Discurso Pecheux

34
8/2/2019 Discurso Pecheux http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 1/34 / Michel Pêcheux , o DISCURSO :i f O quese podé i d4preender do percursg _ de Michel Pêcheux na elabor~ção da Análise de Discurso, ;' é que ele propps uma fo rm a d e r e fl e xão c so bre a linguag m que aceita o deséonforto de não se aje r nas evidências e no lu gar já·feito . E l e erceu com sofisticação e e sm e re a a rte d . refle- t i r nos entremeios. ' l ~ : , . N ~ ESTRUTURA p U ACONTECIMENW I - _ l rad ução: E n iP ucc i ne l li Orla ndi t I 1 . .. I I fbntes , . t ~ . . ~ ' ~ ~- - . . . - - - 9 788571 130432

Transcript of Discurso Pecheux

Page 1: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 1/34

/ M i c h e l P ê c h e u x

, o D I S C U R S O

: i f

O q u e s e p o d éi

d 4 p r e e n d e r d o p e r c u rs g

_ d e M i c h e l P ê c h e u x n a e la b o r~ ç ã o d a

A n á li s e d e D i s c u r s o ,;' é q u e e le p ro p p s u m a

fo rm a d e r e fl e x ã o c s o b r e a l i n g u a g m q u e

a c e i t a o d e s é o n f o rt o d e n ã o s e a je r n a s

e v id ê n c ia s e n o lu g a r já · fe i t o . E le erceuc o m s o f is t i c a ç ã o e e sm e re a a rt e d . r e f l e -

t i r n o s e n tr e m e io s .' l~

::,.N

~ E S T R U T U R Ap U A C O N T E C IM E N WI -

_ lra dução : E n i Puc cinelli Or lan d it

I1

. . . I

I fbntes

,

. t~

.. • .~ '~ ~ --...---9 788571 130432

Page 2: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 2/34

Copyrigbt © 1988 Illinois University Press2ª Edição - 1997 .

Título original: Discourse: Structure ar Event?

. Direitos cedidos para a publicação em

língua portuguesa para a Pontes Editores.

Coordenação Editorial: Ernesto Guimarães

Capa: João Baptísta da Costa Aguiar

Revisão: Ernesto GuimarãesVânia Aparecida da Silva

lNDICE

Nota ao Leitor 7

I- Introdução 15

PONTES EDITORES

Rua Maria Monteiro 163513025.152 Campinas SP Brasil

Fone (019) 252.6011

Fax (019) 253.0769

II Ciência, Estrutura e Escolástica , 29

III - Ler, Descrever, Interpretar 43

Notas 59

1997

Impresso no Brasil

Bibliografia 67

I!

IIi

i

I

1 I.I

; : /

I'o" "

Page 3: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 3/34

1 11

I l i1( ,p r11 :

1' 1

f:1

\

1\ ;

i~

1

1 ), I

I : ;

1 1

I 'II,iIiiI :i

I

I

NOTA AO LEITOR

,"\

o que se pode depreender do percurso de MichelPêcheux na elaboração da Análise deDiscurso é queele propôs uma forma de reflexão sobre a linguagemque aceita o desconforto de.não seajeltarnas ev i dên -

--._cias e no lugar Já-f~!!9!\Ele exerceu com sofisticação ee s i i i ê r o ã - arte de refletir nos entremeios.

Assim, os ,princípi()s teóricos que el~ estabelece sealojam não em regiões já categorizadas do conhecimentomas em interstícios disciplinares, Jlo ~ã~ qu~as dis _

ciplinas deixam ver em sua articulação contraditória.~ ~~-----' . - - - ------:Aíele faz raoa:Ilíarem os procedimentos da Análise deDiscurso na (des)construção e compreensão incessantede seu objeto: o discurso.

Em seu domínio específico de reflexão, a Análisede Discurso vai colocar questões para essas disciplinas,

7

Page 4: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 4/34

sistematicamente. E, em seu trabalho, percorre menoso acúmulo de conhecimentos positivos e mais os efeitosde certeza que esses conhecimentos produzem, fazendoa história de suas ciências.

A Análise de Discurs.Q- quer se a considere comoum '-lspositivo de análise ou como a instauração de

novos gestos de leitura - se apresenta com efeito comouma forma de conhecimento que se faz no entremeioe que levem conta o cQllfr..onto. a.contradicã entre,sua teoria e sua prática de aE,.ál!se. E .isto compreen-en o-se- o entremeiô"sejã no -campo das disciplinas, noda desconstrução, ou mais precisamente no contato dohistórico com o lingüístico, que constitui a materiali-dade específica do discurso.

. Nesse seu presente .trabalho, M. Pêcheux fala da

relação entre os universos logicamente estabilizados eo das formulações irremediavelmente equívocas, i nves-

' I tigando as ~~la29~~.~0 ...~~~5ritívele do int~~E.~~tªyel aom~_~t.!l0empo em que percorre' ãsfüimas de se fazer

1 _L§~~i~ t_S_,.,~?~E~.q~Jet.mjnª~~_ª~L.(le ...nterm~!ª.窺,~.:~~ -:.,.I Observando o entrecruzamento e a dessemelhança entre ? iS

li - - I r ) -?s objet~~ ..- q .!~ .~ ~~ .!y?Se talhe estável e os que têm seu ::,f

é mõêfo:Cifé"exrs!~hcià--:fegrdotaparênfêmenrê·-pera. prôpriã;----{: ~:,

I

I

1

1 ~_~[<Cç,§IDQ:1ªrãmõS:::~d'êl~i:;~êõnfõrná-''ã-aecrâiàçãõ~bde ,~..~ " Õ '

.~s.Y~...!!~~.~§!9.lJ aia.reais ..q y~ _ . qll.!fg§..~;.J~ç~q~uh~,Çendo,Õ:~'í:}'.. fA . . ti

i I ~vés ~i~~,o..,~~t~~~;~~~,~<::~~~~~ll1~,Cl~-4~~:~.L~t::~;~~3 é ~ i\ y ~

I ' Refletindo então sobre a .quest;~'da]íi~t6ri~ e do

I marxismo, não vai negar à história seu caráter de inter-

I pretação, ao contrário, aprofunda esse' seu m o d o 'de

t I eXlstêilcíà" para poder compreendê-Ia teórica e critica-, 1 1

~!

~i

8

mente, ou melhor, para compreender as formas de exis-tência possível de uma ciência da história. Desse modo

/ ~.~._~~~~., J~E9.>~~ _.,,~~ ~X !~_ti.~<1..,. ~?r.~ !? ",.~,~, "> q~.~. . _ _h i & l i ll : ! . ~(."parenta o }~OVlIE:~.l1:to..a" interpretação, ... p , h . 9 J .T I Y I J j _

~)~?~~l1tê'''~o~-~~~~~~.~~:·:.or isto a história está 11colocada"..,/' .E â'A:iiahse de Discurso trabalha justamente no lugar

·"~~fs.:€.·(~~:p~~!~~n!.~f"".:""crülJldom espaço teórico " e m ' quese pode produzir o

11

desçolamento" dessa relacão, des-• • • ~<"""~~"";O. f ,:J~

terntonahzando-a.. ...f.../An,,;;,,.,..·{A,::>·~\.c.i" ,

Paralelamente, sem negar o percurso pelo marxis-mo, ele no entanto experimenta seus limites e se apre-senta na' sua responsabilidade como' teórico da lingua-gem: o de quem não protege e não se protege em Marx .Ao contrário,' aceita seu desafio entrecruzando trêscaminhos: o dçLacont~çi1JlentO'r-·o.",da.estrutura e .Õ-dél..~tellsãoentre<des~lcião e interpretacãoi na Análise de

_ J ~ I Dis~º.,,_Sem - conf~!!dir s~~ - c r í t iê ; ( s : -como' ele -~~~~~'" - d I z : com o 1I covarde alívio de numerosos intelectuaisfranceses(?) que reagem descobrindo, afinal, que a11Teoria" os havia 11 intimidado" ."

Ainda uma vez, M. Pêcheux avança pelos entre-meios, não deixando de levar em conta a presença forte

da~!lexão .sobre a/··mat~:!~!!~~~~..E_~_!i~_g~T~Jiaf hlêJ2rlª,,-'mésmQ-'''percorrendo agora esse espaço das\ 11múltiplas urgências do cotidi~~~ interrogando essa'ne<;ssidade de um "mundo semanticamente normal" do

, CS"~Tcitô·prãgrnátiç<.n Região de ~.fl.llíY.o-co".e._em que se< P" -- . _- "" " " - " ' .1" . . •• • • - __ 0 . - _ ' - - " - .

. : ;l él 11gãm'~niãterIalmente(9'-inêonsciente e a ideologia)\\ ~ - "./~

, > 'r ) Campinas, setembro de 19 90 ' "

Eni Pulcinelli OrlandiI· ' .

\' {l" r, '.. ."-"\v- ;' - U v .. ! ? ' .. { .. . f 6 '--'

. 9

.~

,Jflt.-.,;~tU~

Page 5: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 5/34

· 1

I\

II

Este texto foi apresentado na Conferência "Marxismo

e Interpretação da Cultura: Limites, Fronteiras, Restri-

ções" na Universidade de Illinois Urbana-Champaign,

de 8 a 12 de julho de 1983.

Page 6: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 6/34

~~:WJ?MBtG"?tvr ~~.F:rJ'·'7:,n 7 ,- .~. - ._~ .- -" ';or'-' ME ;;e-:-ôIK3-à! iF 'S, - _~'!IJ!.w_, ib _.'.

- - _ . -_.- -~ ._ ._ ,_ ._ - ,_ .._------

Page 7: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 7/34

Vocês conhecem a história daquele velho teórico Ierudito/marxista que queria fabricar sua biblioteca so-zinho?

I. INTRODUÇÃO

_-__ Era naqueles longínquos tempos em que os' mar-o xisti~ pensavam poder .construir tudo por si mesmos:aeeonomia, a história, a filosofia, a psicologia, a lín-güística, a literatura, a sociologia, a arte. .. e as biblio-tecas.:

As dificuldades tinham começado com a confusão

entre parafuso, rosca e porca. Todos sabem, entretanto,que o sistema de base genérico-sexual da tecnologiaelementar implica, como princípio estrutural, que asroscas e as porcas se casam. Mas reinava a esse respeitouma estranha confusão no marxismo: assim, o velhomarxista tinha absoluta convicção de estar equipado de

15

Page 8: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 8/34

,!j,i

.parafusos celibatários marxistas, quando na verdade não

dispunha senão de roscas~. . .. sem porcas. ,

E toda vez que ele se punha a trabalhar, era amesma coisa: ele juntava duas peças de madeira, cadauma com um buraco, em perfeita coincidência. Colooavaa rosca no buraco e girava, girava, girava .. , no vazio,

sem nenhum resultado, de forma que sua construçãoestava sempre se desfazendo.

Chegou gente de todo tipo, com toda espécie de

Porca cada um lhe dizendo: 11 olha isto! Isto tem talvez

, , f d -?" (algo a ver com o que você esta azen o, nao. comefeito. havia toda uma série de porcas: porcas f c nome -, . ..nológicas, estruturalistas, hermenêuticas, eXIstenc.lalS,discursivas, lingüísticas, psicanalíticas, epistemológlcas,'desconstrutivistas, feministas, pós-modernas, etc ... ).

Durante muito tempo, o velho marxista lhesres-

pondia: 11 deixem-me tranqüilo, deixem-me ~azer meu tra-balho, sem me complicar ainda mais as coisas com suasporcas!". Mas agora nenhum marxista (ao me~os ne-nhum marxista univer~itário que se preze) dana umaresposta parecida: hoje o marxismo procura casar-se,

ou contrair relações exhaconjugais ...

Para entrar na reflexão que empreendo aquicont

vocês, sobre ((di~~~~~o~~?_e~~~~~~,,~ _~~rn.:? , ,~~~~!~ ~cimento imag1l10varIos cammnos muito dIferentes.",<",,_. .J.~,_ .

Um primeiro caminho. seria tomar como temaum i e n u n c l ã ' d 1 e trabalhar a partir dele; por exemplo, o

L -~---J .

16

enunciado "On a gagné" [" Ganhamos"] tal como eleatravessou a França no dia 10 de maio de 1981, às20 horas e alguns minutos (o acontecimento, no pontode. encontro de uma atualidade e uma memória).

-- Um outro caminho, mais clássico, na aparência

~,_~ __l~~.~__~l~ssico hoje?), consistiria em partir de

~ ...!llif~º-ªlosónª, por exemplo, a da relação entreMarx e Aristóteles, a propósito da idéia de uma Ciênciada estrutura.

