Nadja - André Breton

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Nadja

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Nadja - André Breton - edição em português de Ivo Barroso

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  • Nadja

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    ,

  • Andr Breton Nadja

    Traduo Ivo Barroso

    Apresentao Eliane R obert Moraes

    Po~fcio Annie Le Brun

    COSACNAIFY

  • Breton diante da e.~/inge por Eliane Robert Moraes, 7

    NADJA, 17

    Apndice

    Hst6ra de um desastre por Annie Le Brun, 149

    Panorama crtico, 157

    Sugestes de leitura, 175

  • Breton diante da esfinge por Eliane Robert Moraes

    Nada dos inspitos rochedos de outrora, onde criaturas mons-truosas ameaavam solitrios viajantes. Quando Andr Breton publica Nadja, em 1928, os enigmas humanos j ecoam em novo endereo h muito tempo. nas cidades que eles repercutem, quase sempre nos ouvidos de caminhantes entregues aos prprios devaneios em meio ao burburinho da multido.

    Pelo menos desde meado do sculo XIX, as modernas capi-tais europias se converteram em espao privilegiado das grandes interrogaes metafisicas, acolhendo a inquietude dos espritos sensveis que no cessam de explorar suas esquinas mais obscuras. N essa cartografia, de referncias a um s tempo concretas e ima-ginrias, a cidade de Paris ocupa um lugar especial, sobretudo nos escritos literrios que no raro a envolvem em misteriosa aura.

    Breton e seus amigos so herdeiros de toda uma gerao de autores oitocentistas - entre eles, Zola, Victor Hugo e Eugene Sue - que vasculhava as ruas da capital francesa buscando vias de acesso s regies mais secretas da alma humana. Porm, os

    "mistrios de Paris" que inspiram as incansveis caminhadas do grupo surreal pela cidade se encontram, antes de tudo, nos rotei-

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  • ros esboados por Lautramont, Huysmans e N erval. Influncias declaradas do criador de Nadja, esses escritores se distinguem por sondar os aspectos mais banais do dia--a-dia parisiense sob as pode-rosas lentes da imaginao.

    A afinidade com o autor dos Cantos de Maldoror passa pela obsesso por passagens, becos e vielas que cortam o centro da ca-pital, cujos acessos seu inslito personagem descobre por acaso, ao perambular nas caladas dos grandes bulevares.Alm disso, o recur-so sistemtico a metforas aquticas nas referncias de Lautra-mont cidade tambm inspira o m entor do movimento, que se vale delas com particular deleite. Na Paris falsamente artificial de Huysmans, por sua vez, o que lhe atrai o inventrio minucioso dos tesouros ocultos no cotidiano urbano. Percebendo a uma disposio de esprito que antecipa uma visada resolutamente surrealista, Breton reconhece nele "maneiras to iguais s minhas de apreciar tudo quanto se nos apresenta".

    Para alm dos ecos de Lautramont e Huysmans, o que pre-valece em Nadja a Paris onrica de Nerval. A comear pelo itinerrio escolhido, evocando locais de intensa significao para o criador de Aurlia, a exemplo da Place Dauphine, que desperta sentimentos igualmente ambguos no narrador: "Cada vez que estive l, senti que me abandonava pouco a pouco o desejo de sair, precisando argumentar comigo mesmo para escapar desse enlace to suave, to agradvel e insistente demais e, em ltima instncia, aflitivo".Ambigidade que ecoa num trocadilho da personagem, jogando com o nome da praa e a palavra dauphin [golfinho], o animal com que os surrealistas identificavam o escritor num dos jogos que o grupo praticava.

    Ao divisar um elo secreto entre lugares e palavras, Breton vai revelando no s a natureza do passeio surreal mas tambm o

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  • intento de um livro que pretende explorar os pontos de contato entre a vida e o sonho. Para tanto, ele captura a paisagem citadina com o mesmo olhar oblquo de seus inspiradores, no empenho de decifrar os signos urbanos como mensagens secretas que lhe dizem respeito.

    Assim, passando do plano real ao imaginrio como quem troca de calada, o caminhante surrealista tambm se deixa levar por foras incgnitas, alheias a seu entendimento: "No sei por que para l, de fato, que m eus passos me levam, que vou para l quase sempre sem objetivo determinado, sem nada de decisivo a no ser esse dado obscuro de saber que ali vai acontecer isto (?)". Inquietao que sua parceira de errncia esclarece numa frmula to breve quanto categrica: "Mas no existe passo perdido".

    A disponibilidade para os mistrios da cidade - que o surrealismo herda do .fineur de Baudelaire e do poeta em tat de surprise de Apollinaire -, ser decisiva para o aparecimento de uma tpica central do movimento: a noo de "encontro fortuito". Central tambm em Nadja, ela traduz um dos fundamentos da atividade do grupo, dando origem idia de "acaso objetivo", que Breton cria inspirado nas teses de Hegel em torno do "lugar geomtrico das coincidncias". Na base de tal conceito est o desejo de con-frontar o acaso e a necessidade, visando a investigar as ocorrn-cias subterrneas que precipitam os encontros significativos.

    Acaso objetivo exemplar ocorre na calada de uma das grandes artrias parisienses, quando o autor vislumbra a des-concertante figura de Nadja, com a qual vai empreender um percurso inicitico to intenso quanto transformador. O lugar do encontro indica uma das diagonais que orientam a Paris dos

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  • surrealistas: a rua La Fayette - que Breton insiste em grafar como Lafayette, instaurando uma geografia imaginria -, localizada em uma regio conhecida pelas ocupaes de sua populao femini-na.Vale dizer, um bairro que se tornara popular por suas videntes

    - tais como Mlle. Couesdon ou Mme. Thebes, clebres carto-mantes da poca, que acolhem as incertezas de uma gerao de artistas vidos por descobrir os segredos do futuro -, ou por suas prostitutas, cujos "olhos violeta" atraem mas tambm assustam o escritor, que associa a cor idia de violao ou de violncia.

    Dificil imaginar paisagem mais adequada para reunir esses dois caminhantes que um local destinado s prticas da adivi-nhao e do erotismo, ambas suscitando o mesmo sentimento de fascnio e medo que d o tom do relato.Alis, a relao do par se sustenta o te1npo todo nesse ponto de togue entre a vidncia e o amor, abrindo ao .fineur surreal as portas de uma cidade mgica e decididamente feminina. N ela, o autor vai cruzar com outras mulheres improvveis que, a exemplo de sua herona, antecipam traos daquela mulher-vidente exaltada em L'Amour fou (1937) e

    Arcane 17 (1945). Pitonisa moderna por excelncia, N adja interpela Breton

    com interrogaes enigmticas desde sua primeira apario, tal qual uma esfinge cosmopolita. N o surpreende, portanto, que seja ela a orientar o labirntico passeio do escritor pelas ruas de Paris, procura de uma resposta para o enigma que preside o romance desde a primeira frase: "Quem sou?".

    A figura da esfinge recorrente neste livro, embora quase sempre se apresente de forma cifrada, fazendo jus ao mito que a n.otabi-lizou . Basta lembrar a insistncia com que o autor indaga a pr-

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  • pria identidade, no raro por meio de enunciados obscuros. Basta recordar ainda a aluso ao inslito Hotel Sphinx , onde a herona supostamente se hospedara ao chegar capital - sem contar o fato de que esse era tambm o nome de um bordel de luxo fre-qentado pelos parisienses de r926 .. . Some-se a isso a sugesto do ser mitolgico nas palavras e nos desenhos de Nadja, em franca sintonia com o interesse que ele suscita na conscincia surreal.

    "No sabamDs ns, de longa data, que o enigma da esfinge diz muito mais, e coisa bem distinta, do que parece dizer?" - a questo formulada por Breton em Ve lgendaire de l\!fax Ernst (1942) resum e tal interesse, confirmando sua determinao em propor novas interpretaes para os enigm as colocados pela per-sonagem mtica que, por seu carter sombrio, parece tramar laos profundos com a sensibilidade moder113 .A reinven o do mons-tro passa, antes de tudo, pela dessacralizao das tradies que o sustentam na qualidade de uma simblica acabada: "Ns dispen-samos os tesouros da imaginao. Figurar a esfinge como um leo com cabea de mulher pode ter sido potico outrora. Espe-ro que un ia verdadeira m itologia moderna esteja em formao"

    - observava o autor desde Les Pas perdus (1924). Convico partilhada por vrios membros do grupo, que

    no poupam esforos para liber tar a criatura de suas formas convencionais, rejeitando a simblica fixada pelo modelo grego. Contudo, o alvo dessa recusa no o mito enquanto tal, m as o falacioso "culto aos antigos'', que os surrealistas desprezam na esperana de criar uma nova mitologia, contempornea aos dile-mas de seu tempo.

    Paul luard, por exemplo, ao evocar o legendrio monstro numa tela de Picasso - "A massa enorme e escultural dessa mulher em sua poltrona, a cabea grande como a da Esfinge, os seios era-

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  • vados no peito"-, esboa uma caracterizao que apaga em defi-nitivo as referncias antigas: "O rosto de traos midos, a cabeleira ondulada, a axila deliciosa, as costelas salientes, a camisa vaporosa, a poltrona doce e confortvel, o jornal cotidiano" . Livre das refe-rncias tradicionais, a nova esfinge ser encontrada nos locais mais prosaicos da cidade, sempre em sintonia com a dinmica transi-tria da vida cosmopolita. Errante e provisria, ela vai ostentar vrios rostos para, ento, revelar as mltiplas faces do enigma.

    Entende-se por que, justo num livro em que a fotografia to importante quanto o texto, no haja uma s imagem a identificar os traos de sua herona: portadora de uma in terrogao, Nadja no pode se confinar aos contornos de um rosto. Melhor dizen-do, o que se mostra nela precisamente o mistrio, assim como ocorre com "as esfinges desconhecidas", evocadas por Aragon em O campons de Paris (1926), "que interrompem o caminhante so-nhador quando conseguem atrair sua distrao meditativa, que no lhe propem questes mortais. Mas se souber adivinh-las, esse sbio que ento as interroga ter diante de si, graas queles monstros, seus prprios abismos para sondar de novo".

    No de estranhar, portanto, que os dois amigos acabem su-cumbindo mesma apario, como registrado em Les Pas perdus, quando percorrem em vo um bairro de Paris procura de uma desconhecida, justificando sua peregrinao pelo fato de "no poderem renunciar a conhecer a palavra do enigma". Intui-se nessas passagens sentimento semelhante ao que Breton confiden-cia quatro anos depois em Nadja, ao recordar "o apelo irresistvel que nos levou, a Aragon e a mim, a retornar aos mesmos pontos onde nos havia aparecido aquela verdadeira esfinge sob a aparn-cia de uma jovem encantadora, indo de urna calada a outra, a interrogar as pessoas que passavam".

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  • De fato, a trama sinuosa da narrativa, marcada pela peram-bulao de seus protagonistas, repousa sob o signo de uma busca incessante que jamais encontra termo. Tema recorrente em di-versas obras do surrealismo, e onipresente neste livro, que con-clui a nostlgica procura ao constatar "a falta de resultados dessa perseguio, que o tempo decorrido teria tornado sem esperana

    - foi a isso que Nadja chegou de imediato". Curioso notar que a apario da personagem na vida do

    escritor, de certa forma motivada pela interrogao sobre si ~esmo, acaba por lan-lo na incgnita da alteridade. ele mesmo a admiti-lo, no exato momento em que depara a esfinge da rua Lafayette, ao substituir sua questo inicial por "uma pergunta que

    resum~e todas as demais": "uma pergunta", diz o autor, "que s eu faria, sem dvida, mas que, pelo menos uma vez, encontrou resposta altura: 'Quem voc?"'.

