posição apresentada no texto e que Freud procura esclarecer. Analisa estar em jogo na posição do poeta e de seu amigo uma "antecipação do luto" (p. 346) e esclarece que esta antecipação constitui-se como obstáculo à fruição. Neste ponto do texto importa situar um pouco mais o termo Vorgeschmack traduzido pela Amorrortu como "pregusto", pela Imago como "antecipação" (do luto) e ainda, em francês, ''pres- gôut ". Este campo semântico abre vias como "ante-sala", "gostinho", ou seja, vias indicativas do valor de gozo presente na "antecipação" do luto, que pode infinitizar-se como "ante-sala", no lugar de propiciar o avanço do necessário trabalho de luto. A idéia de que certa "antecipação do luto" possa contribuir para a diminuição do valor da vida e fazer obstáculo ao próprio trabalho de luto, parece-nos importante para esclarecer a posição em que alguns idosos chegam à análise.

Tanto as inúm.eras e, muitas vezes, concomitantes perdas, como a recorrente idéia de proximidade da morte, operam indicando o limite, a impossibilidade de imortalidade que pode tomar urgente a fruição e um balanço da vida, que se apresenta finita. É o que fala uma "idosa" muito abalada pelo fato de que a dedicada esposa do vizinho, gravemente enfermo, morrera subitamente de um enfarte. Em suas palavras: " . . . fui até lá para manifestar meus pêsames a ela e quando cheguei, era ela quem estava morta! Aí eu me dei conta de que há várias coisas que eu quero falar, que eu quero fazer antes de morrer". Afetada pela escassez no tempo, pela iminência de vir a faltar, a vida recupera seu valor, toma-se urgente sua fruição pelo confronto do sujeito com o caráter efêmero da vida. Cabe ainda ressaltar que falando em análise algo do valor da vida pode aí situar-se e ter direção.

Por outro lado, a leitura da morte como interrupção da vida pode traduzir-se como diminuição de seu valor. Produz-se aí, algo da ordem de uma "antecipação do luto" que faz obstáculo à possibilidade de fruição da própria vida, ainda que implique uma economia de gozo, como já foi indicado em tomo do termo Vorgeschmack. É assim que outra idosa diz : " ... de um jeito ou de outro tudo passa . . . ", em sintonia com a posição do poeta e seu amigo, ainda que em sua fala fique indicado que há mais de um jeito, que há jeitos diferentes.

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O enquadre proposto por Freud em Efêmero, efetivamente assinala elementos fundamentais para situar questões recorrentes na chegada de "idosos" a uma análise. Fala-se muito das perdas inerentes ao envelhecimento e o relato de "idosos", em análise, o ratifica. O idoso perde laços muito importantes. Por vezes, perde a relação com seu cotidiano trabalho ao aposentar-se, que é assinalada por Freud (1930) da seguinte forma: " . . . Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana . . . " (p.99). Nesta direção, há ocasiões em que a retirada do trabalho comum, cotidiano, com a chegada da aposentadoria, mostra-se uma verdadeira "retirada para os aposentos", contribuindo para o isolamento do "idoso".

Há também outras dimensões de perda, tais como a relação com seus próximos amados que morrem ou se afastam e, ainda, a relação com seus ideais que requerem algum remanejamento. É freqüente a queixa de sentir-se só e isolado, mesmo naquelas situações em que o próprio sujeito reconhece que " . . . não se trata de não ter a quem recorrer. . .". Cabe neste ponto destacar um elemento clínico que se mostra crucial na experiência com "idosos", Trata-se da possibilidade de chegar a produzir, em análise, a distinção entre solidão e isolamento. Distinção suficientemente marcada desde a etimologia, já que solus

e insula apontam diferentes direções e conseqüências. É assrm que uma "carreira solo" muitas vezes evidencia os inúmeros laços necessários para sustentá-la, bem como traduz a afirmação em jogo, em tal projeto. Por outro lado, tomar-se ilha (insula), isolar-se, apresenta-se como o que pode haver de mais desarticulador na relação do sujeito com o campo do desejo. Voltaremos a essa importante distinção entre solidão e isolamento no Capítulo III . Há freqüentes relatos de "idosos" que indicam certa aridez, um esvaziamento, uma "desertificação" nas relações, produzindo um mal-estar, um sentimento de estranheza, de inadequação em seu próprio meio, que permeia o dia a dia e, algumas vezes, parece responder por um progressivo isolamento.

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Esses enigmáticos relatos em tomo de um sentimento de inadequação, de estranheza poderiam relacionar-se à significativa perda de laços a que se encontra submetido o idoso? Poderiam ser articulados à experiência do estranho, tal como Freud (1919) a situa em O Estranho? Com o intuito de melhor esclarecer tais questões, partimos de indicações de Freud sobre a experiência do estranho (Unheimlich). Em um segundo momento, abordamos contribuições de Lacan (1962/3) sobre o Unheimlich, extraídas, sobretudo, do seminário A Angústia acerca do nexo deste com a angústia , o objeto a e o desejo do Outro. Pretendemos, por esta via, chegar a situar o lugar, privilegiado para Lacan (1962/3), do Unheimlich como capaz de situar um ponto estrutural que se traduz no plano do fenômeno e força a distinção entre a angústia como fenômeno - " . . . única tradução subjetiva" (p.107), do objeto a - e como lugar estrutural que, para Lacan, demarca a função da angústia.

3 - Freud e o estranho-familiar

No texto O Estranho, Freud ( 1919) procura circunscrever dentro da noção de assustador, o fenômeno do estranho. Comenta que sua investigação teve início com uma série de casos e mais tarde foi confirmada "por um exame do uso lingüístico" (p.277). Esclarece que o termo alemão Unheimlich

(estranho) guarda com seu oposto Heimlich (familiar) uma singular relação, que se perde na tradução: "heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que coincide com seu oposto, Unheimlich "(p.283) É assim que, na língua alemã, a palavra familiar chega a ter o mesmo significado de estranho. Freud extrai de sua investigação que, na experiência estranha, longe de tratar-se do que é alheio, o estranho " . . . remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar"(p.277).

Em busca de situar o caráter familiar do estranho, Freud (1919) refere-se à definição de Schelling: " . . . Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido . . . secreto e oculto mas veio à luz . . . "(p.281). Secreto e oculto

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poderiam aí indicar mais de uma vertente do estranho? A conclusão a que Freud chega, aponta esta direção: . . . uma expenencia estranha ocorre quando os

complexos infantis que haviam sido recalcados revivem uma vez mais por meio de uma impressão, ou quando as crenças [Überzeugungen] primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se . . . " 18 .

V ale aqui indicar que o termo alemão Überzeugun gen foi traduzido pela Amorrortu por convicções e, pela Imago, por crenças. A distinção entre convicção e crença ganha relevância, pois, Überzeugung aparece, em vários momentos da obra de Freud, como o que se extrai do trabalho de análise 19. É, portanto, em termos de convicção e não de crença (Glaube) que Freud apresenta o que se produz como efeito de trabalho inconsciente. Retornemos ao texto :freudiano.

Complexos infantis recalcados, bem como, convicções superadas que parecem outra vez confirmar-se, marcam aqui uma dupla dimensão de retorno. Há um ponto comum às duas vertentes que consiste no fato de que a experiência do estranho implica uma repentina irrupção, ou seja, algo vem à luz de forma súbita. Há, entretanto, uma distinção sustentada por Freud a partir daquilo que retorna. Nesta direção, retomando a definição de Schelling que articula o estranho aos atributos secreto e oculto, propomos aqui aproximar o que aparece como secreto ao retorno do recalcado e o que aparece como oculto, ao que do inconsciente não é recalcado. Vejamos em maior detalhe. Freud argumenta que convicções animistas, superadas pela humanidade, parecem confirmar-se sob certas

1 8Os colchetes são nossos 19É assim em Construções em Análise : " . . . se a análise foi executada de forma correta, alcança­se nela uma convicção certa sobre a verdade da construção . . . " A.E., v .XXIII, p.267; em Análise Finita . . . : uma análise: " . . . cumpre seu encargo se instila no aprendiz a firme convicção na existência do inconsciente"A.E. , v.XXIII, P .250; na Carta a Romain Rolland: " . . . somente agora adquiria-se também uma convicção 'que se estende ao inconsciente' . . . " p. 1 5; no relato clinico sobre o H.Lobos: " . . . por este retomo do sonhar me explico que nos pacientes mesmos se forme pouco a pouco uma convicção certa da realidade dessas cenas primordiais . . . " A.E., v. XVII, p. 50.

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circunstâncias. Dentre estas convicções, aponta aquelas suscitadas pela ocorrência da ". . . mais misteriosa repetição de experiências similares em determinado lugar ou em determinada data . . . " (p.308). Neste ponto, o leitor é reenviado ao texto A lém do Príncípio do Prazer onde Freud examina as manifestações de uma compulsão à repetição. Ainda em O Estranho, entretanto, Freud afirma: " . . . o estranho efeito de semelhantes ocorrências . . . "(p.297).

A conexão do Unheimlich com a compulsão à repetição, traz à cena questões melhor formuladas por Freud a partir de 1920. Dificuldades enfrentadas na condução das análises, fracassos, pontos de impasse o levam a inferir algo mais fundamental no campo pulsional - a pulsão de morte. Freud defronta-se, na transferência, com a enigmática repetição de situações que nunca, em tempo algum, produziram prazer. Há um resto pulsional, inassimilável ao princípio do prazer, que requer ligação e força nesta direção, jamais alcançada, com a força de uma compulsão. Este viés da repetição abre espaço para a importante distinção entre recalcado e inconsciente. Nem tudo que é inconsciente é recalcado dirá Freud (1923), em O Eu e o Isso. O conceito de compulsão à repetição, apresentado por Freud (1914) já em Recordar . . . , requer nova leitura capaz de incluir outra vertente de retorno, referida ao isso ( Freud, 1920). Desta forma, é possível indicar - via compulsão à repetição - uma vertente do Unheimlich cuja irrupção escapa ao campo do recalque. Voltaremos ao Unheimlich no contexto de A A ngústia (Lacan 1962/3) articulando-o ao objeto a, à angústia e ao desejo do Outro.

4 - Acerca da função da angústia

Já no início do Seminário A A ngústia Lacan (1962/3) demarca a pergunta passível de ser desdobrada e que comanda a estruturação subjetiva: " . . . Que me veut-il? . . . que quer ele a respeito deste lugar do eu?" (p.14} norteando, por um lado, a conformação do eu aos traços apontados desde o campo do Outro e, por outro lado, Che Vuoi?20

, endereçada àquilo que no Outro situa a

20 Vale lembrar que Lacan extrai a referência do Che Vuoi, do texto de Cazotte ( 1 772): Le diable amoureux:.

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54 pergunta acerca do desejo, como desejo do Outro. Rabinovich (1993) diferencia o grafo do desejo, do esquema ótico (figura 1 ) que tem como eixo de sua estrutura o significante do Ideal. Vale lembrar que há aí um esforço de sistematização do estádio do espelho, que vai sendo trabalhado por Lacan (1953/4) desde O Seminário Livro I Os escritos técnicos de Freud Neste esquema Lacan ( 1966) situa a ação do simbólico, com relação às identificações especulares. Chama seu esquema ótico de 'aparelho para pensar' e explora, a seu modo, a experiência clássica da fisica do buquê invertido.

Figura 1

Rabinovich (1993) localiza, com Lacan, o significante do Outro barrado como " . . . resposta insuportável que introduz a castração do Outro, como desejante (p. 76). Reporta-se ao grafo do desejo (figura 2), e comenta que a utilização do grafo tem a vantagem deste estar articulado em função do desejo do Outro e, por fim, em tomo do Che Vuoi " . . . a pergunta acerca de que me deseja o Outro, que me permite separar nele [o grafo], as perguntas e as respostas" ( p. 76).

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Angustia

Síntoma

lnhibición ( Angustia

i-;eii.11 )

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l(A J

Figura 2

Focando no grafo do desejo o campo das respostas ao significante da falta no Outro, Rabinovich (1993) chama a atenção para a possibilidade de situarmos, na experiência analítica, a triade freudiana inibição, sintoma e angústia, em uma via ascendente (figura 2), ou seja: m ou i '(a) articulado à inibição; s(A) situando o sintoma e finalmente a angústia entre fantasma ($<>a)

e o significante do Outro barrado S(A } _ Vale indicar, também, a possibilidade de demarcação, no grafo, da distinção feita por Lacan (1962/3) entre a angústia como fenômeno e o lugar da angústia, que situa a função da angústia, como veremos a seguir. Por esta via, a angústia fica localizada como indicativa do máximo de " . . . aproximação do sujeito ao desejo do Outro e, como tal, o fantasma é a última das barreiras que protege o sujeito desse desejo" (p.76). Vejamos em maior detalhe.

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Buscando localizar em um tempo mítico, de fundação, o advento do sujeito dividido e a demarcação do campo do objeto, Lacan (1962/3) propõe duas fórmulas distintas da divisão subjetiva:

Figura 3 Figura 4

A s A s Gozo

.1-( a /{ Angústia

$ IDes�jo

a

Rabinovich (1993) chama a atenção para o fato de que estaria em jogo aí uma "simultaneidade sincrônica" (p.32/3), que pode ser lida segundo aquilo que se produz na divisão, ora para enfatizar a produção do sujeito do significante, ora para enfatizar a produção do objeto a. Segue lembrando que se " .. . priorizo o sujeito barrado, $, a produção do objeto tem uma função que não é a causa do desejo, senão a função . . . de objeto do desejo, que vem resgatar o sujeito de seu desvanecimento, de seu fading" (p.33). Demarca que aí, o a

impede que o sujeito se desvaneça, lhe dá uma ancoragem quando este se desvanece na remissão de significantes própria à cadeia, detendo assim a metonímia. Neste ponto interroga: quando o a funciona desta forma? Exatamente quando $ e a encontram-se articulados no fantasma: $<>a, já que o objeto a funciona como objeto do desejo e como tal sustenta o sujeito e também o Outro: "Estabiliza, freia o deslocamento significante" (p.33). Agrega que por esta via, tampona-se a falta no Outro.

Desta forma, na primeira fórmula da divisão subjetiva (figura 3), partindo da divisão de um Outro não barrado e de um sujeito mítico, sem barra,

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advém como produto um sujeito dividido. Esta divisão não é exata, deixa um resto que é o objeto a: "Quando dito objeto cai como resto, transforma o Outro sem barra em um Outro barrado, porque cai do lugar da falta no Outro, do lugar do desejo no Outro. Não é só resto do sujeito, é um resto que vem do Outro, que está entre o Outro e o sujeito" (Rabinovich, 1993, p. 32). Vale ressaltar aqui a incidência do resto, da perda como estruturante nesta operação.

Como situar essa indicação de um resto que está entre sujeito e Outro? Freire (2005) esclarece que "se entendermos como dialética a relação possível de ser estabelecida entre o eu e o outro (Outro), o objeto a seria o resíduo, o que resta, o que é refratário à medida comum entre o sujeito e o Outro." (p. 138). Para avançar neste ponto e chegar a demarcar o momento constitutivo de cessão do objeto a, neste tempo de fundação, acompanhamos algumas formulações de Lacan ( 1962/63), bem como alguns comentários e pontúações de Cosentino ( 1998) que nos permitem localizar a distinção entre angústia como fenômeno e como lugar estrutural e sua função. Trata-se de uma distinção fundamental para nossos propósitos, já que demarca a importância da angústia como operador na práxis psicanalítica com "idosos".

Em A Ética da Psicanálise, após haver delimitado no texto de Freud (1895) a noção de "das Ding ", Lacan ( 1959/60) a situa como alteridade absoluta, " . . . fora-do-significado" (p.71). Neste contexto, faz uma importante pontuação acerca da angústia, apoiado no texto trágico: " A angústia já se desenvolve deixando um perigo delinear-se, enquanto que não há perigo algum no nível da experiência última do Hiljlosigkeit " (p.364). Há aqui uma distinção necessária que Lacan ( 1962/3) aprofundará em A A ngústia, seguindo o texto de Freud. Trata-se da distinção, por um lado, do nexo entre angústia e situação de perigo e, por outro lado, da articulação entre angústia como função e o desamparo primordial (Hilflosigkeit) que tem no trauma do nascimento, seu arquétipo ( Freud, 1926).

Cosentino ( 1998) ressalta que o original da articulação lacaniana é a precisão acerca desse perigo, ou seja, com a situação de perigo Lacan "

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.. . introduz o momento constitutivo de cessão do objeto a21" (p.108). Já quanto à

angústia como efeito da situação traumática, assim como Freud, Lacan busca demarcar algo mais primitivo que a situação de perigo. Cosentino esclarece que: " . . . enquanto o momento de função da angústia é logicamente anterior à cessão de objeto, a situação de perigo (com seu sinal cambiante) está ligada ao momento constitutivo do objeto a22

" (Cosentino, 1998, p.109).

Localizada a anterioridade lógica do momento de função da angústia, chega-se à possibilidade de indicar aí que: "com a função da angústia prévia à cessão, se vislumbra esse momento de desvalimento, se esboça . . . esse momento de desamparo, de indefensibilidade do Outro23

" (p. 109). Daí, esse ponto estrutural - lugar da angústia - permite indicar no nível do Outro o desamparo primordial ou como diz Lacan (1962/3) a angústia aparece "antes de qualquer articulacão como tal da demanda do Outro" (p.354), retirando, assim, apenas do campo do fenômeno a questão e localizando sua função em termos da estrutura.

Com relação ao momento constitutivo de cessão do objeto, Cosentino (1998) localiza com Lacan que: " . . . No ponto de partida, o da função da angústia que coincide com a emergência ao mundo daquele que será o sujeito, esse primeiro efeito de cessão é o grito24

. . . " (p.109). Destaca nesse ponto o paradoxo " . . . que une a cessão de dito objeto com o próprio núcleo do Outro25

"

(p.110) e seguindo as pontuações de Lacan, Cosentino demarca que: "A função do grito opera como relação não original senão terminal, com o próprio coração desse Outro pois, em determinado momento, se constitui como o próximo26

"

(p.110). Destaca que essa função de cessão ao apoderar-se de seu âmago " .. . acaba com o Outro: a castração na mãe, momento de indefensibilidade, de

21 . . . introduce el momento constitutivo de cesión del objeto a "(p. 1 08).

22 A presente nota e as que se seguem, de 2 1 a 28 e 33 e 34, referem-se a trechos com tradução livre, a partir do original: "... mientras el momento de función de la angustia es logicamente anterior a la cesión del objeto, la situación de peligro (con su cambiada sefíal) está ligada al momento constitutivo del objeto a " (p. 109). 23

" . . . con la función de la angustia previa a la cesión se atisba ese momento de desvalimiento, se esboza . . . ese momento de desamparo, de indefensión del Otro" (p. 1 09). 24"En el punto de partida, el de la función de la angustia que coincide con la emergencia al mundo de aquel que será el sujeto, ese primer efecto de cesión es el grito . . . " (p. 1 09). 25

" . . . que une la cesión de dicho objeto con el núcleo propio dei Otro" (p. 1 1 O). 26"La función del grito opera 'como relación no original sino terminal coo el corazón mismo de ese Otro pues, en determinado momento, se constituye como el prójimo (p. 1 1 O)."

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perda, de separação27" (p.11 O). Vejamos, neste ponto, um fragmento clínico que

se circunscreve em um momento de intensa angústia: Hortência vinha sendo atendida pelo neurologista de uma instituição

pública há sete anos, em função do Mal de Parkinson diagnosticado. Apresenta muitas dificuldades em sua locomoção e em seu auto cuidado, em função de uma forte rigidez muscular e da presença de tremores. Um determinado dia, ao chegar para a consulta com seu neurologista, foi informada da saída definitiva deste, da instituição. Essa conjuntura: " . . . como pode . . . ele foi embora e não me disse nada . . . ", desencadeou um período de muita angústia e a pergunta feita, de forma reiterada, se também a analista iria parar de atendê-la. V ale indicar que a sustentação, a afirmação de que em sua análise o trabalho continuava, foi fundamental. É neste contexto que se desdobra o seguinte episódio: encontrava­se em casa e sentiu-se tomada por intenso mal estar : " . . . eu me senti tão mal que resolvi morrer trabalhando. Comecei a arrumar o meu quarto, a cama e de repente, sem perceber.. . um grito enorme.. . acho que foi de desespero e esperança . . . senti um grande alívio" . Aqui é fundamental situar a sustentação da análise, viabilizando alguma leitura deste episódio, em um contexto em que a opacidade do desejo do Outro se apresenta com a súbita retirada de cena do médico, sem nenhuma palavra. V ale notar que o limiar de angústia desencadeado, por um lado, força o sujeito na direção do movimento (Lacan, 1962/3) e, por outro, libera um grito que lhe parece dificil definir como emitido por ela " .. . de repente, sem perceber. . . um grito enorme . . . ", tocando aí um ponto estrutural que faz função e lhe permite separar-se, sentindo um grande alívio. É interessante notar ainda que "só-depois" surgem atributos para o grito: " . . . de desespero e esperança". Atributos que, por sua vez, também apontam uma escansão possível entre o desespero e a esperança.

Desta forma, é preciso localizar um viés da angústia que, embora passível de tradução no plano do fenômeno, toca um ponto estrutural entre o sujeito e o Outro. Por esta via, o desamparo primordial implica a castração no Outro, o que confere à angústia sua posição mediana e não mediadora entre

27 " . . . acaba con el Otro : la castración en la madre, momento de indefensión, de pérdida, de

separación" (p. 1 10) .

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gozo e desejo: "Nesse momento inaugural esse entre-dois cede algo. Em seguida, esse entre dois, o sujeito, o Outro, 'nada pode fazer com esse grito que escapa dele, nada o une a esse grito'"28 (Cosentino, 1998, p.110).

Cosentino aponta que já em A Ética . . . (1959/60), essa relação terminal com o Outro, que o constitui como próximo, se antecipa em Lacan. O grito como a maneira em que o estrangeiro, o hostil - tal como Freud o demarca no Projeto (1895) em tomo dessa alteridade absoluta, das Ding - " . . . aparece na primeira experiência da realidade para o sujeito humano29

" (Cosentino, 1998, p. 110). Conclui, com Lacan, que a função mediana da angústia, a partir desse momento mítico de gozo, leva à constituição do desejo, por uma via de renúncia de gozo (figura 4).

Cosentino (1998) assinala ainda, ter se produzido aí um giro: ao final da ºI?eração de divisão, Lacan situa o $ e não, como na primeira fórmula (figura 3), o objeto a. Trata-se de um giro que enfoca que: " . . . o a precede o sujeito. Passagem de 'objeto do desejo' a 'objeto causa' 3º" ( p. 111). Trata-se aí, portanto, de um sujeito dividido frente ao objeto a, causa de desejo.

Vale lembrar, neste ponto, que o objeto a é abordado por Lacan (1962/3) como objeto causa de desejo, a partir do seminário A Angústia. Procura aproximar-se de sua complexidade, referindo-o a uma dimensão de alteridade e situando-o a partir do corte, da separação e da perda. Lacan sustenta a importância de diferenciar o objeto a de qualquer objeto passível de troca, intercambiável e nesta direção indica quatro figurações, modalidades de apresentação do objeto a: o olhar, a voz, o seio e as fezes. Lacan (1963/4) afirma, no entanto, que a despeito de suas vestimentas imaginárias, este objeto " . . . é a presença de um cavo, de um vazio . . . " (p. 170).

Cabe assinalar, ainda, que visando marcar a especificidade da cessão de objeto entre sujeito e Outro - em articulação com a função da angústia -

28 "En ese momento inaugural ese entre-dos cede algo. A continuación, ese entre-dos, el sujeto, el Otro, 'nada puede hacer con ese grito que escapa de él, nada lo une a ese grito'" 29

" . . . aparece en la primera experiencia de la realidad para el sujeto humano" (p. 1 10).

30 "El a precede al sujeto. Pasaje dei 'objeto dei deseo' ai 'objeto causa'" {p. 1 1 1).

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Lacan (1962/3) reporta-se, assim como Freud (1916/7), ao valor de angústia que a tradição das parteiras confere ao mecônio, no momento do parto. Da mesma forma, Lacan (1962/3) destaca na construção em análise do Homem dos Lobos, a importância do estabelecimento, na cena primária, do instante em que o infans evacua, faz cocô (Freud, 1918). Demarca aí a relevância de algo que se separa, demonstrando o caráter cessível do objeto que, no plano da experiência, implica um ponto estrutural. Vale registrar aqui um outro recorte clínico, sob transferência:

Alice aos 86 anos, em análise há cerca de 8 anos, vai fazer um exame, pois, encontra-se com muitas dores nas pernas e no joelho. Para examiná-la o médico pede que suba em um local e passa a comprimir a região dolorida, causando-lhe fortes dores. Ela, com o quadril na altura de seu rosto, começa a ter intensa vontade de expelir gases e muita vontade de rir - o que faz largamente ao relatar o episódio em análise - por imaginar a situação de " ... expelir gases na cara do médico". Assim que foi autorizada a descer, com a ajuda do médico, derruba-o no chão e vai correndo ao banheiro para evacuar. O fato de estar falando, sob transferência, tomou viável certa leitura desta cena digna das comédias, das farsas. Leitura que permitiu estabelecer algo do caráter cessível do objeto já que - embora houvesse na cena um enquadre algo masoquista referido à pressão do médico nos pontos doloridos - o sujeito não fica caído como resto na cena, tomada pela vergonha e pelo mal estar. Derruba o médico e vai ao banheiro fazer cocô, voltando recomposta e demonstrando, assim, ter sido possível alguma separação. V ale também assinalar certa fruição, certa liberação em jogo na risada que acompanhou toda a narrativa, em análise. Poderíamos supor neste episódio, dirigido à analista, certo desprendimento de gozo com alguma circulação da falta - em conexão com algo da cessão do objeto - em um contexto em que ocorre a tragicômica desconstrução da atmosfera asséptica, própria ao ambiente médico?

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5 - De repente, subitamente, no momento de entrada do Unheimlich

Lacan, de posse da distinção construída ao longo de A Angústia entre angústia como fenômeno e como lugar estrutural, " . . . condição de possibilidade de todas as manifestações de angústia que emergem na vida do sujeito" (Souza, 2005, p. 1 8), sustenta a relevância do Unheimlich em sua articulação com a angústia. Nesta direção, Lacan ( 1962/3) procura abordar, sobretudo, a vertente do Unheimlich que, como vimos, escapa ao campo do recalque, que implica o objeto a. Chama a atenção para este momento do estranho que permite atentar para " . . . seu caráter, ao mesmo tempo o mais notório e o mais discreto em sua int�nsidade" {p. 100). Trata-se aqui menos da intensidade explorada no campo ficcional31 e mais do esforço de estabelecer no momento do estranho a relação do desejo do Outro com o objeto a e a angústia. Lacan esclarece que a angústia se manifesta sensivelmente vinculada ao desejo do Outro:" . . . indiquei que a função angustiante do desejo do Outro estava ligada a eu não saber que objeto a

sou eu para esse desejo"(p. 353).