-:-Mas múltiplos saberes competentes logo me amea-çam, surgindo com a espessura de suas referências detodos os horizontes da filosofia e das ciências humanase sociais; e les me lembram que não sou um especialista,nem de Marx, nem de Aristóteles, nem da história da .filosofia. E que não disponho mais (ao menos por en-i

quanto) de via de acesso especialmente preparada para'ointerior do imenso arquivo, oral e escrito, que se des -dobra há dois anos em torno do 10 de maio de 1981.

i. 1I

I

> - E então? Não seria melhor (terceiro caminho possí-vel) eu me ater sabiamente ao domínio 11 profissional"no qual encontro, bem ou mal, minha referência: o datradição francesa. de análise de discurso? 1. Por exem':~------"---"._ •.__ •••~ •.~.<~ •••.•~.-.,.,-... .

pio, levantando, na configuração dos p~õbíen;as teóricose de procedi~entos que se colocam hoje para essa dis-.3P:lina~o.~tetâçã(rentre---ã-áffâlise

" C o m õ - d e - ; c r i c o o e a - )(análise como interpretação? r-~--:-i'--~'--"~"""-"----~"

'-_ • '0 . , • o • • . •_~~ <.}---

Mas se me refugio nesta tática de intervenção, comoevitar as muitas e longas considerações prévias, neces-sárias a uma regulagem, um "tuning" mínimo entre oque eu gostaria. de dizer e o que será entendido?

17

Page 9: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 9/34

A evocação de alguns nomes próprios (Saussure,Wittgenstein, Althusser, Foucault, Lacan . .. ) ou a men- .ç ã o a campos do real (a história, a língua, o incons-ciente ... ) não são suficientes para caracterizar uma

posição de trabalho ...

Não serei eu obrigado a começar por uma sér~de "charn~as "J~~<!~~9!~~~l?~~!Q§"mg~~c!S!nTIJǪ9 quen~da _~ que nj.o vão funcionar senão como ~lgnosde reconhecimento opacos, fetiches teóricos?

, " '- - '- - . . . . .. . ., . ., . . . . . . .• . . •• .. ~,.""""_.~""~ . . .,... ,. .- " -, ..~~ ~ ,, -~ .,........ -- -- - - - - .. ._~-"~. ._~_." ,... ,

Ou então vou eu tentar empurrar vocês nesta -

ultra rápida, por necessidade - y!§.it::L-ª-.E~~~~tode J?'!Qfedimentos técnicos, próprios à análise .~ eJli!s'-_ ' . ~~ ' _~~__~__~ __ ' _ ~ ~ ~~~ 'i~ •~~ "____ . - _ "". , • , . " . , . _ . _ ~ • '0" , - ._ >~ . ·_ ,"" e '"

curso?-=.~,-"'._-

Ou ainda: devo tentar, pela apresentação de algunsresultados desses procedimentos, c~ç_~:lq§_-º~_.~~pertinência e de. seu interesse - enquanto as pesquisasatuãi'st~;dêm~'ã"iites'de-tudà, a 2!ºduziLq.u§.sJ-º~~, mais

do que ~,.X~~~t,yªJ~t.l!..!::1ªJ14.ªs!~."~t1Postadas " re s-,PQ§ta"s"? .

Dizemos em francês que não se "pode ir por qua-tro caminhos" quando· se vai direto ao essencial ...Mas qualseria. no caso, essa via maravilhosa do essen-

cial, pela qual o "negócio" do qual pretendo lhes falarcolocar-se-ia sob seus olhos como umfilme sem volta

nem retoque?

Considerando essa via como um mito religioso,

/:~~,"'prefirop:1~~~fº!@[em. avªnçªx~hJl'~ÇLt,!:?:ª!},4:9.S>S,.~!,~~~ i i i 1 I ~ ~ ( ) _ ~ ,ue a~~.~.2..<!~ .evocar (o doªçgp:!~çitg~!2L_~

18

//

( ' c iª _ _~~t.!,.~~u~~_.,Q.9a tensão.~~!!~ descrição e interpreta-ij", ç~o.~o ..in terior ..da .análise do..discurso), )retocandô " c a d a '"

u m · · · · d e iê s '" " p ; r ; '" ~ f c t ~ ~ ~ ç ã ( ; ·i r d a l doS~~utros dois.

1 110 ,li [IIG h "ln a, gagne . an amos.

Paris, 10 de maio de 1981, 20 horas (hora local):a imagem, simplifica da e recomposta eletronicamente,do futuro presidente da República Francesa aparece nostelevisores. .. Estupor (de maravilhamento ou de ter-ror): é a de François Mitterand!

Simultaneamente, os apresentadores de TV fazemestimativas calculadas por várias equipes de informáticaeleitoral: todas dão F. Mitterand como 11vencedor". No11especial-eleições" desta noite, as tabelas de porcenta-gem põem-se a desfilar. As primeiras reações dos res-ponsáveis políticos dos dois campos já são anunciadas,assim como os comentários ainda quentes dos especia-listas de politicologia; uns e outros vão comecar a "fazertrabalhar" o acontecimen!9 (oJatQ..Eovo, ;s cifras, asprimeiras. declarações). em seu context~e atüãíidãd;~nõ-éspaçô-"'(re~m~m-6iI~:,g,~~_.e1~_con-'Y~~~~~e já c"OOleçaa reb.!]:ani?;.l!t: o socialismo francês de Guesde a J aurês,o Congresso de Tours, o Front Popular, a Liberação ...

Esse acontecimento que aparece como o "global" *da grande máquina televisiva, este resultado de umasuper-copa de futebol político ou de um jogo de re-percussão mundial (F. Mitterand ganha o campeonatode Presidenciáveis da França) é o acontecimento jorna-lístico e da mass-media que remete a um conteúdo só-

19

Page 10: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 10/34

I.I,

f i ,

~

cio-político ao mesmo tempo perfeitamente transparente(o veredito das cifras, a evidência das tabelas) e profun-damente opaco. !§,/ ,~Q~r~.Q :: :4 !:~ç ií.~~f~ 'Q \obre a deno-minação desse acontecimento improvável tinha come-çado bem antes do dia 10 de maio, por um imensotrabalho de formulações (retomadas, deslocadas, inver-

tidas, de um lado a outro do campo político) tendendoa prefigurar discursivamente o acontecimento, a dar-lheforma e figura, na esperança de apressar sua vinda ...ou de impedi-Ia; todo esse processo vai continuar,mar-cado pela novidade do dia 10 de maio./Màs_~Ja novi-dadenão tit1l1LQP.ªçiclª-de.-do-acoutecimento,-inscxitaJ!.o

j~~'<?1?Hq!-!2.,~~,~u~.~"A~Dominªç.º~§_~.9i·'e~,4iiçii~

"F. Mitterand é eleito presidente da República

Francesa"

"A esquerda francesa leva a vitória eleitoral dos

presidenciáveis"

ou

"A coalização socialista-comunista se apodera daF "rança

não estão evidentemente em relação interparafrástica;

esses enunciados remetem (Bedeutung) ao mesmo fato,mas eles não constroem as mesmas significações (Sinn).

Ij. o confronto discursivo prossegue através do aconteci-I-mento. . . ,,~,_.,,-" .<;.•.........--.,...--'

20

/' ....E"depois, no meio dessa circulação-confronto de(ormulações, que não vão parar de atravessar a tela daT V durante toda a noite, surge um flash que é ao mes-mo tempo'umaconstatação--eum'apelo: todos os pari-sienses para quem esse acontecimento é uma. vitória sereúnem em massa na Praça da Bastilha, para gritar sua

alegria (os outros não serão vistos nessa noite). E acon-tecerá o mesmo na maior parte das outras cidades. Ora,entre esses gritos de vitória, há um quevai "pegar" comuma intensidade particular: é o enunciado-" On a gagné "----[t i Ganhamos! "] repetido sem fim como um eco ines-"gotável, apegado ao acontecimento .

.:: - .r <f'~:~'ri~iTd;d;-di;~~~;i~esse enunciado cole- '\-I' ~.,-~----~--~>--~ I• ! tivo é absolutamenter particular:,; ela não tem nem o .

" f ' conteúdo nem a forma""'fiet-rr"'á'"'@ruturaenunciativade

l:íd~I;:~~i~~2~~1~~':;a~~~~' r,a~~~~~iA~~";r~êt~t,;~d,~"-""~ ~-•__.~..,_ _ ..-. ~

com unCrnIífo"'é' uma melodia determinados (on-a-ga-gné/ dó-dó-sol-dó) consti tui a retomada direta, no espaçodo acontecimento político, do grito coletivo dos torce-dores de uma partida esportiva cuja equipe acaba deganhar. ~rlliLnm!:ç-ª-º-~mento __~ll!_q!!~Qa~tici-pação Qassiva 3, do espectador-torcedor se converte em~i idade coletiva_g~1.\1~.lLYQÇaftrP·~i~rG'Üzàndo~a fest~da vitória da equipe, tanto maiS' inteti'Sarnenfé"quantoela era mais improvável.

III

i,I

, O fato de que o esporte tenha aparecido assim pelaprimeira vez em maio de 1981, com esta limpidez, comoa metáfora popular adequada ao campo político francês,convida a aprofundar a crítica das relações entre o fun-cionamento da mídia e aquele da " classe política",sobretudo depois dos anos 704•

21

Page 11: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 11/34

i Y

, rn todo caso, o que podemos dizer é que estem ta f rico em torno do enunciado "O n a gagné"

I" unham s" ] veio sobredeterminar o acontecimento,ubllr hando sua equivocidade: no domínio esport ivo, a

v id ênc i a dos resultados é sustentada pela sua apres~n-ra ção em um quadro lógico (a equipe X, classificadana enésima divisão, derrotou a equipe Y; a equipe Xestá, pois, qualif icada para se confrontar com a equipeZ etc). O "resultado" de um jogo é, evidentemente,~bjetd de co~entári;;- e de reflexões estratégicas poste-r~s (d;-parte-dos-'~Ttãe'sde equipê:crêCo~tadores

esportivos, de porta-vozes de interesses comerciais, etc),pois sem]2.re há outros jogos no horizonte ... , mas en-quanto tal, seu -~~sult~dC0fêriv-ãaeooüm-universo l og i c a -mente estabilizad~(Construído poruin cónJuiiTc;rclilti-o _ . . ~. .~ _ _._ _ - - · - - . ····0•..... ~,,__ ~.~

vamente simples de argumentos, de predicados e de. .i ~ ~ L ã . . ç Q ~ s I : B ~ i ~ ~ ~ _ p o c Í ; - d ~ ~ ~ ! e v e r

e x a u s H v a m e n t é - ; t r ; V é sde uma série .de 'respos'tas u n ~ y o c â s a...que§tges .fªª,iãis(sendo a pr!ndpar,"-êvidêilfêmente: "c L~ ._fª-tº,qg~m_g~-" h. ... '..o_.•• . · · · y'?''')' o., -;" ,. ". - ...•". __ o

n ou, ou . .- . . . , . , - . , - ~ _ - ~ ''- '''."" ''''"~"~,..• .. ,, ,. , , . . .. . • . . . ' ' ' ' ' ,. .. .. , . ;; , -- ,. ,

Questões do tipo "quem ganhou na verdade? emrealidade? além das aparências? face à história?", etcaparecem como questões que não seriam pertinentes, e,no limite, até absurdas, a propósito de um resultadoesportivo.

Provavelmente, isso' se prende ao fato de que a

questão do jogo é Iogícamente definida como estando

contida em seu resultado: "tal equipe ganhou" significa

"tal equipe ganhou o jogo em questão contra tal outra",

ponto, acabou. As marcas e objetos simbólicos susce-

tíveis de se associarem a esta vitória (e, logo, de serem

22

IIapropriados" pelos torcedores que se identificam à

equipe) ~Q.-ª.I2~J.!ªswnotaçõe~~ecup.dárias do res~não é certo que se possa mostrar ou descrever o que aequipe vencedora ganhou.