    "Eu sou a alma errante" - responde Nadja sem hesitar, oferecendo a Breton um espelho de mltiplas faces, que vai desmentir qual-quer promessa de unidade do "eu" para lanar a indagao inicial do romance ao seu ponto de fuga. Da que, logo aps o encontro capital, o prprio autor v recolocar sua dvida em outros termos, olhando para si como um estrangeiro. Prova disso est na deter-minao de repensar seu lugar no Universo a partir dos outros, perguntando-se: " O que, entre todos os demais, vim fazer neste mundo, e qual a mensagem mpar de que sou portador, a ponto de s a minha cabea poder responder por seu destino?" .

    Indiferente aos problemas da identidade, a resposta da jo-vem esfinge lhe aponta um caminho oposto ao de dipo, uma vez que o heri fundante de nossa cultura representa a metfora

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  • do homem que toma conscincia de si , realizando os desgnios da clebre inscrio grega "conhece- te a ti mesm o". Ao con-trrio, a irrestri ta adeso de N adja er rncia supe urna per-sonalidade m erc do transitrio, e capaz de desdobrar-se em diversos "outros" .

    Desnecessrio lembrar que a recusa do princpio de iden ti-dade ' uma tpica central do movimento, explorada em vrios sentidos pelo grupo. Breton interpreta tais desdobramentos como fatores determinantes na formao espir itual dos poetas moder-nos, aos quais se devem as mudanas capitais da imaginao euro-pia. Considerados "surrealistas avant la lettre" , eles teriam sido os primeiros a expressar urna dvida radical a respeito da afirmao

    "Eu sou" , como se evidencia tanto no "je est un autre" de Ivm-baud quanto, para nos limitarmos apenas a duas referncias citadas, nas transfiguraes da protagonista de Aurlia de Nerval ou nas ver tiginosas mutaes do Maldoror de Lautramont.

    O ra, a grande atrao que a figura equvoca de N adja vai exercer sobre o mentor do surrealism o deve-se sobretudo ao fato de ela manifestar, no plano existencial, essa mesma inquietao que, desde o sculo xrx , vai alterar em definitivo a conscincia da identidade. Instvel por definio, a jovem osten ta um esta-do mental vago e ambivalente, como se abrigasse den tro de si aquele "hspede desconhecido" de Les Vases communicants (193 2) , ou a prpria "teste111unha assombrada" que, no livro, descreve o sujeito surpreendido consigo n1esmo.

    Imp orta sublinhar que, ao deslocamen to fisico dos per-sonagens, marcado pela desorien tao e pela disponibilidade para a surpresa, co rresponde um deslocamento mental de se-melhante porte e intensidade. Ao trajeto errante, uma alm a igualmente er rante.

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  • Assim, entre o o trajeto do caminhante surreal e o curso de seu pensamento estabelecem-se nexos inesperados,j que ambos recusam as rotas conhecidas em funo da explorao do des-conhecido. A perambulao pelas ruas de Paris supe, portanto, o desejo de soltar as rdeas do esprito, de abandonar-se a seus ritmos incertos e hesitantes, de acolher enfim sua prpria possi-bilidade de errar. Explorao arriscada, que prescinde da orien-tao de mapas e bssolas - mas que, por isso mesmo, conduz descoberta da poesia. Aos olhos de Breton, Nadja representa a prpria encarnao dessa aventura sensvel.

    "A beleza ser CONVULSIVA, ou no ser" - afirma o autor no final do romance, numa expresso que associa, em definitivo, sua singular personagem ao paradigma fundamental da potica sur-realista. Em L'Arnourfou, ele retornaria ao tema, para reiterar seu mote central, confirmando a primazia da beleza convulsiva como fonte da criao artstica. A m xima de Breton traduzia o senti-mento esttico de todo um grupo de escritores e artistas que, ao dar as costas s exigncias da identidade, se entregava com paixo ao projeto de duvidar das form as e de deslocar continuamente os sistemas de referncia.

    Mais tarde, inspirado no desfecho de N adja, seria Max Ernst a reconhecer nessa concepo de beleza uma notvel ampliao da conscincia: "A identidade ser convulsiva, ou no ser". D e fato, no decorrer dos quase dez anos que separam as duas frases, o surrealismo deixou de ser uma simples carta de princpios para realizar uma das grandes subverses poticas da modernidade. E a desconcertante Nadja, encontrada ao acaso numa calada de Paris, deixou de ser apenas uma figura- chave da mitologia pessoal de Breton para se tornar ela m esma um mito, a ecoar enigmas do igualmente desconcer tante sculo xx.

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  • Nadja

  • Antes e tudo

    (telegrama retido)

    Se, ao longo deste livro, o simples ato de escrever, para no men-cionar o de publicar qualquer espcie de livro,j era classificado na categoria das vaidades, que seria de pensar da complacncia do autor em querer, tantos anos depois, m elhorar pelo m enos um pouco a sua forma! Contudo convm distinguir, para o bem ou para o mal neste caso, entre o que se refere ao registro afetivo e se prende exclusivamente a ele - o que , sem dvida, o essencial -, e o que representa, no dia-a- dia, to impessoal quanto possvel, a inter- relao dos mnimos acontecimentos numa forma determi-nada (" ' euille de charmille", de Lequier, sempre voltamos a ti!). Se inevitvel que a tentativa de retocar distncia a expresso de um estado ern.ocional sem que se possa reviv-lo no presente, resulte em dissonncia e frustrao Q o vimos bastante em Valry, quando um insacivel anseio

  • objetiva eliminar qualquer descrio - acusada de inanio no Manifesto do surrealismo-, o tom adotado para a narrativa, que se calca no da observao mdica, principalmente neuropsiquitrica, em que a tendncia registrar tudo o que o exame e o interroga-trio podem fornecer, sem a mnima preocupao com o estilo. Vai-se observar, ao longo da leitura, que esta resoluo, bus-cando em nada alterar o documento "tomado ao vivo", se aplica no apenas pessoa de Nadja, mas ainda a terceiros, bem como a mim mesmo. O despojamento voluntrio de um escrito dessa natureza contribui sem dvida para a renovao de sua audincia, ao deslocar seu ponto de fuga para alm dos limites habituais.

    Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma srie de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal. Ao cabo de trinta e cinco anos (a fuli-gem no brincadeira) , os leves cuidados com que resolvo cer-car a segunda testemunham apenas certa preocupao quanto melhor forma de expressar, que s a esta dizem respeito, de vez que o maior valor da outra - que continua a me importar muito mais - reside precisamente na carta de amor crivada de erros e nos "livros erticos sem ortografia".

    Natal de 1962

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  • Quem sou? Se excepcionalmente recorresse a um adgio, tudo no se resumiria em saber "com guem ando"? Devo confessar que essa expresso me perturba um pouco, pois tende a estabele-cer entre mim e certos seres relaes mais singulares, menos evi-tveis, mais perturbadoras do que poderia imaginar. Diz muito nais do que quer dizer, me faz desempenhar em vida o papel de um fantasma, alude evidentemente ao gue eu deveria deixar de ser para ser quem sou. Tomando-a de forma um tanto abu-siva nesta acepo, d-me a entender gue tudo o que considero manifestaes objetivas de minha existncia, manifestaes mais ou menos deliberadas, no passa, nos limites desta vida, de uma atividade cujo verdadeiro campo permanece inteiramente des-conhecido para mim. A representao gue tenho do "fantasma", com o que ele apresenta de convencional, tanto em seu aspecto como em sua cega submisso a certas contingncias de tempo e de lugar, vale, antes de mais nada, para mim, como a imagem acabada de mn tormento gue pode ser eterno. possvel que minha vida no passe de uma imagem desse tipo, e que esteja condenado a voltar sobre meus passos, pensando, ao contrrio,

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  • que avano, tentando conhecer o que d fato deveria r conhe-cer, aprender uma escassa parceb cio que esqueci. Essa viso de mim mesmo s me parece falsa na medida em que me pressupe em relao a mim mesmo, situando de modo arbitrrio, num plano de anterioridade, uma figura definida do m eu pensamento, que n5o tem n enhum motivo para se coadunar con1 o tempo, e impl icando concomitantemente urna idia de p erda irrepar-vel, de penitncia ou queda, cuja falta de funda mento moral no poderia, no 111 u entender, admitir qualquer discusso. O impor-tante que as atitudes particulares que descubro lentamente aqui no m undo no me distraem em nada da busca de uma atitude geral, que me seria prpria, e no concedida a mim. Alm de toda a espcie de singularidades que reconheo em mim, de afi-nidades que sinto, de atraes que sofro, de acon tecimentos que me ocorram e o corram somente a mim , alm da quan tidade de movimentos que m e vejo fazer, de emoes que somente eu experimento, esforo- me, em relao aos outros hon1ens, por saber em que consiste, ou pelo menos a que se dev , essa nlinha diferenciao. No ser medida exata que eu tomar conscincia dessa cliferenciao que poderei ficar sabendo o que, entre todos os demais, vim fazer neste mundo, e qual a mensag m mpar de que sou portador, a ponto de s a minha cabea poder responder por seu destino?

    Com base nessas reflexes que gostaria de ver a crtica, renun-ciando, certo, s suas p rerrogativas mais caras, mas propondo-se, para tudo abarcar, um objetivo menos intil que o da reviso puramente mecnica das idias, limitar-se a incurses eruditas no que supe ser o mais in terdito de todos os domnios, ou seja, nas

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  • exterioridades da obra, ali onde a pessoa do autor, exposta aos fatos banais da vida cotidiana, se expressa com toda a indepen-dncia, no raro de maneira muito particular. Faz lembrar uma histria: Victor Hugo, j no fim da vida, ao fazer com Juliette Drouet, pela milsima vez, o mesmo passeio, s interrompia sua meditao silenciosa quando passavam diante de uma proprie-dade cujo acesso se fazia por meio de duas portas, uma grande, outra pequena, quando ento, para indicar a porta grande a Juliette, dizia: "Porta dos cavaleiros, rnadame", e ouvi-la, a mostrar a pequena, responder: "Porta dos pedestres, monsieur"; depois, um pouco mais alm, diante de duas rvores que entrelaavam os ramos, tornar a dizer: "Filmon e Bucis", sabendo que Juliette no responderia, e a garantia gue nos do de que essa pungente cerimnia se repetiu cotidianamente, durante anos, como que o melhor estudo possvel da obra de Hugo iria nos dar a este ponto a inteligncia e a espantosa sensao do que ele era, do que ele ? Essas duas portas so como o espelho de sua fora e o de sua fragilidade, no se sabendo qual o de sua pequenez, qual o de sua grandeza. E de que adiantaria todo o gnio do mundo se no admitisse em si a adorvel correo do amor, que se sustm por inteiro na rplica de Juliette? O comentarista mais sutil e mais entusiasta da obra de Hugo jamais me proporcionar algo que valha esse supremo sentido de proporo. Como ficaria contente de possuir sobre os grandes homens que admiro um documento pessoal desse valor. falta deles, poderia me conten-tar com documentos de menor valor e pouco capazes de bastar por si mesmos do ponto de vista afetivo. N o sou dos que cul-tuam Flaubert e, no entanto, se me garantem que, segundo sua prpria afirmativa, ele quis, com Salammb, apenas "dar a impres-so do amarelo" e, com Madame Bovary, apenas "fazer algo que

