Richelieu e a Raison d’État - A Teoria Das Elites

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIACENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

    CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

    RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS

    ELITES NO ABSOLUTISMO FRANCÊS

    TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

    Stefanie Righi

    Santa Maria, RS, Brasil

    2014

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    RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS ELITES

    NO ABSOLUTISMO FRANCÊS

    Stefanie Righi

    Monografia realizada como requisito parcial para obtenção do grau debacharelem Relações Internacionais pelo curso de Relações Internacionais, da

    Universidade Federal de Santa Maria.

    Orientador: José Renato Ferraz da Silveira

    Santa Maria, RS, Brasil

    2014

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    Universidade Federal de Santa MariaCentro de Ciências Sociais e Humanas

    Curso de Relações Internacionais

    A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Monografia

    RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS ELITES NOABSOLUTISMO FRANCÊS

    elaborada porStefanie Righi 

    como requisito parcial para obtenção do grau deBacharel em Relações Internacionais

    COMISSÃO EXAMINADORA

    José Renato Ferraz da Silveira, Dr.(Presidente/Orientador)

    (UFSM)

    Igor Castellano da Silva, Me.(UFSM)

    Reginaldo Teixeira Perez, Dr.(UFSM)

    Santa Maria, 03 de dezembro de 2014.

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    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, gostaria de agradecer a minha avó, Rosa Maria, por tornar possível a

    minha graduação e ter me apoiado durante esses quatro anos de estudo. Sua presença e

    carinho foram imprescindíveis para a realização deste trabalho. A ela devo cada sonho

    realizado, cada meta cumprida.

    Também gostaria de agradecer a minha mãe, Rita, minha eterna professora. Sem seus

    ensinamentos jamais teria sido possível chegar aonde cheguei, tornar-me a pessoa que sou

    hoje. Sua paciência e sabedoria são qualidades nas quais me espelho diariamente.

    Agradeço ao meu pai, José Augusto, pelo apoio e auxílio durante as pesquisas, ao

    incentivo à busca incessante pelo conhecimento.

    Ao meu padrasto, Zélio, pelo companheirismo e bom-humor. Mais do que um

    conselheiro, é também um amigo.

    A minha avó Emília e minha tia Margarete, pelo amor, carinho e pelos conselhos.

    Muito obrigada por estarem sempre ao meu lado, mesmo estando distante.

    Ao meu namorado, Giovani, meu melhor amigo. Não seria possível desbravar o

    mundo acadêmico em sua totalidade se essa experiência não fosse compartilhada com alguém

    tão especial. Obrigada por estar comigo em todos os momentos, inclusive os mais difíceis.

    Agradeço também aos meus colegas e amigos pelos momentos de alegria vividos

    nestes últimos anos, vocês estarão para sempre na minha memória.

    Por fim, não poderia deixar de agradecer ao meu orientador, professor José Renato,

     por ter me aceitado como sua orientanda e pela atenção, disponibilidade e entusiasmo durante

    todo o processo de construção deste trabalho. Jamais poderei expressar em palavras a

     profunda admiração que tenho por este profissional e o quanto me comove que tenha

    acreditado em mim desde o início.

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    RESUMO

    Trabalho de Conclusão de CursoCurso de Relações Internacionais

    Universidade Federal de Santa Maria

    RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS ELITES NO

    ABSOLUTISMO FRANCÊSAUTORA: STEFANIE RIGHI

    ORIENTADOR: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRASanta Maria, 03 de dezembro de 2014.

    Durante o século XVII, o regime absolutista francês enfrentou uma ameaça significativa à

    integridade e ao interesse nacional. Essa hostilidade se caracterizava pela notável expansão doImpério Habsburgo. À medida que o território da França era cercado, moldava-se o cenário da

    Guerra dos Trinta Anos. Neste contexto, a figura do Cardeal Richelieu se destaca no logro da

    manutenção da soberania francesa, atuando como ministro do rei Luís XIII. Utilizando-se de

    um conceito político próprio, o cardeal se mune da raison d’  État   como estratégia política

    contra a investida Habsburga no continente europeu. Embasado nestes acontecimentos, o

     presente trabalho busca investigar a aplicação empírica da Teoria das Elites, elaborada pelo

    sociólogo Gaetano Mosca, a fim de comprovar a capacidade de um indivíduo de modificar aesfera internacional em favor de seu interesse. Para tanto o trabalho será divido em três partes:

    a primeira tratará da biografia do cardeal e de sua obra (O Testamento Político); a segunda

     parte terá como foco o período da guerra e a atuação de Richelieu através do uso da raison

    d’  État ; e, finalmente, o último capítulo buscará explorar as principais premissas da teoria das

    elites e aplicá-las ao fato histórico estudado. O objetivo final, portanto, será concluir o nível

    de exequibilidade da Teoria das Elites no sistema internacional, tendo como instrumento para

    comprovação, a estratégia política do Cardeal Richelieu.