.Tomados pelo ângulo em que aparecem através damídia, os resultados eleitorais apresentam a mesma uni-vocidade lógica. O universo das porcentagens de resul-tados, munidos de regras para determinar o vencedor éele próprio um espaço de predicados, de argumentos erelações logicamente estabi lizado: desse ponto de vista,d i r -se - á que no dia 1 0 de. maiQ~.1q2ois de~~aproposição "P. Mitterand foi eleito presidente da Repú-

~~~ã~~f.õ~!SI~~L~; oÜtõ-~I._

Mas, siniultaneamente, o enunciado "On a gagné"I"Ganhamos"] é profundamente E m M i º , - ; " sua materiali-dade léxico-sintática (um pronome "indefinido" em po-sição de sujeito, a marca temporal-aspectual de reali-zado, o lexema verbal" gagner" ["ganhar"], à ausênciade complementos) imerge esse enunciado em uma redeO \! relações associativas implícitas - paráfrases, implí-

.' cações, comentários, alusões, etc - isto é em uma sérieI ' ~==~~\ heterogênea de enunciados, funcionando sob diferentes\I,!egis~ discu!~yos:-e ~ ~~~bTIIdãdê1ógica -vã-! riável;. . ._..... ':.~

\Assim, a interpretação polí tico-esportiva que acaba

de ser evocadanão funciona como proposição estabili-zada (designando um acontecimento loca iza o como um

ponto em um espaço d~.J!~juEx~~~}ógicas s;nã1 ê õ " ; ;a condiçã~, de nã~, S~, interr~ar a referência ,o sujeit,2do verbo, gagner [ganhar [, nem a de seus comple-mentos elididos.

li ?",

,

23

1 1 \

Page 12: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 12/34

I "

i 1

I :I:

1 1 !

iJ

I ~ li On a gagné!" [ li Ganhamos!"]. .. nós nos havía-I I 1 mos regozijado do mesmo modo em cada vitória da

1 1 \ esquerda, em maio de 36, na Liberação. Outros, antes

I ~ de nós, tinham feito-os mesmos discursos. "On a gagné!"I I1 [ l i Ganhamos! "]. E a cada vez era uma "experiência"I r i que não tinha durado muito, no atoleiro das abnegações,i i l dos entusiasmos, brilho súbito e fogo de palha, antes! : ! ..h ~a re,~aída, do d,e~~oronamento e da derrota consen-I ; t i ~ tida. On a ga,gne! [ li Ganhamos! "]. panhamos o guê,

1 1 ~>como, e por quê?:UI : ~I l iI i

' 1 1,i

r" It , ',II í ,, 'f ,ií ' j ' :

'i \

I i: ~l :1 -

i ~,i,

Dois anos depois, a questão reaparece no circuitodo debate político:

ral, torcedor hesitante e cético até o último minuto ...em que o inimaginável acontece: o gol decisivo é mar-cado e o torcedor voa em apoio à vitória ..J ) enunciador"O '''[''G h " l I "• I _ n a gagne an amos ....._unde aqueles ,9,ueainda

:;~?ia~r,~~_~~Ei~~:~~_:~gu~!~.~.,_'l~~j~~l!ªS?~.~~~E~i-tavam . '~=

"b / )iobre o complemento do enunciado: ganhou o quê,

como, por quê?

Uma espiada no dicionário nos ensina que o verbogagner [ganhar] se constrói:

»<" .

' "(~ Sobre o(~~.~~~~,~~~_~~~~~!~do:uem ganhou?

com um "sujeito animado" (um agente dotado devontade, de sentimento, de intenção, etc): ganhara vida, ganhar tanto por mês; ,

- ganhar em uma competição, ser, o vencedor;A sintaxe da língua francesa permite através do on

indefinido, deixar em suspenso enunciativo a /designa-ç ã o da identidade de quem ganhou: trata-se do "nós"dos militantes dos partidos de esquerda? ou do. "povoda França"? ou daqueles; que sempre apoiaram a pers-pectiva do Programa, Comum? Ou daqueles que, nãomais se reconhecendo na. categorização parlamentar di-reita/ esquerda, se sentem', no entanto, liberados subita-mente pela partida de Giscard d'Estaing e de tudo o

que ele rep~-Uü-aãqueles que," nunca tendofeito política", estão surpresos e entusiasmados com aidéia de que enfim "vai: mudar"? ..

- ganhar em' um jogo de azar, ser o vencedor dogrande prêmio;

- ganhar ter-reno, espaço, tempo (sobre o adver-sário) ;

O apagamento do agente induz um complexo efeitode retorno, misturando diversas posições militantes coma posição de participação passiva do espectador eleito-

24

ganhar galardões, uma medalha ...

- ganhar um lugar, um posto, um lugar (cf. vol-tar para seu posto);

- ganhar a simpatia de alguém, ganhar alguém(homens, aliados. simpatizantes . .. );

III 'II :

I I

I!

I

!II

II ':i

25

· ;r ~ " ;

Page 13: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 13/34

I j

ou com um "sujeito inanimado" (uma coisa, umprocesso desprovido de vontade própria, de senti-mento, de intenção): .são então "agentes" que se

tornam objetos:

- o calor, o frio, o entusiasmo, o sono, a doença,a alegria, a tristeza ... me, o, nos ganham (se apo-

deram de mim, dele, de nós ... ).

da sorte; de toda forma, o bem supremo que vai admi-nistrar o melhor para o b~ de todos), ora como umespaço, resistente à conquista, no confronto contínuo

.* contra as feodaHdades de toda. ordem (que tudo fizeram- --

para que "isto jamais acontecesse" e que continuama resistir) ora como um ato performativo a se sustentar

(fazer o que se diz), ora como novas relações sociaisa serem construídas.

::c c:: .-- ..

"

I1

"O n a gagn é " [" Ganhamos"]: há dois anos <2 equí-voco da fórmula trabalha a esquerda nos postos go -..• -- -=<....-.-.......

vernamentais, tanto quanto nas diferentes camadas daI - I b lh I \ 11 di ,,,popu açao; e a tra a a a uees ue acre ltam nIsto,

e 'aqueles que estão em falta quanto à crença; a ueles < .qú"eesperam um 11grande movimento popular" ~ aqueles ~'

que se resi nam ao a-politismo generalizado; 'os 11 res-

ponsáveis" eos outros,os homens de apareI os e os11 simples particulares" , . ,-De onde resulta um doloroso

estiramentoentre duas tentações para escapar à questão:

<õ- a tentação de negar o equívoco do aconteci-mente do dia 10 de maio, por exemplo, fazendo-ocoincidir completamente com o plano logicamenteestabil izado das inst ituições polít icas (" sim ou não,

a esquerda está no poder na França? se sim, tire-mos as conseqüências. , . ") ,

, Que parte, cada um desses funcionamentos léxico-sintáticos subjacentes, tomou na unidade-equívoca dessegri to colet ivo que repercutiu? "On a gagné" [ It Ganha-mos"] . .. A alegria da vitória se enuncia .sem comple-mento, mas os complementos não estão longe: ganhamoso jogo , a partida, a primeira rodada (antes das legisla-

tivas); mas também (em função do que precede) ganha-mos p or s or te , como se ganha o grande prêmio quandonem se acredita; e, claro, ganhamos terreno sobre o

adversário , já com a Er~messa de ocupar posições nesteterreno e, antes de tudo; ocupar com toda legitimidadeo lugar do qual se governa a França, o lugar do poâergovernamental e do poder do Estado; u~ esquerda tomaõpoder na França ,r é uma E.aráfras~ lausível do entE}-

;P clado-fórmula, "on a gagné" ["ganhamos"], ~o prolon~

g~meI).to do acontecimento,_ .

O poder a tomar: enfim, alguma coisa que se pode-ria mostrar a título de complemento do verbçgagner

[ganhar] ,~ é certo que sepOssã:S~tstr!t de forma

unívoca ~o-.çl~fl.y*~~_.!!~ti2 O ttpod~r:' apa~ece,efetivamente, ora como !!m objeto adqulrld<;> {Justoresultado de um grande esfor~~, ou, ~eito inespera'!o

~- ou então a de negar o próprio acontecimento,fazendo como se, finalmente, nada tendo aconte-

cido ("0 que ganhamos?"), os problemas seriam

estritamente os mesmos se a direita estivesse nopoder 10,

26

I >'II I

I

I

l iI

; /

' l i

, Ilil ilililili

I'

d

I '!III

27

fi, il

,I I

Page 14: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 14/34

- - ,

II !I

i,Ceder a uma ou outra dessas duas tentações sepa-

raria definitivamente as "duas esquerdas" u~a .da o~tra,

entregando as duas ao advers~~i~ \~ se,a direita vIe~sea retomar o -poder na França nos venamos - muitotarde - o que U nós" teríamos perdido).

A partir do exempl~ de um_ acon,t~cimento, o " d odia 10 de maio de 1981; a questao teórica que coloco

é, pois, a dQ estatuto dasdiscursividades ~u~ trabalhamum acontecimento, entrecruzando proposiçoes de ap~-rência logicamente estável, -suscetíveis __e resposta U~l-voca (é sim ou não, é ~ ou y, etc) e formulaçoes

irremedia~~imente equívocas. . ~,o i}" Lv\ ~ - . .. A ~. e~~

M~_'~"";-"'.·__ '_'."' '.... .'. ~

~_+ (~ i~!~ lLJ ! i§ -ç !J. ~§ IY2§ :;e talh: estável, detendo oapdrente -privilégio de serem. .ate certo ponto,. larga-mente' independentes dos .enunciados que produzlm~s aseu -respeito, vêm trocar seus' trajetos com outr.,?~ tipos

de objetos, cujo modo de existência parece regido pelaprópria maneira com que.falamos deles: _

uns devem ser declarados mais reais que outros?

- há um espaço subjacente comum ao desdobra-- mento de objetos tão dessemelhantes?

\ São essas as questões que gostaria de abordar agora.

28

lI. CIÊNCIA, ESTRUTURA EESCOL ÃSTICA

Supor que, pelo menos em certas- circunstâncias,- - - - -á independência do objeto face ~ qual9.!!er ~~~ofeito a seu respeito, significa colocar que, no interiordo que se apresenta como -o universo físico-humano(coisas, seres .vivos, pessoas, acontecimentos, proces-sos ... ), "há real", isto é, pontos de impossível, deter-

minando aquilo que não Eode não ser U assim" I (O real- - - - ~é o impossível. .. que seja de outro modo).

Não descobrimos, pois, o real: a gente se depara

com ele; dá de encontro com ele, o encontra.

Assim, o domínio das matemáticas e das ciênciasda natureza 1id~~-~~~o-real-n~--medida em que se

pode dizer de um matemático ou de um físico que ele

encontrou a solução de uma questão até então não

. ~,-'

29

i

I

II :

I II :I

I

I

!

Page 15: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 15/34

resolvida; e diz-se também que um aluno, face a umexercício de matemática ou de física uencontrou" talparte do problema (ele -~,certou" tal ou tal questão),

11 de"nquanto se per e, no, resto.

mas operações) detentores de saber, especialistas e res-ponsáveis de diversas ordens - repousam, em .seu fun-cionamento discursivo interno, sobre uma proibição: deinterpretação, implicando o uso regulado de proposiçõeslógicas (Verdadeiro ou Falso) com interrogações dis-juntivas ("cestado de coisas 17 é A ou não-A?) e, corre-lativamente, a recusa de certas marcas de distância

discursiva 11 do tipo 11 em certo sentido", 11 se .se desejar",11 se podemos dizer", 11 em um grau extremo", 11 dizendo

mais propriamente", etc (e, em particular, a recusa dequaisquer aspas de natureza interpretativa, que des-locariam as categorizações; por exemplo, o enunciado:"Fulano é muito "militar" no civil", enunciado que é

aliás, perfeitamente dotado de sentido).' .- - . . - - - '- -- - - _ . . _ - - -_ ..•---"--"-""' -

Nesses '~spaços discursivos-tque mais acima desig-,-._------------,------ . )

namos como "Iogicamente 'estabilizados,") supõe-se que

todoI

sujeito falante sabe do que se fala, porque todo~CÜtd_º_-pt:o~uzido, nesses espaçosj:é!íete proprieda-des estruturais independentes. de sua enunci~: essaspropriedades se inscrevem, tra:nsparentemente, em umadescrição adequada do universo, (tal que este universoé tomado discursivamente nesses espaços).

Um grande número de técnicas materiais (todas asque visam produzir transformações físicas ou biofísi-.c as) por oposição às técnicas de adivinhação e de inter-pretação de que falaremos mais adiante, têrri que vercom o real: trata-se de encontrar, com ou sem a ajudadas ciências da natureza, os meios de obter um resultadoque tire partido da forma a mais eficaz possível (istoé, levando em conta a esgotabilidade da natureza) dosprocessos naturais, para instrumentalizá-los, dirigi-Iosem direção aos efeitos procurados. ,

A esta série vem se juntar a multiplicidade das"técnicas" de gestão social dos indivíduos: marcá-los,

identificá-los, classificá-lós, compará-Ios, _colocá-Ios emordem, em colunas, emrtabelas, reuni-Ios e separá-lossegundo critérios definidos, a fim de colocá-Ice no tra-balho, a fim de fnstruí-lcs, de fazê-los sonhar oudelí-

rar, deW{àtegê~r0S':e de~~!güí:!º~~-de levá-los à guerra e'de lhesfazei"nrh'ü-s .. -'~----iisteespaço administrativo (jurí-

dic(» econômico e político) -'apiesenta ele também as.,

'I' __{>::iÚi~~~iE~~~~~ª~'-~ª~n~~QJ9.[~çi:dl§l~~Iiv'à;:,11 impossível" o'

• que tal pessoa seja solteira e casada, que tenha, diplomae que não o tenha, que esteja trabalhando e que esteja

desempregado, que ganhe menos' de tanto por mês eque ganhe mais, que seja civil e que seja militar, quetenha sido eleito para.rtal função e que não o tenhasido, etc ...

Esses' espaços - 'através dos quais se encontram_estabelecidos (enquanto agentes e garantia dessas últi-

30

E o que unifica aparentemente esses espaços dis-cursivos é uma t. série de evidências lógico-práticas, de

I

nível muito geral, tais como:

I

iI

; I'I:I j

' I'. ,

, I :

: I ;"II

~iIt i l

: '1. 1 1 :

J-_ <, !. 1· :

- um mesmo objeto X hão pode estar ao mesmotempo em duas localizações diferentes;

- um mesmo objeto, X não pode ter a ver aomesmo tempo com ..a propriedade P, e ~ proprie-dade , não-P;

31

Page 16: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 16/34

I:

I:. ii

: i'II

l i.1 .

I. 1

um mesmo acontecimento A não pode ao mes-mo tempo acontecer e não acontecer, etc.

Ora, esta homogeneidade lógica, que condiciona ologicamente repf"esentável como conjunto de proposicõess~uscetívek de serem verdadeiras ou falsas, é atravéssad~por uma ~rie de equívocos; em partk~I;r termos como

l~i, rig.,or,ordem, E~io, etc ue "çobrXJ!l" ao mesmotempo, como um atc work heteróclit Ó domínio das

e, .. • .' ~~~ ~~

Ç1enclas~fltas, O das tecnologias e o das admilliê.tu!-ções 12. '

.Esta" cobertura" lógica d~~iões heterogêneas do~L é umE~.§!11~UQ bem mais .g~iºiçº~~ilstem~Iio.para que possamos aí ver uma simples impostura cons-truída na sua totalidade por ~gYllL.E.ri!1cipemistifi~~dor: tudo se passa como se, face a essa falsa-aparência

