Janus no Dicours de l’Histoire de La Mothe Le Vayer · archivo de la posteridad, monumento de la...

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Janus no Dicours de l’Histoire de La Mothe Le Vayer André Sekkel Cerqueira No início de seu Discours de l’Histoire (1638), François de La Mothe Le Vayer (1588- 1672) afirma que a história fazia as funções que seriam da filosofia moral e que ela era preferível à esta porque, além de dar os mesmos preceitos, a história fornecia os exemplos, capazes de mover de forma mais poderosa do que os costumes 1 . Ele reforça seu argumento justamente com alguns exemplos, dentre os quais um retirado de uma das cartas de Sêneca a Lucílio, na qual dizia que Cleantes aprendeu muito mais por ter sido espectador da vida de Zenão do que por ter sido instruído na sua doutrina, e Platão e Aristóteles também aprenderam mais com a vida do que com as palavras de Sócrates 2 . La Mothe Le Vayer, então, conclui com uma tópica muito conhecida: a história, por ter o cuidado de conservar belos exemplos merece, muito mais do que qualquer outra ciência, o título que damos a ela de 1 Utilizamos a edição moderna : LA MOTHE LE VAYER, François de, Discours de l’Histoire, in: FERREYROLLES, Gérard (Org.), Traités sur l’histoire (1638-1677): La Mothe Le Vayer, Le Moyne, Saint- Réal, Rapin, Paris: Honoré Champion éditeur, 2013, p. 123; LA MOTHE LE VAYER, François de, Discours de l’histoire., Paris: J. Camusat, 1638. 2 LA MOTHE LE VAYER, Discours de l’Histoire, p. 123; O exemplo que La Mothe Le Vayer retirou de Sêneca está na Carta 6, 6: "Cleantes nunca teria revivificado o ensino de Zenão se apenas fosse seu ouvinte; não, ele participou da vida do mestre, penetrou os seus segredos, observou até que ponto ele vivia de acordo com a sua doutrina. Platão, Aristóteles, todos os filósofos que depois se cindiram em diversas escolas, aprenderam mais da vida que das palavras de Sócrates." SÊNECA, Lúcio Aneu, Cartas a Lucílio, 5 a . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 14.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Janus no Dicours de l’Histoire de La

Mothe Le Vayer

André Sekkel Cerqueira

No início de seu Discours de l’Histoire (1638), François de La Mothe Le Vayer (1588-

1672) afirma que a história fazia as funções que seriam da filosofia moral e que ela era

preferível à esta porque, além de dar os mesmos preceitos, a história fornecia os exemplos,

capazes de mover de forma mais poderosa do que os costumes1. Ele reforça seu argumento

justamente com alguns exemplos, dentre os quais um retirado de uma das cartas de Sêneca a

Lucílio, na qual dizia que Cleantes aprendeu muito mais por ter sido espectador da vida de

Zenão do que por ter sido instruído na sua doutrina, e Platão e Aristóteles também

aprenderam mais com a vida do que com as palavras de Sócrates2. La Mothe Le Vayer, então,

conclui com uma tópica muito conhecida: a história, por ter o cuidado de conservar belos

exemplos merece, muito mais do que qualquer outra ciência, o título que damos a ela de

1 Utilizamos a edição moderna : LA MOTHE LE VAYER, François de, Discours de l’Histoire, in: FERREYROLLES, Gérard (Org.), Traités sur l’histoire (1638-1677): La Mothe Le Vayer, Le Moyne, Saint-Réal, Rapin, Paris: Honoré Champion éditeur, 2013, p. 123; LA MOTHE LE VAYER, François de, Discours de l’histoire., Paris: J. Camusat, 1638.

2 LA MOTHE LE VAYER, Discours de l’Histoire, p. 123; O exemplo que La Mothe Le Vayer retirou de Sêneca está na Carta 6, 6: "Cleantes nunca teria revivificado o ensino de Zenão se apenas fosse seu ouvinte; não, ele participou da vida do mestre, penetrou os seus segredos, observou até que ponto ele vivia de acordo com a sua doutrina. Platão, Aristóteles, todos os filósofos que depois se cindiram em diversas escolas, aprenderam mais da vida que das palavras de Sócrates." SÊNECA, Lúcio Aneu, Cartas a Lucílio, 5a. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 14.