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  • tivesse a cor do mofo daqueles cantos onde nascem tatuzinhos", pouco se importando com o resto, preocupaes assim, acima de tudo extraliterrias, me predispem a seu favor. A luz magrfica dos quadros de Courbet para mim a da Place Vendme, no momento em que a coluna caiu. Hoje, se um homem como De Chirico consentisse em revelar integralmente e, desnecess-rio dizer, sem arte, penetrando nos mais nfimos, bem como nos mais inquietantes detalhes, tudo o que o fez agir no passado, que grande passo no teria feito avanar a exegese! Sem ele, ou melhor, a despeito dele, apenas por meio de suas telas daquela poca e de um caderno manuscrito que tenho em mos, s conseguiramos reconstituir de maneira imperfeita o que foi seu universo at 1917. bem lamentvel no se poder preencher essa lacuna, no se poder abarcar plenamente tudo o que, em tal universo, vai de encontro ordem prevista, elabora uma nova escala de valores. Chirico reconheceu ento que s podia pintar surpreso (surpreso antes) por certas disposies de objetos, e que todo o enigma da revelao para ele se resumia nesta palavra: surpreso. verdade que a obra da decorrente permanecia "ligada por estreitos laos ao que provocara sua criao", mas sem se parecer com o motivo a no ser "da estranha forma como dois irmos se parecem, ou antes como a imagem em sonho de determinada pessoa compa-rada pessoa real. , e ao mesmo tempo no , a mesma pessoa; uma ligeira e misteriosa transfigurao se observa nas feies". Aqum dessas disposies de objetos que apresentaram para ele uma flagrncia particular, ainda seria o caso de deter a ateno crtica sobre esses prprios objetos e procurar o motivo por que, em to pequeno nmero, eles que foram chamados a se dis-por dessa forma. Nada poderemos dizer de Chirico se no nos dermos conta de suas opinies mais subjetivas sobre a alcachofra,

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  • a luva, o bolo seco ou o carretel. Pena no podermos, em seme-lhante matria, contar com sua colaborao!*

    No que me diz respeito, mais importantes ainda que o encon-tro de certas disposies de coisas para o esprito, me parecem as disposies de um esprito em relao a certas coisas, duas esp-cies de disposies que regem por si mesmas todas as formas da sensibilidade. Assim que vejo em Huysmans, no Huysmans de En rade e de L-bas, maneiras to iguais s minhas de apreciar tudo quanto se nos apresenta, de escolher com a parcialidade do desespero entre o que , g_ue, apesar do meu grande desgosto de no t-lo conhecido seno por sua obra, ele no deixa de ser talvez o menos estranho de meus arrligos. No foi ele quem, mais que qualquer outro, fez de tudo para levar ao extremo essa discrimjnao necessria, vital, entre o anel, de aparncia frgil, que pode vir ao nosso auxlio, e o aparelho vertiginoso das for-as que conspiram para nos fazer ir a pique? Foi ele quem me comunicou esse tdio vibrante que lhe causavam quase todos os espetculos; ningum antes dele soube, se no me fazer assistir a esse grande despertar do maquinal no terreno devastado das possibilidades conscientes, pelo menos me convencer humana-mente de sua absoluta fatalidade, e da inutilidade de procurar nele escapatrias para mim mesmo. Que satisfao vejo nele em me informar, sem se preocupar em produzir efeito, sobre tudo o que o afeta , de que se ocupa, em suas horas de maior angstia, no exterior de sua angstia, de no, como a maioria dos poe-tas, "cantar" absurdamente essa angstia, mas de enumerar com pacincia, na sombra, as mnimas razes completamente involun-

    * Pouco tempo depois, C hirico iria, em grande parte, atender a esse desejo (cf. Hebdomeros, d. du Carrefour, Paris, 1929). [N. A., r962.J

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  • trias que ainda encontra para ser, e ser, no sabe bem por qu, aquele que fala! Ele tambm objeto de uma dessas solicitaes perptuas que parecem vir de fora e nos imobilizam por alguns instantes diante de um desses arranjos fortuitos, de carter mais ou menos novo, cujo segredo parece que encontraramos em ns mesmos, se nos indagssemos devidamente. Como o distingo, necessrio dizer, de todos os empricos do romance, que pre-tendem pr em cena personagens distintos deles mesmos e os exibem fisicamente, moralmente, sua maneira, por necessidade de alguma causa que se prefere ignorar. De um personagem real, do qual acham ter algum conhecimento, fazem dois persona-gens de sua histria; de dois, sem maiores dificuldades, fazem um. E as pessoas se do o trabalho de discutir! Algum sugeriu a um autor conhecido meu, a propsito de uma obra sua que ia ser lanada e cuja herona podia ser perfeitamente reconhecida, que pelo menos mudasse a cor dos cabelos dela. Loura, ela teria a possibilidade, ao que parece, de no trair uma mulher morena. Pois bem, no acho isso p ueril, acho escandaloso. Persisto em reclamar os nomes, a s me interessar pelos livros escancarados, e dos quais no temos que procurar a chave. Por sorte os dias da literatura psicolgica com fa bulao romanesca esto contados. Estou certo de que o golpe que a derrubou de vez ter sido dado por Huysmans. De minha parte, continuarei a habitar minha casa de vidro, de onde se pode ver a todo instante quem vem me visitar, onde tudo o que est pendurado no teto ou nas paredes se sustm como que por encanto, onde repouso noite, sobre um leito de vidro com lenis de vidro, onde quem eu sou me aparecer cedo ou tarde, gravado diamante. verdade, nada me subjuga mais do que o desaparecimento total de Lautra-mont oculto por trs de sua obra, e tenho sempre presente no

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  • esprito seu inexorvel "Tiques, tiques e tiques" . Mas existe para mim algo de sobrenatural nas circunstncias de um apagamento humano to completo. Afirm- lo seria demasiado vo, e eu me persuado faciln1ente de que essa ambio, por parte daqueles que se entrincheiram nela, s t stemunha algo pouco honroso.

    Tenho a inteno de narrar, margem do relato que vou empreen-der, apenas os episdios marcantes de minha vida tal como posso con-ceb-la fora de seu plano org~nico, ou seja, na prpria medida em que ela est confiada aos acasos, dos menores aos maiores, e, refogando a idia comum que dele fao, introduzir-me num mundo como que proibido, que das aproximaes repentinas, das petrifi-cantes coincidncias, dos reflexos que vencem qualquer outro impulso mental, de acordes batidos como no piano, de clares que fariam ver, mas ver de fato, se no fo sem ainda mais rpidos qu e os demais. Trata-se de fatos com um valor intrnseco pouco verificvel, sem dvida, mas que, por seu carter absolutamente inesperado, violentamente incidental, e pelo gnero de associaes de idias suspeitas que despertam, so um modo de nos fazer pas-sar das filandras teia de aranha, ou seja, ao que seria a coisa mais cintilante e graciosa do mundo, no estivesse a aranha no canto, ou ali por perto; trata-se de fa tos que, ainda que sejam simples-mente constatados, a cada vez apresentam todas as aparncias de um sinal, sem que se possa dizer ao certo de que sinal; que fazem com que, em plena solido, eu descubra cumplicidades inverossmeis, que me convencem de minha iluso toda vez que acredito estar sozinho ao leme do navio. Seria preciso hierarquizar esses fatos, do mais simples ao mais complexo, a partir do movimento especial, indefinvel, que a viso de objetos muito raros nos provoca, ou

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  • nossa chegada em tal ou qual lugar, acompanhados da sensao muito ntida de que para ns alguma coisa de grave, de essencial, depende disso, at a ausncia completa de paz, provocada por cer-tos encadeamentos, certos concursos de circunstncias que ultra-passam em muito o nosso entendimento, e que s admitem nosso retorno a uma atividade racional quando, na maioria dos casos, apelamos para o instinto de conservao. Ser ia possvel estabelecer uma infinidade de intermedirios entre esses fatos-escorreges e esses fatos-precipcios. Entre esses fatos, dos quais no chego a ser, para mim mesmo, mais do que a testemunha assombrada, e outros, dos quais me orgulho discernir as circunstncias e, de certo modo, presumir as conseqncias, h talvez a mesma distncia que vai de uma dessas afirmaes, ou de um desses conjuntos de afirmaes que constituem a frase ou o texto "automtico", afirmao ou ao conjunto de afirmaes que, para o mesmo observador, cons-tituem a frase ou o texto cujos termos foram todos maduramente refletidos e pesados por ele. Sua responsabilidade no lhe parece, por assim dizer, comprometida no primeiro caso; mas compro-metida no segundo. Ele est, em compensao, infinitamente mais surpreso, mais fascinado pelo que acontece l do que pelo que acontece aqui. Sente-se mais altivo, o que no deixa de ser singular, acha-se mais livre. O mesmo acontece com certas sensaes eleti-vas de que falei, e cuja parte de incomunicabilidade ela prpria uma fonte de prazeres inigualveis.

    No se espere de mim a prestao de contas do que me foi dado experimentar nesse domnio.Vou limitar-me aqui a lembrar, sem esforos, de fatos que, independentemente de qualquer iniciativa de minha parte, j ocorreram comigo, e que me cl.o, por vias

  • insuspeitveis, a medida da graa e da desgraa particulares de que sou objeto; deles falarei sem ordem preestabelecida e conforme o capricho da hora que trouxer tona o que vier tona.

    Vou tomar como ponto de partida o Htel des Grands Hom-mes, na Place du Panthon, onde morava por volta de 1918, e como etapa o Manoir d'Ango, em Varengeville-sur-Mer, onde me encontro, absolutamente o mesmo, em agosto de 1927, o Manoir d'Ango, onde puseram minha disposio, para no ser incomodado, uma cabana coberta pelo mato, na orla do bosque, de onde eu poderia, enquanto me ocupasse, minha vontade, de meus afazeres, tambm caar o bufo-real. (Acaso poderia ser de outra forma,j que eu queria escrever Nadja?) Pouco importa que, aqui ou ali, um erro ou omisso mnima, e at mesmo alguma confuso ou um esquecimento sincero lancem sombra sobre o que estou contando, sobre o que, no conjunto, no esta-ria sujeito a confirmao. Gostaria, por fim, que no se levassem tais acidentes do pensamento sua injusta proporo de notcias de jornal, e que se digo, por exemplo, que em Paris a esttua de tienne Dolet, na Place Maubert, sempre me atraiu e ao mesmo tempo me causou o mais insuportvel mal-estar, no se v dedu-zir da imediatamente que eu deva, em tudo e por tudo, ser jul-gado pela psicanlise, mtodo que aprecio e que penso no visar a nada menos que a expulsar o homem de si mesmo, e da qual espero mais do que as meras funes de oficial de justia. Alm disso, estou certo de que ela no est em condies de enfrentar tais fenmenos, assim como, a despeito de seus grandes mritos, j lhe fazer honras demais admitir que esgote o problema do sonho ou que no ocasione simplesmente novas falhas de atos a

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  • Vou tomar como ponto de partida o Htel des Grands Hommes ... (p. 29)

  • O Manoir d'Ango, o pombal ... (p. 29)

  • Se digo, por exemplo, que em Paris a esttua de tienne Dolet, na Place Ma11bert, sempre me atraiu e ao mesmo tempo me causou

    um mal-estar insuport11el .. . (p. 29)

  • partir de sua explicao dos atos falhos. Chego a isso por minha prpria experincia, ao que para mim, sobre mim mesmo, um assunto apenas intermitente, de meditaes e devaneios.

    No dia da primeira representao de Couleur du ternps, de Apolli-naire, no Conservatrio Rene Maubel, enquanto eu conversava no balco com Picasso durante o intervalo, um jovem se aproxima de mim, balbucia algumas palavras e por fim me d a entender que me havia tomado por um de seus amigos, dado como morto durante a guerra. A conversa terminou a. Pouco tempo depois, por intermdio de Jean Paulhan, passei a me corresponder com Paul luard, sem que um tivesse a menor idia da aparncia fisica do outro. Por ocasio de uma licena, luard veio me visitar: tinha sido ele quem se aproximara de mim na Couleur du temps.