É, portanto, em torno desta opacidade e neste lugar preciso que, em . " ' d fr 32 "(L certos momentos, rrrompe, . . . apresenta-se atraves e estas . . . acan,

1962/3, p. 86), o fenômeno do Unheimlich. Momentos que interrogam a imagem especular, tal como ocorre na despersonalização, mas também momentos que situam a tensão entre o eu e seu duplo. Cabe aqui voltar ao esquema ótico (figura 1) em tomo da especificidade do ajuste das identificações especulares, imaginárias, pelo simbólico, e passíveis de desestabilização, como demonstrado nos momentos de irrupção do Unheimlich

Em uma longa nota de rodapé em O Estranho, Freud ( 1919, p.309) narra um episódio autobiográfico que apresenta um fugaz momento de tensão entre o eu e seu duplo, na velhice. Encontrava-se viajando em um trem. Subitamente, defrontou-se com um velho que entrara em sua cabine e lhe

31 Um dos argumentos de Freud em O Estranho é de que no texto literário o autor dispõe de múltiplos recursos para engendrar e intensificar o efeito estranho. Dentre os inúmeros exemplos presentes no texto, Freud privilegia a análise do conto O Homem de Areia de E. T.A. Hoffmann. 32

- A tradução da frase de Lacan: '... se pré sente par des lucarnes . . . " é nossa, a partir do dictionnaire Europa Larousse que traduz lucarnes por frestas.

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causou imediata antipatia. Ao levantar-se para esclarecer o engano, apreendeu tratar-se de sua própria imagem refletida por uma porta espelhada que se abrira. É comum encontrarmos referências na literatura de como o velho, o decrépito é sempre o outro. É sempre o outro que está envelhecido, mas, também, a partir de quem chegam os sinais do próprio envelhecimento (Proust, 1995). Lacan (1962/3) ressalta esses momentos de passagem " ... da imagem especular para o duplo que me escapa" (p. 100). Para fins de nossa pesquisa, o exemplo protagonizado pelo próprio Freud é precioso, pois faz aparecer algo do velho decrépito que deixa entrever, através de frestas, a condição de resto, sem valor, tão frequentemente vivenciada pelos "idosos" e relatada em análise.

A relação com a imagem corporal se define a partir do campo do Outro no estádio do espelho. Lacan (1966) enfatiza nesta experiência de precipitação da imagem, a função reguladora do simbólico. Quando da estruturação subjetiva, as sempre dissimétricas relações entre o eu ideal (imaginário) e o ideal do eu (simbólico) permitem, segundo o caso, um maior ou menor grau de acomodação da imagem do corpo próprio. Imaginário e simbólico aí operam recobrindo o que da imagem é um resto não-especularizável, que aponta ao real. Lacan (1962/3) assinala que o campo do espelho se mostra fértil - seja ele um semelhante ou o próprio espelho -, para recolher certas conjunturas que presentificam o estranho, como efeito, e que, por vezes, interrogam, fazem vacilar o corpo próprio em sua imaginária unidade:

Esse corpo. . . não nos é dado de maneira pura e simples em nosso espelho . . . pode surgir um momento em que a imagem que acreditamos estar contida nele se modifique . . . sobretudo quando há um momento e m que o olhar que aparece no espelho começa a não mais olhar para nós mesmos. lnitium, aura, aurora de um sentimento de estranheza que é a porta aberta para a angústia ( p. l 00).

A referência, presente na citação acima, ao olhar como suporte do objeto a, em articulação com o fenômeno do estranho e a angústia, é uma constante. Lacan (1963) pontua a função do pequeno a na pulsão escópica indicando que aí " . . . o objeto é estranho, o objeto a . . . é este olho que no mito de

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Édipo é o equivalente ao órgão a castrar . . . "(lição única de 20/11/63). Importa marcar a função de corte sempre presente nos momentos de incidência, de irrupção no imaginário de alguma figuração do objeto a. Neste sentido, a referência no mito de Édipo à castração como corte que deixa um resto no campo do olhar, marca a disjunção entre o olhar e a visão.

Portanto, o olhar como suporte do objeto a é passível de delimitação a partir de uma dimensão de ruptura, de corte. Recorrentemente, acentua Lacan ( 1962/3), encontramos termos como " . . . "Súbito", de repente . . . no momento da entrada do fenômeno do Unheimlich" (p. 86). Sempre, momentos nos quais algo do corte é propiciador da " ... passagem da imagem especular para o duplo que me escapa" (p.100). Cabe sublinhar aqui a relevância clínica da referência ao que se apresenta de forma súbita, repentina, com valor de corte no momento de entrada do Unheimlich. No exemplo autobiográfico de Freud fica evidente esta dimensão, pois "subitamente" Freud defronta-se com um velho que, inclusive, lhe causa imediata antipatia. De forma equivalente, há relatos de repentinos, súbitos cortes que implicam verdadeiras guinadas no rumo de vida de um "idoso". Cortes por vezes relacionados a acontecimentos concomitantes, tais como a perda do cônjuge, a morte súbita de uma grande amiga, o casamento do filho amado e a aposentadoria, culminando por exemplo, com a venda e a mudança da casa, na qual se viveu por toda a vida. Conforme assinalamos, é bastante frequente no discurso dos "idosos" o relato - não sem angústia - de um forte sentimento de inadequação e estranheza e, por outro lado, o relato de ter se tornado decrépito, um "trapo", um "caco", um "cacareco", relatos esses compatíveis com a complexidade indicada por Freud e Lacan, em torno do estranho/familiar, em sua articulação com a angústia, o objeto a e o desejo do Outro.

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6 - Algumas pontuações acerca das operações de alienação e separação

Vimos em A Angústia o esforço de Lacan (1962/3) de apresentar as duas operações que concernem à produção do sujeito dividido e à constituição do objeto a, partindo de um tempo mítico em que Sujeito e Outro não estariam alcançados pela castração e onde opera a função mediana da angústia na constituição do desejo. Rabinovich (1993) comenta tratar-se ali, de certa forma de um " ... esboço das operações de separação e alienação do seminário XI, mas formuladas de outra maneira (p.32). Procuramos retomar algumas questões já antecipadas em A Angústia e que Lacan busca avançar em tomo das operações de al�enação e separação.

Lacan ( 1966) afirma que "uma estrutura quadripartida é sempre exigível, desde o inconsciente, na construção de uma ordem subjetiva" (p.774). Por esta via, aponta a importância de que se opere - em termos estruturais núnimos - com a vigência no intervalo entre dois significantes, do sujeito dividido e do campo do objeto. Lança mão dos significantes recolhidos por Freud (1920) a partir do brincar de seu neto com o carretel: 'fort-da ' e formula questões que delimitam as operações lógicas circulares mas não recíprocas de alienação e separação (Lacan, 1963/4). Como o sujeito se introduz na cadeia significante? Como se demarca o campo do objeto? Para encaminhar tais questões, Lacan recorre a operações da lógica dos conjuntos - reunião e interseção - que lhe permitem ressaltar a participação da perda como constitutiva, como estruturante.

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6. 1- Sobre a operação de alienação e a afânise como efeito

Figura 5

ALIENAÇAO-REUNEAO

a botisa a vida

Com respeito à alienação, Lacan recorre à operação de reunião e Rabinovich (2000) reitera que não se trata aí da soma dos elementos e sim de localizar a perda, ou seja, entre o ser e o sentido, a escolha é forçada e implica perda ( figura 5), ali onde o que se apresenta como via única é a vida sem a bolsa ou o sentido decepado de uma parte do ser (figura 6). Vejamos o que diz Lacan (1963/4): "O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o significante. Mas por este fato mesmo, isto - que antes não era nada senão sujeito por vir -se coagula33 em significante." (p.187). Para Lacan, a conseqüência neste ponto é a aíanise34 como um efeito, já que a operação de alienação reduz "o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento que o chama a funcionar, a falar como sujeito." (p.197). O sujeito é,

33 Rabinovich ( 1993) chama a atenção para a tradução de 'se fige ' para 'se coagula' que a seu ver encobre a especificidade do conceito freudiano de fixação, com todas as suas ressonâncias na constituição do sujeito. 16-0 termo afânise tomado de Jones, por Lacan, refere-se à desaparição do sujeito e não à desaparição do desejo, como o situa Jones ( 1 933).

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portanto, afanisado "só - depois", pelo significante binário. Assim, neste primeiro tempo da alienação o sujeito está desaparecido, afanisado sob os significantes que o representam. Não tem outra substância que a de ser o que um significante representa para outro significante. Esta é sua carência, sua falta a ser, assinala Lacan.

Figura 6

SUJEITO OUTRO

6. 2 - A operação de separação e a ''função afânise "

Rabinovich (1993) pontua que o fato novo introduzido por Lacan em 1963/4 ao abordar a estruturação subjetiva pelo viés das operações de alienação e separação - encontra-se, sobretudo, do lado da operação de separação. Lembra que Lacan já vinha nos últimos dez anos situando a operação de alienação ao campo do Outro. Por outro lado, a operação de separação traz uma novidade, já que visa àquilo que no intervalo, entre significantes, relança duas faltas que se recobrem na constituição do desejo, como desejo do Outro.

Lançando mão da etimologia, Lacan (1963/4) assinala estar em jogo no termo separação - separare, se parare, se parer; se parere - um campo semântico que .desdobra direções que incluem tanto separar-se como parir-se,

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vestir-se, defender-se ou engendrar-se e nos permite apreender o quanto o sujeito encontra-se concernido na operação de separação.

Figura 7

SEPARAÇAO-INTERSEÇAO

SUJIEtTO OUTRO

Na dialética das relações entre o sujeito e o Outro vão sendo recortadas as zonas erógenas, sob o comando do complexo de castração : no desmame, na separação das fezes, da mãe ao nascer. Trata-se aí de um mapeamento libidinal, fragmentário, que escapa ao campo especular, ao campo narcísico. Sigamos Freud (1923) :

Com acerto se assinalou que a criança adquire a representação de um dano narcísico por perda corporal , mediante a perda do peito matemo após o sugar, da cotidiana deposição das fezes e até da separação do ventre da mãe ao nascer. Não obstante, só cabe falar de um complexo de castração quando essa representação de uma perda se enlaçou aos genitais masculinos (p. 1 47/8n . ) .

Desta forma, o complexo de castração - operando desde o campo do Outro - ordena a relação à demanda oral, anal e como assinala Freud (1924) a " . . . ameaça de castração obtém seu efeito a posteriori (Nachtraglich) {p.183)".

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Cosentino (1998) chama a atenção para o fato de que, diferentemente de uma perspectiva desenvolvimentista - tal como aquela situada por Abraham - o objeto a apresenta-se como função que se mantém a cada passagem, de um modo de relação à demanda, a outro ( figura 7): "Sua constituição é, por assim dizer, circular, em todos esses níveis ou etapas se mantém a si mesmo como objeto a, e sob as diversas formas em que se manifesta sempre se trata de uma mesma função35

" (p.103). É assim que operando com o mito da libido como lâmina, órgão irreal que corta e recorta, Lacan (1963/4) delimita quatro modalidades de apresentação do objeto a, acrescentando ao seio e às fezes, aquilo que no texto de Freud encontra-se ". . . em 'estado prático' : o visto e o ouvido, vale dizer, o campo escópico e a pulsão invocante36

" (Cosentino, 1998, p.102).

Para Lacan, importa, sobretudo, o que se recorta, o que se produz a partir do corte. No esforço de situar a especificidade do objeto a, Lacan (1963/4) toma como exemplar o seio na pulsão oral e aponta que o objeto a não é a origem da pulsão oral, ele ". . . é introduzido pelo fato de que nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltante" (p.170).

Ainda com relação ao objeto oral, Lacan (1962/3) interroga: De que lado está o seio? Do lado daquele que suga, ou do lado do que é sugado? De quem é o seio? Nem da mãe .. . nem da criança. Daí, inclusive, todas as dificuldades com a amamentação. O acento é colocado "entre-dois", no desmame. A mãe - em função - que cuida, demanda e para além da demanda . . . deseja, é apreendida como enigmática: "Ela me diz que coma, mas, "o que ela

quer "? Entre os significa ntes da demanda, diz Lacan (1963/4), corre, esconde­se o desejo Outro, "apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do outro" (p.203). É apenas no intervalo, para além da demanda,

35 "Su constitución es , por así decir, circular, em todos esos niveles o etapas se mantiene a si mismo como objeto a, y bajo las diversas formas en que se manifesta siempre se trata de uma misma función" (p. l 03). 36

". . . em estado práctico: lo '!isto y lo oído, vale decir, El campo escópico y la pulsión invocante.

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portanto, que pode insinuar-se um desejo enigmático, que também o Outro desconhece e que, por esta via, abre à dimensão do equívoco. Importa sublinhar que este encontro com o desejo do Outro permite relativizar a demanda do Outro. Lacan exemplifica com os infindáveis "porquês" da criança que visam -em última instância - situar o enigma do desejo do adulto.

O que vai se configurando nesta direção é a importância de situar e diferenciar uma dimensão de perda que é buscada, na medida em que se insinua que ao Outro, algo falta. Lacan (1962/3) pontua que o "Outro concerne ao meu desejo na medida do que lhe falta e de que ele não sabe . . . porque, para mim, não há outro desvio para descobrir o que me falta como objeto do meu desejo" (p.32/3). Como vimos, desde A Angústia Lacan afirma o objeto do desejo como objeto causa de desejo. Na mesma direção, Rabinovich (1993) esclarece que para que o sujeito possa situar-se como desejante, é preciso referir-se à posição de objeto causa de desejo, posição que implica a perda, a falta no Outro como estrutural, a ser situada no intervalo indicativo da abertura ao desejo do Outro como vazio, como cavo que a pulsão contorna.

Seguindo em seu esforço de afirmar as duas operações lógicas de "causação" do sujeito, Lacan (1963/4) assinala um tempo na estruturação subjetiva que implica o recobrimento de duas faltas: a falta do sujeito afanisado, própria da operação de alienação, e a falta do Outro, falta esta que se insinua para além da demanda, descortinando algo do desejo, como desejo do Outro. Como o sujeito se situa com relação à falta apreendida no Outro? Frente à pergunta: "Ele me diz isto, mas o que ele quer?", apresenta-se, então, a questão da perda: "Quer a minha perda"?

Para sustentar sua argumentação, Lacan lança mão de uma figura do folclore europeu. Trata-se de Gribouille, que como esclarece Heinrich (1996) funciona de uma forma muito própria frente ao que se lhe apresenta. Ao encontrar um cortejo fúnebre, Gribouille parabeniza a todos e é fortemente repreendido, já que a ocasião pede pêsames e não congratulações. Seguindo seu caminho, Gribouille encontra agora um cortejo nupcial e aproxima-se consternado desejando a todos seus pêsames. Novamente é repreendido, pois

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71 não cabe ali, em um momento de grande alegria, seu pesar. Lacan (1963/4) comenta que o sujeito responde como Gribouille, ou seja: " . . . o sujeito traz a resposta da falta antecedente de seu próprio desaparecimento, que ele vem aqui situar no ponto da falta percebida no Outro" (p.203). Neste ponto de virada é preciso situar a incidência de uma perda que passa a ser buscada. Acompanhemos Lacan:

O primeiro objeto que ele propõe a esse desejo parental cuj o objeto é desconhecido é sua própria perda - Pode ele me perder? A fantasia de sua morte, de seu desaparecimento, é o primeiro objeto que o suj eito tem a por em jogo nessa dialética (p. 203) Heinrich ressalta em Lacan (1963/4) a referência à "função afiinise" (p. 215), diferenciando-a da aranise que, em um primeiro tempo, havia sido configurada como efeito da operação de alienação. Heinrich (1996) situa que agm:a a afânise " . . . deve ser posta em jogo como "função" (p. 33), que permitirá interrogar o desejo do Outro: "Pode ele me perder?"(Lacan, 1963/4, p. 203). Cabe assinalar que em Posição do Inconsciente, Lacan (1966), voltando às operações de alienação e separação, ressalta com relação à separação que "se trata aí de um querer" (p.857), indicando a atividade em jogo na operação de separação. Por esta via, há uma passagem de desaparecido a perdido que requer uma ratificação do Outro, ou seja, a identificação ao falo imaginário - ser aquilo que falta ao Outro - como um tempo lógico necessário que permite fazer o luto por este lugar mítico, desde sempre perdido. Heinrich (1996) propõe que este momento seja equivalente, como imagem, à criança pequena que, andando perdida pelas ruas, interroga cada transeunte acerca de uma mulher a quem faltaria uma criança como ela própria. Assim, a identificação ao desejo do Outro pela via da perda é demarcada como um tempo capaz de outorgar o lugar para que se constitua o sujeito desejante ou, em termos freudianos, como capaz de abrir a via ao "rodeio" do desejo (Freud, 1895).

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CAPÍTULO IIl - VELHICE E PERDA NA NEUROSE II: DA PERDA NO

LUTO AO RODEIO DO DESEJO OU DA PRIVAÇÃO À CASTRAÇÃO

Mãitina era pessoa para qualquer hora falar no Dito e por ele começar a chorar. . . Escondido, escolheram um recanto, debaixo do Jenipapeiro, ali abriram um buraco, cova pequena. De em de, camisinha e calça do Dito furtaram, para enterrar, com brinquedos dele ... Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos ...

Guimarães Rosa

Em tomo do que lhe apresenta seu neto de um ano e seis meses, Freu� (1920) demarca dois significantes: "fort " e "da " (p14/5) e no intervalo o sujeito às voltas com um carretel e o incansável esforço de lançá-lo à distância, raramente sucedido pela alegria frente à sua reaparição, que constituía a brincadeira completa. Interessa voltar ao "fort " - "da " freudiano, sobretudo, agregando aí a nota de rodapé na qual Freud relata que, ao chegar à sua casa, a mãe encontra o bebê brincando ativamente frente a um espelho que lhe permitia, ao abaixar-se e levantar-se, fazer desaparecer sua própria imagem. Na direção que nos ocupa, há aí uma encenação da própria desaparição, em uma perda ativamente buscada que, como vimos, Lacan (1963/4) procura ressaltar como estruturante. Pode o Outro me perder? Pergunta que busca encaminhar a passagem da afânise, como efeito na operação de alienação, para a afãnise posta em função na operação de separação. Dito de outra forma, a passagem de desaparecido a perdido, no encontro de duas faltas que se recobrem, na medida em que algo do desejo do Outro se insinua, para além da demanda. Algo se impõe aí de uma ratificação do Outro, com relação à passagem por esse tempo em que o sujeito se localiza como falo imaginário, para que se constitua o lugar do desejo, a partir do luto primordial pela identificação a esse lugar do objeto, desde sempre perdido.

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É assim que a criança, após assistir com seus pais a uma sessão do documentário A Marcha dos Pingüins, dirigido por Luc Jacquet (2005) e rodado no sudeste da Antártica, formula uma questão que interessa por sua especificidade. O filme acompanha a inóspita saga do pingüim-imperador pelas gélidas regiões em que é forçado a atravessar, para chegar ao local onde ocorrerá a procriação, sob condições climáticas extremadas. A femea faz todo o percurso de volta em busca de alimento e o pingüim macho fica encarregado de chocar o ovo, que está sendo resguardado. Esta operação exige toda uma pericia por parte do pingüim macho, que aconchega o ovo entre suas patas e o ventre, para que obtenha um mínimo de calor, já que o contato direto com o gelo inviabilizaria o nascimento da cria. Ocorre que a filmagem testemunha uma situação súbita, repentina, inesperada, em que o ovo se desprende e cai no gelo. A reação do pingüim macho é , imediata - sem mediação possível -precipitando-se sobre outro pingüim, em um claro esforço de arrancar-lhe o ovo aninhado. Este comportamento desencadeia, · no bando de pingüins, um movimento generalizado para proteger o pingüim e seu ovo, atacados pelo pingüim agressor. Após a sessão de cinema, a criança formula - dirigida ao pai - a seguinte pergunta: ". . . se eu morresse você arrancaria outra criança dos braços do pai? ... ". Obteve como resposta, não sem um toque de humor: " . . . meu filho, eu não sou um pingüim ... ". A acuidade da pergunta e da resposta, situam a importância para o ser falante de que lhe seja outorgado um lugar, passível de ser ocupado, mas em última instância, lugar vazio aberto à mediação do trabalho de luto, a partir da perda.

1 - A perda buscada e a perda no luto

Em O Desejo e sua Interpretação (1958/9) e, sobretudo, em A

Angústia (1962/3), Lacan procura indicar o nexo entre a função do desejo e o luto. Chegamos, portanto, a uma questão de especial interesse com relação ao luto. Partimos - em um tempo de constituição subjetiva - de uma dimensão de perda que é buscada em tomo da operação de separação e que implica um luto primordial. Vimos no capítulo II que essa perda buscada é posta em jogo pela

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função afãnise, para interrogar o desejo do Outro. Cabe diferenciar, neste ponto, a dimensão de uma perda que é buscada e a perda no luto, tal como se apresenta ao longo da existência, que é, para Lacan (1958/9), da ordem da privação. Cabe lembrar que para Lacan (1969/70) a privação é a falta real de um objeto simbólico, a frustração é a falta imaginária de um objeto real e a castração é a falta simbólica de um objeto imaginário. É na medida em que a tríade Privação­Frustração-Castração refere-se aos avatares da falta de objeto que nos interessa aqui retomá-la, buscando precisar a indicação de Lacan de que a perda, em jogo no luto, é da ordem da privação e não da castração.

O comentário de Lacan (1958/9; 1962/3) acerca do luto gua, em várias oportunidades, em tomo de Hamlet, personagem da peça de Shakespeare (1601) de mesmo nome. Sobretudo, em tomo da cena do cemitério, onde ocorre o enterro de Ophelia. Vejamos alguns elementos da cena: Hamlet retoma de viagem e junto com Horacius, ao passar pelo cemitério, percebe estar sendo preparada uma cova para um enterro. Aproximam-se do coveiro ( que não os reconhece) e Hamlet procura indagar quem será enterrado. O coveiro responde com alusões e evasivas mantendo um pouco mais em cena, a pergunta acerca de quem teria morrido. Revela a Hamlet, de passagem, a identidade de um homem cujo crânio exibia, causando a Hamlet comoção por tratar-se do bobo da corte que, em sua infiincia, esteve muito presente. Neste ínterim, começa a aproximar-se o cortejo fünebre e Hamlet esconde-se e vislumbra o rei, a rainha - sua mãe - e várias figuras da corte. Percebe, então, tratar-se de Ophelia, que vem carregada para ser enterrada. Na sequência, iniciam-se as despedidas fünebres e dentre elas Laertes, irmão de Ophelia, em uma atitude de desespero, lança-se sobre Ophelia morta, lamuriando-se e chorando convulsivamente. Neste ponto, Hamlet revela-se e precipita-se sobre Laertes interrogando a propriedade de tamanha dor, já que ele, Hamlet, encontrava-se atravessado por uma dor que não poderia ser menor que a de um irmão.

Rabinovich (1993) procura esclarecer o problema com que se defronta Lacan (1962/3) ao examinar a cena do cemitério e explica que se trata

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aqui de diferenciar o falo e o objeto do desejo que se articulam no agalma37.

Pondera que agora em A Angústia, não se trata do agalma e sim de algo muito diferente, pois quando fala do objeto do desejo, Lacan (1962/3) remete ao luto. Comenta que Lacan relaciona " . . . a identificação com o objeto do desejo, como mecanismo próprio do luto, não o da melancolia, senão o mecanismo próprio do luto normal" (p.58). Interroga-se, com relação a esta afirmação, se Lacan estaria dizendo algo novo acerca do luto e para sustentar afirmativamente sua resposta, reporta-se aos comentários de Lacan (1958/9) onde assinala estar em jogo no luto não a castração, mas a privação. Rabinovich (1993) agrega que agora, em A

Angústia, Lacan desenvolverá " . .. a função constitutiva do luto na estruturação do desejo" (p.58).

Rabinovich segue lembrando que, por este viés da privação, está em jogo o falo simbólico (<I>) e não o falo imaginário (-<p), já que na privação trata­se dá falta real de um objeto simbólico. Acompanha Lacan em sua pergunta sobre o que é que permite a Hamlet sair da inibição38 e realizar o ato que lhe concerne. Esta dificuldade se apresenta desde que Hamlet é incumbido pelo espectro de seu pai de matar seu tio Claudius que - conforme revelado -assassinou seu pai e casou-se com sua mãe. Rabinovich situa que Lacan enfrenta aí um problema clínico, pois mediante a identificação com o significante fálico, não é possível sair da inibição " . . . seja que consideremos o significante fálico como emblema do gozo ou do desejo. O falo não oferece a resposta que permite a saída da inibição; essa resposta a oferece o objeto" (p.58). Trata-se, neste ponto, de uma identificação que Lacan qualifica de "misteriosa": a identificação com o lugar do objeto, como objeto perdido.

É exatamente aí que a cena do cemitério ganha todo o seu alcance na elaboração conduzida por Lacan. A manifestação ostensiva da dor de Laertes,

37 Em A Transferência, Lacan fala do agalma ao abordar a relação de Alcibíades com Sócrates, no Banquete. É como invólucro daquilo que é o objeto de desejo que Sócrates é apresentado. Lacan ( 1 960- 196 1) aponta que o " . . . agalma bem pode querer dizer ornamento ou enfeite, mas, aqui, antes de mais nada, jóia, objeto precioso - algo que está no interior."(p. 14 1) . Assim, o objeto em sua face agalmática, é o objeto buscado, central na lógica amorosa. 38 Freud ( 1926) faz uma distinção entre a inibição geral do eu que ocone, por exemplo, nos estados depressivos próprios ao luto e a inibição quanto a um ato específico, como ocorre com Hamlet. Sobre esta distinção, em Hamlet, confira Barros (2005).

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pela perda de sua irmã Ophelia, re-situa para Hamlet o objeto do desejo que terá sido Ophelia. Lacan (1962/3) chama a atenção para a importância de Laertes como duplo, i ' (a), já que força Hamlet a sintonizar com a questão do desejo, ainda que não o libere, ainda que não permita sua saída da inibição.

Por esta via, assinala Rabinovich (1993) seguindo Lacan: "A identificação com Ophelia, não é a identificação com um par, um rival, com um semelhante, é a identificação com o objeto como perdido"(p. 59). Neste ponto, Rabinovich esclarece e sublinha que "toda identificação na ordem do especular exclui a falta ... exclui a perda constitutiva do objeto." (p.59). Daí que, como rival, i '(a), o sujeito não chega a situar sua posição como causa do desejo do Outro.

Já Ophelia, em outra direção, transmite a Hamlet, através de seu ato suici�a, algo como " .. . se tu não estás a vida não é nada para mim" (p. 64). Aqui, Rabinovich avalia haver, neste ponto, uma consequência muito importante com respeito à relação entre objeto e desejo e segue assinalando que para que alguém possa tornar-se objeto, possa " . . . ocupar o lugar do que causa o desejo do Outro, só uma vez que o Outro o perdeu ... " (p.59). Acrescenta que não podemos ser causa de nada sem termos sido perdidos ". .. porque nos constituímos como objeto a, na medida em que tenhamos sido perdidos" (p.59)

Reside aí um aspecto crucial da peça: a ausência do luto da mãe de Hamlet pela morte de seu pai. Evidencia-se, para Hamlet, que seu pai não ocupava para sua mãe um lugar de causa de desejo, já que não teria havido ali perda capaz de convocá-la ao trabalho de luto, que requer tempo. Lacan (1962/3) chama a atenção para a frase de Hamlet, segundo a qual as sobras da refeição fúnebre teriam servido para a refeição das núpcias, ou seja, não teria havido tempo hábil para o trabalho de luto.