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mestra de nossas vidas, como a definiu Marco Túlio. Depois dele, todos os demais letrados que

dissertaram sobre a história, pelo menos até o século XVII, a definiram desta maneira3.

A história exerce melhor a função que seria da filosofia moral porque além dos

preceitos desta, ela traz exemplos que comovem e podem ser imitados. Segundo os letrados

seiscentistas, era pelo estudo da história que se adquiria prudência. Saavedra Farjado (1584-

1648), por exemplo, na sua Idea de un Príncipe Político Christiano4, impresso em 1643, na

empresa 28, afirma que a virtude da prudência tem muitas partes, às quais ele resume em

três: memória do passado, inteligência do presente e providência do futuro. Como se sabe, as

empresas visavam educar o príncipe para que ele fosse um bom governante e cada uma delas

traz, no início, uma alegoria hermética que a representa e é desvendada ao longo da leitura.

No caso que nos ocupa, esta é a representação da prudência:

3 A fim de fornecer alguns exemplos do próprio século XVII, referimos algumas obras que definem ciceronianamente a história como mestra da vida. Luis Cabrera de Cordoba, por exemplo, a define assim: “Es noble la historia por su duraciõ, que es la del mundo. Fenecen Reinos, mudanse los Imperios, mueren grãdes, y pequeños, ella permanece: vida de la memoria, maestra de la vida, anũciadora de la antiguedad, preparaciõ importante para los actos políticos […]” CABRERA DE CORDOBA, Luis, De historia, para entenderla y escrivirla, En Madrid: Por Luis Sanches, 1611; Jerónimo de San José, fala da seguinte forma sobre a história ser mestra da vida: "Ella es la que hace presente lo pasado, cercano lo distante, notorio lo secreto, perpetuo y casi eterno lo caduco, constante lo voluble, y la que ofrece a la vista muchas veces lo que se vio sola una vez, y aun apenas alguna. Ella renueva lo viejo, acuerda lo olvidado, resucita lo difunto, y con una casi divina virtud restituye a las cosas su antigua forma y ser, dándoles otro modo de vida no ya perecedera, sino inmortal y perdurable. Ella, finalmente, como testigo delos tiempos, nuncio de los siglos, luz de la verdad, vida de la memoria, espuela de la virtud, archivo de la posteridad, monumento de la antigüedad, incentivo del valor, estímulo de la gloria, tesoro de la prudencia, oficina de las artes, teatro de las ciencias, madre de los aciertos, y espejo limpio de las acciones y costumbres humanas, es la universal maestra de la vida. En su escuela se aprende la policía del gobierno, la observancia de la religión, la institución de la familia, y la buena dirección de todos los estados. De aquí toma documentos la paz, esfuerzos la milicia, noticias el estudio, ejemplos el valor, y nuevos y mayores alientos la piedad". SAN JOSÉ, Jerónimo de, Genio de la historia, En Çaragoça: en la Imprenta de Diego Dormer, 1651; já o francês Pierre Le Moyne, escreve o seguinte: "[…] [l'Histoire] qui est selon la peinture qu'en fait Ciceron, la Directrice des mœurs, & la Maitresse de la vie. Noble & excellente Maistresse, qui tient Escole ouverte à toutes les Nations depuis tant de siecles!" LE MOYNE, Pierre, De l’Histoire (1670), in: FERREYROLLES, Gérard (Org.), Traités sur l’histoire (1638-1677): La Mothe Le Vayer, Le Moyne, Saint-Réal, Rapin, Paris: Honoré Champion, 2013.

4 SAAVEDRA FARJADO, Diego de, Idea de vn principe politico christiano : rapresentada en cien empresas, dedicada al principe de las Españas nuestro señor por don Diego de Saauedra Faxardo cauallero de la Orden de S. Iago, del consejo de su mag[esta]d en el Supremo de las Indias, i su embajador plenipotençiario en los Treze Cantones, en la Dieta Imperial de Ratisbona poe el circulo i casa de Borgona í en el Consejo de Munster para la Paz General, Munich: [s.n.], 1643.