    As palavras BOIS-CHARBONs,* que se destacam na ltima pgina de Champs magnhiques, me permitiram, num domingo em que passeava com Soupault, exercer um inusitado talento para a prospeco de todas as lojas por elas designadas. Creio que podia dizer, em qualquer rua por onde fssemos, a que altura, direita ou esquerda, essas lojas surgiriam. E isso sempre se confirmava. Eu era avisado, guiado, no pela imagem alucinatria das palavras em questo, mas sim pela imagem das pequenas achas de madeira serrada que aparecem tosca-mente pintadas em formato de pilha, dos dois lados da porta, de cor uniforme, com uma parte mais escura. Em casa, essa imagem conti-nuou a me perseguir. A msica de um carrossel de cavalinhos, que

    * "Lenha- carvo." [N. T.]

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  • Paul luard ... (p. 33)

  • As palavras BOIS-CHARBONS ... (p. 33)

  • vinha do Carrefour Mdicis, tinha para mim o efeito de ainda ser aquela acha. E, de minha janela, tambm o crnio de Jean-Jacques Rousseau, cuja esttua me aparecia de costas e a dois ou trs andares abaixo. Recuei precipitadamente, cheio de medo.

    Ainda na Place du Panthon, numa noite bem tarde. Batem porta. Entra uma mulher cuja idade aproximada e fisionomia agora me escapam. De luto, acho eu. Est procura de um nmero da revista Littrature, que havia prometido levar para algum em Nantes, no dia seguinte. Esse nmero ainda no tinha sado, mas era dificil convenc-la disso. Logo fica evidente que o objetivo da sua visita "me recomendar" a pessoa que a enviou, e que em breve vir a Paris, fixar residncia. (Guardei a expresso: "que gostaria de se lanar na literatura", que, desde ento, sabendo a quem se aplicava, achei to curiosa, to comovente.) Mas. quem me encarregava

    assim, de maneiTa mais do que quimrica, de acolher, de aconse-lhar? Alguns dias depois, era Benjamin Pret que chegava.

    Nantes: talvez seja, com Paris, a nica cidade da Frana onde tenho a impresso de que me pode acontecer alguma coisa que valha a pena, onde certos olhares queimam sozinhos, pelo excesso de fogos (voltei a constatar isso no ano passado, quando atraves-sava Nantes de automvel e vi essa mulher, uma operria, creio,. acompanhando um homem, e que ergueu os olhos; tive de parar), onde para mim a cadncia da vida no a mesma que em outros lugares, onde um esprito de aventura alm de todas as aventuras ainda habita certos seres, Nantes, de onde ainda podem vir ami-gos, Nantes, onde adoro um parque: o Pare de Proc .

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  • Alguns dias depois, era Benjamin Pret que chegava ... (p. 36)

  • Revejo agora Robert Desnos ... (p. 39)

  • Revejo agora Robert Desnos na poca chamada, por ns que a conhecemos, poca dos sonos. Ele "dorme", mas escreve, fala. noite, na minha casa, no ateli, em cima do Cabaret du Ciel. L fora, algum berra: "Vamos entrar, vamos entrar no Chat Noir!". E Desnos continua a ver o que no vejo, o que s vejo medida que ele me mostra. Para isso, costuma adquirir a personalidade do mais raro, mais infixvel, mais escorrega-dio homem vivo que existe, o autor de Cirnetiere des unifor-mes et livres, Marcel Duchamp, que ele nunca viu na realidade. O que de Duchamp passava por ser o mais inimitvel como alguns misteriosos jogos de palavras (Rrose Slavy), encon-trado em Desnos em toda a sua pureza, e adquire subitamente uma amplitude extraordinria. Quem no viu seu lpis pr no papel, sem a menor hesitao e com uma rapidez prodi-giosa, essas espantosas equaes poticas, sem estar certo como eu de que elas no haviam sido preparadas com antecedncia, mesmo se for capaz de apreciar sua perfeio tcnica e avaliar seu maravilhoso tremular, no pode fazer uma idia de tudo o que isso representava ento, do valor absoluto de orculo que isso adquiria. Seria preciso que algum que assistiu a uma dessas inmeras sesses se desse ao trabalho de descrev-las com preciso, situ-las em sua verdadeira atmosfera. Mas ainda no chegou a hora em que se poder evoc-las sem paixo. De tantos encontros que Desnos, de olhos fechados, me marcou para mais tarde, com ele ou com outra pessoa, no h nenhum a que eu tivesse coragem de faltar, nem um s, nos lugares e horas mais inverossmeis, e em que eu no estivesse certo de encontrar quem ele me disse.

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  • Pode-se, esperando, ter a certeza de encontrar comigo em Paris, de no passar mais do que dois ou trs dias sem que me veja indo e vindo, l pelo fim da tarde, pelo Boulevard Bonne-N ouvelle, entre a grfica do Matin e o Bou~evard de Stras-bourg. No sei por que para l, de fato, que meus passos me levam, que vou para l quase sempre sem objetivo deter-minado, sem nada de decisivo a no ser esse dado obscuro de saber que ali vai acontecer isto (?). Quase no vejo, nesse per-curso rpido, o que poderia, mesmo sem eu saber, constituir para mim um plo de atrao, nem no espao, nem no tempo. No: nem mesmo a belssima e inutilssima Porte Saint-Denis. Nem mesmo a lembrana do oitavo e ltimo episdio de um filme que vi passar ali, bem perto, no qual um chins, que havia encontrado no sei que meio de se multiplicar, invadia Nova York sozinho, com alguns milhes de exemplares de si mesmo. Entrava, seguido por si mesmo, e por si mesmo, e por si m esmo, e por si m esmo, na sala de despachos do presidente Wilson, que tirava o pincen. Esse filme, de longe o que mais me impressionou, chan1ava-se: O abrao do polvo.

    Com o sistema que consiste em j amais consultar o programa antes de entrar num cinema - o que, afinal de contas, no adian-taria muito, j que no consigo guardar o nome de mais que cinco ou seis intrpretes - corro evidentemente mais risco de me dar mal do que os outros, embora deva confessar aqui o meu fraco pelos filmes franceses completamente idiotas. Compreendo, de resto, bastante mal, sigo vagamente demais. s vezes isso acaba por me aborrecer, ento pergunto aos vizinhos de poltrona. No impede que c~rtas salas de cinema do xeme Arrondissement me

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  • ' '

    No: nem mesmo a belissma e inutlssma Porte Saint-Denis .. . (p. 40)

  • C1 G 1 FRAN-AJSE DE ClNt.MATOGR.APHlt.

    L' treinte de la Pieuvre Grand Serial my11tn itpow"AMblc qu< ,cllc Jc Ruth itl Jc (111t1 ott;unf, '"" .. J.;.tn. d1iu lc wagon d

  • paream locais particularmente indicados para que eu crie apego por elas, como no tempo em que, com Jacques Vach, na platia da antiga sala das Folies-Dramatiques, nos instalvamos para jan-tar, abramos pacotes, cortvamos o po, tirvamos a rolha das garrafas e falvamos alto, como mesa, para grande estupefao dos espectadores, que nada ousavam dizer.

    O Thtre Moderne, situado ao fundo da passagem da Opra, hoje destruda, alm de as peas ali representadas terem ainda menos importncia, no poderia corresponder melhor ao meu ideal, nesse sentido.A representao canhestra dos atores, levando em conta muito relativa seus papis, sem se preocuparem muito uns com os outros, e ocupadssimos em se relacionar com a platia, composta por umas quinze pessoas se tanto, nunca pas-sou para mim de um pano de fundo. Mas o que encontrarei de melhor para essa imagem, a mais fugaz e a mais alerta de mim mesmo, para essa imagem com que agora me entretenho, que valha o aconchego daquela sala de grandes espelhos gastos, deco-rados embaixo por cisnes cinzentos deslizando por entre cani-os amarelos, de camarotes gradeados, totalmente privados de ar, de luz, to confiveis, daquela sala onde, durante o espetculo, os ratinhos farejavam, roando pelos nossos ps, onde se podia escolher, ao chegar, entre uma poltrona furada ou uma poltrona cambaia! E entre o primeiro e o segundo ato, pois seria compla-cncia demais esperar pelo terceiro, que jamais irei ver com estes olhos que viram o bar do primeiro andar, igualmente sombrio, com seus impenetrveis caramanches, "um salo no fundo de um lago", no mesmo? Por ir l com freqncia, acabei, ao preo de tantos horrores, os piores que se imaginem, guardando

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  • uma quadrinha perfeitamente pura. Era uma mulher, ainda por cima bonita, que cantava:

    Meu corao de contente Abre as portas ao porvir. No h nada que eu lamente, Belo esposo, podes vir*

    Sempre desejei incrivelmente encontrar noite, num bosque, uma mulher bela e nua, ou antes, j que um desejo assim, uma vez expresso, perde o sentido, lamento incrivelmente no t-la encon-trado. Supor um encontro desses no to delirante, afinal de con-tas: seria possvel. Parece-me que tudo iria deter-se de repente, ah!, e eu no estaria escrevendo o que escrevo. Adoro essa situao em que eu provavelme~te teria, mais que em todas, faltado com a presena de esprito. No teria nem mesmo, creio, a idia de fugir. (Os que riem desta ltima frase so porcos.) Num fim de tarde, no ano passado, nas galerias ao lado do Electric-Palace, uma mulher nua, que s deve ter precisado se desfazer de um casaco, andava de um .extremo ao outro, muito branca.J era perturbador. Longe, no entanto, de ser muito fora do comum, pois aquele canto do Elec-tric era um lugar de depravao sem maior interesse.

    Mas, para mim, descer verdadeiramente ao basjonds do esprito, l onde j no importa que a noite caia e se levante (ento o dia?), voltar Rue Fontaine, ao Thtre des Deux-Masques, que pouco depois se transformou num cabar. Enfrentando meu pouco gosto

    * Variante: Um novo amor, j podes vir. [N. A.]

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  • Sobre o Thtre Moderne ... (p. 43)

  • pelo palco, fui l no passado, na convico de que a pea que estava em cartaz no poderia ser m, tanto a crtica se mostrava encar-niada contra ela, a ponto de pedir sua interdio. Entre as piores do gnero Grand-Guignol, que constituam o grosso do repertrio da sala, esta pareceria gravemente deslocada: o que, convenhamos, recomenda. No me demorarei mais em dizer a admirao sem limites que experimentei por Les Dtraques,* que e ser por muito tempo a nica obra dramtica (quer dizer: feita unicamente para o palco) de que eu queira me lembrar.A pea, insisto, e este no um de seus aspectos mais estranhos, perde quase tudo se no for vista, ou pelo menos se cada interveno dos personagens no for em mmica. Feitas estas ressalvas, no me parece vo expor o seu enredo.

    A ao se desenvolve num pensionato de meninas: o pano sobe mostrando o gabinete da diretora. Essa pessoa, loura, de uns quarenta anos, ar imponente, est s e demonstra grande nervosismo. vspera de frias e ela espera com ansiedade a chegada de algum: "E a Solange j devia ter chegado ... ". Cami-nha febrilmente de um lado para o outro da sala, mexendo nos mveis, nos papis. De vez em quando vai at a janela que d para o jardim, onde comea o recreio. Ouve-se a sineta, depois, aqui e ali, gritos alegres das meninas que logo se per-dem no vozerio distante. Um jardineiro abobalhado, que sacode a cabea e se expressa de maneira intolervel, com imensos retardos de compreenso e vcios de pronncia, o jardineiro do pensionato, permanece agora junto porta, balbuciando pala-vras vagas e sem parecer disposto a ir embora. Est chegando da estao e no encontrou a senhorita Solange descida do trem:

    "A dona So-lange ... ".Arrasta as palavras como se fossem chinelos.