Rabinovich comenta que Lacan é aí, estritamente freudiano, ao sustentar que apenas na perda se constitui o objeto em sua relação com o desejo. Reporta-se ao adendo C Angústia, dor e Luto, do texto Inibição . . . , onde Freud ( 1926) procura situar as diferentes formas da perda. Trata-se de uma importante referência, se comparada ás indicações e pontuações de Allouch (2004) acerca

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do trabalho de luto, em Freud. Segundo Allouch (2004) para Freud sempre haveria substituição, ao final do trabalho de luto. Allouch insiste sobre o caráter insubstituível do objeto no luto, sustentando que o luto, em sua radicalidade, implica algo de uma "perda seca" (p.144), que não seria passível de substituição. Para sustentar seu argumento, Allouch reporta-se todo o tempo à

Luto e Melancolia, onde a ênfase na substituição do objeto, ao final do trabalho de luto, encontra-se presente.

Concordamos com Allouch (2004) e Rabinovich (1993), quanto ao fato de que cada luto, efetivamente, comporta algo de insubstituível. Consideramos importante situar este aspecto, sobretudo, a partir dos relatos, em análÍse, de "idosos". A magnitude das perdas a que se vêem confrontados muitos idosos, tal como a perda de um companheiro de toda a vida ou a morte de um filho, convocam com muita freqüência esta dimensão de que não há substituição possível. Rabinovich assinala que: "A falta que provoca um sujeito falante não é substituível em certo ponto; nesse ponto onde fomos, nós mesmos, causa do desejo para esse Outro que já não está. Poderemos ser causa de algum Outro, é certo, mas jamais exatamente do mesmo modo" (p. 61). Conclui sua avaliação apontando que "Por esta razão, nem todos os buracos são equivalentes nem podem substituir-se entre si, não são homogêneos" (p.61). Daí que a referência ao adendo de Freud (1926) Angústia, dor e luto, mostra-se fundamental. Ali Freud interroga-se justamente acerca das diferentes formas da perda. Além disso, trata-se de um momento distinto daquele em que Luto e Melancolia foi escrito, já que posterior à virada teórica de 1920, com a afirmação da pulsão de morte e a pergunta acerca das conseqüências em jogo. Freud (1923) ao afirmar que nem tudo na pulsão é sexual, libidinal, transmite, permite apreender que nem tudo é passível de substituição.

Voltando à cena do cemitério, Rabinovich (1993) avalia que é apenas diante da tumba que Hamlet se dá conta da desaparição de Ophelia, cujo desejo ele sabia que causava. É exatamente por ser causa desse desejo que Ophelia torna-se ela própria, para Hamlet, objeto de seu desejo, na medida em que "O desejo é sempre àesejo do desejante no Outro" (p.64) Por este viés, havendo re­situado seu desejo, identificando-se com o lugar do objeto perdido -

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78 identificação que remete ao " . . . ao vazio, ao buraco no Outro" (p.64) - Hamlet está em condições de realizar o ato que lhe concerne, saindo da inibição.

Importa demarcar, neste ponto, algumas distinções. Inicialmente, é preciso diferenciar aquelas situações referidas aos ideais - tais como a homa e a vingança invocadas pelo espectro do pai de Hamlet - das situações que tocam um ponto estrutural, já que " . .. não são só as determinações significantes as que direcionam o sujeito e sim a sua radical cisão, função do objeto causa de desejo" (Mariscai, 2009). É assim que, de um lado, assinala Rabinovich (1993) há uma dimensão de luto - cujo paradigma é o desmame - que consiste no luto pela perda como objeto de gozo, para que possa ser recuperado como causa de desejo: " . . . O próprio sujeito como objeto de gozo do Outro deve ser perdido, deve perder sua posição . . . para chegar a causar o desejo do Outro, para posicionar-se na falta no Outro" (p. 63). Neste ponto avalia: " . . . dali em diante tomá-se objeto causa do desejo do Outro, mas só na medida em que se toma ele próprio objeto perdido". Além disso, tal como indicado em Hamlet, a partir da perda de Ophelia - é preciso situar o luto quando o Outro falta, ".. . se perde o Outro, tem que fazer o luto pelo lugar mesmo de causa que ocupava em relação com a falta do Outro, com seu desejo" (p. 63). Daí que, do ponto de vista da estrutura, "dois lutos devem ser diferenciados . . . " (p. 63), conclui Rabinovich. 2 - Da privação à castração

No primeiro capítulo apontamos no texto A Negativa, a apresentação de Freud (1925) do juízo - em um tempo de estruturação - implicando duas decisões : a atribuição e a existência. Freud avalia que a "experiência ensinou que não só importa se uma coisa ( objeto da satisfação) possui a qualidade "boa" e, portanto, merece a admissão no eu, mas também se ela existe no mundo de fora, de modo que possa apoderar-se dela . . . " (p.13). Pondera que, originalmente, a existência de uma representação já é "uma fiança para a realidade do representado" (p.13), dado que a diferença entre objetivo e subjetivo não existiria desde o começo.

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79 Neste ponto Vidal (1988), em tomo do significante fiança

(Bürgschaft), chama a atenção para o fato de que a " . . . prova de realidade instaura uma interpelação a nível da representação. Decidir sobre a existência é uma ação que não recai sobre a realidade do mundo exterior, mas, sobre a fiança a outorgar a uma representação" (p.27). Freud (1925) agrega que a diferença entre subjetivo e objetivo "somente se estabelece pelo fato de que o pensar possui a capacidade de tomar de novo presente, pela reprodução na representação, algo percebido uma vez, enquanto o objeto não precisa mais existir fora" Neste ponto, avalia que " . . . o primeiro e mais imediato objetivo da prova de realidade não é encontrar na percepção real um objeto correspondente ao representado, mas reencontrá-lo, certificar-se de que ainda existe" (p.13). Avançando em sua argumentação, Freud conclui que ". . . se reconhece como condição para a instalação da prova de realidade que tenham sido perdidos os objetos que haviam trazido antigamente satisfação real" (p.13), deixando clara aí a função da perda no trabalho que se desencadeia. Já em Luto

e Melancolia Freud ( 1 917) afirma a importância da prova de realidade no avanço do trabalho de luto peça por peça, forçando o desligamento dos laços com 9 objeto perdido. Vidal (1988) avalia, seguindo Freud, que a " . . . prova de realidade exige e força a representação a encontrar sua única fiança: a de veicular uma falta. A prova de realidade trabalha na delimitação do buraco no simbólico" (p.27). Situar a falta neste contexto permite retomar a diferença entre a perda buscada, intrínseca à operação de separação, da perda em jogo no luto. No luto, é preciso trabalhar - sob o comando da prova de realidade - para perder, para delimitar o buraco no simbólico. Nesta direção, vale retomar o que diz Lacan (1958/9) acerca do luto, como experiência do lado da privação: "A dimensão intolerável oferecida à experiência humana, não é a experiência da própria morte, que ninguém tem, mas a da morte de um outro" (p.74). Trata-se de um comentário em sintonia com a posição de Freud (1915) sobre a ausência de registro da própria morte, no inconsciente. Em tomo deste ponto, Lacan (1958/9) segue interrogando: "O buraco desta perda, que provoca no sujeito o luto, onde está ele? Ele está no real." (p.74). Consideramos que precisar este

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aspecto no luto, dito normal, permite indicar que o trabalho de desligamento do objeto, comandado pela prova de realidade chega a localizar a perda - ao final do trabalho de luto - do lado da castração, buraco no simbólico.

V ale lembrar, neste ponto, a indicação de Lacan ( 1966) segundo a qual a " . .. castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo (p. 841). É assim que situar a perda ao final do trabalho de luto, do lado da castração - uma falta simbólica - e não mais do lado da privação - uma falta real - permite apresentar o luto como um trabalho que se desdobra da privação à castração. Evidencia-se, assim, a função constitutiva do trabalho de luto na estruturação do desejo, já que para re-situar o circuito próprio ao desejo, é preciso trabalhar a partir da perda.

3 - Luto e acting-out

O luto nos diz Lacan (1958/9), é um trabalho "que se realiza no nível do logos" (p.75) . Aponta, por esta via, que tal como aquilo que é forcluído no simbólico retoma no real, "o buraco da perda no real, mobiliza o significante" (p. 75). Nesta direção, avalia a importância dos ritos no trabalho de luto e aponta - na perda em jogo no luto - uma peculiar interferência entre simbólico e real. Como exemplo desta interferência situa na peça de Shakespeare (1601) o ghost

- espectro do pai de Hamlet - cuja aparição mostra-se equivalente a certos fenômenos elementares na psicose. Em outra ocasião, Lacan ( 1966) ao abordar alguns fenômenos que se produzem à margem do simbólico, dentre eles o déjà

vu, o déjà raconté e o acting-out (p.391), localiza-os como fundados sobre um ponto de cerceamento (retranchement) do simbólico, aproximando-os, à

maneira de um curto-circuito, da alucinação.

Embora o nexo entre luto e acting-out não seJa específico da experiência com "idosos", não é rara a ocorrência de situações em que algo é mostrado ao analista. Desde o corpo mapeado em suas dores pelo saber médico e exibido ao analista, em diferentes circunstâncias, até acontecimentos que chamam a atenção por ocorrerem em momentos de intensa dor, frente à perda

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de alguém amado. Assim, há ocasiões em que um agir que se produz em meio ao máximo de alheamento do sujeito, da ordem de um acting-out, de uma "monstração" (Lacan, 1962/3), chega a ser relatado em análise, não sem alguma relação com esta peculiar interferência entre simbólico e real, em jogo no luto e também própria ao acting-out. Cabe apresentar aqui um fragmento de uma análise, que localiza a presente questão.

Ana veio à análise após cuidar durante muitos anos de seu marido que teve Alzheimer. Muito inibida na chegada e com uma "rouquidão" que a deixava em alguns momentos, "sem voz", fala da dor de perder o companheiro de toda a vida, " ... quase cinqüenta anos de casamento . . . ". Em um primeiro tempo de sua análise falava, sobretudo, de duas questões. A primeira referia-se à sua divisão entre ficar sozinha no apartamento em que vivera vários anos com seu marido e a possibilidade de vender seu apartamento e o da filha, para comprar um terceiro no qual pudesse morar com a família desta, o que veio a concretizar-se. A segunda questão dizia respeito, de uma maneira muito direta ao tràbalho de luto, em curso, pela enorme perda sofrida com a morte de seu companheiro. O fato é que o enterro de seu marido aconteceu sem que houvesse uma sepultura definitiva e com a perspectiva, junto ao cemitério, de regularizar esta situação depois de certo tempo. Caso não houvesse uma posição por parte de sua família, no tempo definido, seu marido seria definitivamente enterrado em uma vala comum, idéia que lhe causava horror. Por outro lado, sentia-se sem forças para sustentar junto à filha seu desejo de comprar uma sepultura definitiva. Estar falando em análise foi fundamental para este sujeito confrontado com a segunda morte (Lacan, 1959/60).

Exatamente neste contexto, sob intensa angústia, Ana chega á análise contando que foi abordada por um rapaz de aparência frágil e humilde. O rapaz lhe disse estar procurando uma casa lotérica para receber um prêmio e que precisava de ajuda, pois não era da cidade e não conhecia a rua indicada. Na verdade, tratava-se de um golpe aplicado por dois vigaristas, o segundo dos quais se aproximou para "ajudar" e, diferentemente do primeiro, mostrou-se firme e tinha uma "voz de comando". É preciso esclarecer que a argumentação dos golpistas era bastante precária. Mais do que convencida a ajudar, Ana se viu

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capturada e sobre isto comenta: ". . . eu me senti como se estivesse hipnotizada . . . " traduzindo, de forma rigorosa, a lógica de funcionamento das massas (Freud, 1921) que se instalou ali. Desta forma, Ana foi convocada a ajudar o rapaz que, naturalmente, daria "alguma recompensa" para cada um deles. Assim, ato contínuo, foi até sua casa e instada a mostrar o seu dinheiro, pegou seu cartão de banco e sacou todo o dinheiro que seu marido poupou para que ela ". . . não passasse por dificuldades quando ele morresse". Em seguida, deixou que o rapaz pegasse as notas, por ele envolvidas em um lenço - sob o argumento de que era como " . . . sua mãezinha fazia com o dinheiro .. . " - e, logo após, devolvidas. "Só-depois", sozinha, Ana percebeu que ali restavam apenas folhas em branco, no lugar do dinheiro.

A dolorosa apresentação da perda, realizada neste contexto, demonstra o nexo entre luto e acting-out. Lacan (1962/3) aproxima luto e acting-out em torno da referência à perda como constitutiva do desejo, ainda que de diferentes formas. No luto trata-se de trabalhar para perder e chegar a separar-se do que foi perdido. Tal trabalho, como vimos, toca a questão do objeto como desde sempre perdido e permite, ao final, que possa ocorrer alguma substituição. O acting-out, por outro lado, "escamoteia a perda da parte de si concomitante à perda da parte do Outro. Apresenta, no entanto, a causa em sua vestimenta imaginária com a função de tamponar a falta do Outro" ( Vidal, 1993, p.218).

Dirigir à analista a apresentação de algo da causa - em sua vestimenta imaginária - articulada à perda permitiu sustentar, em sua análise, a pergunta formulada quando do relato deste episódio: "Porque será que não consegm me desvencilhar deles?" Pergunta que visa situar alguma leitura possível, alguma interpretação, já que para Lacan (1962/3) o acting-out

convoca, chama a interpretação. Nesta direção, foi preciso avançar no trabalho de luto, inclusive sustentando junto à sua família - a partir de sua análise - o desejo de cumprir as honras fúnebres, pagando por uma sepultura definitiva 0para seu marido.

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Cabe voltar aqm, à indicação de Lacan (1958/9) acerca da importância dos ritos ligados ao luto, bem como as conseqüências de sua supressão. Em nossa época, muitas vezes a intolerância à dor no espaço coletivo, deixa o necessário trabalho de luto - dito por Freud (1917) normal -sem lugar e, por vezes, encontrando acolhida somente nos consultórios. Desta forma, vale destacar a importância de que o sujeito, convocado ao trabalho de luto, possa encontrar condições propícias para avançar neste trabalho, sob pena de ficar "tomado" pela tristeza e pela inibição, próprios a um primeiro tempo do luto e compatíveis, no dizer de Freud ( 1926), com um estado depressivo.

A questão da inibição não é alheia à temática do luto, em Freud. No pnmerro capítulo de Inibição . . . Freud (1926) situa do lado de uma inibição geral, os estados depressivos próprios ao luto. Há nesta referência freudiana uma importante indicação clínica que esclarece, até certo ponto, a prevalência do diagnóstico de depressão entre os idosos. Ali onde não foi possível trabalhar a partir da perda, no luto, poderíamos supor que, em algumas conjunturas ditas "depressão", estaria em jogo um estado depressivo compatível coni um primeiro tempo do trabalho de luto, que implica forte inibição? Frente a esta questão, vale reiterar a importância de que haja condições propícias para que avance o trabalho de luto e não que este se "infinitize" como um estado depressivo ou, ainda, como sugere Freud ( 1915) em Efêmero, que se instale uma antecipação do luto que faça obstáculo ao próprio avanço do trabalho de luto, conforme indicamos no capítulo II.

4 - Solidão não é isolamento

Indicamos anteriormente que certas conjunturas convergem para o indesejável isolamento do "idoso". Procuramos apontar como a queixa de um sentimento de inadequação e estranheza apresenta-se de forma recorrente nos relatos de "idosos" e ilumina-se a partir das pontuações de Freud e Lacan, acerca do estranho em sua conexão com a angústia, o objeto a e o desejo do

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Outro. Neste ponto, lançamos mão da literatura para reiterar esta fundamental distinção entre solidão e isolamento, a partir da experiência com "idosos"39

.

Em O Espelho40, conto de Machado de Assis (1882) encontramos a

narração de uma interessante trajetória. Em linhas gerais, trata-se do relato de uma singular experiência da juventude de um homem chamado Jacobina. Aos 25 anos foi alçado à posição ( concorrida por muitos), de alferes da guarda nacional. Posição muito valorizada por aqueles que o cercavam e, por esta razão, passou a ser tratado com grande atenção e prestígio. Um convite de uma tia o . retirou do convívio familiar em direção a um sítio definido como "escuso e solitário"(p.10). Sua tia pediu-lhe, expressamente, que levasse sua farda de alferes. Nos dias que se seguiram, foi tratado por todos com grande distinção, chegando a receber em seu quarto a peça mais rica e valorizada da casa: um grande espelho.

Esta situação de hipervalorização que se ordenou, em torno do significante alferes, sofreu, entretanto, uma súbita, uma repentina alteração. Sua tia foi chamada, com urgência, à casa de uma filha gravemente doente. Restaram no sítio apenas os escravos que, com a ausência dos patrões, fugiram na madrugada seguinte.

Subitamente, de um momento para outro, abateu-se sobre ele uma situação de radical solidão e isolamento. A repentina deserção de todos foi produzindo, com o passar dos dias, uma sensação de mortificação, de ter se tornado um autômato, um "boneco mecânico".(p. 13) Esta experiência culminou com o desvanecimento da própria imagem no espelho: " . . . olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contomos . . . ".(p. 15)

Frente ao mal estar causado pelo desfalecimento da imagem e como já viesse buscando algum artificio - tentou ler, escrever um artigo . . . - ocorreu-

39 Cabe assinalar que, também para o discurso médico-científico, a questão do isolamento é considerada importante na avaliação que chega a determinar o grau de fragilidade de um "idoso". 40 Vale registrar aqui o sugestivo sub-título do conto: 'Esboço de uma nova teoria da alma humana' .

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lhe fardar-se, vestir-se de alferes: "Vesti-a, aprontei-me todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e. . . o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes .. . " (p.15). O narrador finaliza indicando que, a partir deste ponto, passou a fardar-se para fazer face aos dias de solidão e isolamento que ainda se seguiram. Exemplar, este texto apresenta, em primeiro plano, o caráter operatório do significante alferes, capaz de reordenar a dimensão imaginária, " . .. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho ... "(p.15). Mais do que cobrir-se com sua farda, Jacobina cobre-se com as insígnias que esta farda suporta, na e pela linguagem: o prestígio, o orgulho de seus familiares, a inveja daqueles que almejavam a posição de alferes. Assim, há neste conto uma demonstração da eficácia simbólica, produzindo a reordenação imaginária em torno do significante alferes.

Além disso, acompanhamos no Capítulo II a forma como, partindo da operação de separação, Lacan (1963/4) vai à etimologia e encontra em torno de "separar-se", um campo semântico que inclui vestir-se, defender-se, engendrar-se e, em outro lugar, chega a indicar algo de um enfeitar-se com o significante (Lacan, 1966). Vale aqui, portanto, localizar no texto que ora examinamos, o esforço de separar-se presente no recurso à farda e ao significante alferes.

Cabe ressaltar, ainda, os efeitos da súbita retirada de referências fundamentais para a personagem Jacobina. A repentina deserção de todos que o cercavam, aliada ao fato de encontrar-se em local escuso e isolado, produziu, como efeito, uma sensação de mortificação que culminou com a desestabilização da imagem do corpo próprio. A imagem no espelho tornou-se difusa, com contornos mal definidos. Lacan (1963), como temos procurado indicar, precisa a articulação com o olhar no campo do Outro e a angústia, na irrupção do Unheimlich:

. . . cada vez que, subitamente, por algum incidente fomentado pelo Outro, essa imagem dele no Outro aparece ao sujeito como privada de seu olhar, aí se desfaz toda a trama da cadeia onde o suj eito está capturado na pulsão escópica, e isso é

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o retomo à angústia mais basal, o Aleph da angústia . . . " (Lacan, l ição única de 20/ 1 1 /63). Vemos aí indicado, no momento estranho, o corte fomentado pelo incidente súbito, o furo na imagem figurado pela privação do olhar e a desestabilização da cadeia significante, com seu efeito de angústia sobre o sujeito. Incidentes que atualizem a experiência do estranho podem vir a favorecer uma alteração no campo do espelho, forçando o sujeito a responder a partir de sua estrutura.

5 - Do sentimento de estranheza ao esforço para situar o desejo - como

desejo do Outro - em análise

Com Freud ( 1919), apreendemos que na experiência do estranho está em jogo algo conhecido, de velho, e há muito familiar. Temos procurado indicar que a entrada em cena do Unheimlich, supõe um incidente súbito, repentino, no qual o corte é propiciador de certa desestabilização da imagem especular. O fato é que os recorrentes relatos de idosos de um sentimento de estranheza, de inadequação apresentam-se, em algumas conjunturas, como correlatos a certa alteração no campo do espelho. Relatos de uma vivência de estranhamento com o próprio corpo, por exemplo, não são raros. Além disso, muitas vezes a queixa de sentir-se só e isolado, formulada na chegada ao analista, aparece imbricada. Solidão e isolamento parecem reportar, nos relatos, a um só mal estar. Importa situar a dimensão familiar, intrínseca à experiência do estranho, a partir da queixa de sentir-se só e isolado, formulada por idosos. Consideramos que a significativa perda de laços confronte o "idoso" com algo da familiar solidão própria à condição do sujeito, representado por um significante para outro significante (Lacan, 1966). Só, no campo da linguagem, frente à dificuldade de situar-se com relação ao desejo, como desejo do Outro. O inequívoco mal estar em jogo - exacerbado na velhice pelas importantes perdas de laços - poderia favorecer o progressivo isolamento do "idoso"? Ao considerarmos como efetiva a relação entre perda de laços, sentimento de estranheza e solidão, contribuindo para um progressivo isolamento na velhice,

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87 evidencia-se a importância de que haja condições favoráveis ao avanço do trabalho de luto, frente a uma perda significativa. Esse aspecto demarca a relevância de situar, a cada vez, a notável distinção entre solidão e isolamento.

Assim, é preciso estabelecer e cultivar laços, exatamente pelo fato de que algo da solidão seja próprio à condição humana. Ocorre que o estabelecimento de laços sociais efetivos, não implica necessariamente uma atitude gregária. Lacan (1972/3) esclarece o laço social como discursivo, o que permite indicar que importantes laços podem ser estabelecidos, de formas diversas. Franz Krajcberg, nascido polonês e naturalizado brasileiro, aos 90 anos, mora no sul da Bahia em uma casa onde trabalha com restos de queimadas, transformando em esculturas aquilo que o fogo consumiu, em parte. Impressiona neste artista plástico sua capacidade de estabelecer laços através de seu trabalho, mundialmente afirmado, na contramão de sua solitária existência. De certa forma, transmite, assim, algo acerca da fundamental distinção entre solidão e isolamento. Em entrevista (Y ou Tube, 2008), Krajcberg fala da radical experiência de ter perdido seus pais em um campo de concentração e aproxima desta vivência, sua revolta com a destruição das florestas brasileiras, afirmando seu esforço em dar direção à sua revolta, com seu trabalho: " . . . se eu grito na rua me botam em um hospital de doidos, não?". Por vezes a magnitude da dor relatada, evidencia algo de catastrófico na desestabilização ocorrida. Não é raro que o "idoso" chegue ao analista muito inibido e seu discurso mostre-se empobrecido, com poucas associações: " . . . eu vim porque o médico achou que seria bom.. . está tudo bem comigo . . . " ou: " . . . apesar das dificuldades, a vida continua . . . " . V ale ressaltar que esta conjuntur� ( repercute, claramente, no manejo das sessões já que, por exemplo, os longos silêncios tendem a ser muito pouco suportados. Há "idosos" que, em certos _/ momentos, apenas saem de suas casas uma única vez na semana, para ir ao analista. Encontrar-se com um interlocutor demasiado silencioso, tende a maximizar o mal estar. Em Angústia, dor e luto, Freud ( 1926) procura situar as diferentes formas de reação à perda a partir de eventos que implicam angústia, dor ou luto.

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Comenta não ser casual que a língua tenha preservado o mesmo termo para a dor fisica e a dor psíquica. Procura examinar a articulação entre dor fisica e dor psíquica e chega a avaliar que ambas têm "as mesmas condições econômicas" (p.160). Nesta direção, Helena, a respeito da dor provocada por " . . . uma perda muito valiosa . .. ", comenta: " . . . essa dor que eu sinto é como a doença da minha amiga . . . " referindo-se ao doloroso processo de adoecimento de sua amiga, com câncer. Helena, de certa forma, ecoa, assim, a indicação de Freud e reitera o trabalho de luto como necessário, quando perdemos aqueles a quem amamos: "uma perda muito valiosa . . . " Vejamos em maior detalhe.

Já em Luto e Melancolia Freud (1917) interroga-se acerca da razão pela qual o luto tem que ser tão doloroso. Para Freud há aí um ponto obscuro, enigmático concernente à economia da dor. No adendo ao texto Inibição . . . , Freud (1926) avalia que:

Se a sensação de desprazer. . . leva o caráter específico de dor . . . em lugar de exteriorizar-se na forma de reação de angústia, cabe responsabilizar um fator que tem sido pouco levado em conta até agora na explicação: o elevado nível das proporções de investimento e l igação com que se consumam esses processos que levam à sensação de desprazer (p. 1 60).

Após afirmar a magnitude das proporções de investimento e ligação, em jogo, Freud retoma a questão do luto e situa aí seu caráter tão doloroso, ou seja: "o elevado e inatingível investimento de nostalgia pelo objeto no curso da reprodução de situações em que deve ser desfeita a ligação com o objeto" (p.161). Freud esclarece que esta exigência de trabalho ocorre sob o comando da prova de realidade " . . . que exige categoricamente separar-se do objeto" (p.160). Voltaremos à prova de realidade mais adiante, retomando a articulação, já apontada, com a falta.

Cabe ainda lembrar que em Televisão, Lacan (1974) assinala, uma vez mais, o caráter complexo da dor ao demarcar a "dor de existir", em uma referência ao budismo, situando-a como própria ao caráter efemero da vida, que é finita. Na direção que nos ocupa, nos limites da neurose, parece-nos possível localizar aí um viés ético que demarca a tristeza e o sentimento depressivo como respostas. O sentimento depressivo apresentando-se perante a falta, em

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89 urna tentativa de nada querer saber disso e a tristeza como covardia moral, como falta moral, recuo do sujeito, que exibe culpa por ceder com relação às questões do desejo (Lacan, 1959/60). Como já apontamos no capítulo I, introduzir a referência à ética do desejo, diferenciando-a do imperioso dever-ser do supereu é, em última instância, o esforço de leitura que Lacan faz do imperativo ético decantado por Freud (1933) : Wo es war sol! ich werden, referido ao campo do desejo. 5. 1- A entrada em jogo de uma escuta

Se, como vimos, a experiência psicanalítica suscita, em diferentes pontos, algo da referência ao jogo de xadrez, vale assinalar que, dentre as inúmeras lendas sobre a origem do jogo de xadrez, existe aquela que articula sua invenção ao trabalho de luto (Tahan, 1997). Trata-se da história de um monarca em grande sofrimento, pela perda do filho amado no campo de batalha. Conta a lenda que o grau de prostração a que chegou o rei, causou grande preocupação a seu povo, já que o monarca passava os dias isolado, traçando na areia sempre as mesmas manobras da batalha em que sofrera tamanha perda. É neste contexto que lhe é apresentado, por um súdito disposto a jogar, um jogo que coloca em campo (transferencial?) as manobras de guerra próprias a uma luta (da vida?) que implica trabalho a partir da perda. Lacan (1966). indica a " . . . estrutura da falha como constitutiva do jogo de xadrez . . . " ( p.662), em francês, jeu d 'échecs, literalmente, jogo de fracassos, insucessos, um jogo que avança de falha em falha, de falta em falta.