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Figura 1: Consulte-se com os tempos passados, presentes e futuros5.

Segundo Saavedra Farjado, a serpente enrolada num cetro sobre uma ampulheta, que

representa o tempo presente, olhando-se nos espelhos do tempo passado e do tempo futuro,

representa a prudência. A ideia é que ao olhar para os erros do passado e do presente o

governo possa fortalecer as suas experiências próprias (sobre as quais o autor não explica) e as

adquiridas, com a finalidade de se fortalecer. As experiências adquiridas o são por dois

caminhos: pela comunicação, que seria uma forma mais útil, porém mais limitada; ou pela

história, que é, segundo o autor, a representação das idades do mundo6.

Antes de tratarmos da relação entre história e prudência, vamos analisar duas outras

alegorias da prudência. Na representação feita por Cesare Ripa, na sua Iconologia, cuja

primeira edição é de 1636, não é uma serpente que aparece enrolada num cetro, mas um

peixe e a própria prudência é representada por uma donzela de duas faces que se olha no

espelho. Encontramos ainda uma terceira representação nos Emblemas, de Andrea Alciato,

impresso em 1549, onde é Janus bifronte que representa os prudentes.

5 Utilizamos a tradução do termo latino da edição moderna: SAAVEDRA FARJADO, Diego de, Empresas políticas, Barcelona: Planeta, 1988, p. 185.

6 SAAVEDRA FARJADO, Idea de vn principe politico christiano : rapresentada en cien empresas, dedicada al principe de las Españas nuestro señor por don Diego de Saauedra Faxardo cauallero de la Orden de S. Iago, del consejo de su mag[esta]d en el Supremo de las Indias, i su embajador plenipotençiario en los Treze Cantones, en la Dieta Imperial de Ratisbona poe el circulo i casa de Borgona í en el Consejo de Munster para la Paz General, p. 187.

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5

Figura 2: Emblema XVIII: Los Prudentes

Emblema XVIII: Los Prudentes7

Jano bifronte, que conoces bien las cosas

pasadas y por venir, y que contemplas lo de

detrás y ves lo de delante, ¿por qué te

pintan con tantos ojos y rostros? ¿Acaso no

es porque esta imagen simboliza al hombre

precavido?

Figura 3: CXXXVIII: Prudence

CXXXVIII: Prvdence8

Elle est representee par vne femme à deux

visages, qui a sur la teste vn Heaume doré,

enuironné d’vne Guirlande de feuïlles de

Meurier, vn Cerf aupres d’elle, vn Miroir en

la main gauche, & en la droitte vne Fleche,

auec vne Remore tout à l’entour.

La Prudence, selon Aristote, est vne

habitude actiue, accompagnée d’vne vraye

raison, qui agit sur les choses possibles, pour

atteindre à la felicité de la vie, en suiuant le

bien, & fuyant le mal.

Son Heaume doré signifie, Que l’homme

prudent preuoit l’advenir, & se desuelope

sagement des ambuches de ceux qui luy

veulent nuire :

La Guirlande de feuilles de Meurier, Qu’vne

persone aduisee ne doit iamais faire les

choses auant le temps, mais bien les reigler

en leur sison, & les executer auec iugement :

6

Le Cerf qui rumine, Qu’il ne faut iamais

entreprendre aucune affaire sans y penser,

afin que la resolution en soit meilleure, & le

succez plus fauorable :

Le Miroir qu’elle tient en main, Qu’il est

necessaire que pour reigler ses actions,

l’homme prudent examine ses deffauts : Ce

qu’il ne peut faire sans la connoissance de

soy-mesme :

Et par la Remore qui est autour d’vne Fleche,

Que nous ne deuons point tarder à faire du

bien, quãd nous en sçauons les moyens, &

lors que le temps nous le permet.