    * "As desequilibradas." [N. T.]

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  • Tambm ficamos impacientes. Nesse meio-tempo, uma senhora idosa, que acaba de se fazer anunciar, trazida cena. Havia recebido da neta uma carta bastante confusa, na qual lhe pedia que fosse busc-la o mais rpido possvel. A senhora deixa-se convencer facilmente: nessa poca do ano as meninas esto sempre meio nervosas. Alm do mais, basta chamar a menina e lhe perguntar se tem alguma queixa de algum ou de alguma coisa. Ei-la que entra. Beija a av. Logo se percebe que seus olhos no conseguiro mais se afastar dos olhos de quem a interroga. A menina se limita a alguns gestos de negao. Por que no haveria de esperar a distribuio de prmios, que se realizar dentro de alguns dias? Sente-se que ela no se atreve a falar. Concorda em ficar.A menina se retira, submissa.Vai em direo porta. No umbral, um grande conflito interior parece apossar-se dela. Sai correndo. A av agradece e se despede. De novo, a diretora fica s. A espera absurda, terrvel, onde no se sabe que objeto mudar de lugar, que gesto repetir, o que fazer para que acontea o que se espera ... Por fim, o barulho de um carro ... A face que observvamos se ilumina. Diante da eternidade. Uma mulher adorvel entra sem bater. ela.Afasta levemente os braos que a apertam. Morena, cabelos castanhos, j nem sei.Jovem. Olhos esplndidos, onde h langor, desespero, sutileza, crueldade. Esbelta, trajada sobriamente, um vestido de cor escura, meias de seda preta. E esse toque de falta de classe que tanto apreciamos. No se diz o que ela foi fazer l; ela se desculpa por estar atrasada. Sua grande frieza aparente contrasta o mximo possvel com a recepo que lhe foi dada. Fala, com uma indiferena que tem certa afetao, do que foi sua vida, coisa pouca, desde o ano anterior, quando, nessa mesma poca, l esteve. No h indicaes claras quanto escola onde ensina.

  • Mas (aqui a conversa vai adquirir um tom irifinitamente mais ntimo) fala-se agora das boas relaes que Solange conseguiu estabele-cer com certas alunas mais atraentes que as outras, mais bonitas, melhor dotadas. Ela devaneia. Suas palavras so ouvidas muito prximo dos lbios. De repente, ela se interrompe, mal a vemos entreabrir a bolsa e, descobrindo uma coxa maravilhosa, ali, um pouco acima da cinta-liga escura ... "Que isso! Voc no se drogava! - No, mas agora, que remdio." A resposta dada num tom de lassido lancinante. Como que se reanimando, Solange indaga, por sua vez: "E voc ... como vai? Conte-me". Tambm aqui apareceram novatas muito bonitas. Principal-mente uma. To meiga. "Veja s, querida." As duas se debruam demoradamente janela. Silncio. UMA BOLA CAI DENTRO DA SALA. Silncio. "Foi ela! E vem c buscar. - Voc acha?" Ambas de p, encostadas na parede. Solange fecha os olhos, relaxa, sus-pira, fica imvel. Batem na porta. A menina de h pouco entra sem dizer nada, dirige- se lentamente para a bola, olhos nos olhos da diretora; caminha na ponta dos ps. Cai o pano. - No ato seguinte, noite, numa ante-sala. Passaram-se algumas horas. Um. mdico, com sua maleta. Foi constatado o desaparecimento de uma das meninas. Tomara que no lhe tenha acontecido alguma infelicidade! Todo mundo se agita, a casa e o jardim so vasculhados de cima a baixo. A diretora, mais calma ainda que antes. "Uma menina to meiga, meio triste talvez. Meu Deus, e a av dela, que h poucas horas estava aqui! Acabo de mandar cham-la." O mdico, desconfiado: em dois anos con-secutivos, um acidente no momento da partida das alunas. No ano passado, a descoberta de um cadver no poo. Este ano ... O jardineiro, vaticinando e balindo. Tinha ido procurar no poo. "Engraado; por ser engraado, que engraado." O mdico

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  • A menina de h pouco entra sem d1:zer nada ... (p. 49)

  • interroga o jardineiro sempre em vo: "Engraado". Percorreu todo o jardim com uma lanterna. Tambm impossvel que a menina tenha sado. As portas esto bem fechadas. Os muros. E nada, na casa inteira. O imbecil continua a argumentar con-sigo mesmo, ruminando miseravelmente as mesmas coisas de maneira cada vez menos inteligvel. O mdico, por assim dizer, j nem ouve. "Engraado. Ano passado. Num vi nada. Amanh vou acender uma vela ... Onde que essa menina se infi? , seu doutor. Pois , seu doutor. Engraado mesmo. Bem agora, que a dona Solange acabou ontem di chegar que ... - O qu, voc diz, a senhorita Solange, aqui? Tem certeza? (Ah!, ento a coincidncia ainda maior do que eu pensava em relao ao ano passado.) Deixa comigo." A emboscada do mdico atrs de uma pilastra. Ainda no amanheceu. Passagem de Solange, que atravessa o palco. No parece participar da excitao geral, segue em frente como um autmato. - Pouco mais tarde. Todas as buscas foram em vo. Novamente no gabinete da diretora.A av da menina acaba de sentir-se mal no parlatrio. preciso cuidar dela com rapidez. No resta dvida que as duas mulhe-res parecem ter a conscincia tranqila. Olhamos para o mdico. O delegado. Os empregados. Solange.A diretora ... Esta, procura de um cordial, vai na direo do armrio de curativos, abre ... O corpo ensangentado da menina aparece, de cabea para baixo, e despenca no cho. O grito, o grito inesquecvel. (Na represen-tao, acharam por bem advertir o pblico de que a artista que interpretava o papel da criana tinha dezessete anos completos. O essencial que parecia ter onze.) No sei se o grito de que falo punha exatamente fim pea, mas espero que os autores (foi escrita em colaborao pelo ator cmico Palau e, acho eu, por um cirurgio de nome Thiry, mas tambm, sem dvida, por

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  • algum demnio)* no tenham querido que Solange passasse por mais provaes e que essa personagem, tentadora demais para ser verdadeira, devesse sofrer uma aparncia de castigo que ela, alis, nega com todo o seu esplendor. Acrescentarei apenas que o papel era desempenhado pela mais admirvel e sem dvida a nica atriz daquele tempo, a quem vi representar no Deux-Masques em vrias outras peas, em que no estava menos bela, mas de quem, talvez para minha grande vergonha,** no entanto, nunca mais ou vi falar: Blanche Derval.

    * A verdadeira identidade dos autores s foi estabelecida trinta anos depois. Foi somente em r956 que a revista Le Surralsme, Mme teve condies de publicar o texto integral de Dtraques, com posfcio de P.-L. Palau 'esclarecendo a gnese da pea: "A idia inicial foi inspirada por incidentes bastantes equvocos num pensio-nato para meninas num subrbio parisiense. Considerando todavia o teatro para o qual se destinava - o Deux-Masgues - onde se cultivava um gnero aparentado ao Grand-Guignol, tive necessidade de elaborar o aspecto dramtico permane-cendo na mais absoluta verdade cienfica: o aspecto escabroso a ser abordado me obrigava a isso. Tratava-se de um caso de loucura circular e peridica, mas para lev-lo a bom termo eu precisava de luzes de que no dispunha. Foi ento que um amigo, o professor Paul Thiry, cirurgio dos grandes hospitais, me ps em conta-to com o eminente Joseph Babinski, que mostrou satisfao em iluminar o meu caminho, . que me permitiu tratar sem erros a parte por assim dizer cientfica do drama". Foi grande a minha surpresa ao saber que o dr. Babinski tomara parte na elaborao de Dtraques. Guardo do ilustre neurologista uma bela recordao, por t-lo observado, na qualidade de estagirio residente, por um bom tempo, na sua equipe da Piti. Sempre me senti honrado com a simpatia que me demonstrava

    - exagerada a ponto de me predizer um grande futuro no campo da medicina! - e, minha maneira, creio ter tirado partido de seus ensinamentos, aos quais rende homenagem o final do primeiro Manifesto do surrealismo. (N. A., r962] ** O que eu quis dizer com isso? Que deveria ter me aproximado dela, a qual-quer preo, para tentar descobrir a mulher real que ela era. Para tanto, teria sido necessrio superar uma certa preveno que eu tinha contra as atrizes, em de-corrncia das lembranas de Vigny, de Nerval. Penitencio-me de haver falhado diante da "atrao passional" . (N. A., 1962]

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  • B/anche Derval ... (p. 52)

  • (Terminando ontem de contar o que precede, deixei-me entregar novamente s conjecturas que costumavam me ocorrer a cada vez que revi essa pea, seja em duas ou trs sesses, seja naquelas em que a representei para mim mesmo. A falta de indicaes sufi-cientes sobre o que acontece depois da cada da bola na sala, sobre Solange e sua parceira poderem perfeitamente ser a presa e se trans-formarem em soberbas predadoras, continua at hoje, por exceln-cia, o que mais me confunde. De manh, ao despertar, tive mais tra-balho que de costume para me desvencilhar de um sonho bastante infame, que no vejo a menor necessidade de transcrever aqui, pois decorre em grande parte de conversas que tive ontem, sobre um assunto inteiramente diverso. Esse sonho me pareceu interessante na medida em que era sintomtico da repercusso que tais lembranas, por menos que a elas nos entreguemos com violncia, podem ter sobre o curso do pensamento. notvel, desde logo, observar que o sonho de que se trata no expunha seno o lado penoso, repug-nante, ou mesmo atroz, das consideraes a que eu me entregara, destruindo cuidadosamente todo o fabuloso valor que essas con-sideraes representam para mim, tal como um extrato de mbar ou de rosa que atravessasse os sculos. Por outro lado, preciso admitir que se eu me desperto, vendo com exfrema lucidez o que aconteceu por ltimo: Um inseto verde-musgo, de uns cinqenta centmetros, que havia tomado o lugar de um velho, e avana em direo a uma espcie de aparelho automtico; pe uma moeda na ranhura, uma em vez de duas, o que me parece constituir uma fraude particularmente repreensvel, a tal ponto que, como que por descuido, lhe ter dado uma bengalada e t-lo feito cair na minha cabea - tive tempo de perceber as bolas de seus olhos brilharem na aba de meu chapu, depois me engasguei, e custaram a retirar da minha garganta duas de suas patas aveludadas, enquanto eu sen-

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  • tia uma repugnncia inexprinvel -, claro que, superficialmente, isto guarda uma relao sobretudo com o fato de existir, no forro do estdio onde fiquei nesses ltimos dias, um ninho, em torno do qual se agita um passarinho meio assustado com a minha presena, a cada vez que traz l dos campos, piando, alguma coisa como um gafanhoto verde, mas indiscutvel que na transposio, na intensa fixao, na passagem, de outra forma inexplicvel, de uma imagem desse tipo do plano da observao sem interesse para o plano emo-tivo, concorrem em primeiro lugar a evocao de certos episdios de Dtraques e a volta quelas conjecturas de que havia falado. Por-que a produo de imagens de sonho depende sempre pelo menos desse duplo jogo de espelhos, nela encontramos a indicao do papel muito especial, sem dvida eminentemente revelador, no mais alto grau "supradeterrninante", no sentido freudiano, que certas impres-ses muito fortes so chamadas a desempenhar, nada contaminveis pela moralidade, verdadeiramente percebidas "acima do bem e do mal" no sonho e, em seguida, no que lhes opomos muito sumaria-mente sob o nome de realidade.)