O caráter inexorável, estrutural da perda foi experienciado pelo monarca, ao longo do jogo - não sem um partner - conjuntura que viabilizou que o rei pudesse situar e dar direção às suas questões falando e falhando a partir do jogo. Dito de outra maneira, jogando com o Outro pelos caminhos circulares, ainda que não recíprocos, da alienação à separação. Conforme anteriormente apontado, é possível verificar que alguns "idosos" chegam ao analista muito entristecidos e desdobram, no discurso, sua dor frente à diversidade de perdas a que o envelhecimento os confronta: " . . . perdi meu último parceiro de tênis . . . " diz um idoso aos 83 anos, frase

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rapidamente seguida por " .. . mas a vida continua . . . ". Continua ou é preciso um tempo de parada e trabalho, até para que seja possível continuar? É tentando responder aos ideais que prescrevem uma relação asséptica com a dor, que muitas vezes um idoso encurta a conversa. Não há muito o que falar, porque o que há para falar requer uma escuta que lhe permita alguma leitura, a partir de suas perdas. O que terá perdido? Terá sido uma localização, tal como Ophelia transmite a Hamlet em seu ato suicida? Este contexto convoca o sujeito a um trabalho a partir da perda que, entretanto, nem sempre se realiza, fato que não é sem conseqüências para o sujeito.

Temos indicado que súbitos abalos e repentinas quebras de identificações podem produzir efeitos catastróficos de desestabilização da unidade imaginária do eu. Tais conjunturas podem levar um "idoso" a procurar uma análise e entrar no jogo significante com o Outro, chegando a avançar no trabalho de luto, a partir do jogo transferencial.

Em Carta a Romain Rolland - Uma Perturbação da Lembrança na

Acrópole, Freud (1936) indica o enlace entre estranhamento (Entfremdung) e despersonalização: " ... ou bem um pedaço da realidade nos parece estranho, ou bem um pedaço do próprio eu. No último caso, fala-se de despersonalização ... " ( p. 21 ). Cabe aqui retomar algumas pontuações anteriormente feitas acerca do sentimento de estranheza que muitas vezes acompanha o relato de "idosos". Lacan ( 1966) faz uma interessante distinção entre um esquecimento como formação do inconsciente e eventos41

, fortemente marcados pela estranheza: " Lá, o sujeito deixou de dispor do significante; aqui, pára diante da estranheza do significado" ( p.392).

Neste ponto, interessa-nos interrogar a articulação entre o campo conceitual que implica o estranho-familiar (Unheimlich) e o estranhamento (Entfremdung), e os relatos de alguns idosos em que um pedaço da realidade parece estranho - por exemplo ao perder-se nas ruas - bem como frequentes

41 No contexto dessa citação, Lacan ( 1966) acabara de comentar o episódio em que o Homem dos Lobos (Freud, 1 9 1 8), com cinco anos de idade, foi tomado pela angústia e por um terror inexprimível por supor que havia cortado seu dedo mínimo e que este se encontrava preso apenas pela pele.

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91 vivências de estranhamento com o próprio corpo. Poderíamos supor que este enquadre se encontre de alguma forma relacionado à experiência do luto que, como vimos, implica certa interferência entre simbólico e real, tal como apresentado por Lacan em tomo do ghost, espectro do pai de Hamlet, na peça de Shakespeare (1601)?

Além disso, desestabilizações, estranhamentos, podem também produzir-se como decorrência do próprio trabalho analítico, em determinados momentos. Lacan (1966) em Observação sobre o Relatório de Daniel

Lagache . . . chama a atenção para o fenômeno da despersonalização. Aponta que, em uma análise, os efeitos de despersonalização ". . . devem ser considerados men�s como sinais de limite do que como sinais de travessia42 . . . (p.687).

A idéia de uma travessia situa o caráter de abertura ao trabalho de elaboração e construção em análise destes momentos. Trabalho a ser acolhido e sustentado pelo desejo do analista. Trata-se de uma importante indicação clínica de Lacan, já que são momentos de dificil manejo para o analista. O limiar de angústia, bem como o sentimento de estranheza aí produzidos sinalizam a irrupção, a atualização, no campo da análise, de algo do real, do objeto a cuja "única tradução subjetiva" (p.113) é a angústia. 5. 2 - "Eu não faço falta"

Como vimos, Lacan encaminha a especificidade do luto como trabalho, procurando demarcar sua função com relação ao campo do Outro. Aborda a questão afirmando que "Só nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta" (p. 156). Frase que desvela, quando da perda significativa, o lugar que terá sido ocupado pelo sujeito como causa de desejo evocando, assim, algo da própria estrutura da experiência de luto, que requer a passagem de uma falta real à falta simbólica da castração. 42 Nesta direção, cabe ainda apontar que neste texto Lacan ( 1 966) utiliza uma vez mais o esquema ótico (figura 1 ), indicando agora certa inclinação do espelho plano - que evidencia que nem tudo na experiência se reduz aos registros imaginário e simbólico - como própria ao final de uma análise.

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Como apontamos anteriormente, em função da singular localização do sujeito, cada luto tem algo de insubstituível, ainda que ao final possa tomar-se viável alguma substituição.

Correlata à frase, "eu era sua falta" encontra-se a pergunta formulada pelo sujeito, em um momento preciso de sua estruturação: "Pode o Outro me perder?" Tal pergunta busca interrogar e situar no intervalo, para além da demanda, o desejo do Outro como lugar de causa de desejo que o sujeito terá sido.

Em A Angústia, Lacan pontua uma sequência clínica publicada por Margareth Little (1956). A leitura de Lacan, acerca daquilo que ocorreu com Frida - na ocasião, há cerca de dez anos em análise com Margareth Little -diverge daquela registrada no texto publicado. Lacan (1962/3) ocupa-se da viraqa ocorrida nessa análise, que tomou viável o trabalho de luto. Deixa claro que toda a dificuldade ali gira em tomo de como situar a falta. Chama a · atenção para dois pontos do relato. Um deles refere-se à mãe de Frida que, em seu discurso, encontra-se fortemente relacionada aos pequenos furtos e transgressões que se apresentaram desde sua chegada à análise, ocorrida por meio de um encaminhamento judicial. Lacan nos lembra que estes furtos, no âmbito da cleptomania, têm um endereçamento preciso, implicam o Outro. O segundo ponto refere-se ao fato de que embora seu pai já tivesse falecido, Frida "nunca pudera fazer o menor esboço de sentimento de luto em relação a um pai que admirava" (p.160). Diante disso, Lacan avalia que as histórias relatadas " . . . mostram, sobretudo, que ela não podia representar . . . alguma coisa que pudesse faltar a seu pai (p.160). Assim, em certo sentido - da mesma forma que muitos "idosos" costumam afirmar sobre si próprios - Frida não fazia falta.

Ocorre que em sua terra natal morre Ilse, uma amiga da família que -pela tristeza e pela dor que tomam conta de Frida - revela-se uma amiga muito próxima e querida e Frida, pondera Lacan (1962/3) " . .. nunca fizera por ninguém um luto semelhante" (p.158). O esforço de Margareth Little é de conduzir esse momento de análise através de interpretações, as mais variadas, "para ver qual delas funciona" (p.159), brinca Lacan. O fato é que nada

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funciona até o momento em que a analista, diz Lacan: "Confessa ao sujeito que está perdendo seu latim, e que vê-la daquele jeito a entristece" (p. 159).

Diferentemente da leitura da Margareth Little ( 1956) para quem operou aí a autenticidade de seu próprio sentimento, Lacan considera que a intervenção evidencia para Frida que "havia na analista algo chamado angústia" (p.159). Lacan assinala que a emergência, entre uma interpretação e outra, do intervalo evidenciado pela angústia da analista permitiu, nessa análise, "transferir para a relação com a analista a reação de que se trata nesse luto ... de haver uma pessoa para quem ela pode ser uma falta" (p.159). Por esta via, Frida pode "apreender-se como falta" (p.159).

Tal enquadre propiciou que o trabalho de luto deste sujeito - que se encontrava paralisado apesar do, ou melhor, devido ao desesperado esforço de inte�retação de Margareth Little - pudesse ter direção.

Assinalamos anteriormente que para Freud (1925) é " . .. condição para a instalação da prova de realidade que tenham sido perdidos os objetos que haviam trazido antigamente satisfação real" (p.13), localizando, assim, a função da perda na instauração do trabalho de luto sob o comando da prova de realidade. Apontamos ainda que, por esta via, a prova de realidade trabalha na delimitação do buraco no simbólico, trabalho que para Lacan se desdobra da privação à castração. Ocorre que, a partir das pontuações de Lacan, em torno do luto de Hamlet por Ophelia, e do luto de Frida por Ilse, evidencia-se que para que o sujeito possa trabalhar a partir da perda é preciso que possa apreender-se como falta.

O "idoso" muitas vezes estabelece - quando da perda de seus próximos amados - contatos bastante incipientes, precários mesmo: o jornaleiro da esquina, a colega da hidroginástica, o atendente do banco, o rapaz da farmácia, a fisioterapeuta. Contatos que, de fato, não chegam a situá-lo com relação ao desejo, como desejo do Outro. Rabinovich (1993) chama a atenção para a expressão "matar com a indiferença" (p.62), ali onde o sujeito vai se tomando, pouco a pouco, obsoleto. É recorrente, na práxis com "idosos", a formulação de frases como: ". . . eu não faço falta . . . ", ou: " . . . me sinto

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sobrando . . . " e ainda: . . . se eu for ou não for à festa, tanto faz . . . ". Vale ressaltar aí que se apresenta como uma afirmação e não como pergunta, em seu discurso, a questão: "Pode o Outro me perder?". Assim, com bastante freqüência o "idoso" afirma, por vezes, taxativamente, que ele pode faltar, que o Outro pode perdê­lo, sim, ou seja, demonstra sua dificuldade em apreender-se como falta.

Por este viés, fica elidida a possibilidade de situar certo enigma, certa opacidade com relação ao desejo do Outro, que possa relançar a pergunta acerca do desejo. Neste sentido, consideramos que oferecer no jogo transferencial um lugar vazio ao desejo do sujeito, " . . . para que se realize como desejo do Outro" (Lacan, 1960/61, p.128), permite recolocar em movimento o rodeio próprio ao desejo e, por esta via, relativizar a demanda.

Efeitos recolhidos no dia a dia de um ambulatório, como o NAI, se faze1;11 ouvir, por vezes, no discurso de alguns idosos, em análise. É assim que Alice, atenta à rotina, aos hábitos institucionais, interroga exatamente este ponto. Ao final de uma sessão me despeço e reitero: "até quinta-feira . . . ". Alice me diz : " . . . vamos ver. . . de qualquer modo, a senhora estará aqui mesmo, não é?". Neste ponto lhe digo: " . . . de forma alguma . . . quinta-feira, neste horário, eu venho aqui apenas para atendê-la . . . ". Algo surpresa, sorri e se despede, retomando na quinta-feira. Por esta via, Alice interroga se quem a recebe ali é a analista ou a funcionária burocrata que atende o público, em geral. Trata-se de uma pergunta a ser enfrentada pelo desejo do analista, que aposta em um desejo inédito (Lacan, 1974) e não na burocrática rotina institucional.

Lacan (1967) nos lembra que o sujeito não supõe nada, é sempre suposto no campo do Outro, representado por um significante para outro significante, fato que recolhemos clinicamente, de forma invertida, na fala da idosa que diz: " . . . ando muito esquecida . . . ", por quem? Interroga o analista. Que direção apontaria esta dimensão do esquecimento? Poderíamos supor aí, uma vez mais, a dificuldade em "apreender-se como falta", a dificuldade em situar­se com relação ao desejo do Outro e, podemos dizer com Lacan, conseqüentes dificuldades com relação ao trabalho de luto, tal como no relato de Margaret Little acerca de Frida?

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Neste contexto, a função da angústia em uma análise fica demarcada. Na seqüência recortada por Margaret Little e comentada por Lacan (1962/3), a angústia da analista evidenciou algo do intervalo ali onde não havia interpretação possível, deixando operar certa circulação da falta. Tal conjuntura, sob transferência, permitiu que o sujeito pudesse trabalhar a partir da perda, do vazio desvelado.

Vimos no capítulo II que, para Lacan (1962/3), a angústia situa-se como mediana ( e não mediadora) entre gozo e desejo. Também Freud, de certa forma, assinala a angústia como mediana. De um lado, Freud (1926) aponta que a angústia frente ao supereu, angústia da consciência moral, favorece o recuo do eu frente ao supereu. Por outro lado, afirma o nexo entre angústia e desamparo (Hiljlosigkeit) primordial. Esta dupla face da angústia, em sua articulação com o desamparo - como plano de confronto com a castração no Outro - mas também cumprindo um papel no recuo do eu frente ao rigor do supereu, contribui tanto para infinitizar o campo regulado pela lei interiorizada - o supereu - como abre uma via de certo franqueamento, em uma análise, da dimensão fantasmática. Neste sentido, para Freud e para Lacan, a angústia designa uma região intermediária, mediana entre fechamento e abertura ao campo do desejo.

Voltemos ao luto como trabalho que, para Lacan (1962/3), implica a identificação ao lugar do objeto, como perdido. Trata-se aí, de um tempo necessário do luto para que seja possível, ao final, separar-se : " .. . Eu era como um escudo para ele 43

. . . ". Esta frase - dita sob transferência - vela e revela algo do lugar que terá sido ocupado por este sujeito, em trabalho de luto, como objeto causa de desejo. Vale retomar aqui, uma vez mais, a conclusão de Lacan (1962/3) segundo a qual "Só nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta". (p. 156), fazendo aparecer aí o imperfeito como tempo de verbo compatível com o sujeito. Por outro lado, é preciso indicar que ".. . Eu era como um escudo para ele . . . " é uma frase que chega a ser formulada "só-depois", em um tempo do luto em que já haviam

43 Trata-se de uma frase relatada em supervisão.

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cedido, em parte, tanto a inibição como a tristeza, dando lugar à saudade e a novos interesses.

Assim, as frases acima situadas tais como: " . . . eu não faço falta . . . " ou " ... me sinto sobrando ... ", ditas por "idosos" em análise demonstram, como o indicam Silva e Bastos (2006) que a " . . . falta é o pivô da separação: para que o sujeito se separe da cadeia significante, para que não fique inteiramente preso aos significantes do Outro, é preciso que a falta opere" (p.100). Daí, a relevância de situar a dificuldade de muitos "idosos", em apreender-se como falta, em localizar-se com relação ao desejo do Outro, apontada no discurso. Além disso, estas conjunturas clínicas nas quais se apresenta a dificuldade de situar a falta, a dificuldade de "fazer falta" esclarecem a função da angústia, no intervalo sustentado pelo desejo do analista, no jogo transferencial, como capaz de dar direção ao trabalho de luto, de situar ao longo da partida o desejo do Outro como vazio, cavo que a pulsão contorna. Acompanhemos Lacan (1962/3): " . . . Por causa da existência do inconsciente, podemos ser esse objeto afetado pelo desejo. Aliás, é na condição de ser marcada pela finitude que nossa própria falta, sujeito do inconsciente, pode ser desejo, desejo finito." (p. 35).

5. 3 - "Quem não arrisca não petisca"

Acompanhemos, a seguir, alguns elementos clínicos a partir da análise de Helena, que chega aos 63 anos para falar, profundamente entristecida, e segue em análise há cerca de dez anos. O recorte que se segue, procura situar a dificuldade do trabalho de luto em questão. A queixa inicial era de depressão e coincidia com o motivo do encaminhamento médico. Encontrava-se deprimida, desde os 40 anos, e jamais havia sido ouvida. Até então, havia sido tratada apenas com antidepressivos e ansiolíticos. Alternava períodos de grande prostração, nos quais "... ficava de cama, sem vontade de fazer nada .. . " e períodos nos quais conseguia uma maior estabilização. Cedo surgiu o relato de que perdera um bebê, nascido prematuro, aos 40 anos. Nessa ocasião, já tinha uma filha adolescente.

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Em um pnmerro tempo de análise relata o seguinte sonho: "Carregava um vaso precioso com o objetivo de enchê-lo d"água. Tropecei, caí e o vaso se partiu em vários cacos. Aflita, recolhi todos os cacos e passei a carregá-los com grande dificuldade, pois machucavam e, ainda assim, não os largava . . . ". Ao procurar associar, formula: " .. . Tenho dificuldades de largar, mesmo as coisas que me machucam .. . ". Vale marcar, aqui, a importância de que tenha sido possível formular, dirigido ao Outro, seu apego, sua maneira de aferrar-se àquilo que machuca, já nesse primeiro tempo da análise. Em várias outras ocasiões, posteriores, fez referência a esta indicação cifrada no sonho. A partir das associações que este sonho evoca, vale ressaltar um aspecto. Há algo de paradigmático, na práxis com idosos, em tomo desta dificuldade de largar, mesmo aquilo que machuca. Poderíamos localizar, neste apego, a contraindicação formulada por Freud, em termos de perda de plasticidade, em termos de adesividade da libido? Este apego, por vezes, à dor, ao sofrimento poderia ser indicado como correlato daquilo que Freud e Lacan avaliam como dispêndio, entropia psíquica e Lacan formula em termos de mais­de-gozar? Voltaremos a esta discussão no Capítulo IV. Esse período da análise de Helena foi marcado por intenso mal estar e profunda tristeza. Chorava muito, falava da dificuldade de se levantar da cama (onde passava a maior parte dos dias), para ir à análise. Certa ocasião diz: " . . . não sei se conseguirei vir amanhã . . . ". Diante da grande dificuldade expressa, digo: "Estarei aqui te aguardando! " e apertei sua mão44

, gesto que não era habitual. Retoma na sessão seguinte e também, a cada vez, apesar da dificuldade. Neste ínterim, próximo à sua casa, aparece uma cadela abandonada. Já tinha um cachorro em casa e, embora se dizendo sem forças, acolhe a cadela. Fica transtornada com os episódios decorrentes de sua decisão (sucessivas brigas entre os cachorros, por exemplo). Interrogada sobre o que esta situação lhe suscitava, após alguns instantes de silêncio diz: " . . . falei ao meu marido que

44 Vale lembrar a indicação de Lacan ( 1962/63) de que em alguns momentos de uma análise é preciso segurar pela mão, para não deixar cair.

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eu sou um pouco como essa cadela abandonada . . . ", realizando assim alguma leitura, em análise, do ocorrido.

É nesse contexto, cerca de um ano e me10 após sua chegada ao tratamento, que retoma à perda do bebê. Volta, portanto, no discurso, a esse período e diz: " . . . foi nesse momento que a morte entrou em minha vida . . . ", referindo-se, a princípio, ao permanente medo que sente de morrer. Conta, então, pela primeira vez, que, embora prematuro, o bebê estava vivo. O médico lhe dissera que dificilmente ele sobreviveria, já que nascera no sexto mês. Comenta: " . .. eu não quis vê-lo . . . eu não queria ter nenhuma imagem da qual eu pudesse me lembrar . . . ". Dia após dia seu marido ia vê-lo e voltava contando o que ocorrera. Comenta: ".. . eu ficava mal quando ele contava, porque eu não queria saber. . .". Após alguns dias o bebê morreu e conta que não conseguiu ir ao enterro. Por estar falando em análise, começa a tomar-se evidente para si própria, seu obstinado esforço de não querer saber. Começa a delimitar algo acerca de sua própria posição de nada querer saber. Em determinado momento, formula a questão: " . . . Será que eu fui covarde em não querer vê-lo? . . . Será que eu deveria ter ficado perto dele? Será que essas coisas que eu sinto hoje têm a ver com o que aconteceu naquela época?" Comenta: " eu nunca falei sobre isso antes . . . ".

Alguns anos se passam, segue trabalhando em análise, alternando períodos de intensa tristeza em que fala de sua " ... vontade de desistir, de largar tudo ... ", pois tem " . . . uma doença mental . . . " e períodos em que avalia sentir-se " . . . um pouco mais animada".

Cerca de seis anos depois de sua chegada, relata outro sonho após nova retomada, no discurso, da perda que a morte do bebê atualizou: " ... uma perda muito valiosa . . . muito importante . . . ". Narra seu sonho em análise: "Estava ninando o bebê no berço, cuidando dele . . . a cena seguinte é minha filha, já adulta com o bebê no colo, debaixo de um caminhão. O motorista estava fazendo manobras para frente e para trás, sem sair do lugar e eu, de longe, gritava desesperada. Decidi, então, parar de gritar e ir lá, chegar perto. . . ao aproximar-me, vi que não havia mais um bebê, não era mais uma criança, eram

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duas partes separadas e não um bebê esmigalhado . . . ". Comenta que neste momento não havia mais desespero. Acordou com certo alívio. Suas associações apontaram duas direções. Havia visto, na véspera, fotos de um bebê prematuro que "vingou". Após algum tempo de silêncio, uma segunda associação: " . . . parei de gritar e cheguei perto . . . o desespero passou, não era mais um bebê. Comenta: "Este sonho me mostrou que sempre vou me lembrar dele, mas o sofrimento será menor . . . " Cabe indicar a importância de diferenciar este sonho, daquele relatado em um primeiro tempo de análise. Durante muito tempo a coloração melancólica de seu discurso deixava em suspenso uma pergunta em tomo da estrutura. Trata-se aqui de um sonho que situa, só-depois, ter havido trabalho no intervalo entre os dois sonhos. É preciso também apontar, nesse contexto, a referência às "manobras do motorista do caminhão", que localizam algo do manejo da transferência como propiciador de que - não sem angústia - ela se aproximasse, chegasse perto das questões que se apresentaram. Nessa ocasião, em paralelo, fala recorrentemente - e ouve . . . - que "está mexendo nas coisas . . . " em sua casa, "tapando", "mexendo nos buracos" e diz: " . . . resolvi trocar uma mesa cacareco. . . quero uma mesa do tamanho da minha família . . . ". Comenta: " . . . estou mais animada . . . não animadíssima . . . Digo a ela: " . . . talvez não se trate de 'animadíssima'". Concorda com meu comentário e segue afinnando: " . . . há muito tempo eu não me sentia assim, com vontade de mexer nas minhas coisas". Alterna novo período de desânimo (menos intenso) e depois volta a mexer na casa. Comenta: após anunciar que 1mc10u uma "musculação": " . . . acho que estou me movimentando mais . . . ". Alguns meses após o relato do segundo sonho e por ocasião do "Caso Isabela45

", diz ter aproximado o ocorrido, do filho morto bebê. Pergunto: " . . . de que forma você aproximou?" Diz: "Como, de uma hora para outra, não há mais nada? Eu estava tão feliz com a gravidez, o bebê estava bem e, de repente, não havia mais nada.. . essa menina Isabela, com toda a vida pela frente e, de 45 Trata-se da morte de uma criança que gerou grande consternação no Rio de Janeiro, em 2008, em função de que os indícios apontavam, fortemente, para o fato de que a menina Isabela fora atirada pela janela, por seu pai e sua madrasta.

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100 repente, não há mais nada .. . ". Após algum tempo em silêncio diz: " . . . estou melhor em relação ao meu filho desde aquele sonho . . . você se lembra daquele sonho?" Confirmo lembrar-me e digo a ela que aquele não foi qualquer sonho. Concorda com o meu comentário e segue dizendo sobre o bebê morto: " . . . eu não o esqueci . . . ". Digo: " . . . talvez não se trate de esquecer . . . ". Responde: "E, eu nunca vou esquecê-lo, mas parece que se tomou mais suave . . . ".

Nesse contexto, passa a indicar no discurso certa urgência. Diz : " . . . há momentos em que me sinto melhor e é preciso aproveitá-los porque não sei se durarão . . . quero aproveitar para fazer o que eu quero . . . " Haveria nesta urgência uma referência ao real como limite irrevogável, tal como Freud (1915) o circunscreve ao abordar nossa atitude para com a morte e o efemero? Após a ausência da analista por um período de cerca de quatro meses, conta, , ao retomar a análise, uma série de sonhos em que, por asssociação, situa um elemento em comum: está sempre às voltas com uma dificuldade, franqueando algum obstáculo: ". . . pulando de um prédio para outro . . . enfrentando situações perigosas". Neste contexto decide consertar o telhado de sua casa. Angustia-se com o risco de entregar o dinheiro para a compra das telhas, nas mãos do operário. Diz: " . . . sem dúvida há um risco. Lembrei daquele ditado: 'quem não arrisca não petisca"' . O telhado é colocado e vem dizendo: " . . . no mesmo dia o telhado foi abaixo e ao alto". Algo de um giro discursivo se evidencia em seus relatos. Diz: " . . . estou contente de ter realizado isso. Cada vez mais eu 'sei ' da importância de aproveitar os momentos em que eu estou bem para realizar o que eu quero . . . ", ressoando, de certa forma, a definição de Lacan ( 1962/3) segundo a qual "agir é arrancar da angústia a própria certeza" (p.88). Há aí um franqueamento que não é sem o saber que vai se decantando, de forma fragmentária, a partir da experiência de análise, e que implica alguma mudança na economia de gozo pela via do trabalho a partir da perda, trabalho de luto. De uma posição algo "melancolizada", de intenso apego ao sofrimento para uma posição - não sem angústia - onde prevalece certa urgência em relação ao tempo que resta.

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Desta forma, procuramos situar a especificidade de operar, no jogo transferencial, com a função do intervalo - sustentado pelo desejo do analista -e o necessário manejo da angústia que daí se depreende, para que o trabalho, a partir da perda, possa ganhar direção. Trata-se, portanto, em algumas análises, na velhice, de uma aposta no funcionamento da estrutura ainda que na experiência com "idosos" haja lutos que se mostrem efetivamente muito dificeis, em função da exacerbada dificuldade, por um lado, de largar mesmo aquilo que machuca e, por outro lado, de apreender-se como falta - tal como Frida, na sequência clínica relatada por Little (1956).

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CAPÍTULO IV - DISCURSOS E ECONOMIA DE GOZO

O discurso que digo analítico é o laço social determinado pela prática de uma análise.