~~~llial-soSial-hi§i9.illQ1J1Qill.Qg~iiiQ_cob;topor uma rede· de-EE2 ..osições lógicas, nenhuma pessoativesse o poc.i~deescaÍ?ar totalmente, niesmo, e talvezsobretu~-:~!!.el~~_gy;,:;~-~~r~ª.m:.:~n~2:~it;n Iórios":como se esta adesão de CQ!lj~ de'y~sse, por imperio-sas razões, vir a se realizar de um modo ou de outro.- -~.-.-...-• .-.- ..-...~~. ... •-~.'-,.-~-,-_.~~--~",. .. .~ • . .~.

Se descartamos todas as explicações que não o são- na medida em que elas são apenas comentários dessamesma .adesão -, há talvez um.,E.onto crucial a consi-derar, do lado das múltiplas grgências do -éOtidiano;mas colocar em jogo. este l?.9EtOsUl'õe suspender a' pb;i-

~ .. ~.~.~""~_"-.~_1 , __ """"I

~ ~ ~ i i ~ ~ l I i t~ íí~ ~ n ~ ~sentld,9_ .~ !lE .!E ! ! 1 fL ~ 3e tambéQ.'rtpo·sentidõ<coritemporâ-neo do termo. lJ ~ .- -- · _~- . _ \~ ~ ,_,,~.=o,,",,_

32 .' I!

33

A idéia de que os espaços estabilizados senamimpostos do exterior, como coerções, a este sujeitopragmático, apenas pelo poder dos s~~tistas, dos eSE,e-cialistas. e responsáveis administrativos, se mostra in-sustentável desde que se- " ã C Õ n . S I d e r ê ' um pouco mais

. "'--"iseriamente. '. , ; ;c . f 6 .) '"

.......----~~---_____ ~l ~J~ - <:» '<)r . '\

~\.9 ~jeito pragmátifg!- isto é, cada um de nós, .os "i[fnples particulares" face às diversas urgências de ....sua vida - ~or si mesmo uma ..imperiosa .neces.~/dade de homogeneidade IQ~ isto se marca pela exis-tência dessa ll!ul.!!E1i~id~~~.A~.l?~s.,l!~~=*,ê.!g~.mª§.jggj-cos portáteis que vão da gestão' cotidiana da existência.,. ,,_~ "'~' __ ~". . .~'r. "_ "''' '''''''''''''''''',",' ,.~ ,.~,.•. •.,:. ..~

(por exemplo, em nossa civilização; o porta-notas, aschaves, a agenda, os papéis, etc) até as "grandes deci-sões" da vida social e afetiva (eu decid~f~~e;-i;t~-'e

: ~ d : ~ ! ~ O ' t o ~ ~ - : : ~ ~ : ~ ~ ~ : t~ e ~ ~I.. - -- ......--...•..•.•.....-ro"'~.___ _ _..__

~ (isto é, a ~éri~~s _~~jetqt.9.!-lY~k~!Ünose que a rendemos a fazer funcionar, que i.Qgamose que

-_.~- - ~" <q' -~.

JJ~InQs., que ~PEamos, que consertamos e que subs-gMmos).....

Nesse espaço de necessidade eqyíY9Ç€1,misturando. . .~ ,_.-~---'-' . . .. ... • •.. - -

~ois~s e pessoa,s, ~c~ico~. e ~ecisões mo~, :modo. dê empre&.oe e3colhas polític~s,§~à;'1_- . i

(desde o simples pedido de informação até a discussãô, ~o debate, o confronto) é suscetível de colocar em jogo !.

- -""--...,-~_.-,-.: j

uma ~ã? J2 g~ das .P~?~2.ª~~,",_~!:.~.~~Y,~LsI- com, de vez em quando, o sentimento insidioso de"- •_ , , - - - - - - . .-"'•.. • ...,,,..,'~,-,--uma simplificação JltllV_2S!,eventualmente mortal, para-_ . .• . • ,~.. '----- .--~.~-~'----si-mesmo e/ou para os outros.

~_----..-.' •• •••.• • • • _ •• _. Jr-=.T ._- =.~-,..,.. ~"""

,.'..

Page 17: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 17/34

De nada serve negar essa necessídade 1d~~jgl deaparência, ~ículo de di§.Ü!nçõese ~9rizações lógi-

,.• . ._~cas: essa necessiq~iversal de um <t mundo seman-ticamente normal", istoé, normaÜzq.@ , começa com a

relação de cada um com seu 2!9priº_J~Q!12o. ~~~ . § ."_ ªr re-42res i~_diatQs (e antes de tudo com a distribuição de

~211ê_e l !1~ l : ! .~_9J2i~~-'?s,arcaicamente f!.g:YX~42~_l?elais-iunç!Q~~~.~~~~J~l11Yllt~~_ -~-~"~.

E também não serve de nada negar que esta ~cyS-sidade de fronteiras coincide com a construcão de lacos

~ . _ ••" ••• _. __ .__ """"" " =--_. •• .ff_•••••.- .••."•••••.•••,, ! · . ,. . , . - - .. .. .., · ~

d,E_Affi~dênciaJace às ~!!1l?la~i~~,~:,~:,~_~ber,conside-radas como reservas de conhecimento acumuladas má-

~ ~ ~ " " ' ~_ , .. . . . " . . . • . . •." " " ' ' ' : " ' '~ " ' '' · __ ~ _ • .• ' ' '' '~ , . .W I . " . . . . . . ,. ' ' . , . . . r . ; , . . , ' '~ · :.' '. " • . • . .' . ' '' '' '' '~ ~ . .,. . . . ,• •. ..• • • • • • ' ; ;" • . ~~

g,Yill il§:g~ ;;M12s:.r 14 contra .as ~~12écie: o~, Estado, e as !p-~uiçõe~_.iu:Qcio.~ o mais freqüente-mente - pelo menos em nossa sociedade - como~l)2l'ixiLegiadºs_de__§~-p.Q§.ta;esta necessi.clacleou a essa~~~1E_~l t<f~-~' ;::'- -.- '~-~-" .

I,r· """'''-'''''· ''''''''': ''t~~ .,; ;

. : . 1 " : / As '(coisas-a-saber ~ .répresentam assim tud,o .. 2 .-Jl!!SL

arrisca faltar à felicida~ (e no limite à simple.s.,sQln:.e.--,._-....."---~~~-~,,. _ _ .,~_.~~---~'"~,,_. . ., .. . .,"' . / . . . .. " . . . • . . . . .• •. . .. -. - .

yiqa biQ!ógi~'.l)dd~.~í~it()p~ãgill"~iis9;~: isto é, tudoo ~ o ameaça E~ io -Jaf~:.,i!iji~~, que!sto ,~ta (ofato de ~e seja 11 real:' ,qualquer que seja a tomada que

9.....§..lJi~~~~t~Q, ..!~!!!:t_~.ouD.:~,Q,~~obre~E~!~O

real) ; não é n~~,~§.~árioer uma intuição )ifenomenoló-'e.~~~dafh1!"~~!I~~~l~;'.t m ª : , . ª ~ i ~ ê n ; i º = ; s -pon~âr.teqda essência do tifoparaseraf~tadol?~Qr ~~sa. d ~ , ~ n ç ª ~ i 5 - ; - * émesmo'õ-cõnt;á;i~; 'h 'á .íi ~~is~s~a-saber~'(conhecimentos a gerir e a transmitir socialmente), istoé, descrições de situações, de sintomas e de atos (a efe-

34

tuar ou evitar) associados às ameaças multiformes deum real do qual 1/ J?in~~_.~~jgnQgL"ª,J~_C',_.=_.P_Qr.~que esse real é impieci2§~~-------_._"'-_.----_.----"""....~-""""'---

O projeto de um saber que unificaria esta ml,l lH ~plicidade ~eteróclita das.coisas-a-saber em uma estruturarepresertiáverliomogênea, a idéia de uma possível ciên-

cia da estrutura desse real, capaz de explicitá-lo forade toda falsa-aparência e de lhe assegurar o controlesem risco de interpretação (logo uma auto-leitura cien-tífica, sem falha, do real) responde, com toda evidência,a uma urgência tão viva, tão universalmente "humana",ele amarra tão bem, em torno do mesmo jogo domina-ção/resistência, os interesses dos sucessivos mestresdesse mundo e os de todos os condenados da terra ...que o fantasma desse saber, eficaz, administrável etransmissível, não podia deixar de tender historicamente

a se materializar' por todos os meios.

A promessa de uma c iê nc ia r ég ia conceptualmentetão rigorosa quanto as matemáticas, concretamente tãoeficaz quanto as tecnologias materiais, e tão onipresentequanto a filosofia e a política! . .. como a humanidadepoderia ter resistido a semelhante pechincha? I,

! i

'- Houve o momento da esco lâs ti ca a r is to té l ica ,

procurando d~~~g,,?lveras categorias que estruturam a/linguageme u'pensalIlçnt6 para fazer delas o modelo e·~.·· '·organone" toda sistematização: questões disjuntivasem utrum (ou... ou) sobre a divindade, o sexo dosanjos, os corpos celestes e terrestres, as plantas e osanimais, e todas as coisas conhecidas e desconhecidas ...Quantos catecismos não estruturaram redes de questões--respostas escolás t icas?

35

Page 18: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 18/34

t !

t> -. Há o momento moderno contemporâneo do rigor

positivo, aparecido no contexto histórico da constitui-ção, enquanto ciências, da física, da química e da bio-logia, associado à emergência de uma nova forma deDireito (organizado em corpo de proposições) e tambémem um novo lance do pensamento matemático: um novoorganon, construído contra o aristotelismo e apoiado nareferência às. 11ciências exatas", procura. por sua vez

homogeneizar o real, desde a lógica matemática até osespaços administrativos e sociais, através do métodohipotético-dedutivo experimental, e as técnicas de"administração de prova".

- E, last but not Ieast, há o momento da anto-l og ia ma rx is ta , que pretende de seu lado produzir as"leis dialéticas" da história e da matéria, outro organon

parcialmente semelhante aos dois precedentes, partilhan-do de qualquer modo corri eles o desejo de onipotência- "a teoria de Marx é todo poderosa porque é verda-deira" (Lenin), No seu conjunto, os movimentos ope-rários não puderam visivelmente resistir a este. presenteextraordinário de uma nova filosofia unificada, capazde se institucionalizar eficazmente, enquanto compo-nente crítico/organizador do Estado (o Estado existen-te/o Estado futuro): o dispositivo de base da ontologiadialét ica marxista (com Q Capital como arma absoluta,11

o míssil mais poderoso lançado na cabeça da burgue-sia") se mostrou também capaz - do mesmo modoque todos os saberes de aparência unificada e homogê-nea - de justificar tudo, em nome da urgência 16.

o neo-positivismo e o marxismo formam assim as11epistemes" maiores de nosso tempo, tomadas em um

36

encavalamento parcialmente contraditório em torno à

questão das ciências humanas e sociais; tendo, no centro,a questão da história, isto é, a questão das formas deexistência possível de uma ciência da história.

. A questão aqui não é de saber se O Capital e as

pesquisas que dele derivaram produziram o que chamei11coisas-a-saber": mesmo para os adversários, os maisferozes, do marxismo, o processo de exploração capita-lista, por exemplo, constitui incontestavelmente umacoisa-a-saber, da qual os detentores de capitais aprende-ram a se servir tanto, e, às vezes, melhor que aquelesque eles exploram 17. O mesmo acontece, para a lutade classes e várias outras licoisas-a-saber".