É pertinente notarmos que na empresa de Saavedra Farjado a prudência é

apresentada pela serpente enrolada no cetro sobre a ampulheta e que uma imagem parecida

aparece na representação da Iconologia, que, como já dissemos, tem um peixe [Remore]

enrolado numa flecha. Trata-se da mesma imagem, mas com elementos diferentes. Na obra de

Ripa esta imagem aparece na mão direita da prudência para nos lembrar que não devemos

demorar em fazer o bem quando sabemos os meios para isso, ou seja, não é a própria

prudência, mas um de seus elementos.

A prudência de Saavedra Farjado e a de Ripa, apesar dessas diferenças na sua

representação, são compostas com a mesma estrutura: ambas olham em espelhos e para os

dois lados: o passado e o futuro — sendo que a donzela faz isso porque possui duas faces.

7 Utilizamos a edição moderna que tem como base a de 1549 traduzida para o espanhol e impressa em Lyon. ALCIATI, Andrea; SEBASTIÁN, Santiago, Emblemas, Madrid, España: Akal, 1985.

8 Utilizamos a edição traduzida para o francês, de 1636. RIPA, Cesare, Iconologie, ou Explication nouvelle de plusieurs images, emblèmes et autres figures hyérogliphiques des vertus, des vices, des arts, des sciences ... Tirée des recherches et des figures de César Ripa, desseignées et gravées par Jacques de Bie et moralisées par J. Baudoin, A Paris: Chez l’Avtheuvr, au Fauxbourg S. Germain ruë de la Boucherie, aux trois Pigeons, 1636.

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Dentre essas representações, a mais recuada no tempo é a de Alciato, do século XVI, que usa a

figura de Janus bifronte para representar os prudentes. Tal como acontece nas outras imagens,

o deus romano também olha para o passado e para o futuro por conta de suas duas faces. O

culto a este deus remonta aos tempos da monarquia romana, quando o rei Numa deu ao

primeiro mês do ano o nome de Januarius, em homenagem a Janus, que presidia o começo de

todas as coisas e era uma das maiores divindades daquele povo. O mesmo rei também

chamou de Janus uma passagem com dois portões — a qual era chamada de Janus Geminos,

Janus Bifrons ou Portae Belli — que eram abertos nos tempos de guerra e fechados durante os

de paz. Isso acontecia para que o deus pudesse ajudar os soldados durante as batalhas e

descansasse depois. Nessa mesma passagem foi colocada uma das primeiras estátuas

representando Janus com uma cabeça de duas faces9.

Segundo William Smith, os antigos romanos acreditavam que se alguma coisa não dava

certo, por exemplo se o exército não ia bem em uma campanha, era porque alguma falha teria

acontecido no começo da ação. Daí a importância de pensar bem sobre as coisas antes de

coloca-las em prática. Difícil remontar todo o percurso das representações e significações de

Janus desde os tempos da monarquia romana até os séculos XVI e XVII, mas com a breve

análise que fizemos aqui temos uma pista que, em alguma medida, nos permite entender

como esta divindade passou a representar a prudência na Época Moderna. Mesmo que na

Iconologia ou na Empresa não aparecesse a figura de Janus, a ideia de se olhar para os dois

tempos, o passado e o futuro, é uma referência a ele.

Na imagem da obra de Ripa há um cervo, que representa, segundo o texto traduzido

para o francês por Baudoin, a reflexão — ruminação do animal — que se deve fazer antes de

agir para que se chegue à melhor decisão, que é uma ideia que nos remete ao deus romano de

todos os princípios: Janus. Na Empresa de Saavedra Farjado também há referências à

importância de se refletir bem antes de tomar as decisões porque não há nada de novo

debaixo do Sol “Y lo que fue, será”, então a história é um instrumento muito importante para

quem governa. Jorge Checa chama a atenção justamente para esta questão ao analisar a ideia

de Roda do Tempo presente no El criticón de Gracián. Segundo ele, muitos autores da, assim

9 Sobre a mitologia de Janus, cf.: SMITH, William, Dictionary of Greek and Roman biography and mythology, [s.l.]: Boston, Little, 1870, p. 551.