Lacan

Eu comprei o ócio . . . ". Com esta frase provocativa, Manoel de Barros, poeta nascido e criado no Pantanal, inicia suas considerações no documentário sobre sua vida, realizado por Pedro Cezar (2009). Esclarece que após tomar suas terras produtivas, pode ". . . ficar à disposição da poesia". Aos 93 anos, lúcido e em plena atividade, subverte com sua fala algo da implacável incidência do discurso capitalista que - no caso da velhice - tende a localizar o velho, por um lado, como obsoleto, já que improdutivo. Por outro lado, a lógica capitalista dirige-se à velhice como "mercado de consumo" (Debert, 1999), com a infindável oferta de produtos e técnicas que se propõem a recobrir aquilo que, de certa forma, a velhice traz à luz, de forma inexorável: a incidência da passagem do tempo sobre o corpo, a impossível sustentação dos ideais da juventude e, em última instância, a própria finitude que, como nos lembra Freud (1915), é relançada, a cada vez, pela perda dos próximos amados. O fato é que nas duas vertentes, seja como velho, obsoleto, seja como mercado de consumo, é como objeto que o velho é abordado, com inequívocos efeitos de segregação e isolamento e, portanto, na contramão do estabelecimento de laços sociais. Como anteriormente apontado no Capítulo I, interessa-nos situar um breve recorte que localize algumas questões referentes ao impacto sobre o discurso vigente na área de saúde, da articulação do discurso capitalista com os progressos e as descobertas da ciência tecnológica. Informada conceitualmente pela ciência, a ". . . tecnologia moderna não só produz máquinas e ferramentas fisicas, mas também organiza e sistematiza as atividades. A tecnologia fisica (pesada) apóia-se nas ciências naturais e a tecnologia não fisica (leve) nas ciências comportamentais" (Koerich, 2006, p.180). Importa situar que o privilégio da técnica - seja ela leve

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ou pesada - ao definir e crrcunscrever procedimentos, em detrimento das questões que apontam a uma dimensão subjetiva, não é sem conseqüências. É assim que Nair relata seu " . . . horror ao termo procedimento . . . ". Ao solicitar que falasse mais, esclarece que próximo à morte de seu marido, de quem cuidou por vários anos, em diversas ocasiões precisou chamar auxílio médico, em casa, já que ele se encontrava acamado. Nesses momentos, após avaliá-lo, muitas vezes o médico indicava uma internação. Nair conta que a partir de um determinado ponto passou a contrapor-se à orientação de internação, pois seu marido voltava " . . . sempre mais prostrado, mais alheio e com várias escaras". Comenta que quando argumentava nesta direção, a resposta era sempre a mesma: ". . . o procedimento nestes casos é a internação . . . ".

O trabalho em um ambulatório, com uma eqmpe de saúde multiprofissional, permite acompanhar as inúmeras ocasiões em que a prevalência da técnica contribui para diluir responsabilidades, ao definir procedimentos. Daí que, muitas vezes, verifica-se, exatamente, um esforço na direção de que se defina um diagnóstico rapidamente, para que se definam, também rapidamente, os procedimentos. Ocorre que tal rapidez, mostra-se muitas vezes incompatível com o tempo necessário para que algo do sujeito dividido possa situar-se. É o caso, já mencionado, da entrada precoce de antidepressivos e outras medicações associadas, ali onde alguém já fortemente afetado pela dor de uma perda significativa e que precisa trabalhar a partir da perda, se vê também algo entorpecido. Trata-se de uma conjuntura que muitas vezes dificulta o avanço do tão doloroso trabalho de luto.

Em Psicanálise e medicina, Lacan (1966) chama a atenção para a tendência que se instala na era científica, já que o enquadre moderno da ciência requisita o médico, em sua função de cientista fisiologista e, além disso, ".. . o mundo científico deposita em suas mãos o número infinito daquilo que é capaz de produzir em termos de agentes terapêuticos novos, químicos ou biológicos. Ele os coloca à disposição do público e pede ao médico que os coloque à prova . . . " (p. 10). Neste ponto, formula a seguinte questão: "Onde está o limite em que o médico deve agir e a quê deve ele responder?" (p.1 O). Mais adiante no

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104 texto retoma, sob a forma de questão: "Como eles [os médicos]46 responderão às exigências que convergirão bem rapidamente para as exigências de produtividade?"(p. 14 ) .

Lacan (1966) pontua a importância de situar duas balizas: a demanda do doente: " . . . Ele vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente" (p.10) e o gozo do corpo, em jogo, por exemplo, nas conjunturas que implicam dor. Esclarece que ambas confluem para uma dimensão ética e, nesta direção, desloca a prevalência da técnica, seja ela leve ou pesada, e reintroduz -endereçada aos médicos - a pergunta acerca de uma ética. Dirigindo-se a uma platéia de médicos, sem mostrar-se ingênuo, Lacan (1966) afirma que se dentre duzentos, ao menos um puder ouvi-lo, não será sem efeitos sua apresentação da necessária dissimetria entre demanda e desej�, bem como do prazer como barreira ao gozo, referências éticas próprias à práxis do psicanalista. Reintroduzir a pergunta acerca da ética demarca, de certa forma, o lugar da psicanálise na medicina como "marginal" e "extra-territorial" (Lacan, 1966, p.8) Nesta direção, vale apreender e recolher o relato de ocorrências atípicas que são registradas pelos próprios especialistas em envelhecimento. É assim que, em certa ocasião, a fisioterapeuta ao fazer o encaminhamento de uma "idosa", diz perplexa: " . .. ela tem uma dor que anda e vive me contando sonhos . . . ". Algo do saber especializado fracassa aí - em torno deste "sintoma itinerante" e "falante". É na interlocução com a equipe, sustentada em torno do significante interdisciplinar47 (Motta, 2006), que alguma coisa vai passando, vai se transmitindo, ao longo do tempo, de que certas queixas encaminham-se falando, sob transferência. Procuramos indicar, nos Capítulos I e III, como a queixa de dor encerra uma complexidade, pode implicar uma dimensão subjetiva. Neste exemplo, inclusive, a dor "anda" e

46 Os colchetes são nossos. 47 A equipe do ambulatório NAI/UNA TI define-se como multiprofissional e interdisciplinar. Vale registrar que este esforço na direção de uma prática interdisciplinar, contribui para a abertura à interlocução, ao longo do tempo, em torno das questões que apontam a uma dimensão subjetiva.

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"fala". V ale acompanhar aqw, alguns desdobramentos da abertura desta discussão, no ambiente técnico do ambulatório.

Ocorre que, em um segundo tempo da interlocução com a equipe de fisioterapia - em torno de situações clínicas - desdobrou-se a demanda de um protocolo de "alta da fisioterapia com encaminhamento para a psicologia". Aquilo que, em um primeiro momento, parece apontar a uma apreensão da especificidade da escuta do analista, revela-se, uma vez mais - se levarmos em conta o contexto - um esforço de diluir responsabilidades, por meio da utilização de técnicas, ditas leves. Dito de outra maneira, por esta via chega-se a transformar a possibilidade de uma escuta, em uma dentre outras técnicas.

Neste ponto da discussão, apresentou-se a questão: por que alguém que sente dor e alívio ao ser tocado pelo fisioterapeuta, veria alguma função em falar ap a nalista? Sustentando esta questão, que ecoa a discussão levantada por Freud (1910) em Psicanálise Silvestre, propusemos no lugar de um protocolo, a avaliação de cada situação - uma a uma - e a possibilidade de introdução de um tempo, em algumas conjunturas, em que seguindo seu atendimento com a equipe de fisioterapia, o "idoso" pudesse ser convidado a falar ao analista, se assim o desejasse. O que se busca reinserir aí, é preciso sublinhar, é a possibilidade de re-situar a pergunta acerca de uma dimensão subjetiva.

De forma marginal e extra-territorial, consideramos que seJa recolhendo aquilo que fracassa e se apresenta como atípico na prática dos especialistas, que o discurso analítico pode localizar-se como contraponto nesta discussão. É, portanto, operando a partir das brechas discursivas e, a cada vez, que algo do discurso analítico pode reintroduzir as questões de sujeito, muitas vezes elididas pela ênfase nos aspectos técnicos e na demanda de produtividade que aí se insinua.

Voltemos ao texto freudiano, porém sem perder de vista este ambiente próprio à nossa época, em que certa mestria em jogo na função tradicional do médico, vai cedendo lugar ao exercício da função do mestre moderno (Lacan, 1969/70), cada vez mais técnico. Como procuramos apontar, tal contexto tende a exacerbar-se, articulado ao discurso capitalista.

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1 - A apresentação da contra-indicação formulada por Freud

É preciso partir do enfrentamento da contra-indicação formulada por Freud com respeito à prática psicanalítica com "idosos" para retomarmos algumas questões já indicadas. Importa demarcar em que termos Freud contra­indica a psicanálise com idosos. Seguimos, com Lacan (1969/70) em tomo de algumas pontuações de O A vesso da Psicanálise. Nesta direção, pretendemos chegar a situar a pergunta advinda da experiência psicanalítica com "idosos", no contexto de um ambulatório: como intervir em uma economia de gozo? Naturalmente, a contra-indicação de Freud (1898, 1904, 1905), com referência à prática da psicanálise com idosos " . . . perto ou acima dos cinqüenta" (Freud� 1905, p.274), precisa ser contextualizada, pois, a idade de cinqüenta anos na virada do século XIX para o XX, não pode ser traduzida de forma direta para o início do século XXI. Por outro lado, a posição de Freud configura-se como um argumento de autoridade que requer que o examinemos, em primeiro lugar, com os próprios avanços e pontos de abertura encontrados em seu texto. De qualquer forma, é preciso lembrar que os analistas enfrentaram outras contra-indicações freudianas com relação tanto à psicanálise com crianças, como com psicóticos, por exemplo. Mucida (2004) problematiza exatamente esse aspecto, ou seja, o fato de que os analistas, até recentemente, não tenham interrogado a contra-indicação da práxis da psicanálise com idosos. Formula a interessante hipótese de que haja aí um ponto de horror articulado à velhice, ao real que - inexoravelmente - a velhice descortina. Consideramos que tal hipótese introduza a pergunta acerca da resistência do analista, em um contexto onde os psicanalistas oscilaram durante muito tempo entre evitar interrogar qualquer traço específico de uma faixa etária - já que o sujeito não envelhece -e a posição de Freud que contra-indica com todas as letras a prática da psicanálise com quem "estiver na casa dos cinqüenta" (Freud, 1903, p. 262). Cabe também notar que mesmo analistas próximos a Freud responderam à sua posição, de forma singular. Radicalizando a posição

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freudiana, Ferenczi (1921) compara o narc1s1smo do idoso ao do psicótico. Considera que em ambos haveria diminuição do interesse objetal e uma exaltação da libido narcísica. A valia que no psicótico, entretanto, a quantidade de libido ficaria inalterada e no idoso, diminuída. Já para Abraham (1920) a idade do aparecimento da neurose tem mais importância do que a idade com que se inicia o tratamento: "O prognóstico depende mais da neurose (quando se tornou grave), do que da idade real do paciente" (p.95). Assim, importa mais para Abraham a idade da neurose e não a idade cronológica. Freud sustenta sua contra-indicação em duas linhas de argumentação bastante diversas entre si. Vejamos em que termos:

A idade dos pacientes tem assim essa grande importância no determinar sua adequação ao tratamento psicanalítico, que, por um lado, perto ou acima dos cinqüenta a elasticidade dos processos mentais, dos quais depende o tratamento, via de regra se acha ausente. . . e, por outro, o volume de material com que se tem de l idar prolongaria indefinidamente a duração do tratamento. (Freud, 1 904, p .274) Iniciemos pelo segundo argumento de Freud. Consideramos que os conceitos de compulsão a repetição e transferência re-situem este argumento concernente à questão da quantidade, do volume de material na _clinica com idosos. O que importa migra para a transferência como "arena" (Freud, 1914), campo de trabalho. Além disso, como vimos, com o conceito de pulsão de morte, pós 1920, tanto a rememoração quanto o trabalho de elaboração,

Durcharbeitung, têm limite. Não é possível recordar tudo, não é possível analisar tudo, nem tudo na pulsão é libidinal (Freud, 1923). Nesta direção, este argumento mostra-se datado, já que o próprio Freud fornece elementos teórico­clínicos que permitem relativizá-lo. O primeiro argumento, entretanto, requer que avancemos com mais vagar. Trata-se de certa inércia psíquica, da perda de elasticidade, de plasticidade da libido. Longe de mostrar-se datado, este argumento revela-se de grande importância. Trata-se de uma noção que será articulada posteriormente à resistência do isso (Freud, 1926, 1937). Em História de uma Neurose Infantil, encontramos uma importante avaliação acerca da relação entre idade e plasticidade da libido:

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Sabemos apenas uma coisa: que a mobilidade dos investimentos mentais mostra uma diminuição surpreendente à medida que a idade avança. Isso nos propiciou uma das indicações dos limites dentro dos quais o tratamento psicanalítico é efetivo. Há pessoas, no entanto, que conservam essa plasticidade mental muito além do limite habitual. .. (Freud, 19 18, p . 144). Vemos que a um só tempo Freud aponta o limite, mas, também a abertura ao sinalizar que nem sempre com o avanço da idade ocorre a perda da plasticidade mental. Trata-se de uma referência fundamental, em Freud, já que assinala certa dissimetria entre a perda de plasticidade e a faixa etária. Neste ponto convém seguirmos sua indicação:

e outras que a perdem prematuramente. Se estas últimas são os neuróticos, estamos diante da desagradável descoberta de que é impossível anular nelas as manifestações que, em circunstâncias aparentemente semelhantes, são facilmente tratáveis em outras pessoas. De modo que ao considerar a conservação de energia psíquica, não menos do que a de energia física, devemos fazer uso do conceito de entropia. (Freud, 1918 : 144). V ale notar que aqui, da mesma forma que Abraham, Freud privilegia a questão da neurose e não da idade cronológica, permitindo uma vez mais, certo deslocamento da questão meramente etária. Cabe ressaltar também a introdução, neste contexto, da noção de entropia psíquica, como perda, como dispêndio. É preciso esclarecer que Freud lança mão da segunda lei da termodinâmica segundo a qual a entropia necessariamente implica perda, dispêndio.

Neste ponto, retomemos algumas indicações de Freud acerca da parcialidade dos processos que ocorrem em uma análise, e que sempre deixam um resto inassimilável. Nesta discussão, voltamos aos conceitos de Durcharbeitung e construções em análise, já abordados no capítulo II. Seguimos com Lacan (1969/70) que, tal como Freud, recorre à noção de entropia psíquica. Por esta via, lançando mão da formalização dos discursos, acompanhamos algumas indicações de Lacan (1969/70) que permitem situar a contra-indicação freudiana em tomo da perda de plasticidade e melhor localizar o termo entropia, neste contexto.

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2 - O que fazer com o resto?

No início do terceiro capítulo de Análise Finita e Infinita, Freud (1937) circunscreve, a partir da experiência, o campo a que tem se dedicado "nos últimos anos": os casos graves e as análises didáticas (227). Com relação àqueles, a análise do homem dos lobos é interrogada de forma exemplar; já as análises dos analistas aparecem evocadas pela análise de Ferenczi48, conduzida por Freud. Com este duplo eixo, o texto desdobra, relança e ordena questões que vão, uma a uma, aparecendo e tentando mapear e encaminhar dificuldades e pontos de impasse com que se defronta o desejo do analista na direção de um tratamento - o que pode uma análise, quais "os limites com que tropeça a capacidade de operação" (233) de uma análise? - interroga Freud. Vale lembrar que Lacan (1960/61) trabalha desde o Seminário A transferência, o desejo do psicanalista como função, lugar vazio ". . . lugar que é seu, que se define como aquele que há de oferecer vazio ao desejo do paciente para que se realize como desejo do Outro" (p. 128).

Retomemos neste ponto, algumas questões já apontadas no capítulo Il, a partir de Análise finita. . . . Freud ( 193 7) inicia com uma pergunta em torno da duração de uma análise, que atravessa todo o texto. Qual o tempo de uma análise? É possível abreviá-la? Há atalhos possíveis? Interroga-se, ainda, acerca de uma intervenção feita há mais de 20 anos, ou seja, a fixação do término da análise do homem dos lobos. Dentre os comentários que faz sobre tal intervenção, chega mesmo a qualificá-la como um "violento recurso técnico" (p. 222). Procurando avançar nesta discussão, explicita o giro fundamental de questão, operado na clínica, giro que o levou a postular em 1920 a pulsão de morte e suas conseqüências em um campo que implica o além do princípio do prazer. V ale lembrar que a pergunta em tomo das conseqüências da afirmação da pulsão de morte encontra-se presente até os textos mais tardios (Cf Freud,

48 Confira a nota do editor inglês na p.224

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110 1938). Neste contexto, encontramos a seguinte orientação de Freud (1937) : " . .. em vez de indagar como se produz o tratamento pela análise. . . a colocação do problema deveria referir-se aos impedimentos que fazem obstáculo ao tratamento analítico" (224 ). Este giro, esta mudança de eixo de "como se produz" para "o que faz obstáculo" (Cosentino, 1993), vai circunscrevendo ao longo do texto duas dimensões de limite, conforme anteriormente apontado no capítulo II.

Por um lado, apresenta-se o limite colocado pelo que a interpretação não esgota. O trabalho da cadeia sempre alude a outro sentido possível, conseqüência direta da própria polissemia do significante; da própria eq{üvocidade da linguagem. É assim que encontramos no texto a seguinte formulação: "Vale dizer, a pergunta é se mediante a análise se poderia alcançar um nível de normalidade absoluta, ao qual se pudesse atribuir, além disso, a cap'acidade para manter-se estável. . .". Freud (1937) segue exemplificando que neste caso hipotético a análise teria " . . . conseguido resolver todos os recalques sobrevindos e preencher todas49 as lacunas da recordação" (222/3). É, uma vez mais, a propósito da análise do Homem dos lobos que, após tê-lo considerado "curado radical e duradouramente" (221), Freud (1937) reitera ter sido necessário, posteriormente, prestar-lhe auxílio para "dominar uma peça não tramitada da transferência" (221 ), bem como assinala episódios patológicos que só podiam ser apreendidos como "vestígios de sua velha neurose" (221). Fala ainda em "restos transferenciais" (221) e "fragmentos de sua história infantil" (221) que, em sua análise, não haviam "saído à luz"(221 ). Desta forma, Freud assinala uma dimensão de limite ligada ao trabalho de interpretação e elaboração - Durcharbeitung - sem o qual não é possível para um sujeito integrar sua rememoração em sua história (Cf Lacan, 1953), mas, que não permite preencher todas as lacunas da recordação. Por outro lado, outra dimensão de limite vai sendo circunscrita por Freud (1937), ligada às conseqüências da incidência da pulsão. Acompanhamos no texto a marcação de que, com respeito à incidência da pulsão, há "fenômenos

49 os grifos são nossos

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residuais" (231), há "alterações só parciais" e os processos se consumam "de maneira mais ou menos imperfeita" (p.231), ou seja, sempre há resto.

Um elemento clinico recorrente na experiência com "idosos", é a forma como a repetição de um mesmo relato - de uma sessão para outra e, por vezes, dentro de uma mesma sessão - aparece como se estivesse sendo narrado pela primeira vez. O que, do lado do discurso científico, rapidamente se insinua como déficit cognitivo, déficit de memória50

, apresenta-se à escuta do analista como enigmático. Esta forma tosca da repetição no discurso não nos orientaria quanto à presença de um esforço de ligar no solo do prazer (Freud, 1920) algo qu� se apresenta como um resto inassimilável, que insiste?

Voltando ao texto de Freud (1937), a pergunta inicial pela duração do tratamento vai se articulando a uma pergunta em tomo do limite da operação ana)ítica, em um contexto onde são afirmadas duas dimensões do resto como inassimilável, como irredutível. É interessante retomar, neste ponto, a forma como Freud (1937) indica a questão do limite: " . . . o que se quer é ter claro os limites com que tropeça a capacidade de operação de uma terapia analítica" (233). E ainda: " ... a análise não trabalha com recursos ilimitados, mas, restritos" (232).

Freud (1937) questiona diversas tentativas dos analistas de encurtar, abreviar a duração51 das análises. Opõe a "pressa da vida americana" (219) à

urgência da pulsão, à "intensidade pulsional pelo momento" (227). O tempo de uma análise refere-se, sobretudo, ao que da pulsão insta, urge ou, em outros termos, só é possível influir, mediante a análise, sobre um conflito pulsional que

5° Cabe assinalar que ainda que Freud ( 1 896) não estabeleça uma teoria da memória, fornece algumas indicações sobre a questão. Na Carta 52, por exemplo, recolhemos importantes noções tais como trilhamentos (Bahnungs), inscrição (Niederschrift) e a memória como transcrição, tradução. Este esforço de mapeamento utilizando-se de significantes que localizam a constituição subjetiva em termos da linguagem como estrutura, é fortemente apontado por Lacan. Por esta via, Lacan ( 1959/60) nos orienta quanto à especificidade da memória, sujeita a traduções e transcrições de inscrições em diferentes tempos. Trata-se de uma indicação que na experiência psicanalítica com 'idosos' alcança especial valor de aposta de que novas traduções e transcrições possam ser estabelecidas, sob transferência. 51 Confira o comentário de Freud ( 1937) segundo o qual o esforço de trilhar um atalho, na verdade, acaba tornando o percurso da análise mais longo. Poderíamos supor nesta orientação de Freud a indicação da resistência do analista em ação, neste esforço de abreviar o tempo de uma análise?

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seja "atual" (233), já que, se os cães dormem " .. . não está em nosso poder despertá-los" (233). Assinala aqui, uma vez mais, o limite, agora, do poder do psicanalista cuja margem de intervenção demonstra que nem tudo é analisável. É interessante acompanhar como, pouco a pouco, Freud vai lançando o foco na

intervenção do analista a partir dos problemas e questões ligados à formação do psicanalista, indicando a importância da análise didática, da própria análise como capaz de produzir a " . . . firme convicção [Ubertzeugung] na existência do inconsciente . . . " (p.250), necessária à sustentação do lugar do psicanalista.

Dentre as tentativas dos a nalistas de abreviar a duração das análises, Freud (1937) qualifica de "particularmente enérgica" (219) a empreendida por Otto Rank. Critica a forma como Rank tenta abordar a dimensão constitutiva, primordial. Compara com o que conseguiria o "... corpo de bombeiros caso se conformasse em retirar a lâmpada que deu início ao incêndio de um quarto em chamas . . . " (219/220). Freud interroga a expectativa de Rank de eliminar a neurose "íntegra" (219), de tal forma que permitisse preencher ( quem sabe . . . ) todàs as lacunas da recordação e tramitar duradoura e definitivamente o conflito com a pulsão. Deixa claro que a abordagem, pela psicanálise, da questão do primordial, do originário não implica atingir um sentido último, dizer a última palavra, decifrar um conteúdo já dado, a priori.

Há, sem dúvida, um giro discursivo de Freud a Rank na abordagem da dimensão primordial, originária, mas, há também uma insistência de Freud em apontar como direção capaz de por termo ao hiperpoder do fator pulsional, algo da ordem de alguma retificação, só-depois, da dimensão constitutiva, primordial.

Neste mesmo ponto do texto uma outra indicação, sob a forma de questão, reitera a especificidade da operação analítica, diferenciando-a de outros tratamentos que ainda que tenham efeitos terapêuticos, não implicam efeitos analíticos: "Acaso nossa teoria não exige para si o título de produzir um estado que nunca pré-existiu de maneira espontânea no interior do eu e cuJa neo­criação constitui a diferença entre o homem analisado e o não analisado?"(229/30). Esta é uma direção presente em vários textos de Freud, ou

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seJa, o esforço de diferenciar os efeitos propriamente analíticos, dos efeitos terapêuticos ligados a outras práticas baseadas na sugestão. Retomemos a crítica de Freud a Rank, segundo a qual certa retificação a posteriori da dimensão constitutiva não teria como direção, para a psicanálise, decifrar um sentido derradeiro ou eliminar a neurose íntegra. Qual seria, então, a via indicada? Poderíamos situar que a construção estabelecida em uma análise como produção não integral, mas, também, como "neo-criação" demarca - em articulação com a Durcharbeitung - a genuína operação analítica (p.230)? E ainda: poderíamos situar aí - Durcharbeitung e construção - a re�posta freudiana para a pergunta em torno do que fazer com uma dimensão inassimilável de resto, em uma análise? Há um inequívoco esforço de Lacan na direção de seguir aí, do ponto em.que Freud deixou sua pergunta acerca daquilo que resta. Vejamos algumas artitulações já apontadas, de forma a avançar com Lacan (1969/70), em torno da formalização dos discursos como laço social.

3 - Como intervir em uma economia de gozo?

Vimos que Análise finita . . . , é um texto que permite interrogar os termos do legado freudiano para os psicanalistas. Lacan (1953) o situa como "testamento" (p.24) de Freud e convida os analistas a conquistarem aquilo que herdaram. Nesta direção em que se lida com a herança deixada por Freud, Lacan - implicado na transmissão da psicanálise - procura formalizar por meio do estruturalismo lingüístico, da lógica, da matemática, da topologia, dentre outras apropriações, aquilo que Freud recolheu a partir de sua práxis. Seguindo esta via, em tomo da questão de um resto inassimilável, mapeado por Freud, Lacan formaliza o objeto a. Acompanhamos nos capítulos II e m a apresentação, por Lacan (1962/3), do resto como inassimilável e estruturante. Seguimos, em nosso estudo sobre o luto, como o objeto a para Lacan (1962/3) - quando articulado, à falta, à perda, ao vazio - pode funcionar na constituição do circuito do desejo,

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pode funcionar como causa de desejo. Além disso, assinalamos que o objeto a no fantasma ($<>a) freia o deslizamento infindável da cadeia e, por esta via,

sustenta tanto o sujeito quanto o Outro, já que como objeto do desejo, permite tamponar a falta no Outro. Rabinovich (2004) assinala a função de captação de gozo, em jogo, no funcionamento fantasmático e acompanha Lacan (1969/70) em sua demarcação desta função de captação de mais-de-gozar, própria ao objeto a. Por esta via, Lacan confere - com a formalização do objeto a - mais de uma função ao resto freudiano. Vejamos em maior detalhe

Em O mal estar na civilização, Freud (1930) assinala três fontes de mal estar, sendo uma delas advinda da natureza, a segunda do próprio corpo e a terceira dos laços estabelecidos entre os homens. Longe de considerá-las equivalentes, Freud destaca dentre as três, aquela que acarreta mais sofrimento, que acarreta o maior grau de dificuldade: a fonte de mal estar advinda dos laços que se estabelecem entre os homens.