!

II

II '

!Il iiII II'

I ,

i!frf;

A questão é sobretudo a de determinar se as coi-

sas-a-saber saídas do marxismo são, ou não, suscetíveisde se organizar em um espaço científico coerente, inte-grado em uma montagem sistemática de conceitos -tais como forças produtivas, relações de produção, for-mação sócio-econômica, formação social, infraestruturae superestruturas jurídico-política e ideológica, poderde Estado, etc. .. - do mesmo modo que, por exem-plo, a descoberta galileana pode constituir a matrizcientíf ica coerente da física, no sentido atual desse ter-mo 18.

O momento da ruptura galileana abriu a possibi-lidade de uma construção do real físico enquanto pro-

cesso, delimitando o impossível próprio a este real,

através de relações reguladas combinando a construção

de escritas conceptuais e a de montagens experimentais

(colocando assim em jogo uma parte do registro das

37

~,'. . •.

Page 19: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 19/34

técnicas materiais evocadas mais acima). Desse modo os ~;• • • ' I

pnmerros .I~strumentos (planos inclinados, guindastes, \etc ... ) utilizados pela física galileana eram inevitavel-m~nte ant:ci~ados no espaço tecnológico pré-galileano;e e no propno desenvolvimento da física que tais ins-trumentos se transformaram para se adaptar às n éê essi-dades intrínsecas desta, .corn, em efeito de retorno a

produção de objetos técnicos industrializados indefini-damente alargada, associada a uma nova divisão técni-co-social do trabalho ("eruditos", engenheiros e técni- Icos) que faz também a física aparecer como uma )11 ciência social" 19. _J

r As conseqüências intelectuais da descontinuidadei galileana se marcam pelo fato que, para não importa! que físico hoje, Aristóteles não é nem um colega, nemI ~~rimeiro, físico: Aristóteles é simplesmente um grande

~ ftlo~~fo; Un:a outra marca desta descontinuidadeé que/ a física galileana e pós-gali~eana não i?terpreta o real/ :-: ~esmo se, bem entendido, o movimento que ela. /I Ir:1cIa,.0 da constru?ão do real físico como processo, Y , . . ,t nao deixa de ser objeto de múltiplas interpretações.

. "-" -" '- ,

. A questão' que coloco aqui é a de saber se Marx, ipode,ou não, ser considerado como o Galileu do lic o n l Ktinente história'l ? " . Há" um impossível específico à his-;\ tória, marcando estruturalmente o que constituiria o

) 'real? Há uma relação regulada entre a formulacão de/ conceitos e a montagem de instrumentos susce t íve i s de

aprisionarem esse real? / E podemos discernir, com o

advento do pensamento de Marx, umadescontinuidadetal que o real histórico deixasse de ser objeto de inter-

pretações divergentes, ou contraditórias, para ser cons-

38

tituído, por sua vez, em processo (por exemplo, em"processo sem sujeito nem fim (ns), segundo a célebrefórmula de L. Althusser)?

'f A constatação da 11 crise do marxismo" é hoje sufi-cientemente admitida para que eu seja direto, dizendo:udo leva a pensar que a descontinuidade epistemológica.ssociada à descoberta de Marx se mostre extremamenteprecária e problemática. Marx não é nem o primeirohistoriador, nem o primeiro economista, no sentido emque Galileu seria o primeiro físico: Tucídides, que nãoé aparentemente um colega para os atuais praticantes dehistoriografia 21, é seguramente um historiador tantoantes como depois de Marx. Tudo que podemos suporé eventualmente que Tucídides não será lido da mesmamaneira, se esta leitura levar ou não em conta a 11obrade Marx" (quer dizer, de fato, tal ou tal leitura de talou tal texto assinado por Marx ou Marx-Engels. etc).Mas não podemos dizer exatamente o mesmo de todogrande pensamento que 'surge na história? Na falta deser o fundador da ciência da história, Marx seria umgrande filósofo: um pensamento. da importância da de

- Aristóteles ...

I

II I,.! ~

I I,o que poderia acontecer - o que, de certo modoaconteceu - é que Marx foi considerado como. .. oprimeiro teórico marxista, a despeito da famosa frase

pela qual ele rejeitou este adjetivo categorizante, quecertos companheiros seus já haviam forjado enquanto

ele vivia, por derivação a partir de seu próprio nome.

o fato de que Marx tenha assim recusado se reco-nhecer nos efeitos iniciais associados à 11 recepção" só-

39

Page 20: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 20/34

do-histórica de sua obra foi quase sempre entendidacomo uma ~g~ão, signif-icande--de.Jato.:.....':Eu)"_KarI~rx, sou,,~fe.tiYªm_enj§ UlaL:o,istél.:...:....:-masão no sentidoem -qi.1e"se entende cornumente", Nesse ponto precisocomeça, me parece, a temática aristocrática da "boa"!eitura oposta às más leituras (banais e falaciosas);'dainterpretação justa, sempre em reserva quanto as inter-

pretações errôneas, da verdade como télos de um pro-cesso de retificação potencialmente infinito.

A fantástica série deefeitos escolásticos de desdo-bramentos. d~ leituta~!éri~<?/esoJ@co, M~rx lido porX/Marx lido por Y, etc) ao qual "0 marxismo" deulugar desde o começo, com um adiamento quase i~de-fi~ido do momento da experiência decisiva, não seriaentão tão espantosa: o impossível próprio à estrutura

<;do real histórico - isto é, -o real visado especificamente

pela teoria marxista - seria literalmente inapreensíveln~~ 11aplicações" da dita 'teoria. O mesmo ponto apo-rético surge por um outra: viés, o da questão dos "ins-trumentos": se consideramos (como é o caso, há umséculo, para uma parte não negligenciável da humani-dade) o marxismo COID~ ciência da história posta emPF~tiç-ª,_,12elo_._pxºle~~Eia~~,~ª~Y~!!1~§~~~çlmi{r--que~<>~~-pra-t~_~~llt~§...-d,a._.ci~nçi'!m ,~n1e~!.~9.,.J~!,;:tpons"trangidoª,a1f~!EPJ.esta.t:~.",domun4º_ ..§9cial-histórieo exTstenté:-iogoP_~~:mªrxistar' toda ..y . m ª_ _~!F-de-rniitrunieniôs·'"(iilstitui-cões o 11· lh'" f .. ~'~~"'~'--~",-.,.' ..,.~,.~~._._.".,~ll"~•\P.ªn~.~gs .•. 9X!!!.~~_:.~~.organização, de práti-c~_~,,~!~)"pªxa ...que ~.st~.,~.~ência-rática pudessé".,iie·~êõns-~i!~ir - .. ªop1e.~.IE?.~~m~~,~§..íijõ~~sE~Çode~onhedíii~toe como força de intervenção na histórra:'''-~' _._~-

( • , ,o .__ • • - "~

jI;

li'I'j,I

IifI'

, III i

...- :f

Na medida em que se trata de intervir na históriaobedecendo suas leis (o que pressupõe que as (Icoisas-a-

40

- +

saber" que concernem 'à história, a sociedade, a polí-tica. .. têm a estrutura das leis do tipo científico-gali-leano) é absolutamente compreensível que, como os pla-nos inclinados e os guindastes de Galileu, os primeiros"instrumentos" uti lizados tenham sido tão' dessemelhan-tes de suas novas finalidades 11científ icas", tão inade-

quados a sua função transformadora, em uma palavra ...tão grosseiros. (S Q os utopistas i~er.ados podem crer'. . . .,... ~--~--'

que é possível .cOI1§.tnlir,~~~iEi1-º-lais ins!ru~!5's só-~,~õ:põmicos"-.do magicamente _~'2_i'..~'§ "º-_ci º_~§ .ª-

-;t'·i.·,,~··':··----~-'-''''''--~""."",..,._...""",.,..._.~do ).'~" '''''

Mas o problema crucial, é que, à. medida em quese desenvolvem as 11aplicações" domarxismo comociência-prática, os novos instrumentos, órgãos ou apa-relhos (relconstruídos sob sua responsabilidade 11cientí-

fica" continuam a se parecer, grosso modo, com asestruturas anteriores - às' vezes com agravantes quesão mais- do que deslizes acidentais: em particular o

mesmo patchwork, a mesma falsa-aparência da homoge -neidade lógica - encaixando a estabilidade discursivaprópria às ciências da natureza, às técnicas materiais eaos procedimentos de gestão-controle administrativo -não deixou de reinar nas diferentes variantes do marxis-mo. 'Em outros termos, e para dizer a coisa brutalmente,os instrumentos não seguiram a teoria nas suas 11 apli-cações" . .. o que pode também se entender como oindício que a ciência-prática em questão não foi jamais

(ainda?) aplicada verdadeiramente ... '

Mas falar assim, é ainda supor um "verdadeiro"

marxismo de reserva, um marxismo "inincontrá-vel" 22 ... É, no fundo, repetir a denegação do próprio

41

I 1

I"

I

I

II

'

, : " . 1

11

Page 21: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 21/34

Ij

jI

IIi

II

I ,iII

II

II í

I ~I'

"lIl i

1 II 1

j

\ 1

l i 'I t! I I

i i i

1 Ii i, Ii I

11

"1!;~

•I.

! I i'I 'l il)

~ 1 !

j ,

I :i r

. ,

' .::,;; .j

'~

\"

ª~

6

Marx a propósito da interpretação de sua obra; é aindaidentificar-se ao gesto de Marx, no que ele tinha de maisau toprotetor.

Vamos parar de proteger Marx e de nos protegernele. Vamos parar de supor que "as coisas-a-saber" que -:concernem o real sócio-histórico formam um sistema

estrutural, análogo à coerência conceptual-experimentalgalileana 23. E procuremos medir o que este fantasmasistêmico implica, o tipo de ligação face aos 11 especia-listas" de todas as espécies e instituições e aparelhosde Estado que os empregam, não para se colocar a simesmo fora do jogo ou fora do Estado(!), mas paratentar p~ns~r. os problemas fora da negação, marxista

, _ , ~ âá 4-interpretação'; \ isto é~,'encar.ando o fato de que - ª - - ," hktórfã-é-~tha_ disciplina :..de ~terpretação e não uma-, - ~ - - - - - - - -- ~ _ ._ - - - - - - -/'\~física- de tipo novo. -- ----,.

'<,

iI

!I1I

II1

1Jj'l·

I1

4 2 I

. .,

Interrogar-se sobre a existência de um (ieai) próprioàs disciplinas de interpretação exige que o "não-Iogica-mente-estável não seja considerado a priori como umdefeito, um simples furo no real.

É supor que - entendendo-se o "real" em váriossentidos - possa existir um outro tipo de real diferente

dos 'que acabam de ser evocados, e também um outro

tipo de saber, que não se reduz à ordem das "coisas.

a-saber" ou a um tecido de tais coisas. Logo: um real

constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um

saber que não se transmite, não se aprende, não se en- -

sina, e que, rio entanto, existe produzindo efeitos.

o movimento intelectual que recebeu o nome de

, .,estruturalismo ti,! (tal como se desenvolveu particular--

I! /r i

l i!

: !l i -'I

Iiil

, 1

, - · 145

!

Page 22: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 22/34

1i.I'

I mente na França dos anos 60, em torno da lingüística,'da antropologia, da filosofia, da política e da psicaná-lise) pode ser considerado, desse ponto de vista, como

ruma t.entativa.,"~ti~ ..-- . OSiti.YÍ.stavisan<l:,~a levar. e.m.,~.onrar-j ,d I . este tipo, de real; sÇlb.t:e_o_~~q.uaLo_pensamentQ...Y~l!J,d,ªJ:' i

" U9-en1recr~z~:n;e6to~~lit1;g~agem e da ~istória.,-"': :

<Â" Novas práticas de leitur~~:~;~cas,' arqUeOI;gi---'

cas, etc ... ) aplicadas aos monumentos textuais, e, deinício aos Grandes Textos (cf, Ler o Capital), surgiramdesse movimento: o princípio dessas leituras consiste, • ; ~como ..se sabe, em 111ultiplisar<as re1âéões'entreo':'que'-é"-"'díto'aq~r(em tàrrugar)~"':~'dito assim e não de outro' \jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, }a fim de se colocar em posição de "entender" a pr~.;_/sença de não-ditos no interior do que é dito. L. /"

i

I'li

-, Colocando que "todo!fato já é uma interpretação"(referência antipositivista ; ' a Nietzsche), as abordagens

estruturalistas tomav~m o partido de descrever os ,,~r!_~~:.."j~s~~t~:(ChIfli.sc_~!,~E1;lzs,iY9§_,ª,.Sl1l:l illtrinç ªç ªº,JJH ;t}§!,ía r J u .paradoxalmente, colocavam assim em suspenso a produ-ção de interpretações (de representações de conteúdos,Vorstellungen) em proveito de uma' pura descrição(Darstellung) desses arranjos. As abordagensestrutura-listas manifestav-am assim suã:,r,eúisã-a~t-~e constitUir ,_,..~-~-,.:-~.+r: ··- - .. ,. . _ :r ·< ,. . ~ - - · , , ~ ;; ~ · ~' _ · _ · _" - .-- -' ' ' ' ' ' • . - -- - - .- -.~ - - " ' " ~ - "- ~ - . -- - ~ - - ~ - - -- - .. .- ; .. ._ . .- -

em "ciência .íégia j,i da estrutura do real. Ncentanto,

'. 'veremos <laqul"a"'pouco como elas puderam 9~~~~)por

sua veZ,~,a este fantasma: e acabar por aparentar uma• : ." .. ,. 1 - .•. .. • . ., , . , • . _ ' ._ , , ~ , .f : " " , , ". , . , " , ",

nova ctencta regIa .,. ':i:::}

Mas é preciso antes sublinhar que em nome deMarx, de Freud, e de Saussure,r!'tfn;,;basê teórica nova,

!