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dita, Época Moderna tinham a concepção de um tempo circular e entendiam que o que foi é

igual ao que será e, portanto, também entendiam que a vida naquele tempo era igual à vivida

na Antiguidade. Em sua análise, Checa mostra que apesar de ser uma roda, o tempo não girava

regularmente porque algumas situações se repetiam com algum atraso. Porém, isso não

impedia que a história se transformasse num instrumento para se adquirir prudência, porque a

partir dos exemplos fornecidos por ela era possível antecipar os obstáculos que poderiam

aparecer, e o próprio fato de não ser algo regular fazia com que o retorno histórico servisse

como conhecimento prático do mundo contingente para o prudente10.

A referência a Janus não é a única que nos remete aos tempos antigos, pois o tema da

prudência nos remete diretamente para Aristóteles, para quem ela concerne as relações

humanas e as coisas que podem ser objeto de deliberação. Com isso, o filósofo entende que

deliberar bem é a principal característica da pessoa prudente [Nic. Eth. VI, VII, 6], pois a

prudência é uma disposição prática voltada para a ação de coisas que podem ser boas e más

para os seres humanos [Nic. Eth. VI, IV, 4] — concepção que é referida no segundo parágrafo

do texto da Iconologia, que cita nominalmente o filósofo: « La Prudence, selon Aristote, est

vne habitude actiue, accompagnée d’vne vraye raison, qui agit sur les choses possibles, pour

atteindre à la felicité de la vie, en suiuant le bien, & fuyant le mal. »

Além de Aristóteles, Cícero também é uma auctoritas sobre este assunto e um curto

trecho de seu Os deveres é muito citado porque foi ele quem traduziu para o latim o que os

gregos chamam de ς: “por prudência, que os Gregos designam pelo nome de

ς, nós entendemos, com efeito, uma outra ciência, aquela das coisas que se devem

procurar e daquelas que se devem evitar”11. Apesar da referência do texto da Iconologia ser

explicitamente Aristóteles, talvez possamos nos remeter também ao orador romano.

10 CHECA, Jorge, Gracian and the Ciphers of the World, in: SPADACCINI, Nicholas; TALÉNS, Jenaro (Orgs.), Rhetoric and politics: Baltasar Gracián and the new world order, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997, p. 170–173.

11 “prudentiam enim quam Graeci ς dicunt, aliam quamdam intellegimus quae est rerum expetendarum fugiendarumque Scientia”. CICERO, Marcus Tullius, Les devoirs, Paris: Les Belles Lettres, 2014, p. 175.

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A prudência, então, pode ser entendida como uma razão prática. Aubenque nota que

na Ética Nicomaquéia não há uma teoria da prudência pré-concebida que constrói um modelo

no qual os prudentes são encaixados; o que há são os próprios prudentes, como Péricles, que

são analisados na sua particularidade justamente porque são reconhecidos por meio da

prática12 — que em Aristóteles faz parte da política, uma vez que prudência é deliberar bem.

Segundo Victoria Kahn, no campo das letras, a prática encontra-se nos usos das técnicas

retóricas e, portanto, retórica e prudência são duas dimensões da prática e da política13.

É preciso fazer uma distinção importante, entre a ciência e a prática. A primeira,

segundo Aristóteles, preocupa-se com aquilo que é imutável e universal, enquanto que a

segunda está no mundo contingente e lida com o particular — trata-se, como já foi dito, de

uma razão prática. Por isso a dinâmica da persuasão é uma ferramenta fundamental para o

político e, como mostra Kahn, dessa forma a política torna-se retórica14.

No campo das técnicas retóricas, segundo Cícero, é preciso sempre levar em

consideração o decoro (seja nas partes do discurso ou na vida), que ele define como

“considerar aquilo que convém”. O decoro, então, está em parte nas coisas das quais se falam,

nas pessoas que falam e nas que escutam [Orator, XXI, 71-72]. Para falar sobre algo para um

determinado público é decoroso encontrar as melhores palavras e o melhor estilo levando-se

em consideração estes três elementos: do que se fala, quem fala e para quem se fala. Segundo

Kahn, o orador ciceroniano é o homem prudente aristotélico e no campo da política o decoro é

chamado de prudência15.