No final dos anos sessenta, Lacan formaliza quatro diferentes discursos, compatíveis com distintos laços sociais e capazes de rotação. Lacan (1969/70) procura esclarecer as coordenadas estruturais do discurso " . . . como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra ... " (p. 10/11). Assinala uma dimensão invariante na disposição dos lugares - agente, Outro, produção e verdade - e na seqüência das letras: a, $, S 1 e S2. Posteriormente, especificará o lugar do agente (acima e à esquerda), como lugar do semblant

(Lacan, 1970/71) que agencia cada um dos discursos: Sl-do Mestre; S2-Universitário; $ - da Histérica; a - do Analista. Lacan se interessa, sobretudo, em sustentar os giros discursivos, a partir da experiência analítica. Vejamos graficamente os discursos:

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Discursodo Mestre

Discurso do Analista

. fl $ - -+ -s,

Discurso Universitário

s., (i'

--=- ➔ -s. . $

Discurso da Histérica

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O campo discursivo implica uma economia de gozo. O objeto, para a psicanálise, desde sempre perdido, inaugura a repetição - sempre renovada e impossível - de uma satisfação originária. O saber é apresentado como meio de gozo, segundo uma lógica na qual a compulsão à repetição inclui o além do princípio do prazer. Para situar o valor de gozo produzido pelo saber "em trabalho" no campo do Outro - tal como o indica o discurso do mestre - Lacan formula o termo mais-de-gozar, homólogo52 à mais-valia de Marx, ou seja, o saber trabalhando produz algo como perda, como um resto de gozo que instaura um movimento de recuperação de gozo. Acompanhemos Lacan (1969/70):

"De fato, é apenas nesse efeito de entropia, nesse desperdiçamento, que o gozo se apresenta, adquire um status. Eis porque o introduzi de início com o termo Mehrlust, mais­de-gozar. É justamente por ser apreendido na dimensão da perda. . . que esse não-sei-quê, que veio bater, ressoar nas paredes do sino, fez gozo, e gozo a repetir. Só a dimensão da

52 Becker (20 10) situa a indicação de Lacan quanto à homologia entre mais-de-gozar e mais­valia: "A estrutura da circulação do mais-de-gozar, segundo Lacan no retomo ao gozo em excesso de Freud, é homóloga à da mais-valia . . . e não análoga; esta última ressoa próxima à idéia de metáfora, substituição de uma pela outra. Interessa-nos o significado topológico da homologia: uma estrutura será homóloga à outra quando, seja qual for o seu modo de apresentação, tem como origem o mesmo traçado, o mesmo corte sobre a superficie, o mesmo número de pontos e as características dos cruzamentos de suas linhas de corte. Em outras palavras, a sua escrita é a mesma" (p. 54).

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entropia dá corpo ao seguinte - há um mais-de-gozar a recuperar" (p. 47/8). É neste contexto, portanto, que a noção de entropia é situada por Lacan para indicar o caráter inexorável de dispêndio, de perda, como produção que põe em movimento um esforço de recuperação de gozo que é sempre falho, que comporta um ponto de impossibilidade. Este aspecto interessa especialmente aos psicanalistas em sua práxis. Voltaremos a este ponto.

Alguns analistas, como F erenczi ( 1921 ), tratam a velhice como um momento da vida em que ocorre certa diminuição libidinal : " . . . os sintomas da velhice são semelhantes ao rochedo que emerge quando da secagem de um golfo cuja comunicação com o mar foi cortada e que nenhum rio alimenta" (p.176). A bela metáfora de Ferenczi que evoca a figura do isolamento, tão freqüente na velhice, talvez permita encaminhar a discussão em tomo de uma dirriinuição que é apresentada por Freud como acréscimo pulsional. Parece-nos possível supor que o corte apontado por Ferenczi - de comunicação com o mar e os rios - possa ser lido, com Lacan (1963/64), pela via do mito da libido como lâmj_na, órgão irreal. Seguindo esta direção, tal como apresentado no capítulo II, cabe articular a dimensão de corte à experiência do estranho, no tocante aos relatos de súbitas perdas de referências significativas, por vezes, concomitantes convergindo, em algumas ocasiões na velhice, para conjunturas de isolamento. Avançando, ainda com Lacan, podemos articular a idéia de uma diminuição que é apresentada como acréscimo, com as noções de entropia e mais-de-gozar. Conforme indicamos, também Freud lança mão da noção de entropia ao apresentar o argumento de que a perda da plasticidade da libido e o processo de envelhecimento se articulam. Em Análise Finita . . . , Freud volta novamente a essa discussão, afirmando uma perspectiva que nos interessa ressaltar:

. . . Com os pacientes que tenho em mente, porém, todos os processos mentais, relacionamentos e distribuições de força são imutáveis, fixos e rígidos. Encontra-se a mesma coisa em pessoas muito idosas, em cujo caso ela é explicada como sendo devida ao que se descreve como força do hábito ou exaustão da receptividade - uma espécie de entropia psíquica. Aqui, no entanto, estamos tratando com pessoas ainda j ovens. (Freud, 1 937, p. 275)

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O que vale destacar neste ponto, é que Freud esclarece estar se referindo a jovens e não a idosos. Em nota de rodapé neste ponto do texto, S trachey chama a atenção para o fato de que a mesma analogia em torno da entropia psíquica ocorre em uma passagem da historia clínica do "Homem dos Lobos", " . . . onde se considera este mesmo traço psicológico". É largamente transmitida pelo próprio Freud (1918) a grande dificuldade na condução da análise deste jovem russo. Freud levanta questões sobre a direção desta análise desde o início do tratamento, até seus últimos textos. Desta forma, mais do que reafirmar em 1937 a contra-indicação da prática analítica com "idosos", Freud parece se esforçar por cernir uma dimensão clínica, um plano de resistência que se ópõe ao avanço do tratamento, até certo ponto, independentemente da idade cronológica.

É momento de procurarmos situar a pergunta acerca de certa especificidade em torno da velhice. Vimos no capítulo I que Freud (1937) afirma dois momentos na vida em que ocorreria um incremento, algo de um acréscimo pulsional: a puberdade e a menopausa que, tal como indicado, entendemos aqui como uma referência ao climatério, como evento inexorável na vida do ser falante. Além da referência a um reforço pulsional, Freud reitera em diferentes oportunidades a ocorrência da freqüente perda de plasticidade da libido, de uma inércia psíquica, como própria ao processo de envelhecimento.

Com relação à puberdade, Freud a situa como evento da vida em que mudanças no real do corpo, na imagem e no lugar a ser ocupado diante do Outro constituem uma exacerbada exigência de trabalho psíquico. Frente a um plano de intensificada exigência de satisfação pulsional, o sujeito é convocado ao trabalho psíquico. Freud ( 1916-17) faz menção a uma avalanche pulsional com que tem que lidar o jovem e refere-se também ao aguilhoar das pulsões na virada da infância para a puberdade (Freud, 1905). No terceiro de seus Três

ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud (1905) circunscreve aquilo que considera " . . . uma das mais dolorosas realizações psíquicas do período puberal: o desligamento da autoridade dos pais . .. " (p. 234)

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A magnitude indicada pelos termos superlativos com que Freud refere-se à exigência de trabalho a que é convocado o jovem, nos orienta quanto à radicalidade de seu comentário sobre o climatério como evento, até certo ponto, equivalente à puberdade. Se na puberdade Freud destaca como exigência de trabalho psíquico frente ao reforço pulsional, o desligamento da autoridade dos pais, qual seria a exigência de trabalho que se destaca no climatério? Sem dúvida, aqui também podemos localizar mudanças no real do corpo que sofre a passagem do tempo, bem como na imagem e no lugar a ser ocupado diante do Outro. Entretanto, seria preciso demarcar aí, alguma distinção?

No terceiro capítulo, sobretudo, apontamos como as sucessivas e, muitas vezes, concomitantes perdas de laços significativos - a que o processo de envelhecimento confronta o "idoso" - contribuem para a perturbação do necessário trabalho psíquico, de luto, a que se é convocado, nestas circunstâncias. Com Lacan (1958/59) vimos a ausência de balizas para o trabalho de luto no campo social, onde há cada vez menos ritos fúnebres, bem como a inequívoca intolerância à dor no espaço coletivo, articulada à demanda asséptica de pronto restabelecimento e produtividade. Desta forma, o contexto da "era científica" (Lacan, 1966) -marcadamente tecnicista e com notória ênfase na produtividade - imprime uma velocidade que não é compatível com o tempo necessário ao trabalho psíquico exigível. Tal conjuntura contribui, muitas vezes, para o isolamento do "idoso". Importa ressaltar neste contexto, a função, para alguns idosos, de iniciativas como a UNA TI que viabilizam o estabelecimento de laços sociais. Conforme apontamos no capítulo III, os contatos que o "idoso" estabelece quando da perda de seus próximos amados, são frequentemente contatos incipientes, tais como a colega da hidroginástica, o técnico em fisioterapia, o funcionário do banco ou da farmácia, o jornaleiro da esquina. Tais contatos, extremamente tênues, tampouco costumam oferecer balizas para o árduo trabalho psíquico exigido para reinstaurar o cicuito próprio ao desejo, para que se chegue a situar a pergunta acerca do desejo, como desejo do Outro.

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É assim que não é nada raro que um "idoso" afirme taxativamente: . . . "eu não faço falta". Seria esta a monumental exigência de trabalho psíquico, própria a este momento da vida, ou seja, chegar a reinstaurar o rodeio do desejo, de forma a relançar a pergunta acerca do desejo, em relação ao tempo que resta? Consideramos que dada a magnitude das dificuldades que se apresentam, é por vezes falando, em urna análise, que se abre - sustentada pelo desejo do analista em função - a via do enlace da finitude com a pergunta acerca do desejo. Há um ângulo que nos interessa ressaltar. A presença da mesma referência, a noção de entropia, em Freud e em Lacan para abordar urna dimensão clínica - o campo do gozo como podemos dizer com Lacan (1968/69) - localiza a dimensão de dispêndio, de perda em jogo na função de captação de mai�-de-gozar, própria ao objeto a e que força na direção de urna recuperação de gozo, tal como o situa o discurso do mestre, No Capítulo III apresentamos o sonho de Helena segundo o qual, após quebrar um vaso precioso, segue carregando os cacos e, ainda que eles a machuquem, não os larga. Suas associações precisaram sua dificuldade, na vida, de largar mesmo aquilo que a machuca. Consideramos que o ciframento, bem como as associações em jogo neste sonho transmitem algo de recorrente na experiência com idosos e nos permite formular a questão acerca da implicação do sujeito nesta posição ativa de nada querer saber acerca de sua divisão subjetiva. Como situar esta dificuldade de largar, esta aderência, mesmo ao que machuca? Procuramos indicar no capítulo I, a fixação e a compulsão à repetição do lado dos efeitos ditos por Freud (1939) positivos, no sentido de que visam atualizar o trauma primordial. Pontos de fixação, de dificil dialetização, situam a forma como capturado em urna lógica fantasmática o ser falante orienta-se pela realidade psíquica. Uma realidade fantasmática segundo a qual o infortúnio e o sofrimento que se apresentam na vida, tomam-se também ocasiões para o incremento das exigências do supereu. Por esta via - em sua investigação acerca do caráter hipercruel, hipermoral a que podem chegar as relações de um supereu tomado sádico e um eu tomado masoquista - Freud ( 1924) aponta a

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possibilidade de uma re-sexualização da moral e localiza o enlace da libido com a pulsão de morte no masoquismo. Neste enlace, Freud (1923, 1924) afirma uma satisfação de outra ordem, além do princípio do prazer. Trata-se aí de uma satisfação pulsional, que implica uma economia de gozo, implica a captação de mais-de-gozar.

São diversas as referências de Lacan ( 1966) que sublinham a importância da atividade do sujeito na direção de separar-se, em sua trajetória de análise. V ale aqui lançar mão de algumas destas referências. Uma delas encontra-se em A Direção do tratamento e os princípios de seu poder (1966) e aponta, em um jogo de palavras, o sujeito além de "subordinado" ao significante, "subornado" (p.599) pelo significante, indicando neste suborno, algo da implicação do sujeito. Na mesma direção, Lacan (1966) assinala em Posição do Inconsciente que "se trata aí de um querer . . . " ( p.857) como próprio à operação de separação, apontando, novamente, a atividade do sujeito nesta operação. Uma vez mais, como já citamos anteriormente, Lacan (1975). assinala que é preciso que haja um querer "desvencilhar-se de um sintoma" (p.32) no início de um tratamento.

O fato é que a disposição para renunciar, para abrir mão do gozo sintomático e trabalhar a partir da perda faz diferença nos rumos de um tratamento. Vimos que Freud ao falar da perda de plasticidade frequente dentre os velhos, reporta-se a um jovem, o homem dos lobos. Fica muito evidente nos relatos de Freud a ausência desta atividade, neste jovem. Havia, ao contrário, um enorme esforço de recuperação de gozo, deste sujeito " . . . entrincheirado por trás de uma atitude de amável apatia" (p. 23) Jovem ou velho, talvez o diferencial aqui se jogue, em tomo deste ponto. V ale retomar a citação de Lacan (1966) anteriormente apontada, segundo a qual a: " . . . castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo (p. 841). Reencontramos, por esta via, a necessária atividade do sujeito, implicado no trabalho de análise, bem como algum remanejamento de gozo "atingido na escala invertida da Lei do desejo". Voltaremos a este ponto no capítulo V.

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Naturalmente a pergunta acerca da implicação do sujeito só se constitui, dirigida ao analista, sob transferência. Qualquer outro contexto tende a resvalar rapidamente para uma perspectiva moralizante. De qualquer forma, trata-se de uma dimensão que não pode ser elidida, já que há aí uma tensão que se joga, sob transferência. Por um lado, a aposta de que falando ao analista algo se gaste, se desprenda do mais-de-gozar indicado nesses cacos que machucam, mas não se larga. Por outro lado, a pergunta que insiste em tomo de como fazer funcionar aí o discurso analítico, de modo a viabilizar certo remanejamento de gozo com alguma circulação da falta, compatível com o trabalho inconsciente.

Tomando como efetiva a articulação entre renúncia de gozo e trabalho a partir da perda, consideramos que a pergunta em torno de uma faixa etária fique, em certa medida, deslocada para uma pergunta em tomo de como intervir em uma economia de gozo. Daí, este deslocamento permite apresentar a questão incluindo aí a intervenção do analista, melhor dito, a função desejo do analista.

O viés aprofundado por Lacan (1969/70), a partir da formalização dos discursos53

, nos permite localizar - no discurso vigente na área de saúde - o saber como meio de gozo, oscilando entre o discurso do mestre, sua variação, o discurso universitário - que é situado por Lacan como discurso do mestre moderno - e sua corruptela, o discurso do capitalista (Lacan, 1974):

Discurso do capitalista

-.1, S' � -.1, S

1 'X a

V ale ressaltar a partir do materna acima, que, por sua peculiar configuração, o discurso do capitalista faz obstáculo aos giros discursivos. Como contraponto a este campo de questões que demarca o grau de fechamento com que se lida em alguns momentos na práxis psicanalítica com "idosos", prosseguimos nossa investigação afirmando, com Lacan, a especificidade dos giros discursivos na experiência psicanalítica. Importa esclarecer que a

53 Confira os maternas dos discursos na página 1 15 acima.

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122 oscilação entre discursos, não permite identificar o discurso científico a nenhum dos discursos exclusivamente54

. Em função desta complexidade é preciso a cada vez localizar o ângulo que está sendo enfocado, para situar o semblant discursivo dominante. 4 - Há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a

outro

Em Mais, Ainda, Lacan (1972/3) chama a atenção para a relação do discurso analítico, com os demais discursos: universitário, do mestre e da histérica: . . . Existem quatro, apenas sobre o fundamento desse

discurso psicanalítico . . . e que eu situo por último nesse desenvolvimento. O que, em nenhum caso, é para ser tomado como uma série de emergências históricas - que um tenha aparecido muito tempo depois dos outros, não é o que importa aqui . Muito bem, eu diria agora que desse discurso psicanalítico há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro (p. 26). Afirma, assrm, uma mudança de perspectiva, relegando a um segundo plano a vertente histórica e insistindo em marcar a emergência do discurso analítico, sua irrupção a cada giro discursivo. V ale lembrar que, para Lacan (1969/70), apenas em uma análise é possível a irrupção do discurso analítico, a cada travessia de um discurso a outro. Chama a atenção para a recorrência de um elemento de impossibilidade próprio a cada discurso e comenta: "... é isto, na estrutura, o que nos interessa no nível da experiência analítica" (p.43). Trata-se de uma indicação fundamental para encaminhar a pergunta acerca de como intervir em uma economia de gozo, pois Lacan vai situando a incidência do discurso analítico como capaz de desestabilizar um determinado semblant e propiciar, como efeito, um giro discursivo.

No primeiro capítulo apontamos a importância na chegada de um "idoso" à análise de certo tratamento da demanda inicial, já que a prevalência de 54Lacan chega a aproximar o discurso científico do discurso histérico, em função da ênfase colocada na busca de produzir saber sobre o real.

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significantes veiculados pelo discurso vigente na área de saúde, faz obstáculo a que se delimite um sintoma analisável. É preciso interrogar e desestabilizar alguns significantes, bem como fazer vacilar a premissa de uma abrangência do saber veiculado pelo discurso científico que não só pretende abarcar o todo das queixas, como antecipa questões que nem sempre se desdobram na direção prevista.

Parcializar o alcance das questões, bem como historicizar aquilo que da queixa aponta a uma dimensão subjetiva ou, ainda, como prefere Lacan (1969/70): "O que o analista institui como experiência analítica. .. é a histericização do discurso. Em outras palavras, é a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica . .. " (p.31 ). É, sobretudo, este caráter artificial da incidência do discurso analítico, favorecendo a rotação dos discursos, que vai se evidenciando nas pontuações de Lacan sobre o que importa no nível da experiência analítica.

Em O Avesso da Psicanálise, Lacan (1969/70) afirma a propósito de Freud que "a experiência da histérica, senão seus dizeres, ao menos as configurações que ela lhe oferecia", deveriam tê-lo guiado melhor que o " . . . Complexo de Édipo e tê-lo levado a considerar que tudo deve ser requestionado no nível da própria análise, do quanto de saber é preciso para que esse saber possa ser questionado no lugar da verdade" (Lacan, 1969/70: 94). Consideramos que essa orientação de Lacan faça referência à rotação dos discursos em uma análise. A primeira parte da frase: ". . . quanto de saber é preciso . . . " evidencia certa temporalidade articulada aos diversos giros discursivos decorrentes da irrupção do discurso analítico. A segunda parte da frase: " ... para que esse saber possa ser questionado no lugar da verdade ... ", assinala o quê do trabalho analítico vai decantando o "a mais" de gozo que se produz e, em uma análise, se desprende a partir do "saber em trabalho", permitindo que algo do saber, sempre fragmentário, possa vir a operar em posição de verdade, tal como Lacan escreve o saber no discurso do analista.

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124 Desde esta perspectiva parece-nos fundamental interrogar: quais são as linhas de fuga, as intervenções possíveis para desestabilizar, na experiência psicanalítica com idosos, uma economia de gozo que muitas vezes tende a infinitizar-se? Como fazer valer a impossibilidade de recuperação toda de gozo, intrínseca ao discurso do mestre e instituir artificialmente certa rotação discursiva, abrindo ao trabalho inconsciente possível, no tempo? Neste ponto, recorremos a um fragmento clínico que permite localizar algumas questões: Após cuidar do marido que teve Alzeimer por dez anos, alguns dos quais cuidou simultaneamente da mãe que estava gravemente enferma, Nair che,ga à análise alguns meses antes da morte de seu marido. Desde então, segue seu percurso de análise, há cerca de dez anos. Deste tempo inicial uma frase, formulada em uma das primeiras entrevistas, chama a atenção. Referindo-se ao destino de cada um, diz: " . . . tudo o que ficou marcado, chega a acontecer. .. ". Cerca de um ano e meio após sua chegada, o resultado de um exame confirma o diagnóstico de câncer de mama. Diz: " . . . eu tinha quase certeza que iria dar positivo . . . ". Tempo de fechamento ao trabalho em decorrência da leitura que é feita do adoecer. O diagnóstico de câncer é lido como algo de um cumpra­se: " . . . Tudo o que ficou marcado chega a acontecer . . ." . O neurótico, como já foi anteriormente situado, tende a ler a repetição como destino. Em O Problema

Econômico do Masoquismo encontramos: "A última figura na série iniciada com os pais é o poder sombrio do destino, que apenas poucos dentre nós são capazes de encarar como impessoal . . . " (p.173/4). Conforme apontamos no capítulo I, para Freud (1924) o destino é um dos nomes do supereu. É assim que sob a égide fatalista de um destino inexorável, nada restaria a fazer: " . . . é preciso ter aceitação . . . ". Os efeitos de discurso aí produzidos chegam a colocar em questão a própria continuidade do trabalho analítico. Parece-nos possível apontar aqui a produção de mais-de­gozar com inclusão da análise no fechamento de um ciclo de destino que se cumpre: " . . . Chegou a minha vez . . . nada há a fazer. . . tem que haver aceitação . . . é preciso seguir os procedimentos, as prescrições dos médicos . . . " . Quanto à análise, a orientação geral recebida a inclui na série de restrições e prescrições:

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125 ". . . Evitar aglomerações, shoppings, saídas desnecessárias de casa . .. ". Sigamos Lacan (1969/70) : " . . . Disse . . . como pode ser ocupado esse mesmo lugar dominante [lugar do semblant], quando se trata do analista. O próprio analista tem que representar aqui, de algum modo, o efeito de rechaço do discurso, ou seja, o objeto a" (p.41).No ponto em que a própria análise encarna certo fechamento e, conseqüentemente, o analista representa, de algum modo, o efeito de rechaço do discurso, a pergunta em tomo da especificidade da intervenção do analista apresenta-se de forma mais clara.

Submetida a uma mastectomia, seguida de um período de quimioterapia, Nair pergunta ao médico se poderia continuar indo à análise. Obtém como orientação que fosse apenas se realmente achasse que poderia ajudá-la. Coloca em dúvida, também com a analista, a continuidade ou não das sessões. Há, portanto, aí, um ponto de vacilação. Neste ponto, a sustentação de um trabalho em andamento mostrou-se fundamental como aposta. O analista dirige-se ao que da vacilação, aponta ao sujeito dividido, sob a barra, no discurso do mestre. Trata-se aqui de uma aposta no possível a partir do necessário: o possível como parcialização, incide no ponto de vacilação, divisão, sustentando como necessário - que se diga. Lacan (1971/2) sustenta para além de uma dimensão de ditos, um dizer: "O que é dito não está em nenhum outro lugar senão no que se escuta, e é isso a fala. Só que o dizer é uma outra coisa, é um outro plano, é o discurso . . . " (Seminário inédito, lição de 21 de junho de 1972). Ao afirmar a impossibilidade de recuperação toda de gozo, o analista convoca ao trabalho necessário, em um ritmo possível. Produz-se aí algo do "avesso" da mestria até então instalada e que preconizava sua aceitação incondicional.

É exatamente neste contexto que Nair traz um sonho: " . . . eu me encontrava em um campo de batalha, em uma guerra. Carregava em meu colo, com extrema dificuldade, um bebê. Fazia um enorme esforço para não derrubá­lo". Segue narrando uma outra cena do sonho na qual : " . . . estava com um texto nas mãos que precisava ler, mas, não conseguia. Olhava para o texto, via que

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estava escrito, mas, não conseguia ler embora soubesse que seria mais fácil se conseguisse ler". Suas associações: Associa a guerra e a batalha à sua luta contra o câncer e relaciona o bebê de colo a si própria. Quanto ao texto a ser lido, diz: " . . . não sei . . . ".

Em Mais, Ainda, Lacan ( 1972/73) explicita a aposta: "No discurso analítico . . . o sujeito do inconsciente, vocês supõem que ele sabe ler. E não é outra coisa, essa história do inconsciente . . . Não só vocês supõem que ele sabe ler, como supõem que ele pode aprender a ler." (p. 52).

Algumas sessões, após este sonho Nair volta, no discurso, ao período em que cuidou, praticamente sozinha, do marido e da mãe doentes. Freqüentava um grupo de apoio a cuidadores de pacientes com Alzeimer. Diz: " . . . nós comentávamos, várias vezes, que não sairíamos inteiros daquela situação. Quando eles morrerem ficarão os danos". Frente à solicitação de que falasse mais, diz: " . . . Ah é! . . . eu tinha certeza que haveria algum dano. Quando eu fui fazer a biópsia, eu praticamente sabia que ia dar positivo. O que eu fiz depois que ele morreu? Quase nada . . . ". Neste ponto a interrompo e digo: " . . . Fez sim, procurou uma análise". Marquei, ainda, a importância de que pudesse haver alguma leitura a partir do que ela estava indicando como "dano".

O significante "dano" vem apresentando-se desde então aberto à leitura, ao longo do tempo. É assim que cerca de cinco anos após este período relatado, a escansão em análise permitiu situar que danificar possuía ".. . o mesmo radical . . . ", diz Nair com grande surpresa, ao apreender o radical "dani" do nome de seu marido. Uma vez mais, alguns meses após, ao sofrer um assalto no qual enfrentou o assaltante para tirar seu neto de dentro do carro, comenta " . . . Não houve danos . . . "

Neste contexto, parece-nos possível indicar que a desestabilização do semblant do mestre e o conseqüente giro discursivo aí verificado pelo trabalho de sonhos e pela delimitação e leitura do significante "dano", rastreado em análise, são decorrentes da incidência do discurso analítico que, artificialmente, propiciou um giro discursivo compatível com o trabalho inconsciente. Como reitera Lacan em Mais, Ainda: " . . . é preciso prestar atenção à colocação em

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127 prova dessa verdade de que há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro" ( p.27).,

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CAPÍTULO V - A "TRAGICIDADE" DA CONDIÇÃO HUMANA: DO

TRÁGICO AO TRAGICÔMICO

Existirmos: a que será que se destina? Pois quando tu me deste a rosa pequenina Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina Do menino infeliz não se nos ilumina Tampouco turva-se a lágrima nordestina Apenas a matéria vida era tão fina E éramos olharmo-nos intacta retina A cajuína cristalina em Teresina

Caetano Veloso

Viemos até aqui procurando demarcar que introduzir a complexidade das questões próprias ao mal estar na cultura, bem como situar a precariedade da co�dição humana não é tarefa simples, em se tratando de "idosos". O mais freqüente é que os velhos tendam a apreender as dificuldades que vivenciam em seu dia a dia, como decorrentes ou da fragilidade pessoal ou, sobretudo, da própria condição de velho, sempre em déficit com relação a um padrão normal, ideal, seja das funções cognitivas, da função auditiva, dentre outras.

Cabe lembrar que se trata aqui de uma lógica fortemente corroborada pelo discurso dos especialistas em envelhecimento, o qual se encontra imerso em um contexto que supõe a conjunção, já apontada, do capitalismo com a ciência tecnológica. Este enquadre requer alguma desconstrução, no início da análise, que tome viável como já foi dito, um sintoma analisável. É assim que Alice, aos 86 anos, há vários anos falando em análise, durante muito tempo disse sobre si própria estar: " . . . em uma verdadeira peregrinação . . . " de médico em médico, às voltas com os diagnósticos e tratamentos que iam se sucedendo e não acalmavam "seu temor", "sua insegurança", "sua falta de equilíbrio". Em determinado ponto dirige à analista: " . . . acho que na verdade eu nunca soube: quem sou eu?". Pergunta que, formulada sob transferência, pode ter direção em uma análise, fazendo algum corte em sua infinita peregrinação em busca de significantes que situem o seu mal estar.