- 44

politicamente muito heterogênea, tomava forma e de-sembocava em uma construção crítica que abalava asevidências literárias da autenticidade do "vivido", assim'como as certezas "científicas" do funcionalismo po'~iÍi-vista. Lembro como, no início, de Ler oCàpítql, AI-

\... - ..-""---

thusser marca o encontro desses três campos: :/"

"Foi a partir de Freudque começamos a '~~speitar"

do que es~utar, l~go ~o que falar (e _~a~~&.quer dizer:que este quer dizer do fa:lar e do 'eSCutar descobre,sob a inocência da fala e da escuta, a profundeza deter-minadade.um fundo duplo, o "quer dizer" do dis~'úrso'

"r- ,; .> ;; < < •• > . ,, , , , ., , ~. . ' . , " ~ " - . ~ . , -- " , . .", . • . ,.,>- _:.

\ ' , s ! : .< : , . incons~,~n,te..,- este fundo duplo do qual a lingüís-ticã"'fiió~derna, nos mecanismos da linguagem, pensa os

efeitos e condições formais," (p. 14-15).

o efeito subversivo da trilogia Marx-Freud-Saus-sure foi um desafio intelectual engajando a promessa

de uma revolução cultural, que coloca em causa as evi-

dências da ordem humana como estritamente bio-social.

:: - :< Restituir algo do trabalho específico da letra, do . ./

símbolo, do vestígio, era começar a abrir uma falha no

bloco compacto das pedagogias, das tecnologias (indus-triais e bio-médicas) :-dõs'humanismõs-morali~antes ou treligiosos: era colocar· ein questão essa articulação dual /;/ Ido biológico com o social (excluindo o simbólico e o" ~significante). Era uni ataque dando um golpe no narci- I!

11

sismo (individual e coletivo) da consciência humana (cf. I f

~t

Spinoza e seu tempo), um ataque contra a eterna nego- I !

ciação .de "si" (como mestre/escravo de seus gestos, / !palavras e pensamentos) em sua relação com o outro-si.

45

Page 23: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 23/34

Em uma palavra: .a r~~~luçã;'~~ltur~r~~~utUrãlist~1não deixou de fazer p\esãr"llJ:rlá"sú~p~iiããb'sórüf~inent~explícita sobre o registro do'psicológIco (e sobre as .psi-cologias do 11 ego ",' da "consciência", 'do 11comporta-.mento" ou do 11 sujeito .epistêmico "). Esta suspeita nãoé, pois, engendrada pelo ódio à humanidade que fre-

qüentemente se emprestou ao estruturalismo; ela traduzo reconhecimento de um fato estrutural próprio à Qrd.§1ll.humana: o da castracão simbólica.

t..-.~~ ~ ~

Seja o enunciado empmco Pl (por exemplo: "0

rosto do socialismo existente está desfigurado")

Pl não significa de fato outra coisa que ...

é o mesmo em termos teóricos que dizer

que ...

dito de outro modo ...

Mas ao mesmo tempo, esse movimento anti-nar-císico (cujos efeitos políticos e culturais não estão, V'i-sivelmente, esgotados) balançava em uma nova formade narcisismo teórico. Digamos: em um narcisismo daestrutura.

quer dizer ...

o enunciado teórico P2 (por exemplo 11 a ideo-logia burguesa domina a teoria marxista") ..

f i

.Esse narcisismo teórico se marca, na inclinação es-tru turaiist~-;-peIã'reinscriçã:O de suas "leituras" no espaçounificado de uma lógica: conceptual. A suspensão dainterpretação .(associada aOS gestos descritivos da lei-tura das montagens textuais) oscila assim em uma espé-cie de. sobre-interpretaçãoestrutural da. montagem, como.efeítode conjunto: esta sobre-interpretação faz valer o

1 1 t~Ó!iCO" como urnaespécie de' metalíngua; organizadaã ü modo' de uma rede de' paradigmas, A sobre-interpre-tação estruturalista funciona a - partir de então comoum, dispositivo de. tradução, transpondo 11 enunciados em-píricos vulgares" em 11enunciados estruturais concep-tuais"; esse funcionamento das análises estruturais (e. .. . .. ~-----.:.

em particular do que poderíamos chamar oin~teria1i§.mo

estrutural ou o estruturalismo políticof'perma~~~~ assim

secretamente regido pelo modelo geral da equivalência

interpretativa. Pa~a esquematizar:

É antes de tudo esta-posição de desvio teórico,

seus ares de discurso sem sujeito, simulando os proces-sos matemáticos, que conferiu às abordagens estruturais

esta aparência de nova "ciência régia",' negando como

de hábito sua própria posição de interpretação.

o paradoxo desse início dos anosBü, é que o

deslizamento do estruturalismo político francês, seu des-moronamento enquanto ,lIciência régia" (que no entanto

continua a produzir efeitos notadamente no espaço la-

tino-americano) coincide com um crescimento da recep-

ção dos trabalhos de Lacan, Barthes, Derrida e Fou-cault ~o domínio anglo-saxão, tanto na Inglaterra quanto

na Alemanha, assim como nos EUA. Assim, por um,

estranho efeito 'de oscilação, no momento preciso em

que a América descobre o estruturalismo, a intelectua-

lidade francesa livira a página", desenvolvendo um res-

46 47

" I1 1

' I I

Page 24: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 24/34

' II 1

"1: 1

~ ' : 1

:i

f!j

: i : 1 "

': i

I, :. h

i l1 1

II11!I

1 I

i

sentimento, maciço face a teorias, suspeitas de terempretendido falar em nome das massas, produzindo umalonga série de gestos simbólicos ineficazes e performa-tivos políticos infelizes.

Esse ressentimento é um efeito de massa, vindo"de baixo": uma- espécie de contra-golpe ideológico que

força a refletir, e que não poderia ser confundido como covarde alívio de numerosos intelectuais francesesque reagem descobrindo, afinal, que a "Teoria" os ha-via "intimidado"!

A grande força dessa revisão crítica, é colocar im-piedosamente em éausa as alturas teóricas no nível das

quais o estruturalismo político tinha pretendido cons-

truir sua relação com o Estado (eventualmente sua iden-

tificação ao Estado - e especlalmente com o Partido-Estado da revolução). Este choque em retorno, obriga

os olhares a se voltarem para o que se passa realmente

"em baixo", nos espaços infraestatais _que constituem o

ordinário das massas, especialmente e-m período' de crise.

Em história, em socíológía e mesmo nos estudos

literários, aparece cada vez mais explicitamente apreo-

cupação de se colocar em posição de entender esse

'discurso, a maior parte das vezes silencioso, da urgência

às 'voltas com osmecanismos da sobrevivência: trata-se,para além da leitura dos, Grandes Textos (da Ciência,

do Direito, do Estado), dê se pôr na escuta das circula-

ções cotidianas, tomadas-no ordinário do sentido (cf.,

por exemplo, De Certeau, A Invenção do Cotidiano,1980).

48

I

I' I

Simultaneamente, o risco que comporta esse mes-mo movimento é bastante evidente: é o que consisteem seguir a linha de maior inclinação ideológica e seconceber esse registro do ordinário do sentido como umfato de natureza psico-biológica, inscrito em uma' dis-cursividade logicamente estabilizada. Logo; o risco deum retorno fantástico para os positivismos e filosofias

da consciência.

I1I'!r·1

I

!i'\:i l

I

Umá reunião como esta poderia ser a ocasião paradesmanchar alguns desses riscos, situando os modos e

" os pontos de encontro maiorb. De meu lado, (masexprimo aí um ponto de vista que não me é pessoal:é uma posição de trabalho que se desenvolve nafr.a.nça 'atualmente 24 )'" eu sublinharia o extremo interesse de

uma aproximação, teórica e de: procedimentos, entreas. práticas da "análise da Jinguagem ordinária" (naperspectiva anti-positivista que se pode tirar da obrade Wittgenstein) e as práticas de "leitura" de arranjosdiscursivo-textuais ,(oriundas de abordagens estruturais).

Encarada seriamente' (isto é, de outro modo queapenas uma' simples "troca cultural") essa aproximaçãoengaja concretamente maneiras de trabalhar sobre asm~terialidades discursivas, ímplicadas em rituais ideo-

lógicos, nos' discursos filosóficos, ~m enunciados, poIí--ticos, nas formas culturais e estéticas, através de suasrelações com o cotidiano, com o ordinário do sentido.Esse projeto só pode tomar consistência se ele perma-necer prudentemente distanciado de qualquer ciênciarégia presente ou futura (que se trate de positivismosou de ontologias marxistas).

49

Page 25: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 25/34

Esta m nde exigênciaque não pacabar:

ir 1 de trabalhar impõe um certo númeroque é preciso explícitar em detalhe e,vocar aqui senão rapidamente, para

~ 1. A primeira exigência consiste em dar o primadoaos gestos de descrição das materialidades discursivas.Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma apreensãof~~menológica ou hermenêutica na qual descrever setor~1~.~ndiscernível de interpretar: essa concepção dadescrição supõe ao contrário o reconhecimento de um 'real-específico sobre o qual ela se instala: (o ' i ê ; ; ! 'd 'àtl ín gu a ', (cf. J. Milner, especialrnente em L'A,Aour-dé/ÍaLangue), Eu disse bem: a língua. Isto é, nem linguagem,nem fala, nem discurso, nem texto, nem interacão con-

versaciorial, mas aquilo que é colocado pelos lingüistascomo a condição de existência (de princípio), sob a for-ma da existência do simbólico, no sentido de [akobsone de Lacan."-~"·~""

Certas tendências recentes da lingüística são bas-tante encorajadoras desse ponto de vista. Aparecemtentativas, além do distribucionalismo harrisiano edogerativismochomskiano para recolocar em causa o pri-mado da proposição lógica e os limites impostos à aná-

lise como análise da sentença (frase). A pesquisa lin-güística começaria assim a se descolar da obsessão daambigüidade (entendida domo lógica do 11ou. .. ou')para abordar o próprio da língua através do papel do.equívoco, da elipse, da falta, etc... Esse jogo de di-ferenças, alterações, contradições não pode ser conce-

50

II

Fr

I

bido como o amolecimento de um núcleo duro lógico:a equivocidade, "a "heterogeneidade constitutiva" (Aexpressão é de J . Authier) da língua corresponde a esses11artigos de fé" enunciados por J . Milner em "A RomanIakobson ou le Bonheur par Ia Symétrie" (in Ordre etRaisons de Langue, Seuil, Paris, 1982, p. 336):

"- nada da poesia é estranho à língua I

I '1 1

I!

I

- nenhuma língua pode ser pensada completa-mente, se aí não se integra a possibilidade de sua

• 11

poesia ,

Isto obriga a pesquisa lingüística a se construirprocedimentos (modos de interrogação. de dados e for-mas de raciocínio) capazes de abordar explicitamente

o fato lingüístico do equívoco como fato estrutural im.-~~plicado pela ordem do simbólico. Isto é, a necessidadede trabalhar no ponto em que cessa a consistência darepresentação lógica inscrita no espaço dos umundosnormais ", É também o ~rgumento que desenvolvemos,F. Gadet e eu, no texto La Langue Introuvable (Mas-pero, Paris, 1981).

II II

!

Iliti'l

[

o objeto da linguística (o própria da língua) apa-rece assim atravessado por uma divisão díscursíva entre

dois espaços: o da manipulação de significações estabi-lizadas, nomúitizadas"'põi"uma'1iigiene pêdãg6gi~~' dopensamento, e o de transformações do sentido, esca-pando a qualquer norma estabelecida a priori, de umtrabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relan-çar indefinido das interpretações.