Vamos retomar o Discours de l’Histoire, de François de La Mothe Le Vayer, que nesta

obra procura, justamente, discutir como se deve escrever um livro de história. Para isso, ele

12 AUBENQUE, Pierre, A prudência em Aristóteles, São Paulo: Discurso Editorial Paulus, 2008, pt. 2, "A interpretação".

13 KAHN, Victoria Ann, Rhetoric, prudence, and skepticism in the Renaissance, Ithaca: Cornell University Press, 1985, p. 30.

14 Ibid., p. 33.

15 Ibid., p. 35.

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analisa o livro de Prudêncio de Sandoval (1553-1620) sobre Carlos V16, impresso em 1604, que

considera um exemplo de como não se deve escrever. Inclusive o autor francês o considera o

pior historiador de seu tempo17.

Para analisarmos o Discours de La Mothe Le Vayer é importante nos lembrarmos que

ele foi impresso em 1638, pouco tempo depois de França e Espanha, Richelieu e Olivares,

entrarem em guerra. Muito provavelmente, então, este livro foi escrito para ser um ataque, no

campo das letras, contra a Espanha. Era uma prática de guerra, naqueles tempos (e

certamente o é ainda hoje), fazer propaganda contra os inimigos, atacá-los em todos os

campos, fosse com um exército de soldados ou com um exército de letrados. Segundo Jacob

Soll, o autor francês era muito próximo de Richelieu, o qual havia contratado um grupo de

intelectuais de sua confiança para escrever coisas contra os espanhóis18.

Certamente La Mothe Le Vayer não escolheu criticar Prudêncio de Sandoval por acaso.

O autor espanhol escreveu o que até aquele momento era a principal história do imperador

Carlos V, que teve conflitos contra o rei francês Francisco I — considerado pelos franceses

como um de seus melhores monarcas, responsável, principalmente, por um grande

desenvolvimento na cultura19. De modo mais geral, o autor francês critica a falta de decoro do

espanhol, entende que seu “inimigo” não soube respeitar as regras do gênero histórico. Para

embasar as críticas que faz ao longo de seu texto, La Mothe Le Vayer compara Prudêncio de

Sandoval a Gregório de Tours dizendo que ambos são muito honrados por serem bispos, mas

isso não os fez bons historiadores.

16 SANDOVAL, Prudencio, Historia de la vida y hechos del Emperador Carlos V Max. Fortissimo. Rey catholico de España y de las Indias, Islas, y tierra firme del Mar Occeano. Al catholico rey Don Felipe III. deste nombre nuetro Señor. Par el Maestro Don Fray Prvdencio de Sandoval su Coronista, Obispo de Pamplona. Primera Parte. Tratanse en esta primera parte los hechos desde el Año 1500, hasta el de 1528., En Pamplona: En casa de Bartholome Paris mercader Librero, 1618.

17 LA MOTHE LE VAYER, Discours de l’Histoire, p. 135–136.

18 SOLL, Jacob, Publishing the Prince: history, reading, & the birth of political criticism, 1. paperback ed. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2008.

19 LE ROY LADURIE, Emmanuel, O Estado monárquico: França, 1460-1610, São Paulo: Companhia das letras, 1994.

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O autor francês estabelece com clareza quem são as auctoritas nas quais se baseia

para as críticas que irá fazer: Tucídides, Tito-Lívio, Cícero, Dionísio de Halicarnasso e Tácito, um

cânon clássico, no qual praticamente todos aqueles que escreviam história no século XVII se

baseavam, inclusive o criticado autor espanhol. Com base, principalmente, em Dionísio de

Halicarnasso, La Mothe Le Vayer compara o historiador com o orador, pois aquele, como este,

move os afetos e, por isso, Tucídides seria preferível a Heródoto. A diferença está na finalidade

com a qual o historiador procura comover seu público, pois ele propõe fazer os ouvintes

entenderem a matéria sobre a qual trata de forma que não se possa duvidar da veracidade de

seu discurso, já o orador pretende ganhar qualquer causa sem nenhuma outra preocupação. O

autor conclui afirmando que a história representa os acontecimentos verdadeiros assim como

a poesia nos pinta as coisas possível e verossímeis20.