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129 É preciso, entretanto, reservar um lugar em nossas considerações para aqueles velhos cuja intervenção no campo social alude a uma relação mais desejante com seu trabalho e com sua vida, de forma geral. Algumas falas e atos permitem interrogar o estereótipo geral de fragilidade, ainda que o corpo seja inexoravelmente afetado pela passagem do tempo. Com humor, o poeta Manoel de Barros, aos 93 anos, fala de si próprio como "um escombro" (Pedro Cezar, 2009). V ale indicar que ao tomarmos aqui fragmentos de relatos de alguns velhos contemporâneos, estas falas têm valor de recurso à ficção, tal como avali�ado por Freud e Lacan para quem os artistas, escritores e poetas seriam capazes de dizer, de forma efetiva, acerca de certas dimensões do ser falante. O próprio Freud (1982) não se furta a apontar a complexidade do proce�so de envelhecimento. Em carta a Lou Andreas-Salomé em 16/05/1935, aos 79 anos, comenta: "Que quantidade de fleuma e bom humor é necessária para suportar a lúgubre tarefa de envelhecer !" Por outro lado, Freud (1926) afirma, em outra ocasião, preferir seu maxilar mecânico a nenhum maxilar, preferir a vida à extinção. Além disso, cabe sublinhar a forma como Freud aponta uma via, ao indicar o bom humor como capaz de fazer certo anteparo às dificuldades que se apresentam na velhice. Voltaremos a este ponto, em tomo da questão do cômico, buscando localizar o humor e o chiste, a partir da referência de Lacan ao tragicômico. É preciso lembrar ainda, que Freud aos 83 anos, embora gravemente doente, morre deixando um texto inacabado. O fato é que longe de estar fora de sua época, idéia que se traduz muitas vezes pela expressão: " ... na minha época . . . ", há velhos que afirmam um projeto próprio, atual, com o risco de deixá-lo inacabado. No documentário Só

dez por cento é mentira, realizado por Pedro Cezar (2009), sobre o escritor brasileiro Manoel de Barros, este afirma: "Eu tenho certeza que a minha imaginação criadora ainda continua boa ... ". Segue esclarecendo o título do documentário: " . . . noventa por cento do que escrevo é invenção ... tudo que não invento, é falso . . . eu invento o meu pantanal . . . invenção é uma coisa que serve para aumentar o mundo". Interessa-nos aí certo nexo apontado entre algo que

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segue funcionando: "a imaginação criadora que continua boa" e a plasticidade necessária para seguir inventando. O cineasta Manoel de Oliveira (you tube, 2008) em entrevista aos 100 anos, fala de seus projetos. O primeiro deles seria em fevereiro de 2009, em Berlim, o seguinte em Cannes, em maio e neste ponto avalia: "Provavelmente não terei tempo para o terceiro em setembro, em Veneza . . . " em uma clara alusão à indeterminação com respeito ao tempo que lhe resta. Na mesma direção, o escritor José Saramago (you tube, 2009), aos 86 anos pondera: " . . . acabam as idéias, acaba o escritor. .. se é que o escritor não acaba antes que se esgotem as idéias . . . ". Mais adiante, na entrevista, comenta a propósito de um de seus escritos: "Escrevi um outro livro chamado Clarabóia . . . ficou inédito e não será publicado enquanto eu viva, depois façam o que quiserem . . . ", reafirmando em sua fala a sustentação de um lugar, ainda que ciente do limite de sua decisão. Seguindo nesta linha de pesquisa - ao fazer uma busca dentre os vídeos do You Tube (acesso em18/05/11) - utilizando como "palavras-chave", "Niemeyer" e "velhice", de forma surpreendente, encontramos: "não há resultados". Será que o arquiteto Oscar Niemeyer, aos 102 anos não é considerado velho? Ou será que não se faz representar por significantes, tais como velho ou "idoso", no campo social, e sim por sua relação à arquitetura, mundialmente afirmada? Em uma entrevista postumamente postada na internet, Carlos Drummond de Andrade (you tube, 2008) fala da vida que passa em um minuto e, como indicamos anteriormente, diz considerar fecunda a pergunta em tomo de quando chegará a morte. Tal pergunta "tensiona" - como diria Lacan (1959/60) - a relação com a vida ao promover a " ... invasão da morte na vida" (p.353) como o que confere dinamismo ao tema da realização do desejo. Voltaremos a este ponto ao discutirmos o texto trágico. V ale registrar que é por intermédio de Drummond que Cora Coralina ganha projeção, já com mais de 90 anos. Em um documentário postado na

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internet (you tube, 2010), aprendemos que esta eminente poetisa de Goiás, com instrução formal primária, publicou seu primeiro livro aos 75 anos. Começou a escrever, entretanto, aos 14 anos, tendo alguns trabalhos publicados no jornal de sua cidade. Também Zélia Gattai (Y ou Tube, 2009) publica seu primeiro livro tardiamente, aos 63 anos. Por insistência de Jorge Amado, concorda em escrever um livro de memórias e dali, diz em uma entrevista em 1988: " . . . tomei gosto . . . ", demonstrando a incidência de um projeto que se abriu tardiamente.

O sambista Nelson Sargento foi homenageado em um curta­metragem dirigido por Pantoja ( 1997) que ganhou dentre outros, o Prêmio Espec�al do Júri no Rio Cine 1997. Sambista da velha guarda da mangueira, aos 86 anos compõe inúmeros sambas, bem como faz quadros a partir do material utilizado em seu trabalho, como pintor de paredes. Demonstra, em várias ocasiões, uma abertura ao Outro, expressa, por exemplo, nos comentários, já nos créditos finais, em que esclarece o uso de determinado termo na letra de sua música, em função dos possíveis intelectuais que se interessem por ouvi-la.

Ocorre que toda sociedade tem uma forma de divisão do curso de vida (Katz apud Groisman, 1999) e "usa de algum modo a idade - seja cronológica ou não - para demarcar diferentes status sociais" (p.49):. idade de se ingressar na escola, idade de trabalhar, de casar, de ter filhos e de se aposentar. Nesta direção, com o passar do tempo, vão se esgotando as balizas fornecidas desde o social. Assim, é preciso que o velho lance mão de seu singular repertório de interesses, para inventar algo que possa sustentá-lo em uma relação desejante com a vida, apesar das dificuldades e das perdas que se impõem, de forma inexorável.

Aos 102 anos Niemeyer (You tube, 2010) - recém saído de uma internação - comenta seu esforço diário de ir ao seu escritório para "manter o ritmo". Também Manoel de Barros fala sobre sua rotina diária de trabalho, em um pequeno escritório chamado por ele de ". . . lugar de ser inútil. . . " (Pedro Cezar, 2009), transmitindo a importância de sustentar um lugar na vida para aquilo que requer alguma invenção singular.

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Em outra direção, entretanto, é recorrente o relato de "idosos" cujos dias praticamente não têm escansões. Acorda-se, não raro, muito cedo e não há compromissos que recortem o dia, tais como: preparar a refeição para sua fanúlia, trabalhar ou, ainda, o esforço de fazer avançar um projeto próprio, qualquer que seja ele. É freqüente que um idoso indique, não sem angústia, que lhe é dito por aqueles que o cercam, que já está na hora de parar, que já trabalhou muito e que está na hora de descansar. Falas como essas, muitas vezes, são recebidas com estranheza e ganham peso de demanda, por vezes, imperativa. V ale lembrar que introduzir, sob transferência, a referência ao desejo como desejo do Outro, permite relativizar a demanda e veicular alguma circulação da falta, compatível com o circuito do desejo. 1 - Leár e Édipo em Colono

No âmbito da literatura universal raros são os protagonistas e heróis velhos e dentre eles destacam-se Édipo em Colono, de Sófocles55 e Rei Lear, de Shakespeare (1605). Beauvoir (1970) esclarece que a lenda de Lear pertence ao folclore anglo-saxão que na Idade Média coloca em discussão a prevalência da juventude desbravadora, conquistadora sobre a geração que a precede, sem necessariamente deter-se na questão da velhice. É Shakespeare (1605) quem, em princípios do século XVII, imortaliza Lear como um velho e seu destino (Beauvoir, 1970) que traz à cena, em última instância, a precariedade da condição humana. Lear encontra-se no início da peça em uma posição desde onde acredita poder gerir os rumos de sua vida futura, repleta de bem estar e fruição sem, entretanto, as dificuldades colocadas pelo exercício do lugar de rei. Para tanto, se propõe a dividir seu reino entre aquelas dentre suas três filhas que forem capazes de expressar em palavras seu real valor, além de acolhê-lo condignamente em suas casas por

55A peça de Sófocles (496 A.C. - 406 A. C.) Édipo em Colono foi apresentada postumamente pelo neto de Sófocles em 401 A.C., de acordo com Gama kury ( 1 990) cuja tradução - direta do grego - utilizaremos ao longo do texto.

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133 períodos alternados de tempo. A filha mais nova que o ama, com devoção, recusa-se a entrar nesse jogo de adulações e como resultado é duramente excluída da partilha. Ocorre, então, a divisão do reino entre as filhas mais velhas, as quais se revelam, ao longo da peça, meramente interessadas em alçar o lugar deixado vago por Lear. Shakespeare conduz o desenrolar dos acontecimentos para o pior, chegando a um final devastador: enlouquecido, Lear entra em cena com Cordélia, sua amada filha caçula, morta em seus braços, chegando a morrer, ele próprio, no decorrer da cena.

Não é raro que a experiência com idosos no ambulatório NAI(UNATI traga à luz conjunturas em que o "idoso" encontra-se em situações, de certa forma, equivalentes àquela encarnada em Lear, por Shakespeare. Há ocasiões em que seguindo um impulso - tal como Lear - o idoso precipita-se, por exemplo, fornecendo um instrumento legal a alguém de seu entorno, tal como· uma procuração capaz de conferir plenos poderes àquele que a recebe. É assim que, por vezes, o idoso recolhe em vida, "só-depois", os efeitos de seu ato: a venda de sua casa, a liquidação de sua conta bancária, dentre outras práticas que se esclarecem, a cada vez, através do relato do próprio idoso, marcado por intenso sofrimento. Nestes contextos fica, em geral, elidida a pergunta acerca da implicação do sujeito aí onde - pelas mais diversas razões -este chega a abrir mão de uma posição, conferindo a outrem plenos poderes sobre seu devir e sendo forçado a lidar com as conseqüências deste ato. Afetado pela opacidade do desejo do Outro, muitas vezes a desistência em relação às questões que se colocam, apresenta-se como a via a ser trilhada, em um momento da vida onde a queixa recorrente é exatamente de que faltam forças para enfrentar as dificuldades. Lacan (1959/60) procura demarcar a distinção entre os dois "velhos" : Lear e Édipo em Colono, embora entenda que ambos transmitem algo da precariedade da condição humana. Lear é apresentado como um "velho cretino" (p.366) na medida em que abdica de seu lugar de rei, acreditando poder antecipar e gerir os acontecimentos futuros. Em suas próprias palavras: " . . . é nossa firme intenção libertar-nos de todas as preocupações e responsabilidades

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durante os últimos anos da nossa vida, confiando-as a pessoas mais jovens e enérgicas . . . " (Shakespeare, 1605, Ato 1, Cena 1). O desenrolar dos acontecimentos na peça, entretanto, demonstra o grau de desamparo e as traições que Lear é levado a enfrentar em sua trajetória, em decorrência de sua decisão.

Contrariamente, o velho Édipo é apresentado por Lacan (1959/60) como aquele que frente ao infortúnio não abre mão de nada que sua posição lhe outorga e afirma seu percurso. Acompanhamos alguns aspectos da trajetória de Édipo para situar certa "tragicidade" própria à condição humana, levando em consideração que é a afirmação que confere, para o grego, o caráter propriamente trágico do ato (Deleuze, 1976). Além disso, seguimos, com Lacan (1959/60), os descaminhos da personagem de Sófocles, Édipo, nas peças Édipo­Rei e Édipo em Colono, buscando situar três diferentes tempos da trajetória do herói · (Castilho, 2008). Neste contexto, a utilização do texto trágico tem, tão somente, valor de referência ficcional que permita demarcar algumas articulações entre o percurso do herói e o percurso de uma análise.

1. 1- Primeiro tempo: um campo de desconhecimento

Vernant (1972) apresenta a localização de Édipo em um pnmeuo tempo de sua jornada levantando a seguinte questão: "Como, instalado em sua personagem de decifrador de enigmas e de rei justiceiro, convencido de que os deuses o inspiram, proclamando-se filho da Tychê, da sorte, Édipo poderia compreender que, para si mesmo, ele é esse enigma . . . ?" (p.23).

Nesta via, "instalado" em uma determinada posição desde onde interpreta o mundo que o cerca, desde onde decifra o que lhe é proposto em sua jornada, Édipo se move, sem atinar para qualquer nível de equivocidade, de ambigüidade. Ao contrário, orienta-se em um campo que lhe parece estável e sob seu controle. Trata-se de um campo de sentido único, que se configura como um campo, por excelência, de desconhecimento. É o que podemos constatar através da forma como o herói encaminha as primeiras dúvidas a

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respeito de sua origem em Édipo-Rei, como o indica Sófocles na tradução de Gama Kury ( 1989) :

Foi numa festa, um homem que bebeu demais embriagou-se e logo, sem qualquer motivo, pôs-se a insultar-me e me lançou o vitupério de ser filho adotivo . Depois revoltei-me; a custo me contive até findar o dia. Bem cedo, na manhã seguinte, procurei Meu pai e minha mãe e quis interrogá-los . . (p . 59, vs. 928-934).

Esta seqüência coloca em cena um esboço de questão sobre sua própria verdade, que se traduz por sua inquietação articulada ao seu impulso de interrogar seus pais, interrogá-los sobre sua origem. Este instante de ver, balizado pela angústia, desdobra-se, entretanto, em outra direção:

Ambos mostraram-se sentidos com o ultraje, mas, ainda assim o insulto sempre me doía; gravara-se profundamente em meu espírito. Sem o conhecimento de meus pais, um dia Fui ao oráculo de Delfos, mas, Apolo Não se dignou de desfazer as minhas dúvidas; Anunciou-me claramente, todavia, maiores infortúnios, trágicos, terríveis; eu me uniria um dia à minha própria mãe e mostraria aos homens descendência impura depois de assassinar o pai que me deu vida. Diante dessas predições deixei Corinto guiando-me pelas estrelas, à procura de pouso bem distante, onde me exilaria e onde jamais se tomariam realidade. (p. 59/60, vs. 935-49)

Acompanhamos nestes versos a forma como Édipo elide toda e qualquer dimensão enigmática, equívoca da resposta do deus. Não se inquieta com o silêncio de Apolo e interpreta sua palavra como se ela trouxesse a resposta à questão em torno de sua origem. Delineia-se, portanto, uma forma de

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relação com o saber própria a este primeiro tempo da jornada de Édipo, voltada, sobretudo, para o reconhecimento, a escalada do poder e a manutenção do mesmo. Édipo como aquele que decifra enigmas, liberta Tebas da esfinge - a "cruel cantora" (p.22) - através de sua arte, sua habilidade, seu conhecimento. Como assinala Lacan (1959/60), o herói encontra-se no início de sua saga no auge da felicidade. Após estancar a questão aberta em tomo de sua origem, orienta-se por seu discernimento dos fatos que o rodeiam. É interessante notar que nesta direção Édipo galga posições, atinge seus ideais, toma-se o rei. Lacan chama a atenção para o fato de que atingindo ".. . a felicidade conjugal e a de seu oficio de rei, de ser o guia de uma comunidade feliz, é com sua mãe que ele dorme" (p.365). Esta complexa constelação na qual Édipo se move o distancia daquilo que lhe é efetivamente próprio, como pertencente à raça dos Labdácidas e até certo ponto, determinado por esta ascendência. É por estar instalado em um campo de conhecimento/desconhecimento, que o que lhe é dito pelo oráculo de forma cifrada, é ouvido de forma inequívoca, suspendendo a pergunta em tomo de sua ongem. De forma correlata, para a psicanálise, o eu consciente se move em um campo que não é incompatível com os ideais, quaisquer que sejam eles, mas, trata-se de um campo de desconhecimento, que elide as questões singulares, próprias a um sujeito. Questões que tocam a sua inserção, sua própria posição no campo do Outro. Lacan conduz sua análise em tomo do "serviço dos bens" e sua lógica utilitarista, apontando as antinomias em jogo e esclarece que não se trata de negar ou desprezar o campo dos bens, mas, de apreender o limite da referência ao campo dos bens, no que se refere ao campo aberto à investigação acerca do desejo.

1 .2 - Segundo tempo: o herói não recua, afirma seu percurso

A relação de Édipo com o saber é um fio que perpassa toda a sua história, de Édipo - Rei até Édipo em Colono. Assim, ao procurar elucidar o

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assassinato de Laio, o herói é advertido em diversas ocasiões para que suspenda suas perguntas, pare de interrogar. É persistindo nesta via, confiante em sua apreciação dos fatos, que Édipo encontra, pouco a pouco, um outro campo de sentido que revela sua profunda ignorância quanto a uma dimensão de verdade que vai se impondo. Lacan (1959/60) comenta que "Sófocles no-lo mostra aferrado à sua própria perda por sua obstinação em resolver um enigma, querendo a verdade. Todo mundo tenta retê-lo, particularmente Jocasta, que lhe diz a cada instante - agora basta, sabe-se o suficiente. Mas, ele quer saber, e acaba sabendo" (p.330) .

A insistência de Édipo, sua obstinação em saber, não se detendo frente a nenhuma das súplicas daqueles que o cercam - fato que no desenrolar da trama adquire proporções e implicações irreversíveis - vai situando um ponto de ruptura com o seu anterior posicionamento. Édipo, o decifrador de enigmas, vai se tomando, para si próprio, o enigma que carece de deciframento. Vemant (1972) formula a seguinte questão:

Quais são as relações desse homem com os atos sobre os quais o vemos deliberar em cena, cuja iniciativa e responsabilidade ele assume, mas cujo sentido verdadeiro o ultrapassa e a ele escapa, de tal sorte que não é tanto o agente que explica o ato, quanto o ato que revelando imediatamente sua significação autêntica, volta-se contra o agente, descobre quem ele é e o que ele realmente fez sem o saber? (p . 1 9)

Nesta perspectiva o herói se localiza mais do lado do efeito do ato, do que de um agente que o realize. O ato na medida em que faz surgir uma dimensão de sentido outra e, portanto, indissociável do campo da linguagem, precipita a posição do herói trágico no mundo. Vemant aponta que, se por um lado o herói não é o agente de seu ato, nem por isso é passivo. Há uma atividade que lhe é própria, ou seja, o herói não recua, afirma o seu percurso, o que toma seu ato trágico e localiza a diferença entre tragédia e drama (Deleuze, 1976).

Freud (1938) confere à cegueira que Édipo se impõe o valor de uma autopunição: "a cegueira que Édipo se inflige como castigo" (p.189n. ). Lacan (1959/60), em outra direção, avalia o momento em que Édipo se cega como um momento de afirmação. Pondera que, em certo sentido, Édipo não fez complexo

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de Édipo, apenas matou um homem que encontrou na estrada e que ignorava ser seu pai. Em relação à sua mãe, J ocasta, Édipo ignorava seus laços sangüíneos com aquela que se tomou sua esposa e procurando afastar-se das predições do oráculo: " . .. querendo evitar o crime, ele o encontra" (p.365). Desde esta perspectiva Lacan interroga o sentido do tratamento que Édipo se inflige, o ato de cegar-se, já que "ele se pune por uma falta que não cometeu" (p.365). Lacan aponta que em seu ato Édipo "renuncia àquilo mesmo que o cativou" (p.365). Analisa que ludibriado, tapeado, pelo seu próprio acesso à felicidade, Édipo " . . . para além do serviço dos bens ... entra na zona onde procura seu desejo" (p.365). Há na peça Édipo-Rei (Kury, 1989) alguns versos proferidos pelo herói que reafirmam o caráter afirmativo de sua ruptura com o que é das aparências:

se houvesse ainda um meio der impedir os sons de me chegarem aos ouvidos eu teria privado meu sofrido corpo da audição a fim de nada mais ouvir e nada ver (p.90, vs. 1 638-4 1 )

Lacan avalia que se ele "se arranca do mundo pelo ato que consiste em cegar-se, é que somente aquele que escapa das aparências pode chegar à verdade. Os antigos sabiam disso - o grande Homero é cego, Tirésias também" (p.371). Vale notar que Tirésias possuía o dom da mântica e seu nome em grego significa vidente.

1. 3 - Terceiro tempo: alguma leitura só-depois

Após cegar-se, Édipo continuou a viver em Tebas onde seus filhos disputavam o trono da cidade. Envolvidos em sua disputa, ambos "mostraram­se insensíveis em relação ao imenso infortúnio do pai que, por causa disso, os amaldiçoou" (Kury, 1989, p.12). Revoltados com a maldição lançada sobre eles, Etéocles e Polinices expulsaram Édipo de Tebas e este, guiado por sua filha Antígona, após vagar pela Grécia como mendigo, chega às imediações de um bosque em Colono, uma área sagrada, local determinado pelos deuses onde terminaria sua vida.

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Édipo em Colono apresenta o momento final da trajetória do herói. Cego e fragilizado fisicamente, o que encontramos, paradoxalmente, é um Édipo irredutível, afirmativo. Lacan (1959/60) ressalta que " . . . tendo Édipo renunciado ao serviço dos bens, nada, no entanto, é por ele abandonado da preeminência de sua dignidade sobre esses mesmos bens" (p.365). É assim que o velho Édipo - diferentemente de Lear - não abre mão dos direitos que sua posição lhe confere. Lacan assinala ainda que o herói trágico não conhece nem o temor nem a piedade. Édipo explode em sua ira, em sua vingança, não se deixando persuadir nem mesmo por seus filhos.

É interessante comparar esta posição do herói com a do "homem comum" e - mais especificamente na direção que nos interessa - com a do "velho comum" através das questões com que Freud (1930) se confronta em sua investigação acerca dos paradoxos do campo moral. Trata-se, como situamos anteriormente, dos efeitos da má sorte sobre o homem. O infortúnio é também ocasião para o incremento das exigências do supereu. Este traço, entretanto, encontra-se claramente ausente no velho Édipo que, ao contrário, avança exigindo tudo o que lhe é de direito, amaldiçoando seus inimigos, com uma firmeza dissonante de sua fragilidade fisica e sem se confundir com o plano que, em parte, o determina, sem se confundir com os desígnios dos deuses. Lacan comenta em tomo deste ponto que Édipo não fez Complexo de Édipo, ou seja, não se atrapalha aí, segue impune56 afirmando seu percurso.

A irredutibilidade de Édipo pode ser constatada em seu confronto com Creonte que - após ter ciência do recente oráculo segundo o qual a terra onde repousasse o corpo de Édipo seria abençoada pelos deuses - aparece em Colono com um contingente de soldados e o propósito de levá-lo para as imediações de Tebas. Édipo, advertido por sua filha Ismene das reais intenções de Creonte, opõe-se às mesmas de forma enérgica e as revela àqueles que os ouvem em seu confronto, conquistando a proteção de Teseu e seu exército. Também Polinices o procura com o mesmo propósito de levá-lo para obter o apoio dos deuses em sua luta contra seu irmão. Édipo se nega a apoiá-lo e

56 Já que para o herói a má sorte não tem como efeito a exacerbação de uma dimensão moral .

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reafirma a maldição que outrora havia lançado sobre os filhos. Lacan chama

atenção para o fato de que esta maldição " . . . engendra a seqüência catastrófica

onde se inscreve Antigana" (p.303), ou seja, a maldição lançada por Édipo se

relaciona aos trágicos destinos de Etéocles, Polinices e Antigana. Este caráter

maldito, a transmissão de uma falta por via paterna, geração após geração, é

apontada em tomo da noção de hamartía ou como propõe Lacan "erro de

julgamento" (p.313). O cunho religioso de uma tal noção, sua veiculação

através dos descendentes, fica bastante evidente na saga dos labdácidas

(Brandão, 1990):

Laio, todavia, herdeiro, não apenas do trono de Tebas, mas, sobretudo de algumas mazelas de caráter religioso de seus antepassados, particularmente de Cadmo, que matou o dragão de Ares, e de Lábdaco, que se opôs ao deus do êxtase e do entusiasmo, cometeu grave hamartía na corte de Pêlops . Desrespeitando a sagrada hospitalidade, cujo protetor era Zeus e ofendendo gravemente Hera, guardiã severa dos amores legítimos, raptou o jovem Crísipo, filho do hospedeiro (p.236/7).

Fica aqm assinalada a forma como este opaco ponto de falta,

hamartía, ultrapassa um determinado descendente, avançando e produzindo

conseqüências geração após geração: Cadmo, Lábdaco, Laio, Édipo, Etéocles,

Polinices e Antigona. É Ismene quem expressa esta cadeia transgeracional, ao

referir-se à problemática sucessão do trono de Tebas: " . . . a tara antiga que segue

a raça maldita" (Kury, 1 989, p. 1 22). Vidal (1990) assinala acerca do saber em

jogo que este " . . . tem a moldura de um não-saber irredutível, e ao sujeito lhe

resta saber só-depois - Nachtriiglich - o desejo que o determinou" (p.24). Neste

terceiro momento do percurso do herói, em Colono, podemos acompanhar em

seu discurso - não sem o saber - sua própria leitura daquilo que durante um

longo período de sua vida, apenas vivenciou. Sustenta uma posição que não se

reduz aos desígnios dos deuses, na medida em que constrói algum saber referido

a uma dimensão de verdade singular atingida através de " . . . seu desejo de saber

a chave do enigma do desejo" (Lacan, 1 959/60, p.370). Neste sentido, é

somente em Édipo em Colono que Édipo - Rei ganha todo o seu alcance, pela

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boca do herói. Vejamos alguns versos proferidos em resposta aos insultos de Creonte (Kmy, 1989):

Teus lábios lançam contra mim assassinatos núpcias, desgraças, tudo que tenho sofrido Agora explica-me: se por meio do oráculo A voz de um deus disse ao meu pai que um filho seu Um dia o mataria, como poderias Condenar-me por essa morte justamente, a mim, que ainda não tinha sequer nascido, que nenhum pai havia até então gerado, que nenhum útero de mãe já concebera? A respeito de minha mãe - de tua irmã -Sim, ela era minha mãe - que desventura! Ambos desconhecíamos toda a verdade e essa mãe me deu os filhos que tivemos para sua vergonha! Ao menos uma coisa eu sei: difama-nos deliberadamente mas, não quero que me atribuam como crimes nem esse casamento nem o assassínio de um pai, que me lanças ao rosto sem cessar. (p. 1 56, vs. 1 1 07/8, 1 1 1 7/23 , 1 1 3 1 , 1 1 36/40, 1 1 36/45 , 1 1 56/7)

Édipo localiza-se frente à multiplicidade de planos que marcaram sua trajetória. Posiciona-se frente aos desígnios dos deuses, assume a falta transmitida, não a renega, mas, de certa forma, distancia-se dos atos que cometeu. Discerne o que é colocado, determinado pelo oráculo antes mesmo de seu nascimento daquilo que lhe pode ser ou não imputado. É ciente de sua inserção na descendência maldita, mas, ao mesmo tempo, não se confunde com este plano que o ultrapassa. Engendra alguma distância entre o que lhe é predestinado e o que lhe é atribuível, aspecto claramente expresso em sua recusa de que lhe atribuam como crimes os atos que marcaram sua história. É neste hiato, neste intervalo, que nos parece possível situar a posição do herói.

2 - Agiste conforme o desejo q ue te habita?