51

Page 26: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 26/34

Esta fronteira entre os dois espaços é tanto maisdifícil ,de determinar na medida em que existe todauma zona intermediária de processos discursivos (deri-vando do jurídico, do administrativo e das convençõesda "ida cotidiana) qve oscilam em torno dela..:..Já nestaregião discursiva intermediária, as propriedades lógicas ,/dos objetos deixam de funcionar: os objetos têm e não

têm esta ou aquela propriedade, os acontecimentos tême não têm lugar, segundo as construções discursivasnas quais se encontram inscritos os enunciados que sus-tentam esses objetos e acontecimentos 25.

i

l il i

' l iI'I

,II Este caráter oscilante e paradoxal do registro do

ordinário do sentido parece ter escapado completamenteà intuicão do movimento estruturalista: este nível foi

:, -: \

objeto de uma aversãé teórica, que o fechou totalmenteno inferno da ideologia dominante e do empirismo prá-

tico, considerados como ponto-cego, lugar de pura re-produção do sentido ~6.

De passagem, os estruturalistas acreditavam assimna idéia de que o processo de transformação interior .'aos espaços do simbólico e do ideológico é um processoEXCEPCIONAL: o momento heróico solitário do te ó-rico e do poético (Marx/Mallarmé), como trabalho ex-traordinário do significante.

Esta concepção aristocrática, se atribuindoâe factoo monopólio do segundo espaço (o das discursividades

não-estabilizadas logicamente) permanecia presa, mesmo

através de sua inversão 11proletária" , à velha certeza

elitista que pretende que as classes dominadas não in-

ventam jamais nada, porque elas estão muito absorvidas

52

pelas lógicas do cotidiano: no limite, os proletários, asmassas, o povo ... teriam tal necessidade vital de uni-,versos logicamente estabilizados que os jogos de ordemsimbólica não os concerniriam! Neste ponto preciso, aposição teórico poética do movimento estruturalista éinsuportável 27. Por não ter discernido em quê o humore o traço poético não são o "domingo, do pensamento",

mas pertencem aos meios fundamentais de que dispõea inteligência política e teórica, ela tinha cedido, ante-cipadamente, diante do argumento populista de urgên-cia, já que ela partilhava com ele implicitamente opressuposto essencial: os proletários não têm (o tempode se pagar um luxo de) um inconsciente!

2. A consequencia do que precede é que todadescrição -- quer se trate da descrição de objetos oude acontecimentos ou de um arranjo discursivo-textualnão muda nada, a partir do momento em que nos pren-demos firmemente ao fato de que 11não há metalingua-gem" - está intrinsecamente exposta ao equívoco dalíngua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível detornar-se outro, diferente de si mesmo,se deslocar dis-cursivamente de seu sentido para derivar para um outro(a não ser que a proibição da interpretação própria ao

logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente).Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois,

I í n g u i s f i c a r r f ê n f e - - a e s c rH l v e f comoUiiiaserÍe .(léxico-sin-

taticamente determinada)d~ pontos de deriva possíveis,fºf~~ec~Ildo"; lUgaf'-a·interpt~iação.É nesse espaço que

"/preteilãé-trãb~lhar~-~~áÚse de discurso.I) 53

Page 27: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 27/34

I!

I

f

,!s

'I

E é neste ponto que se encontra a questão das dis-ciplinas de interpretação: é porque há o Outro nas socie-dades e na história, correspondente a esse outro próprioao linguajeiro discursivo, que aí pode haver ligação,identificação ou transferência, isto é, existência- de umarelação abrindo a possibilidade de interpretar. E é por-

que há essa ligação que as filiações históricas podem-seorganizar em memórias, e as relações sociais em redesde significantes.

","

D d f ". b"on e o ato que as coisas-a-sa er que ques-tionamos mais acima não são jamais visíveis em desvio,como transcendentais históricos ou epistemes no sentidode, Foucault, mas sempre tomadas em redes de memóriadando lugar a filiações identificadoras e não a apren-dizagens por interaçãc: a transferência não é uma "in-teração", e as filiações históricas nas quais se inscre-vem os indivíduos nã() são "máquinas de aprender".

'-1S~esse pon!o,c!~jrista, D pr9pl,ema,,:Runcipal é de-.,. ,,=""O~'" ' ,.., -" "", .. ". .",...,

terminal(~:"~,~.P!ªtic~.:-",q~.,Jlllªlis~Q~~~~!~QJugªL,,~~._9.J:nº.@~~!9".gª,jnl~rJ~t~!,,~~!io~J1Lrel'lçfiq,!lº~ .da "descri-ção: dizer que não se trata de duas fases sucessivas,

' '' f f i ã S ' "de uma alternância ou de um batimento, não im-

plica que a descrição e a interpretação sejam conde-nadas a se entremisturar no indiscernível,

Por outro lado, dizer que toda descrição abre sobrea interpretação não e necessariamente supor que ela

abre sobre "não importa o que": a descriç~o de um

er",'!nciado ou de umà seqüência coloca necessariamente

em jogo (através da detecção de lugares vazios,' de elip-

ses, de negações e interrogações, múltiplas formas de

54

discurso relatado ... ) o discurso-outro como espaço vir-tual de leitura desse enunciado ou dessa seqüência.

Esse discurso-outro, enquanto presença virtual namaterialidade descritível da seqüência, marca, do inte-rior desta materialidade, a insistência do outro como

lei do espaço social e da memória histórica, logo comoo próprio princípio do real sócio-histórico. E é nistoque se justifica o termo de disciplina de interpretação,empregado aqui a propósito das disciplinas que traba-

lham neste registro.

o ponto crucial é que, nos espaços transferenciaisda identificação, constituindo uma pluralidade contra-ditória de filiacões históricas (através das palavras, dasimagens, das >narrativas, dos discursos, dos textos,etc ... ), as 11 coisas-a-saber" coexistem assim com obje-tos a propósito dos quais ninguém pode estar segurode "saber do que se fala", porque esses objetos estãoinscritos em uma filiação 'e não são o produto de umaaprendizagem: isto acontece tanto nos segredos da es-fera familiar 11 privada " quanto no nível "público" dasinstituições' e dos aparelhos de Estado. O fantasma daciência régia é justamente o que vem, em todos osníveis: negar esse equívoco, dando a ilusão que semprese pode saber do que se fala,' isto é, se me compreen-dem bem, negando o ato de interpretação no próprio

momento em que ele aparece.

,_....3 .. Este ponto desemboca sobre a questão final dafdiscursivi'd~d~r};omo estrutura ou como acontecimento.'~---......_/---'---._--'--""~ -~• .

55

i õ

Page 28: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 28/34

I 1 I C de, diremos que o gesto que1 1 \ I 'j Y r ta l discurso dado em tal série,a

(111m /I corpus" ,corre sempre o risco de

nl orv I' I' nt cimento desse discurso na estrutura daI' n I m d ld a em que. esta tende a funcionar como

11 '/10 ' n d [ta l histórico,' grade de leitura ou memóriaIl lt 'I id 1' 1 :\do discurso em questão, A noção de : ! 5 > " t ; "ut 1, dlscursiva" emprestada a Foucaultpela análise

d ' dlclll:s'õ~deri~ou muitas vezes para a idéia de umam qu in a discursiva de assujeitamento dotada de uma.trutura semiótica interna e por isso mesmo voltada

à repetição: no limite, esta concepção estrutural dadiscursividade desembocaria em um apagamento doacontecimento, através d~ sua absorção em uma sobre-.'interpretação antecipadora.

Não se trata de pretender aqui que todo~i,~~~E~~"

seriacOUlO.J11l1 ..B;Yl'ólito!l1]iraclllgsg, i1dy pengente ..das~~~~~.~~~~~~óriB;~ÇiQ~'jraJ~t~s,"sociaisnosqu~tis . ele

.'"irr~~p~, ..!n~.t.º~"sJJblinl1ªr;"éq'!~l ...§ é ,. J ? Q r ... . .ua ...existência" ..,

., .J º J I º " ,:disç~ursº Jnªrç" ' ~L ,pe~,~K!?g!2~2 .~,9,~", .!· lm~t".çl~ ;~~~~~~,turae~o~r~~struturaeãQ.d.~s"sas."redes.e.trajetos:.tQdo.~!.§~,~~rs·~·'AéQínclice~otencial de uma agitação.nâs·'íIiia:- " h' " ..: I . ' ..: I 't'f' -. didS~"êw".§Q·Ç.lº;.lstOr1CaS",u€lHlueI?-11ca . ç aO ,., ,,na ,,,,1 l 1e .. ,.o;t,,,,~Jl1

_ " " q . . U . ~ " . . . d e . • ._çQnstitui,.aº .. m.esmo.".tempQ....um ..efeito ...dessas"j,. d;

fiU~çf5~§"e,.,lJm.ttªbªlhQ 'i~ (.mais .;:,.9 l - l ,., nJenº~,.Ç f.Qll§Çf!ente." .C '.e; ; \liberado, construído ou não, mas de todo modo atra- .,

vessado pelas det~mlÜgǪ~.§.jncQn~&ientes.) ..cgttê·'· âêslo'êa:·.''''ffieiirõ'''nõ''''s~~'''~~paço: não há identificação plenamente

bem sucedida, isto é,ligação sócio-histórica que não

seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma

"infelicidade" no sentido performativo do termo-

56

i

isto é, no caso, por um "erro de pessoa", isto é, sobreo outro, objeto da identificação,

É mesmo talvez uma das razões que fazem queexista algo como sociedades e história, e não apenasuma justaposição caótica (ou uma integração supra-or-gânica perfeita) de animais humanos em interação . , .

",A~po.~içã~.;º,~_tr~b~!.hoque aqui evoco em referên-cia{à_.allálisf'''de"dJ.'scu:rsq\ não supõe de forma alguma

' - , ,, , ~, ~ _ , . ., ,~ N +••. __ • " _ •• _. _ -<c-_."""' '' '

a possibilidade de algum cálculo dos deslocamentos defiliacão e das condicões de felicidade ou de infelicidade~evenemenciais. Ela supõe somente que, através das des-

crições regular.ç.§c".d e.. .m21?:~~~~!1§4i~ç!1~~ivas,se possadetectar @S"momentos de iúterl'retaç.§_es)enquanto atosque surge~õino-"tomãâas--de'--po~ição, reconhecidas

como tais, isto é, como efeitos de identificação assumi-

dos e não negados.

Face às interpretações sem margens nas quais ointérprete se coloca como um ponto absoluto, sem outronem real, trata-se aí, para mim, de uma questão deética e política: uma questão de responsabilidade,

57

Page 29: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 29/34

NOTAS

1. Esta tradição é referível bibliograficamente por uma serre

de publicações, em particular dos números da revista Lan-gages (11, 13, 23, 24, 37, 41, 52, 55, 62... ). Cf. igual-mente a recente coletânea Matérialités Discursives, PUL,Lille, 1981.

* N. do T. - Em francês "à Ia une" que joga com o sentidode único (une), ao mesmo tempo em que evoca o canal[chaine] francês de televisão mais importante (Une). Ten-tamos aqui reproduzir o efeito de sentido: global (o que•pega tudo, e a Globo).

4 . Cf., por oposição, os slogans políticos "clássicos" dos anos60-70, construídos sobre os ritmos de marcha: "ce n'est/ .

qu'un début/continuons Ie/combat!" ["é só/um começo/continuemos o/combate"] ou "nous voulons/nous aurons/sa/vtisfaction!" ["nós queremos/nós teremos/sa/tísfação"].

3. Apesar dos gritos, trombetadas e agitação que acompanhama ação dos jogadores, a não-participação direta dos espec-tadores nesta ação permanece como condição do aconteci...mento .esportivo.

59

-:'

" ~.

I'

J

Page 30: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 30/34

4. Trata-se antes de tudo do "vedetariado" político, volun-tário ou não, determinado pela bipolarização eleitoral,feita pela mass-media, .dos confrontos parlamentares emregime presidencialista:a psicologização dos conflitos,através da retórica do: suspense, da reconciliação e dadisputa, vai de par com, uma informação das "bases" quepassa agora mais rápida pelo canal de TV que pelos canaishierárquicos internos das organizações sindicais e polí-

ticas. O todo se coloca no contexto de uma crise profundada esquerda à qual a ',"crise do marxismo" faz eco demodo específico. Da "Nova Filosofia" ao "Tudo foi porágua abaixo" aparecido em 1978 ("França, tua filosofia,tua política, etc estão se mandando!") emerge uma derisãoobjet iva e subjetiva da "polít ica" suscet ível de desembocarna "carnaval ização": cf .. por exemplo o papel do cômicopopular francês Coluche, fazendo pose de lançar sua can-didatura nas eleições presidenciais de 1981, com o apoiodesesperado e irônico de uma parte da inteIigentsia. Estaevolução da alta .inteligentsia francesa se efetuou poretapas: os intelectuais dos anos 60 se engajaram em seustrabalhos como a gente se engaja em uma guerra (even-

tualmente uma guerra civil). Pouco a poucol a figura cen-tral passou da luta "política" para o confronto com o anjodo espaço solitário da "~scritura". Hoje, a nova forma quetende a se impor é a da performance (mais freqüentementeem solo, mais raramente em equipe): à significação es-portiva do termo se junta, lateralmente, a coriotação doespetáculo, induzida pelo uso anglo-americano do termo"performance" .