Neste ponto, a falta de Sandoval é ter pegado poucas coisas emprestadas dos oradores

e menos ainda dos poetas, de quem ele só tomou as coisas fabulosas, tal como é a genealogia

da casa de Áustria com a qual inicia sua obra. Segundo La Mothe Le Vayer, foi uma tremenda

impertinência desse historiador começar com uma genealogia tão ridícula de Carlos V, que é

explicada de pai para filho desde Adão até ele. O autor francês pondera a parte bíblica

afirmando que ela é verdadeira e incontestável, mas critica o espanhol por ter gastado sua

tinta para mostrar uma coisa aparentemente grandiosa, mas que, em verdade, até o homem

mais velhaco da Espanha tem em comum com o imperador, que é a descendência comum dos

seres humanos de Adão e dos filhos de Noé21. Um outro ponto criticado por La Mothe Le Vayer

na genealogia de Sandoval é que ela daria aos reis espanhóis direito sobre o reino francês.

Outro ponto criticado é uma passagem na qual Prudêncio de Sandoval conta que

Georg David, um holandês, era servido por pássaros e animais selvagens que, inclusive,

conversavam com ele, o que foge completamente do decoro que deve ter o historiador

porque trata o público de forma pueril e o autor se mostra inconfiável ao colocar tal relato na

sua história22. La Mothe Le Vayer afirma que se o espanhol se baseou em Tito-Lívio para incluir

20 LA MOTHE LE VAYER, Discours de l’Histoire, p. 137.

21 Ibid., p. 138–139.

22 Ibid., p. 147.

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coisas fabulosas em sua obra ele errou, pois, o historiador romano, depois de contar as

inacreditáveis proezas dos soldados, fala que essas são coisas teatrais, mais próximas do

maravilhoso do que da verdade histórica e não vale a pena sustentá-las ou criticá-las23.

As críticas do francês são feitas, inicialmente, para desmoralizar o espanhol de forma a

tirar dele qualquer credibilidade, La Mothe Le Vayer usa a primeira parte de seu Discours para

construir o ethos24 de uma pessoa completamente ignorante no gênero histórico, mentirosa,

que toma por verdades as fábulas e, portanto, não merece confiança, para, na segunda parte

criticar alguns pontos da Historia de Sandoval que tocam de forma mais próxima questões da

política francesa da década de 1630, principalmente no que toca a relação com os

protestantes e a aliança de Luís XIII e Richelieu com os turcos, muito criticadas pelos

espanhóis25.

La Mothe Le Vayer cita historiadores como Políbio, Quinto-Curcio e Plutarco para

mostrar como eles falaram tanto bem, quanto mal dos Césares e Alexandres, com o intuito de

ressaltar a parcialidade de Sandoval com relação aos espanhóis e, em especial, em relação a

Carlos V, sobre quem só faz elogios26. O autor francês exemplifica seu argumento mostrando

que o historiador espanhol justifica e isenta o imperador de culpa no episódio do saque de

Roma, em 1526. Carlos V não teria sabido da prisão do papa e, mesmo se soubesse, segundo a

crítica de La Mothe Le Vayer a Sandoval, seria justificável o ataque espanhol contra o papa

Clemente VII porque ele era bastardo e, portanto, não poderia ser papa. Além do mais, em

23 Ibid., p. 150.

24 Sobre a construção do ethos do orador, Cícero, em Do Orador, II, 178-182, afirma que nada é mais importante para o orador do que ganhar o favor de quem escuta, sobretudo de excitar no ouvinte tais emoções que ao invés de seguir o julgamento da razão, ele ceda ao engajamento da paixão e às turbulências de sua alma. Importa colocar no discurso uma luz favorável aos costumes, os princípios, os fatos, a conduta do orador e de seu cliente e, de maneira inversa, colocar uma luz desfavorável ao que concerne o adversário, de modo a conquistar a benevolência dos juízes para si e para o cliente. CÍCERO, De l’orateur, livre II, Paris: Les Belles Lettres, 2009; Quintiliano, em Instituições oratórias, VI, 2, afirma que para o acusador, a maneira mais eficaz de excitar os sentimentos do juiz é representar o ato denunciado como o mais horrível. QUINTILIEN, Marcus Fabius, Institution oratoire. T. 4: Livres VI et VII, 2. tirage. Paris: Les Belles Lettres, 2003.