Vimos que Lacan (1959/60) enfatiza a dimensão trágica do mito, ao deslocar o acento de Édipo-Rei a Édipo em Colono. Interessa-se, sobretudo, por este viés que implica a castração, diferentemente de alguns pós-freudianos que

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privilegiaram o drama edípico como chave de leitura a priori, complexo nuclear da neurose, ou como chega posteriormente a indicar Lacan (1969/70), de forma crítica: " . . . a historieta de Sófocles . . . sem o seu trágico" (p.106). Lança mão do texto trágico, sobretudo, para situar uma dimensão moral não implicada no "imperioso dever-ser" do supereu, uma dimensão ética ( confira esta distinção no Capítulo I). Sigamos Lacan (1959/60):

A psicanálise procede por um retomo ao sentido da ação. Eis o que justifica por si só, que estejamos na dimensão moral . A hipótese freudiana do inconsciente supõe que a ação do homem. . . tem um sentido escondido para o qual se pode dirigir. Nessa dimensão, a noção é concebida, de início, a partir de uma . . . decantação, isolamento de planos. (p. 374)

A idéia de uma decantação, de um isolamento de planos, em uma análise, procura demarcar um campo onde a pergunta em torno da relação entre o ato e o desejo que o habita, esteja colocada. O helenista Vernant ( 1972) demarca que na perspectiva trágica, "o homem e a ação se delineiam não como realidades que se poderiam definir ou descrever, mas como problemas. Eles se apresentam como enigmas cujo duplo sentido não pode ser nunca fixado ou esgotado" (p.23). Esta complexidade presente na relação entre o homem e seu ato, própria ao texto trágico, é apontada por Lacan (1967/68) como intrínseca ao campo de questões da psicanálise. O ato humano é a resultante da interferência de uma multiplicidade de planos, não é unívoco. Requer deciframento e, por isto mesmo, a prática analítica encontra o seu lugar, ou seja, o sentido da ação, seja ela normal ou mórbida, pode ser interrogado ao longo de uma análise, pode ser interpretado.

Extraindo conseqüências desta discussão, Lacan (1959/60) interroga o que pode querer dizer para um homem ter realizado seu desejo, a não ser tê-lo realizado ao final. É em estreita proximidade com a morte, que Édipo define sua versão de um texto parcialmente prescrito, acrescentando a este texto uma pontuação própria, ou seja, o que é de sua inserção e o que não é. Afirmativo até o último instante, como se ouve pelo mensageiro que transmite sua morte:

Logo depois de ele ter a satisfação de sentir-se como queria, e no momento

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em que nada mais desejava, reboaram os trovões de Zeus infernal . (vs. 1 905/08, p. 1 82).

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Por esta via, Lacan ( 1959/60) aponta a " . .. invasão da morte na vida"

(p.353), como o que tensiona, como o que confere dinamismo ao tema da

realização do desejo. Vabe lembrar aqui a importância de re-situar, neste ponto,

a prevalência no relato dos "idosos", da questão da morte. Muitas vezes a

referência à morte no discurso dos velhos é apreendida como natural, ou seja,

decorrente da proximidade em que se encontraria o "idoso" da morte biológica.

Com Freud ( 1 9 1 5) e Lacan ( 1 958/9), redimensiona-se a questão da morte - já

que da própria morte nada sabemos - como passível, em uma análise, de enlace

com a pergunta acerca do desejo. Lacan ( 1959/60) chama a atenção para esta

dimensão no texto trágico, situando que "Édipo nos mostra onde pára a zona

limite da relação com o desejo" (p.367) e acrescenta que " ... a função do desejo

deve permanecer numa relação fundamental com a morte" (p. 364).

Vidal ( 1 990) comenta que "dentro de uma lógica implacável Édipo

questiona a estrutura do significante e se depara com essa região do entre-dois

em que não há significado que responda à falta do Outro e do sujeito" (p.23).

Na mesma direção, Lacan ( 1959/60) circunscreve a relação do homem com sua

própria morte na vida, como uma experiência na e pela linguagem. Levanta a

questão em tomo da forma como um homem, um vivente, pode tocar sua

própria relação com a morte e, em seguida, afirma: "... pela virtude do

significante e sob a forma mais radical. É no significante, e uma vez que o

sujeito articula uma cadeia significante que ele sente de perto, que ele pode

faltar à cadeia do que ele é" (p.354). Assim, a relação do homem com sua

própria morte se situa - em uma análise - como uma experiência na e pela

linguagem, como o confronto do sujeito com a ausência de um significante

último que o defina integralmente. Em última instância, seu confronto com a

castração simbólica.

V ale ressaltar aqui, uma preciosa indicação acerca de uma

contrapartida do trágico: o tragicômico. Lacan ( 1959/60) assinala que

diferentemente do "homem comum" para quem " ... é mais cômodo sujeitar-se

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ao interdito do que incorrer na castração . . . " (367), o sujeito em análise ao alçar seu sintoma a sintoma analítico, é precipitado, interrogando, em uma outra região da experiência na qual " . . . toca no termo do que ele é e do que não é . . . " (364). Lacan deixa claro não estar ali propondo a via do herói trágico para aquele que se encontra em trabalho de análise. Entretanto, como o herói não se atrapalha com uma realidade que é psíquica, transmite algo da estrutura da experiência analítica, algo a ser franqueado, atravessado em uma análise - a própria dimensão fantasmática.

Assim, por um lado, Lacan lança mão da travessia do herói trágico par� demonstrar que a estrutura da experiência analítica implica tocar a condição de objeto no campo do Outro. Por outro lado, em A Ética . . . Lacan (1959/60) finaliza com uma indicação fundamental: há como gênero, para além do trágico, o tragicômico onde prevalece a falha, a desestabilização da imagem que provoca o riso exatamente por apontar a falha do e no Outro: " . . . o herói cômico tropeça, cai no melaço, pois bem, o sujeitinho continua vivo . . . " (p. 376).

A idéia de franqueamento, travessia, é aí fundamental, pois não se trata de parar na "tragicidade" da condição humana e sim, tocá-la. Lacan indica que o analista advertido por sua própria trajetória de a nálise, jamais prometerá uma felicidade sem sombras àquele que vem em busca de uma análise. Por outro lado, nesta direção, Lacan ( 1959/60) aponta a importância da dimensão cômica:

. . . o que nos satisfaz na comédia, nos faz rir, nos faz apreciá-la em sua dimensão humana, não excetuando o inconsciente, não é tanto o triunfo da vida quanto sua escapada, o fato de a vida escorregar, furtar-se, fugir, escapar a tudo que lhe é oposto como barreira . . . (p. 3 76)

Também Freud ( 1927) se interessa pela via cômica e procura situar a partir do campo do cômico a diferença entre o humor e o chiste. O humor é apontado como "a contribuição feita ao cômico pela intervenção do supereu57

"

(p. 1 94 ), triunfo do princípio do prazer. Como operação implica certa abertura, ou seja, a partir de uma situação de desamparo que se delineia, advém a

57 Encontra-se em itálico no texto de Freud

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pilhéria, a troça proporcionando alguma fruição nesta economia. Embora possa efetuar-se na mesma pessoa, não é dual, supõe certa alteridade, leva em consideração a divisão, mas, não é temário no mesmo sentido do chiste.

O chiste, para Freud (1905) é efetivamente temário, requer ratificação, implica a terceira pessoa. É apontado como a contribuição do inconsciente ao cômico: " . . . um pensamento pré-consciente é abandonado por um momento à revisão inconsciente e o resultado disso é imediatamente capturado pela percepção consciente" (p.190). O chiste implica jogos de palavras, opera com a condensação e o deslocamento, fazendo passar algo ao campo do prazer, ou seja, a produção do chiste viabiliza alguma recuperação de gozo, alguma fruição, do lado do prazer. Situados estes pontos, vale indicar aqui uma seqüência clínica que apresenta um chiste, ratificado sob transferência:

Aos 78 anos, com esquecimentos freqüentes, medo de ficar "esclerosada como minha mãe no fim da vida", Alice chega à análise para falar. Nos últimos oito anos, várias pontuações em seu discurso em análise, têm sido no sentido de que nem todo o esquecimento é decorrência do envelhecimento. Cabe esclarecer que este é um tema particularmente aflitivo para muitos "idosos", ou seja, o fato de que os esquecimentos possam indicar uma falha no campo da memória, um déficit cognitivo característico de certas patologias circunscritas pelo discurso científico. É assim que, em certa ocasião, Alice chega à sessão, dizendo-se "arrasada", após a consulta com a geriatra que procedeu a aplicação de um teste de evocação de palavras para avaliar, comenta : " . . . como anda a minha memória. Ela me disse 'copo, mala, carro' e eu não me lembrei de jeito nenhum do copo". Frente à evidente demonstração de sua capacidade de evocação, dou uma gargalhada. E ela, rindo, diz: " . . . Não, não . . . eu só me lembrei agora porque acabei de sair de lá . . . ". Diante deste comentário, respondo algo incrédula: " Ah! Sim . . . ". Como ambas continuássemos rindo, o final deste breve, mas eficaz encontro se impôs. O ganho de prazer em jogo no chiste ratificado em análise, fez vacilar o caráter absoluto do discurso que a fez chegar à sessão, como um resto, "arrasada".

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146 V ale indicar que ao relatar este episódio para um psiquiatra, com experiência na área de envelhecimento, não houve qualquer efeito cômico, não houve de forma alguma a produção de chiste. Para o discurso do especialista em envelhecimento realmente importa, no teste realizado, a evocação das palavras no instante em que são solicitadas, em função da localização do saber, tanto no discurso do mestre, como no discurso universitário. Cabe lembrar que este é um aspecto claramente sinalizado por Freud ( 1905), ou seja, o fato de que todo chiste tem seu público específico. Assim, nem todos riem esclarecendo, desta forma, a vigência de diferentes discursos. Há uma indicação de Lacan ( 1 966), já citada anteriormente e que foi se apresentando ao longo da tese como fundamental para dar direção a algumas questões. Trata-se da afirmação feita em Subversão do sujeito ... , segundo a qual a "castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo" (p. 84 1 ). Consideramos que a idéia de algum remanejamento de gozo que para ser atingido, implica um plano de recusa de gozo, encontra uma tradução possível em um chiste - produzido em uma análise - onde se evidencia certa liberação, certa circulação da falta, certa fruição. Freud avalia que há no chiste " . . . economia na despesa psíquica ou alívio da compulsão da critica" (p. 1 50). Trata-se, assim, de um episódio que situa a escuta do analista como capaz de desestabilizar artificialmente, como diz Lacan ( 1969/70), um determinado semblant discursivo - pela irrupção do discurso analítico -produzindo um giro discursivo compatível com o trabalho inconsciente, que requer alguma circulação da falta. Nesta direção, parece possível indicar que um chiste produzido sob transferência, apresenta-se como um terreno possível - dentre outros em uma análise - de certo remanejamento de gozo que veicule alguma circulação da falta, compatível com o rodeio próprio ao circuito do desejo. Retomando, neste ponto, A Ética . . . , Lacan ( 1959/60) esclarece que embora se trate tanto na comédia quanto na tragédia, " . . . da relação da ação com

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o desejo, e de seu fracasso fundamental em alcançá-lo . . . " (p. 376), a aposta incide no ponto de virada discursiva em jogo no tragicômico, pois, exatamente ali onde a questão se formula em tomo da condição de objeto no campo do Outro - auge da consistência na tragédia - ocorre certo esvaziamento com a entrada da falha pela via cômica, situando a falta no e do Outro. É neste sentido que o tragicômico é apontado por Lacan como contrapartida da via trágica.

Trazer esse campo de questões para a experiência psicanalítica com "idosos" permite diferenciar o drama - em que muitas vezes o sujeito chega a uma análise, "mergulhado" - de certa tragicidade própria à condição humana. Nesta direção, vale retomar a sequência clínica apresentada no Capítulo II, no ítem 2.4, na qual Alice comparece sozinha a um exame prescrito pelo médico. Sua narração - a princípio - de um episódio marcado pela dor e pelo desamparo, em seu relato em análise faz aparecer a dimensão tragicômica da experiência. Sublinhamos que, por estar falando em análise, seu relato foi balizado por certa comicidade que permitiu alguma circulação da falta, alguma separação.

Tal distinção entre drama e precariedade da condição humana permite orientar a escuta quanto aos pontos de real, mas também quanto às

· linhas de fuga, ao propiciar o enlace com a pergunta acerca do desejo. É assim que também Nair comenta em análise, acerca da época em que estava na faculdade, que " . . . às vezes quando estávamos estudando os textos trágicos, eu e minhas amigas tínhamos acessos de riso e mesmo quando o professor reclamava, não conseguíamos parar . . . " Pergunto: " . . . e por quê?". Responde rindo: " . . . Ah ! Porque ali é o impossível e aí, só rindo mesmo . .. ". Nair transmite, assim, que frente ao que do real como impossível lógico se apresenta, talvez, em algumas ocasiões, o cômico, em suas diversas manifestações, funcione na direção de alguma separação possível.

Lacan (1959/60) avalia que, na medida em que o psicanalista reconhece a natureza do desejo no âmago da ação humana, " . .. uma revisão ética é possível. . . um juízo ético é possível..." (p. 376). Acrescenta ainda que, exatamente aí neste ponto que implica a falha - onde pode insinuar-se algo do

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cômico - apresenta-se a questão com " . . . valor de juízo final: - Agiste conforme o desejo que te habita?" (p.376).

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CONCLUSÃO

Em O Tempo Recuperado de Marcel Proust, sétimo e último volume da série Em Busca do Tempo Perdido, o narrador detalha minuciosamente um grande acontecimento na casa dos Guermantes, uma família da nobreza. O interessante e peculiar da ocasião é o seu reencontro, após ausentar-se do convívio social por um longuíssimo período, com pessoas que fizeram parte de sua mocidade: amigos, inimigos, mulheres que foram marcantes em sua juventude, conhecidos em geral. Ao entrar no salão, sua primeira impressão foi de que todos estavam caracterizados, como em uma peça de teatro, com perucas e barbas brancas postiças, alterações inexplicáveis e quase irreconhecíveis em suas· fisionomias. Comenta, então, o impacto causado:

eu, que desde a infância, vivendo só do momento presente e tendo aliás recebido dos outros e de mim mesmo uma impressão definitiva, percebi, pela primeira vez, segundo as metamorfoses que se haviam produzido em todas essas pessoas, o tempo que para elas transcorrera, o que me perturbou pela revelação de que ele também para mim passara. (p.234)

O narrador conta que, em seguida, sua própria velhice foi proclamada de maneira sucessiva, ferindo-o " . . . como as trombetas do juízo final" Frases como: " . . . Você é o meu mais velho amigo! " ou " . . . Você que é um velho parisiense . . . " (p.234). precipitaram a conclusão:

Pude comtemplar-me, como ao primeiro espelho verídico que encontrasse, nos olhos dos velhos que se achavam jovens, como eu próprio me achava, e que, quando me proclamava velho para ouvir um desmentido . . . não mostravam o menor protesto em seus olhos que me viam tal como não se viam a si mesmos, porém como eu os via . . . pois não vemos nossos próprios aspectos, nossas próprias idades, mas cada um, como um espelho oposto vê a do outro. (p.236/7)

Por esta via, Proust nos apresenta algumas questões reiteradamente apontadas pelos "idosos" acerca da velhice: a implicação do Outro na demarcação do tempo que passa, das mais variadas formas. Algumas vezes, a mensagem invertida nos chega assim, pelo semelhante, pelo outro. Outras

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150 vezes, a opacidade do desejo do Outro se insinua em frases como: "ele já não me olha mais como antes", forçando o sujeito a confrontar-se com certa retirada do olhar.

De um lado, trata-se da velhice como evento inexorável da vida e por outro lado, como nos lembra Beauvoir (1970), a velhice comporta algo de irrealizável, termo que interessa por suas ressonâncias, Em primeiro lugar com relação ao termo, em inglês, realize que significa dar-se conta, apreender algo e, neste sentido, ecoa no termo irrealizável a impossível apreensão da própria velhice: velho é o outro. Além disso, vale lembrar a indicação de Lacan (1963/4) acerca do irreal como referido ao real, ao indicar a libido como órgão irreal. Lacan aponta a importância de que seja diferenciado o irreal, do imaginário. Desta forma, situar a velhice como inexorável e irrealizável, implica indicar que a velhice como evento da vida, prima pela ausência de recobrimentos, escancara algo do real que exige trabalho psíquico. Freud demarca a complexidade do climatério que chega a ser aproximado da puberdade, ambos como eventos da vida em que ocorrem regularmente reforços pulsionais, que se traduzem como exigência de trabalho psíquico. Na puberdade Freud destaca o desligamento da autoridade dos pais. Já com relação à velhice, qual seria a exigência de trabalho psíquico que se destaca? Em tomo deste ponto, é preciso ressaltar a magnitude das dificuldades que se apresentam, em função de importantes perdas de laços, muitas vezes concomitantes. Neste enquadre, propusemos como exigência de trabalho própria a esse momento da vida, o monumental esforço de reinstaurar o circuito próprio ao desejo, como desejo do Outro. V ale dizer que é por vezes falando, em uma análise, que se abre a via do enlace da finitude - atualizada pelas perdas significativas - com a pergunta acerca do desejo, com relação ao tempo que resta. Daí a importância de que o analista não recue: se interesse e se disponha a ouvir os "idosos". Nosso ponto de partida foi a escuta de "idosos" no ambulatório NAI/UNATI/UERJ. O ambiente marcadamente técnico de um ambulatório traduz a apresentação do mal estar na cultura em nossa época, que implica a

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conjunção do discurso capitalista com a tecnociência. Neste enquadre, o velho

tende a ser abordado como objeto: seja ele próprio tomado objeto de cuidados,

seja o envelhecimento tomado mercado de consumo. Incessantemente são

colocados á disposição do e no mercado, produtos e técnicas que visam apagar

os sinais da idade, quaisquer que sejam eles. O fato é que em cada uma dessas

vertentes, é como objeto que o velho é abordado e se, por um lado, existem

indiscutíveis efeitos de socialização decorrentes da construção da categoria

"idoso", é preciso considerar também inequívocos efeitos de segregação e

isolamento, na contramão do estabelecimento de laços sociais.

Este contexto recobre a complexidade de uma queixa na velhice, que

implica a realidade psíquica e convoca o sujeito a um trabalho, que nem sempre

ocorre, fato que não é sem conseqüências para o sujeito. Quedas recorrentes,

d.ores diversas, esquecimentos freqüentes, bem como vários relatos de um

sentimento de inadequação, de estranheza levantaram a pergunta acerca do

estranho-familiar (Unheimlich) e do estranhamento (Ent.fremdung) como campo

conceituai.

Desestabilizações, por vezes catastróficas, conduziram também à

pergunta acerca de certa perturbação no trabalho de luto na velhice. Apontamos

como as sucessivas e, muitas vezes, concomitantes perdas de laços

significativos - a que o processo de envelhecimento confronta o "idoso" -

contribuem para a perturbação do necessário trabalho psíquico, de luto, a que se

é convocado, nestas circunstâncias. Com Lacan (1958/59) vimos a ausência de

balizas para o trabalho de luto no campo social, onde há cada vez menos ritos

fünebres, bem como a explícita intolerância à dor no espaço coletivo, articulada

à demanda asséptica de pronto restabelecimento e produtividade.

Para Lacan a experiência do luto está do lado da privação - falta real

- e requer trabalho a partir da perda para situar-se do lado da castração - falta

simbólica. Tomando Hamlet e Ophelia da literatura universal e Frida, da

literatura psicanalítica foi possível situar que apreender-se como falta é

condição de possibilidade para que ocorra o trabalho de luto e seja reinstaurado

o rodeio próprio ao desejo, como desejo do Outro. Lacan circunscreve como

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frase própria à experiência do luto "eu era sua falta". Frases ditas sob transferência, tais como "eu não faço falta" ou "me sinto sobrando" evidenciam a dificuldade de alguns "idosos' em apreender-se como falta e situam a função da angústia, em análise, ao localizar a falta. Situamos que, para Freud e Lacan, a angústia designa uma região intermediária, mediana entre fechamento e abertura ao campo do desejo. Daí a importância do manejo da angústia, sob transferência.

Ali onde não foi possível apreender-se como falta e trabalhar a partir da perda, no luto, em algumas conjunturas ditas "depressão", parece-nos estar em jogo um estado depressivo compatível com um primeiro tempo do trabalho de Juto, que implica forte inibição. Frente a esta questão, vale sustentar a importância de que haja condições propícias para que avance o trabalho de luto e não que este se "infinitize" como um estado depressivo ou, ainda, como sugere Freud ( 1916) em Efêmero, que se instale uma antecipação do luto que faça obstáculo ao próprio avanço do trabalho de luto.

Procuramos indicar que a fixação e a compulsão à repetição apontam a uma realidade psíquica, fantasmática segundo a qual o infortúnio e o sofrimento que se apresentam na vida, tomam-se também ocasiões para o incremento das exigências do supereu. Por esta via - em sua investigação acerca do caráter hipercruel, hipermoral a que podem chegar as relações de um supereu tomado sádico e um eu tomado masoquista - Freud (1924) aponta a possibilidade de uma re-sexualização da moral e localiza o enlace da libido com a pulsão de morte no masoquismo. Neste enlace, Freud (1923, 1924) afirma uma satisfação de outra ordem, além do princípio do prazer. Trata-se aí de uma satisfação pulsional, que implica uma economia de gozo.

A escuta de "idosos" em análise evidencia pontos de fixação de dificil dialetização e. Freud contra-indica a prática da psicanálise com "idosos" em torno de uma perda de plasticidade da libido, uma inércia psíquica que aumentaria com o passar dos anos. Seu argumento, entretanto, revela-se uma pergunta acerca de como intervir em uma economia de gozo, já que reitera a mesma dificuldade com alguns jovens. Vale notar que aqui, Freud privilegia a

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questão da neurose e não da idade cronológica, permitindo o deslocamento da

questão meramente etária. Constata-se, assim, certa dissimetria entre faixa etária

e perda de plasticidade da libido. Desta forma, mais do que reafirmar em 1937 a

contra-indicação da prática analítica com "idosos", Freud parece se esforçar por

cernir uma dimensão clinica, um plano de resistência que se opõe ao avanço do

tratamento, até certo ponto, independentemente da idade cronológica.

Partindo da pergunta acerca de como intervir em uma economia de

gozo, procuramos localizar algumas respostas de Lacan para as formulações de

Freud acerca de um resto seja transferencial, seja pulsional, que insiste. Neste

perc.:urso uma noção utilizada por Freud e Lacan ganha relevância: a noção de

entropia psíquica, a qual localiza uma perda, um dispêndio, um resto pulsional

que Lacan formalizará em tomo do objeto a, como mais-de-gozar.

Lacan decanta o objeto a, a_partir das indicações de Freud acerca de

das Ding como alteridade absoluta, inassimilável ao juízo. Seguimos, em nosso

estudo sobre o luto, a forma como o objeto a para Lacan ( 1962/3) - quando

articulado, à falta, à perda, ao vazio - pode funcionar na constituição do circuito

do desejo, pode funcionar como causa de desejo. Além disso, assinalamos que o

objeto a no fantasma ($<>a) freia o deslizamento infindável da cadeia e, por

esta via, sustenta tanto o sujeito quanto o Outro, já que como objeto do desejo,

permite tamponar a falta no Outro. Em tomo da formalização dos discursos,

Lacan demarca ainda a função de captação de mais-de-gozar, própria ao objeto

a. Por esta via, com a formalização do objeto a, Lacan confere mais de uma

função ao resto freudiano.

Tanto Freud como Lacan consideram os poetas, escritores e artistas

como capazes de dizer, de forma efetiva - a partir de sua obra, de sua produção

cultural - acerca de algumas dimensões do ser falante. Nesta direção, lançamos

mão - como um recurso à ficção - de frases de velhos que sustentaram ou

sustentam projetos e realizações no campo social: Manoel de Barros, Zélia

Gattai, Manoel de Oliveira, Niemeyer, Cora Coralina, Drummond, Saramago,

Krajcberg e Nelson Sargento. Recortamos algumas falas e atos que permitem

interrogar o estereótipo geral de fragilidade na velhice, veiculado pelo senso

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comum. Recortamos ainda frases ditas sob transferência, bem como fragmentos de análises que ao longo da tese, permitiram localizar algumas questões abordadas

Em torno da formalização dos discursos, procuramos aprofundar com Lacan um viés ético acerca da irrupção do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro, bem como o necessário remanejamento de gozo, compatível com alguma circulação da falta, própria ao rodeio do desejo. Recorremos ainda a dois velhos da literatura universal: Lear e Édipo em Colono, lidos por Lacan na direção de situar certa tragicidade da condição humana. Por este viés, localizamos o tragicômico como contrapartida, para Lacan, da vertente trágica ao incluir aí o campo do cômico. Procuramos indicar a ratificação de um chiste, em análise, como um terreno dentre outros, em que é possível fazer circular algo da falta, compatível com o trabalho inconsciente. Nessa trajetória recorremos em diferentes momentos do trabalho à indicação de Lacan ( 1966) segundo a qual algum remanejamento de gozo se faz necessário: " . . . para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo" (p. 841).

Trata-se, portanto, em algumas análises, na velhice, de uma aposta no funcionamento da estrutura ainda que na experiência com "idosos" haja lutos que se mostrem efetivamente muito dificeis, em função da exacerbada dificuldade, por um lado, de apreender-se como falta, tal como Frida no relato publicado por Margareth Little e, por outro lado, pela dificuldade de largar mesmo aquilo que machuca, convocando o sujeito em análise ao trabalho a partir da perda, que viabilize algum remanejamento de gozo, compatível com a reinstauração do circuito próprio ao desejo

Verifica-se que toda sociedade tem uma forma de divisão do curso de vida e utiliza de algum modo a idade, cronológica ou não, para demarcar diferentes status sociais: a idade de ingressar na escola, a idade de trabalhar, de casar, de ter filhos e de se aposentar. Ocorre que, com o passar do tempo, vão se tornando rarefeitas as balizas fornecidas desde o social. Assim, é preciso que o velho lance mão de seu singular repertório de interesses, para inventar algo que possa sustentá-lo em uma relação desejante com a vida, apesar das dificuldades

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e das perdas que se impõe� de forma inexorável. Não seria esta a aposta também em uma análise na velhice, ou seja, que o sujeito possa inventar algo a partir de sua própria precariedade?

Desta forma, desde Freud, frente à impossibilidade de imortalidade apresenta-se a possibilidade de alguma escrita, em análise, do enlace da finitude com a pergunta acerca do desejo. Procuramos sustentar esta via como capaz de propiciar que a escassez de vida no tempo possa traduzir-se, para cada um, em uma pergunta em tomo de alguma invenção (Lacan, 13/04/1976), ou como diz Freud (1937) uma "neo-criação" (p.229/30) a partir do trabalho de análise, diante do tempo que resta. Esta é a aposta, em jogo, do desejo do analista ao convidar o "idoso" a trabalhar a partir da perda, pelos caminhos da transferência, atravessando a experiência do luto, já que como esclarece Lacan(1962/3): " . .. a falta, que sempre participa de algum vazio, pode ser preenchida de várias maneiras ... " (p.35).

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