'Essa evolução não arrisca melhorar a relação bastantedoentia que uma parte da intel igentsia americana entretémtradicionalmente com os "incompreensíveis" produtos inte-lectuais franceses , relação marcada por uma oscilação equí-voca entre a fascinação dos grandes-padres e o cômico(deliberado ou não) dos clowns da cultura.

5. A análise de discurso.. tal corno ela se desenvolve atual-mente sobre as bases evocadas mais acima, se dá precisa-mente como objeto explícitar e descrever montagens, arran-jos sócio-históricos de constelações de enunciados.

60

,I

6. Observamos aqui .um efeito implícito de tradução para-frástica da forma "F. Mitterand foi eleito, presidente. Ouseja: "on a gagné" ["ganhamos"]. Na passagem, "on" seidentifica a F. Mit terand.. . '

7. Jacques Mandrin , Le Socialisme en France, p. 19.

8. Nas manifestações de nascimento do acontecimerrto dodia 10 de maio de 1981, há (entre outros presentes estra-

nhos) o paradoxo do papel involuntariamente facili tadordesempenhado pela direção do PCF: como se, desenca-deando uma súbita polêmica anti-PS, os dir igentes comu-nistas tivessem, eles próprios, acentuado a perda da influên-cia global da corrente comunista (e de suas capacidadesmobilizadoras) e livrado a esquerda da hipoteca de umatomada de poder dominada por um pró-sovietismo maisou menos confesso (a referência ao "balanço globalmentepositivo" do "socialismo existente"). '

De onde se segue: um governo de esquerda que engajauma polí tica audaciosa de reformas estruturais profundas(as nacional izações , por exemplo) mas sem a mobilização

popular que deveria (em boa análise marxista clássica)sustentar e conttolar o estabelecimento dessas reformas.Como se O PCF e a CGT tivessem perdido totalmente suacapacidade his tór ica de mobil ização, e como se 'essa capa-Cidade mobilizadora permanecesse irrecuperável para asoutras organizações e movimentos de esquerda. Ainda quehoje, na França, é sobretudo a oposição (as' forças dedireita, "novas direitas" e extrema-direita) que se mobi-liza. . . '

:1

:1

9. Cf. Jacques Mandrin: "Nós tomamos o poder no sentidoexato do termo?", op, cit. p. 119.

A vl!.ória da Esquerda em maio de 81, advinda do fundo

de mais de 20 anos de fracassos eleitorais,evocaestasituação chapliniana do infeliz que se "êS1õfça,sem des-canço, JOm lançar uma bola numa. cest~ e 'qüe, a cadavez, erra o lance. Até o momento em que, exausto elese volta e se vai : j9gando negligentemente a boIaJX;; ~iIllildo om~o: é aí que, suprema facécia da história... a

.\ bola cai direitinbo dentro da cesta! Este deslocamento in-- ~

61

Page 31: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 31/34

.;

)C 12. O real das ciências da natureza é apreendido por elasatravés' do impossível que surge no entrecruzameQ!o .de.S§critas conceIl ua~J~g\l~§" e ~~~~g~IJ~._!?2(P~ri~sJ~çniq@ent~. controll!.?~~: ,nesse _ponto d~ vista, é ~~ivi~llembrar que ~..El~~~~~ sao tambem ~-ª---,S!5:..Q~Uj.

,~?~~W, cujas ~..:.ns são as esc~s elas pró-pnas.

O real das tecnologias materiais recobre parcialmente odas ciênci~qa naturez.a, na medida em que as tecnologiasconstituem um elemento indispensável ~~çJimen.!!!~destas, mas que vão largamente além, através do uso de

uma massa de objetos técnicos: a relação com a disjunçãológiça vira do I!do. mágic'"õ(com seus r~s, seus

tab!!,s e su~~,~~).

Quanto ao Leal, das ~~iõ~~ administrativas, que se apre-senta, .em nossos dias, de boa vontade, como ~Itécnic~ de tipo particular (cf. as '~nologias ~c!.ais:'),ele está fundamentalmente do lado d~!.~ibi~~ mesmo

'10.

~dIi

~>"

1

I 1

11.

•~

coerente não apaga o trabalho obstinado da paciênciainfeliz. Mas tampouco não a transfigura, em· um longoprojeto finalmente concluído: a política francesa é tomariainteiramente nesse deslocamento.

Deixo de lado as posições da direita, bem ilustradas inte-lectualmente pelos escritos recentes de BaudrilIard sõbre o"êxtase do socialismo", 'Qn a gagIlt ["Ganhamos"] éinterpretado como "a.; esquerda, a gente está pagando"

(para ver, para rir?) e; em seguida, a gente é ganho pelaesquerda como por um' processo, uma doença: "Isso ger-mina, germina, incuba,. explode e invade tudo de uma sóvez. É exatamente como em Alien. A esquerda, é o monstrode Alien". A l'Ombre des Maiorités Siiencieuses, p. 97.

. se ele se estabelece -em nossas sociedades industriaisem particular - sobre o real das ~s e sob~e odas ciências da natureza, nele encontrando os meios degerir~'imêõs-o~;t;; da produção, e igualmente o da~-t-:---·",,-~ \.. -,destrulçao'l ••• "rO"" -~,<:~~---;",;}:.~ ,',,,,'.Q~ · :" : ; ' 1 - 1 "\'\r----. __ - ~~ ~~",,,~ . _ --~""".·~I

13. Kant: "Chamo ~ica (regra de prudência) a ~tp9-~ que tem como~º-.-ªJ~~' (Crítica da RazãoPura).

14. Cf. os trabalhos sobre as "artes de memória". Em particularA. Yate The Art oi Memory, Londres 1966; tr. fr. L'Artde Ia Memoire, Paris, Gallimard, 1975.

~ 15. Uma vez que foi posto Jogo em..E!!!ª,_gra!ܪ, a p.E.2Pê~aç~do incêndio 4~P~E~.~~~_~t~.!:!!!lIª_go_!!!ªQ~iE.~m~I,lJ.0dasaberturas da natureza e da dis:Qosiçãodos mat~riais e__o_~, _ ._=. "'""'"-"'~""'''_~''''"''''''~_~'_'''''''''''1:1 { , "

o~i~~ que e!ª. C9.n1~~,da direção do X $ iJ , tq , etc e\evda vontade expressa peloincendiárí2) (de suas "impreca-ções;-palivras ~ d é vIÍlgariçâ,-êiéT.""""·

16. "Justificar" não equivale a "produzir". A escolástica :não

produziu a inquisição, o marxismo não engendrou o Gulag,o neo-positivisrno não inventou a servidão voluntária, nemo desejo de um controle científico' universal. Mas a capa-cidade justificadora desses sistemas filosóficos é, no en-tanto, absolutamente incontestável.

17. rouco importa, no caso, que esses saberes sejam negados.Todo mundo os leva em conta praticamente, como um pe-destre leva em conta os carros para não se deixar atro-pelar, mesmo se professa, por outro lado, o idealismofilosófico!

Eu me refiro aqui à noção de "marcas de distância" quefoi objeto de pesquisas recentes: cf. em particular J.Authier "ParoIes Tenues à Distance", in Matérialités Dis-cursives (op. cit .) ; cf. igualmente as análises desenvolvidaspor D. Sperber sobre as noções de reprodução, de descri-ção e de interpretação 'em Le Savoir des Anthropologues,Hermann, Paris, 1982. ,

18. Cf. a perspectiva discontinuísta engajada pelos trabalhos

de A. Ko y ré face ao continuísmo de Duhem.19. Cf. o recente livro de J.-M. Lévy-Leblond, LlEsprit du sel,

Fayard, 1981.

20. Esta questão recebeu uma resposta afirmativa explícita noquadro do "estruturalismo histórico" dos primeiros traba-lhos althusserianos, colocando o materialismo histórico co-mo "ciência da história".

62 63

j,

Page 32: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 32/34

\I ilusão aqui a um artigo recente de N. Loraux, his-, l ra, intitulado "Thucydide n'Est pas un Collêgue".

726. Este problema constitui um dos pontos fracos da ref lexãoalthusseriana sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado, edas primeiras aplicações desta reflexão no domínio daanálise de discurso na França.

/27. O ódio ao ordinário nutre o cul to ant i-intelectual ista dessemesmo ordinár io: um cer to estruturalismo esotético ali-mentou o ódio anti-filosófíco, expresso, por exemplo, pela

sociologia de P. Bourdieu.

I ta expressão retoma o título de um livro de D. Lin-l nberg Le Marxisme Introuvable, (Calmann-Lévy, Paris,1975) percorrendo alguns dos avatares históricos dessejogo de esconde-esconde entre os "marxismos eruditos"

(da cátedra universitária) e os "marxismos vulgares" (os"catecismos para o uso das massas"). O neo-marxisinoanglo-americano é amplamente, nos seus desenvolvimentosatuais, um efeito universitár io (ligado em grande par te àsrecaídas do estruturalismo político europeu), isto é, ummarxismo sem "órgãos" ... que não sejam intelectuais. Oque não quer, aliás, dizer que, com a ajuda do espírito"pragmático" da cultura anglo-arnericana, este efe ito nãotenha repercussões sobre o campo cultural, ideológico epolítico, e que ele não reserve alguma surpresa aos quecelebram "o fim do marxismo"!

23. Uma expressão como "a lógica do capital" 'remete a um

real a propósito do qual há "coisas-a-saber". Mas seriaconcebível responder com um sim ou não questões totaisdo tipo "o governo francês atual opõe-se à lógica do capi-tal?", ou então, "Nós tomamos, no sentido exato do termo,o poder"? (1. Mandrin, op. cit., p. 119).

24. Para maiores detalhes sobre o desenvolvimento atual daanálise de discurso na França, ver os números 4 e 6 darevista Mots, e o conjunto da coletânea já citada, Maté-

rialités Discursives (em particular os ar tigos de J. J.Cour-tine e J.-M. Marandin '~Quel Objet pour l'Analyse de Dis-cours?" e de A. Lecomte "La Frontiêre Absente"), Verigualmente J:-M. Marandin "Approches Morphologiquesen Analyse de Discours",

25. Cf . as observações anteriores a propósito dos referenciaispossíveis associáveis ao-enunciado "On a gagné!" ["Ganha-mosl'T; Poderíamos evidentemente desenvolver observaçõesde mesma .ordem sobre expressões como "a vontade dopovo", "a liberdade" (de pensar/de preços), "a austeridade"vs "o rigor", etc.

6465

Page 33: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 33/34

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, Louis - .Lire Le Capital, Théorie; Maspero,

Paris, 1965.

AUTHTER, Jacqueline - "Hétérogénéité montrée et hétéro-généité constitutive", Cahiers DRLAV, n.? 26, Paris, 1982.

xssoun, Paul-Laurent - Marx et Ia répétition historique,PUF, Paris, 1978.

BAUDRILLARD, Jean - A l'ombre des majorités silencieu-ses; ia findu social (Seguida de "L'extase du socialismo"),

. UGBiations, Paris, 1982.

CERTEAU, Michel de - L'invention du quotidien, 10/18,UGE, Paris, 1980 .

I

I.

I 1I

. i

CONEIN, Bernard & ai. - Matérialités Discursives, PressesUniversitaires de Lille, Lille, 1981.

GADET, Françoíse & P:ÊCHEUX, Michel - La Langue in-trouvable, Théorie; Maspero, Paris, 1981.

LEVY-LEBLOND, Jean-Mars - L' esprit de sel, Fayard, Paris,1981.

67

Page 34: Discurso Pecheux

8/2/2019 Discurso Pecheux

http://slidepdf.com/reader/full/discurso-pecheux 34/34

I,

I~i:

r ~ :5'1 ''I'

Ir, . ' , ' : ' ,, "' "

,.,.,ili.·i', l i

~ i

~:~ , i

,

!j- <

LORA ,N I 1 1 ' ( hu ydide n'est pas un collêgne", Qua-1 /1 1 ' '' ' 1 1 ,'Iil'll, 12, 1980 (51-81).

M NI I IN, J leques - Le socialisme et Ia France, Le Syco-1 11 / ' , Paris, 1983.

M LNER, Jean-Claude - L'Amour de Ia Langue, Seuil, Paris,1978.

r'"

Ordre et raisons de Zangue, Seuil , Paris, 1983.

PBCHEUX, Miche1 - Language, semantics and ideology, Mac-- Millan, London, 1982. (Trad. brasileira: Semântica e

Discurso, Editora da Unicamp, 1988.)

-----,---. "L'idéologie:citadelle ou espace paradoxal?" emalemão: Das Argument, Berlin-RFA, n.? 139, 1983.

\--- . ..

SPERBER, Dan -r-t- Le savoir des anthropologues, Hermann,Paris, 1982.

68