25 JOVER ZAMORA, José María, 1635: historia de una polémica y semblanza de una generación, Facs. de la ed. de 1949. Madrid: Fund. Española de Historia Moderna, 2003.

26 LA MOTHE LE VAYER, Discours de l’Histoire, p. 170.

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1532 os soldados de Carlos V não teriam dado combate a Soliman, que avançava sobre a

Europa com os otomanos, mesmo tendo seu irmão Ferdinando pedido ajuda. Por conta

desses, e de outros tantos exemplos, o autor francês afirma que nada foi mais contrário ao

cristianismo do que a casa de Áustria27. Ele também acusa Carlos V de ter se aproveitado do

luteranismo ao invés de combatê-lo porque os conflitos entre os príncipes alemães favoreciam

seu império.

Estes últimos argumentos podem ser interpretados como respostas aos ataques que

Richelieu e Luís XIII estavam a receber. A França, por conta da uma aliança com os turcos e da

aceitação das práticas calvinistas e luteranas em seu território, era acusada pelos outros reinos

(especialmente a Espanha) de se aliar aos hereges. Nesse sentido o Discours de l’Histoire é

uma obra política e ao mesmo tempo de “teoria da história”, pois visa mostrar que a Espanha,

desde que encabeçou o império sob o governo de Carlos V até o tempo dos reis Filipes agiu

maquiavelicamente pensando na razão de Estado, visando manter o poder e aumentá-lo. As

medidas tomadas por Olivares, valido espanhol, eram consideradas centralizadoras e geraram

diversas revoltas na Europa, como a Restauração portuguesa de 1640 e a guerra contra a

França a partir de 1635, cuja justificativa era exatamente a de colocar fim à política da

monarquia universal que os espanhóis eram acusados de praticar28.

O Discours de l’Histoire é, uma obra com o intuito de desautorizar a política espanhola

da primeira metade do século XVII e, para isso, utiliza a autoridade do discurso histórico e a

força dos exemplos que ele traz. Se a História de Prudêncio de Sandoval serviu para embasar

uma política espanhola e justificar alguns dos feitos polêmicos de Carlos V que deram poder e

prestígio aos seus descendentes, o livro de La Mothe Le Vayer é um esforço de, justamente,

mostrar as falsidades, mentiras, fábulas da obra de Sandoval, que até no nome (Prudêncio)

engana.

No século XVII a análise histórica havia se tornado uma ferramenta importante para

conquistar resultados políticos e o historiador, por conta disso, era uma espécie de “filósofo

político” capaz de fazer análises para embasar as políticas de seu monarca ou criticar as dos

27 Ibid., p. 185–188.

28 SOLL, Publishing the Prince.

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reinos inimigos, como é o caso da obra de François de La Mothe Le Vayer. Como já dissemos,

ele constrói um ethos desfavorável a Sandoval ao criticar a falta de decoro, e, portanto, de

prudência, dele. Aliás, para autores como Saavedra Farjado, Cesare Ripa, Andrea Alciato e

mesmo para Maquiavel, era com o conhecimento histórico que se adquiria prudência que, por

sua vez, havia se transformado na prática da razão de Estado no XVII29. Com isso, podemos

concluir que com Discours de l’Histoire, La Mothe Le Vayer não pretendia fazer uma simples

crítica a um historiador que julgava ruim, ele criticava as bases da razão de Estado espanhola e

justificava a política de seu protetor Richelieu, a quem, inclusive, dedicou sua obra. Nesse

sentido, a obra só trata da história no plano superficial e deixa nas entrelinhas as críticas

contrárias à política de Filipe IV.

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