    O poder de encantao* que Rimbaud exercia sobre mim por volta de 1915, e que, desde logo, se substanciou em poemas tais

    * Nada menos que isso: a palavra encantao deve ser tomada ao p da letra. Para mim o mundo exterior se compunha a todo instante com seu mundo, ou, melhor ainda, que aplicado sobre ele formava uma rede: em meu percurso co-tidiano pelos arredores de uma cidade que era Nantes, se instauravam com o dele, em outro lugar, fulgurantes correspondncias. Um ngulo das residncias, o recuo de seus jardins, tudo isso eu "reconhecia" como que atravs dos olhos dele, criaturas aparentemente bem vivas um segundo antes de se desfazerem de repente em seu rastro etc. [N. A., 1962]

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  • como "Devoo" foi, sem dvida, naquela poca, o que me valeu, um dia em que passeava sozinho, sob uma forte pancada de chuva, ao encontrar uma moa, a que primeiro me dirigiu a palavra; sem prembulos, ao darmos alguns passos, se ofereceu a recitar-me um de seus poemas preferidos: "O adormecido do vale". Foi to inesperado, to extemporneo. Agora, bem recentemente, como no domingo, indo com um amigo ao mercado das pulgas de Saint-Ouen (sempre vou l procura desses objetos que no se encontram em nenhuma outra parte, fora de moda, fragmentados, inteis, quase incompreensveis, perversos, enfim, no sentido que entendo e amo, como, por exemplo, esta espcie de semicilindro branco, irregular, envernizado, apresentando relevos e depresses sem significado para mim, com estrias horizontais e verticais ver-melhas e verdes, preciosamente acomodado num estojo, com uma divisa em lngua italiana, que levei para casa e depois de examinar bem acabei por admitir que representava apenas a estatstica, figu-rada em trs dimenses, da populao de uma cidade do ano tal ao ano tal, o que nem por isso o torna mais legvel), nossa aten-o se voltou simultaneamente para um exemplar bem recente das Obras completas de Rimbaud, perdido numa estreita vitrina de trapos, fotografias amareladas do sculo passado, livros sem valor e colheres de ferro. Mal decidido a folhe-lo, logo encontro duas folhas de papel intercaladas nele: uma cpia mquina de um poema em versos livres, outra de anotaes a lpis com reflexes sobre Nietzsche. Mas a pessoa que atende, bastante distrada, do meu lado, no me d tempo de saber mais a respeito. O livro no est venda, os documentos que abriga pertencem a ela. moa, ainda, e muito sorridente. Continua a falar animadamente com algum que deve ser um operrio seu conhecido, e que a escuta, ao que parece, com satisfao. nossa vez, comeamos

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  • Indo ao mercado das pulgas de Saint-Ouen ... (p. 56)

  • Perversos como essa espcie de cilindro branco, irregular ... (p. 56)

  • a conversar com ela. Muito culta, no tem a menor dificuldade em nos falar de suas preferncias literrias, que a inclinam para Shelley, Nietzsche e Rimbaud. Espontaneamente, fala-nos at dos surrealistas, e do Campons de Paris de Louis Aragon, que ela no conseguiu ler at o fim, tendo parado nas variaes sobre a palavra Pessimismo. Em tudo o que diz, transmite uma grande f revolucionria. De muito bom grado, ela me entrega o poema de sua autoria que eu havia entrevisto e acrescenta alguns outros, de no menor interesse. Ela se chama Fanny Beznos.*

    Recordo-me tambm da sugesto, feita um dia, por brincadeira, a uma senhora, em frente a mim, de ofertar Central Surrealista uma das surpreendentes luvas azul-celeste que usava nessa visita que ela fazia Central, do meu pnico quando a vi a ponto de concordar, das splicas que tive de lhe dirigir para que no fizesse nada daquilo. No sei o que poderia haver ento para mim de terrivelmente, de maravilhosamente decisivo nessa idia de ver a luva abandonando para sempre aquela mo. O fato s adquiriu suas maiores e verda-deiras propores, quer dizer, as propores que guardou, a partir do momento em que a dama planejou voltar para depositar sobre a mesa, no lugar onde tanto esperei que no deixasse a luva azul, outra luva, de bronze, que ela possua e que depois vi em sua casa, igualmente uma luva de mulher, de punho dobrado, e dedos nada

    * Ao passar os olhos aqui e ali em certas anotaes como esta, sinto antes de mais nada um pouco de decepo: o que eu poderia realmente esperar daquilo? que o surrealismo ainda estava se procurando, ainda estava bem longe de se estabelecer como uma concepo do mundo. Sem poder prejulgar o tempo que tinha sua frente, avanava tateando, e sem dvida saboreava com demasiada complacncia as primcias de seu esplendor. Sem fuso de sombra no h fuso de luz. [N. A., 1962)

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  • espessos, luva que nunca pude deixar de sopesar, sempre surpreen-dido com seu peso, e com o nico propsito, me parece, de medir a fora exata com que ela se apia sobre o que a outra no se apoiou.

    No faz muitos dias, Louis Aragon fez-me observar que o letreiro de um hotel de Pourville, com as palavras MAISON ROUGE em caracteres vermelhos, tinha as letras compostas de tal maneira e distribudas de tal forma que, numa certa obliqidade, da estrada, a palavra MAISON se apagava e lia-se POLICE no lugar de ROUGE.* Essa iluso de ptica no teria nenhuma importncia se, no mesmo dia, uma ou duas horas depois, a senhora que ficamos chamando de a dama da luva no me tivesse levado diante de uni quadro, cam-biante como eu jamais havia visto igual, pertencente moblia da casa que ela acabara de alugar. uma gravura antiga que, vista de frente, representa um tigre, mas que, com uma diviso perpendi-cular em relao superfcie, resultante da fragmentao de outro motivo, representa, ao darmos uns. poucos passos esquerda, um vaso, e poucos passos direita, um anjo. Para terminar, assinalo esses dois fatos porque para mim, nessas condies, sua aproxima-o era inevitvel, e porque me pareceu particularmente imposs-vel estabelecer uma correlao racional entre um e outro.

    * "Sob certa obliqidade": a proximidade inteiramente fortuita dessas duas palavras postas em causa dever esperar alguns anos para impor, durante certos

    "processos", a evidncia de sua coluso, dramtica no mais alto grau. O bicho que vai se mostrar de frente nas linhas seguintes , na verdade, aquele que a conveno pblica considera "sedento por sangue". - Que seja precisamente esse ndice que se aponta no letreiro de Pourville no deixa de ter, distncia, urna ironia bastante cruel. (N. A., 1962]

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  • Igualmente uma Luva e mulher. .. (p. 59)

  • Espero, de todo modo, que a apresentao de uma srie de observaes dessa ordem e da que se segue seja de natureza a precipitar alguns homens na rua, depois de t-los feito adquirir conscincia, se no do nada, pelo menos da grave insuficincia de qualquer clculo pretensamente rigoroso sobre si mesmos, de toda ao que exija uma aplicao permanente, e possa ter sido premeditada. De nenhum fato, por menor que seja, restar coisa alguma, se ele verdadeiramente imprevisto. E no me venham, depois disso, falar do trabalho, quer dizer, do valor moral do tra-balho. Sou forado a aceitar a idia do trabalho como necessi-dade material, e nesse aspecto sou o mais favorvel possvel sua melhor, sua mais justa repartio. Que ele me seja imposto pelas sinistras obrigaes da vida, v l, mas que me peam para acreditar nele, reverenciar o meu ou o dos outros, jamais. Prefiro, de novo, caminhar na noite a pensar que sou aquele que cami-nha no dia. De nada serve estarmos vivos durante o tempo em que trabalhamos. O acontecimento que cada um de ns est no direito de esperar que seja a revelao do sentido de sua prpria vida, acontecimento que eu talvez ainda no tenha encontrado, mas no cannho do qual me procuro, no vir ao preo do trabalho. Mas me antecipo, pois talvez seja aqui, acima de tudo, o que a seu tempo me fez entender e o que justifica, sem mais tardana, a entrada em cena de Nadja.

    Eis que afinal explode a torre do Manoir d'Ango, e toda uma neve de plumas, que cai de suas pombas, se derrete ao tocar o cho do grande ptio at recentemente calado com cacos de telhas e agora coberto de sangue de verdade!

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  • No dia 4 de outubro ltimo,* ao fim de uma dessas tardes intei-ramente desocupadas e sombrias, das que conheo o segredo de como passar, estava eu na Rue Lafayette: depois de deter-me por alguns minutos diante da vitrina da livraria do L' Humanit e de ter adquirido o ltimo livro de Trtski, continuei meu caminho sem rumo certo, seguindo em direo Opra. Os escritrios, as lojas iam se esvaziando, as portas corredias se fechavam, as pessoas na rua se despediam com apertos de mo, e ainda assim comeava a ter mais gente ali. Observava, sem querer, as expresses, as roupas, a maneira de andar. Ora, no seriam aqueles que estariam prontos para fazer a Revoluo. Eu tinha acabado de atravessar aquele cruzamento cujo nome esqueo ou ignoro, ali, em frente a uma igreja. De repente, ainda que estivesse a uns dez passos de mim, vindo no sentido oposto, vejo uma moa, pobremente vestida, que tambm me v, ou tinha me visto. Vai de cabea erguida, ao contrrio de todos os passantes. To frgil que mal toca o solo ao pisar. Um

    * Estamos em 1926. (N. A., 1962)

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  • A livraria do L'Humanit ... (p. 63)

  • sorriso imperceptvel erra talvez em seu rosto. Curiosamente maquiada, como algum que, tendo comeado pelos olhos, no teve tempo de chegar ao fim, deixando o contorno dos olhos muito escuro para uma loura. O contorno, e no a plpebra (tal efeito se obtm, e s se obtm, quando se passa com cuidado o lpis apenas sob a plpebra. interessante notar, a propsito, que Blanche Derval, no papel de Solange, mesmo vista muito de perto no parecia nem um pouco maquiada. Ser que isso quer dizer que a meus olhos o que levemente permitido nas ruas, mas recomendvel no teatro, s tem valor por ter passado o limite do que proibido num caso e recomendado no outro? Talvez). Eu nunca tinha visto uns olhos assim. Sem hesitar, dirijo a palavra desconhecida, j esperando, como seria previ-svel, o pior. Ela sorri, mas muito misteriosamente e, eu diria, com conhecimento de causa, embora naquele momento eu no pudesse acreditar em nada disso. Alega estar indo a um cabelei-reiro do Boulevard Magenta (digo: alega, porque imediata-mente fico em dvida, e porque admite logo em seguida que andava sem rumo). Continua a falar com certa insistncia das dificuldades financeiras por que est passando, mas, ao que parece, mais como urna desculpa, e para explicar o enorme des-pojamento de seus trajes. Paramos na varanda de um caf pr-ximo da Gare du Nord. Observo-a melhor. O que poderia haver de to extraordinrio naqueles olhos? O que se reflete ali, ao mesmo tempo de obscuramente miservel e luminosamente altivo? Foi esse o enigma que determinou o incio da confisso que, sem me perguntar mais nada, com uma confiana que poderia (ou antes, no poderia?) ser mal interpretada, ela me faz. Em Lille, onde nasceu e de onde saiu h dois ou trs anos, conheceu um estudante a quem talvez amas.se, e que a amava.

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  • Um belo dia, resolve abandon-lo quando ele menos esperava, e isso "por temor de incomod-lo". Foi ento que veio para Paris, de onde escrevia para ele a intervalos cada vez maiores, sem nunca lhe dar seu endereo. Mais ou menos um ano depois, no entanto, ela o encontrou por acaso: ambos ficaram muito surpresos. Tomando-lhe as mos, ele no pde deixar de dizer o quanto a achava mudada e, ao olhar para as suas mos, admirou-se de v-las to bem-cuidadas (agora quase no so mais). Ento, maquinalmente, ela olhou por sua vez para uma das mos que seguravam as suas, e no pde reprimir um grito ao perceber que os dois ltimos dedos estavam inseparavelmente grudados.

    "Voc se feriu!" Foi absolutamente necessrio que o rapaz lhe mostrasse a outra mo, que apresentava a mesma malformao. Nesse ponto, muito emocionada, ela me interroga por um bom tempo:"Ser possvel? Ter vivido tanto tempo com algum, tendo todas as ocasies possveis para observ-lo, empenhada em des-cobrir suas menores particularidades fisicas ou outras, para que no final o conhea to mal, a ponto de nunca ter percebido aquilo! O senhor acredita ... acredita que o amor pode fazer essas coisas? E ele, que ficou to constrangido, claro, pois s conse-gui ficar calada, aquelas mos ... Em seguida ele me disse alguma coisa que no compreendi bem, onde havia uma palavra que no entendo, ele disse: 'Zote! Vou voltar para a Alscia-Lorena. S l, as mulheres sabem amar'. Por que: zote? No sabe?". Como se pode imaginar, reagi muito vivamente: "No importa. Mas acho odiosas essas generalizaes sobre a Alscia-Lorena; esse indivduo com certeza era um perfeito idiota etc. Agora ele foi embora, e no voltou a v-lo, no ? Melhor assim". Ela me diz seu nome, o que escolheu para si mesma: "Nadja, por-que em russo o comeo da palavra esperana, e porque s o

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  • comeo dela". Estava simplesmente imaginando um modo de me perguntar quem sou (no sentido mais restrito das palavras). Digo-lhe. Ela volta a falar do passado, fala sobre o pai, a me dela. Se enternece principalmente ao lembrar-se do primeiro:

    "Um homem to fraco! Se soubesse como sempre foi fraco. Quando era moo, veja s, quase nada lhe era recusado. Os pais dele estavam muito bem. Ainda no havia automveis, mas tinham l sua carruagem, com cocheiro e tudo ... Mas com o meu pai, tudo foi por gua abaixo, imagine s. Gosto tanto dele. Cada vez que penso nele, vejo o quanto fraco ... Ah, me outra coisa. Uma boa mulher, isso, uma boa* mulher, como se diz vulgarmente. De modo algum a mulher de que meu pai precisava. Em nossa casa, claro que tudo era muito limpo, mas meu pai no foi feito para v-la de avental ao voltar do trabalho. verdade que sempre encontrava a mesa servida, ou prestes a ser servida, mas no o que se chama (com uma expresso ir-nica de avidez e um gesto galhofeiro) uma mesa posta. Ah, minha me, gosto muito dela, no queria que ela sofresse por nada deste mundo. Por isso, quando vim para Paris, ela sabia que eu tinha uma carta de recomendao para as irms de Vau-girard. claro que nunca a utilizei. Mas, toda vez que escrevo para ela, termino a carta dizendo: 'Espero te ver em breve', e acrescento: 'se Deus quiser, como diz a irm ... ', e ponho um nome qualquer. E ela, ento, deve ficar contente! Nas cartas que recebo dela, o que mais me comove, o que vale mais que tudo, o PS. Ela sempre acha necessrio acrescentar: 'Eu me pergunto o que voc deve estar fazendo em Paris'. Coitada da

    * O texto joga com o duplo sentido da palavra bonne, que tanto significa "boa" quanto "empregada" , "criada". [N. T.]

  • minha me, se ela soubesse!" O que Nadja faz em Paris, ela mesma se faz essa pergunta. Bem, noite, l pelas sete, ela gosta de estar num vago de segunda classe do metr. A maioria dos passageiros gente saindo do trabalho. Ela se senta entre eles, procura descobrir no rosto deles o motivo de suas preocupa-es. Pensam necessariamente no que acabam de deixar at amanh, s at amanh, e tambm no que os espera noite, algo que os desanuvia ou que os deixa ainda mais preocupados. Nadja fixa alguma coisa no ar: "Tem gente admirvel". Mais emocionado do que gostaria de parecer, desta vez eu me zango:

    "Coisa nenhuma. Alm do mais, no se trata disso. Essas pessoas no podem ser interessantes, j que suportam o trabalho, com ou sem todas as outras misrias. Como que isso poderia elev-las, se nelas a revolta, a mais forte, no est de todo? Naquele momento, eles esto sendo vistos, mas eles nem sequer a vem. Odeio com todas as foras essa servido que querem me fazer aceitar. Lamento que o homem esteja condenado a ela, que em geral no possa se ver livre dela, mas no a dureza da pena que vai me dispor em seu favor: , e s poderia ser, a veemncia de seu protesto. Sei que no forno de uma fbrica, ou diante de uma dessas mquinas inexorveis que impem o dia inteiro, com alguns segundos de intervalo, a repetio do mesmo gesto, ou em qualquer outro lugar, sob as ordens mais inaceitveis, ou na priso, ou diante de um peloto de fuzilamento, mesmo assim podemos nos sentir livres, mas no o martrio que sofremos que cria essa liberdade. Eu quero que a liberdade seja uma permanente quebra de grilhes: contudo, para que essa quebra seja possvel, constantemente possvel, necessrio que

    '

    as correntes no nos esmaguem, como fazem com muitos daqueles. a quem se refere. Mas a liberdade tambm , e huma-

    '; .

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  • namente talvez ainda mais, uma seqncia de passos mais ou menos longa, porm maravilhosa, que o homem pode dar fora dos grilhes. Acha que eles seriam capazes de dar esses passos? Tero pelo menos tempo para d-los? Tero coragem suficiente? Pessoas admirveis, me disse, est certo, admirveis como aque-las que se deixaram matar na guerra, no mesmo? Para encur-tar, os heris: so muitos infelizes e uns poucos imbecis. Quanto a mim, posso afirmar, esses passos so tudo. Aonde eles vo, eis a verdadeira questo. Acabaro por traar um caminho, e quem sabe se nesse caminho no aparecer o meio de libertar ou de ajudar a libertar os que no conseguiram seguir adiante? S ento ser conveniente demorar um pouco, mas sem voltar atrs". (Por a se v o que sou capaz de dizer sobre o assunto, por menos predisposto que esteja a trat-lo de maneira con-creta.) Nadja ouve sem tentar me contradizer. Talvez tenha querido fazer apenas a apologia do trabalho. Ela vem me falar de sua sade, bem comprometida. O mdico com quem se consultou, e que tinha escolhido, ao preo de todo o dinheiro que lhe restava, de modo a poder confiar nele, prescreveu uma partida imediata para Mont-Dore. A idia a encanta, pelo fato de tal viagem ser para ela irrealizvel. Mas ela se convenceu de que um trabalho manual permanente poderia suprir de certo modo essa cura que ela no pode fazer. Foi com esse esprito que procurou emprego em confeitarias, ou melhor, casas de frios, onde julga, de maneira puramente potica, haver maior garan-tia de se dar bem do que em qualquer outra parte. Em todos os lugares, ofereceram salrios irrisrios. Aconteceu tambm de olharem duas vezes para ela antes de darem a resposta. O dono de uma padaria, que prometeu dezessete francos por dia, depois de deitar novamente os olhos nela, voltou a oferecer: dezessete ou

  • dezoito. E ela, muito debochada: "Eu disse a ele: por dezessete, venho; por dezoito, no".Vamos chegando, ao acaso dos nossos passos, na Rue du Faubourg-Poissonniere. nossa volta as pes-soas se apressam, est na hora do jantar. Como fao meno de me despedir, ela pergunta quem est minha espera. "Minha mulher. - Casado! Ah!, j se v ... ", e, em outro tom, muito grave, muito recolhido: "Tanto pior. Mas ... e aquela grande idia? Agora que eu tinha comeado a v-la. Era de fato uma estrela, uma estrela em cuja direo o senhor ia. No tinha como no chegar nessa estrela. Ao ouvi-lo falar, senti que nada o impediria: nada, nem mesmo eu ... Jamais poder ver essa estrela como eu a via. No pode compreender: ela como o corao de uma flor sem corao". Fico extremamente como-vido. Para mudar de assunto, pergunto onde ela vai jantar. E de repente aquela leveza que s vi nela, aquela liberdade, para ser mais preciso: "Onde? (apontando o dedo:) ali, ou l (os dois restaurantes mais prximos), onde eu estiver. sempre assim". No instante de ir embora, quero lhe fazer uma pergunta que resume todas as demais, uma pergunta que s eu faria, sem dvida, mas que, pelo menos uma vez, encontrou resposta altura: "Quem voc?". E ela, sem hesitar: "Eu sou a alma errante". Combinamos nos ver no dia seguinte, no bar da esquina da Rue Lafayette com a Rue du Faubourg-Poisson-niere. Ela gostaria de ler um ou dois dos meus livros, e insiste na mesma proporo em que sinceramente ponho em dvida o interesse que possa ter por eles. A vida diferente do que se escreve. Ela me retm por alguns instantes, para me dizer o que mais a atrai em mim. , no meu pensamento, na minha lingua-gem, em todo o meu modo de ser, ao que parece, e este um dos elogios que mais me sensibilizaram na vida, a simplicidade.

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  • 5 de outubro. - Nadja, que chegou primeiro, adiantada, no mais a mesma. Muito elegante, de vermelho e preto, um chapu que lhe fica muito bem, e que ela tira, mostrando os cabelos de aveia que renunciaram sua incrvel desordem; usa meias de seda e est adequadamente calada. A conversao torna-se, contudo, mais dificil, e a princpio no consegue se desenvolver, da sua parte, sem hesitao. At que ela agarra os livros que eu trouxe (Os pas-sos perdidos, Manifesto do surrealismo):" Os passos perdidos? Mas no existe passo perdido". Folheia a obra com grande curiosidade. Sua ateno recai sobre um poema de Jarry a citado:

    Parmi les bruyeres, pnl des menhirs ...

    Longe de inibi-la, o poema, que l uma primeira vez de maneira bastante rpida, e depois examina bem de perto, parece emo-cion-la vivamente. No fim da segunda quadra, seus olhos se umedecem e se preenchem com a viso de uma floresta. V o poeta que passa perto dessa floresta, daria para dizer que pode segui-lo de longe: "No, ele d voltas em torno da floresta, no consegue entrar, no entra". Depois, ela o perde de vista e volta ao poema, um pouco frente do ponto onde havia parado, interrogando as palavras que a surpreendem mais, dando a inflexo da inteligncia, do assentimento exato que cada uma delas reclama.

    Chasse de leur acier la martre et l'hermine.**

    * Traduo literal:"Entre as urzes, o pbis dos menires ... ". [N. T.] ** Traduo literal:"Expulsa de seu aceiro a marta e o arminho". [N. T.]

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  • "De seu aceiro? A marta ... e o arminho. isso, entendi: os covis cortantes, os rios gelados: De seu acero." Um pouco mais abaixo:

    En mangeant le bruit des hannetons, C'havann*

    (Com pavor, fechando o livro:) "Oh! Isto aqui a morte!" A relao de cores entre as capas dos dois volumes a sur-

    preende e seduz. Parece que "combinam" comigo. Sem dvida que fiz de propsito (um pouco). Depois fala-me de dois amigos que teve: o primeiro, ao chegar a Paris, que costuma designar pelo nome de "Grande amigo", era assim que ela o chamava, e ele sempre quis que ela ignorasse quem ele era, ela ainda demonstra uma imensa venerao por ele, era um homem de quase setenta e cinco anos, que serviu muito tempo nas colnias, e lhe disse ao ir embora que estava voltando para o Senegal; o segundo, um americano que parece ter inspirado nela sentimentos bem diferentes: "Alm de tudo, ele me cha-mava de Lena, em memria da filha que tinha morrido. to afetivo, to comovente, no ? Mas eu acabei no suportando que me chamasse assim, como quem sonha: Lena, Lena ... Ento eu passava a mo vrias vezes diante dos olhos dele, bem perto dos olhos dele, desse j eito, dizendo: Lena, no, Nadja". Samos. Ela continua a falar: "Posso ver a sua casa. Sua mulher. Morena, naturalm.ente. Pequena. Bonita. Olha, um cachorro perto dela. Tambm um gato talvez, mas em outro lugar (exato). Por ora,

    * Traduo literal: "Comendo o rudo dos besouros, Z'um um" . Os comen-taristas de Jarry no encontraram uma explicao satisfatria para a expresso C'havann, alguns julgando ser um termo regional, outros onornatopico, opo que adotamos. [N. T.]

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  • o que estou vendo". Resolvo voltar para casa, Nadja vem comigo no txi. Ficamos algum tempo em silncio, brusca-mente ela passa a me chamar de voc: "Uma brincadeira: diga qualquer coisa. Feche os olhos e diga uma coisa qualquer. No importa, um nmero, um nome. Assim (ela fecha os olhos): Dois, duas, duas o qu? Duas mulheres. Como esto vestidas? De preto. Onde esto? Num parque ... E, depois, o que fazem? Vamos l, to fcil, por que voc no quer brincar? Pois bem, assim que falo comigo mesma quando estou sozinha, que conto para mim mesma todo tipo de histrias. E no s histrias de mentira: exatamente desse jeito que eu vivo".* Deixo-a porta de minha casa: "E eu, agora? Aonde vou? Mas to fcil descer devagar na direo da Rue Lafayette, o Fau-bourg-Poissonniere, e comear retornando ao mesmo lugar onde ns estvamos".

    6 de outubro. - A fim de no ter que flanar por muito tempo, saio l pelas quatro, com a inteno de ir a p at La Nouvelle France, onde devo encontrar Nadja s cinco e meia. O tempo para uma volta pelos bulevares at a Opra, onde tenho que dar uma passada rpida. Contrariamente a meu costume, esco-lho seguir pela calada direita da Rue de la Chausse-d' Antin. Um das primeiras passantes com quem me apresto a cruzar Nadja, com o mesmo aspecto do primeiro dia. Ela vai seguindo, como se no quisesse me ver. Como no primeiro dia, volto meus passos e a acompanho. Mostra- se incapaz de explicar sua

    * No atingimos com isso o ponto extremo da aspirao surrealista, a sua mais avanada idia-limite? [N. A.]

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  • La Nouvelle France .. . (p. 73)

  • presena naquela rua aonde, para evitar maiores perguntas, m e diz ter ido procura de balas holandesas. Sem nem pensar, j fizemos meia-volta, entramos no primeiro caf que surge. Nadja guarda em relao a mim certas distncias, mostra-se at mesmo desconfiada. assim que ela revira meu chapu, sem dvida para ler as iniciais no forro, embora pretenda fazer isso maquinalmente, pelo hbito de determinar, reve-lia deles, a nacionalidade de certos homens. Confessa que tinha a inteno de faltar ao encontro marcado. Observei, ao encontr-la, que trazia na mo o exemplar de Os passos perdi-dos que eu lhe havia emprestado. Coloca-o agora sobre a mesa, e a julgar pela lateral, noto que s algumas pginas foram cortadas. Vejamos: as do artigo intitulado "O esprito novo", onde relato precisamente mn encontro impressio-nante, ocorrido um dia, com alguns minutos de intervalo, com Louis Aragon, Andr Derain e eu. A indeciso de que cada um de ns deu prova naquelas circunstncias, o emba-rao em gue ficamos alguns instantes depois, na mesma mesa, nos trouxe a preocupao de compreender o que se havia passado conosco, o irresistvel apelo que nos levou, a Aragon e a mim, a voltar aos pontos onde surgira para ns aquela verdadeira esfinge sob as formas de uma jovem encantadora que ia de uma calada outra, a interrogar os passantes, aquela esfinge que nos havia saltado, um aps o outro, e, procura dela, tivemos que percorrer todas as linhas que, mesmo muito caprichosamente, pudessem ligar aqueles pontos - a falta de resultados dessa perseguio, que o tempo decorrido teria tornado sem esperana, foi a isso que Nadja chegou de imediato. Est surpresa e decepcionada de que o relato dos curtos acontecimentos daquele dia me parecesse dispensar

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  • comentrios. Fora-me a explicar-lhe o exato sentido que atribuo a ele como tal e, j que o publiquei, sobre o grau de objetividade que lhe empresto. Devo responder que no sei nada a respeito disso, que nesse campo o direito de constatar me pareceu ser tudo o que era permitido, que fui a primeira vtima desse abuso de confiana, se que h abuso de con-fiana, mas percebo logo que ela no se d por satisfeita, leio em seu olhar a impacincia, em seguida a consternao. Talvez imagine que estou mentindo: um constrangimento bastante grande continua a reinar entre ns. Como fala em voltar para casa, ofereo-me para lev-la. Ela d ao motorista o endereo do Thtre des Arts, que, segundo diz, fica a poucos passos da casa onde mora. No trajeto, me encara demoradamente, em silncio. Depois fecha e abre os olhos muito depressa, como quando a gente encontra algum que no v faz tempo, ou que no esperava mais ver, como que para significar "no acre-dito no que meus olhos esto vendo". Uma certa luta tambm parece se travar nela, mas de repente se entrega, fecha total-mente os olhos, me oferece os lbios .. . Fala agora do meu poder sobre ela, da faculdade que tenho de faz-la pensar e fazer o que eu quiser, talvez at mais do que eu julgo querer. Suplica, desta forma, que eu no faa nada contra ela. Parece-lhe que jamais teve segredos para mim, antes mesmo de me conhecer. Uma curta cena dialogada, que se encontra no final de Peixe solvel, e que parece ser tudo o que leu do Manifesto, cena qual, alis, nunca soube atribuir um sentido preciso, e cujos personagens tambm me so estranhos, e igualmente ininterpretvel a agitao deles, como se tivessem sido trazidos e levados por uma torrente de areia, lhe d a impresso de ter realmente participado dela, e at de ter desempenhado o papel,

  • no mnimo obscuro, de Hlene.* O lugar, a atmosfera, as atitu-des respectivas dos atores eram bem o que eu havia concebido. Ela queria me mostrar "onde aquilo acontecia": proponho jan-tarmos juntos. Uma certa confuso deve ter se estabelecido em seu esprito, pois ela nos manda rumar, no para a ilha Saint-Louis, como supunha, mas para a Place Dauphine, onde se localiza, coisa curiosa, um outro episdio de Peixe solvel:

    "Um beijo logo se esquece". (A Place Dauphine de fato um dos lugares mais profundamente ermos que conheo, um dos piores terrenos baldios que existem em Paris. Cada vez que estive l, senti que me abandonava pouco a pouco o desejo de sair, pre-cisando argumentar comigo mesmo para escapar desse enlace to suave, agradvel e insistente demais, e, em ltima instncia, aflitivo. Alm disso, morei por algum tempo num hotel que confina com essa praa, o City Hotel, onde as idas e vindas a qualquer hora, para quem no se satisfaz com solues sim-plistas, so suspeitas.) Cai a noite. Para estarmos ss, pedimos na casa de vinhos que nos sirvam do lado de fora. Pela pri-meira vez, durante a refeio, Nadja se mostra bastante frvola. Um bbado no pra de rondar a nossa mesa. Pronuncia bem alto palavras incoerentes, em tom de protesto. Entre essas pala-

    * N o conheci pessoalmente nenhuma mulher com esse nome, que sempre me desgostou e pareceu inspido, da mesma forma como sempre me seduziu o de Solange. Contudo, Mme. Sacco, vidente estabelecida Rue des Usines, n~ 3, que nunca se enganou a meu respeito, me assegurava, no princpio daquele ano, que meu pensamento estava grandemente ocupado por uma "Hlene". Teria sido por isso que, pouco tempo depois, me interessei vivamente por tudo quanto dizia respeito a H/ene Smith? A concluso a ser tirada da estaria na mesma ordem daquela que me foi imposta precedentemente pela fuso num sonho de duas imagens bastante distanciadas uma da outra. "Hlene sou eu", dizia Nadja. [N. A.]

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  • Mme. Sacco, vidente, Rue des UJines, n~ 3 ... (p. 77)

  • vras, uma ou duas obscenidades nas quais ele se apia.A mulher dele, que o vigia por baixo das rvores, limita-se a gritar de vez em quando: "Ento, voc vem ou no?". Tento afast-lo varias vezes, mas em vo. Como chega a sobremesa, Nadja comea a olhar a seu redor. Est certa de que sob os nossos ps passa um subterrneo que vem do Palais de Justice (ela mostra de que parte do Palais, direita da escadaria branca), e con-torna o Htel Henri IV. Fica perturbada com a idia do que j aconteceu naquela praa e do que ainda acontecer. Onde, quela hora, no mais que dois ou trs casais se perdem na sombra, ela parece ver uma multido. "E os mortos, os mortos!" O bbado continua a zombar lugubremente. O olhar de Nadja agora percorre as casas. "Est venci.o, l em cima, aquela janela? Est s escuras, que nem todas as outras. Olhe bem. Daqui a um minuto ela vai se acender. Vai ficar vermelha." Passa o minuto. A janela se acende. H, de fato, cortinas vermelhas. (Lamento que isto talvez ultrapasse os limites da credibilidade, mas nada posso fazer. No entanto, em sernelhante assunto, gos-taria de tomar partido: limito-me a concordar que, estando escura, a janela em seguida se acendeu, nada mais.) Confesso que aqui fico tomado pelo medo, e Nadja tambm. "Que hor-ror! Est vendo o que acontece com as rvores? O azul e o vento, o vento azul. S vi esse vento azul passar por estas mes-mas rvores uma outra vez. Foi de l, de uma das janelas do Htel Henri rv,* e o meu amigo, o segundo de que lhe falei, tinha ido embora. Havia tambm uma voz que dizia: Voc vai morrer, vai morrer. Eu no queria morrer, mas senti uma ver-

    * Que fica defronte casa de que se trata aqui, para beneficio dos amantes das solues simplistas. (N. A.]

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  • Pedimos na casa de vinhos que nos sirvam do lado de fora .. . (p. 77)

  • tigem daquelas ... Com certeza teria cado da janela se algum no tivesse me segurado." Acho que j passou da hora de dei-xarmos o lugar. Ao longo do Sena, sinto-a toda trmula. Foi ela quem quis voltar na direo da Coniergerie. Est muito entregue, muito segura de mim. No entanto ela procura alguma coisa, faz questo absoluta de que entremos num ptio interno, o ptio de uma delegacia qualquer, que ela explora rapidamente. "No aqui ... Mas, me diga, por que voc tem que ir para a cadeia? O que foi que fez? Eu tambm j fui presa. Quem era eu? Ah, faz sculos. E voc, quem era voc, ento?" Passamos d