    Palavras-chave: Richelieu, teoria das elites, Guerra dos Trinta Anos, raison d’É tat .

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    ABSTRACT

    MonographInternational RelationsUniversidade Federal de Santa Maria

    RICHELIEU AND RAISON D’ÉTAT : THE ELITE THEORY IN FRENCHABSOLUTISM

    AUTHOR: STEFANIE RIGHITEACHER: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRA

    Santa Maria, December 3rd, 2014.

    During the XVII century, the French absolutism faced a significant threat to its integrity and

    the national interest. This hostility was characterized by the remarkable expansion of the

    Habsburg Empire. While the French territory was  being surrounded, the Thirty Years War’s

    scenario was shaped. In this context, Cardinal Richelieu became a centerpiece in the

    maintenance of the French sovereignty as minister of the king Louis XIII. Using his own

     political concept, the cardinal makes use of raison d’  État  as a political strategy against the

    Habsburg rush through the European continent. Based on these facts, the present work seeks

    to investigate the empiric application of the Elite Theory, elaborated by the sociologistGaetano Mosca, in order to prove the capacity of an individual in modifying the international

    sphere in favor of personal or political interest. To this end, this work will be parted in three

    chapters: the first part will discourse about the biography of Richelieu and his work (The

    Political Testament); the second chapter will focus in the warfare and Richelieu’s

     performance using raison d’  État ; and, finally, the last part seeks to explore the main premises

    of the Elite Theory, applying them to the historical fact that is investigated in this work.

    Therefore, the goal is to measure the level of applicability of the Elite Theory in theinternational system, using as instrument to this end, the political strategy of Cardinal

    Richelieu.

    Keywords: Richelieu, elite theory, Thirty Years War, raison d’É tat .

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 –  Cardeal de Richelieu............................................................................................... 32Figura 2 –  O legado de Carlos V, 1519.................................................................................... 48Figura 3 –  Sacro Império Romano-Germânico ao iniciar-se a Guerra dos Trinta Anos.......... 51

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    LISTA DE ANEXOS

    Anexo A –  Personalidades históricas.................................................................................. 104Anexo B –  Acontecimentos históricos................................................................................. 108

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10 1 DE ARMAND A RICHELIEU ..................................................................... 17 1.1 Da família .......................................................................................................................... 19 

    1.2 Armand Jean du Plessis ................................................................................................... 23 

    1.3 Da púrpura à política ....................................................................................................... 28 

    1.4 O Testamento Político ...................................................................................................... 33 

    2 A RAZÃO DE ESTADO NA GUERRA DOS TRINTA ANOS ................ 42 2.1 Antecedentes e causas da guerra ..................................................................................... 44 

    2.1.1 O contexto francês ........................................................................................................... 51 

    2.2 A guerra encoberta ........................................................................................................... 56 

    2.2.1 A batalha de La Rochelle (1627-1628) ........................................................................... 58 

    2.3 A guerra aberta ................................................................................................................. 61 

    2.4 A Paz de Westfália ............................................................................................................ 63 

    3 A TEORIA DAS ELITES EM RICHELIEU .............................................. 67 3.1 A teoria .............................................................................................................................. 70 

    3.2 Gaetano Mosca e a classe dominante .............................................................................. 75 

    3.3 Vilfredo Pareto e a élite .................................................................................................... 79 

    3.4 Richelieu e a Teoria das Elites ......................................................................................... 83 

    CONCLUSÃO ................................................................................................... 91 

    REFERÊNCIAS ................................................................................................ 98 

    ANEXOS .......................................................................................................... 104 

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    INTRODUÇÃO

    A origem do Estado moderno foi um fenômeno decisivo para a história das relações

    internacionais. E, sendo o Estado um dos atores mais antigos do sistema internacional, seu

     processo histórico de formação foi permeado pela luta de suas garantias fundamentais:

    território e soberania1.

    Este foi o dilema enfrentado pela França, no século XVII. Associado à ascensão

    constante do protestantismo, o avanço do Império Habsburgo pelo território europeu impôscom urgência a necessidade de escolha entre duas alternativas: manutenção de um Estado

    católico em sua forma legítima, omitindo o cerco Habsburgo; ou renúncia aos dogmas

    religiosos em prol da garantia de sua soberania. Tal impasse foi colocado à prova em um dos

    conflitos mais violentos da história2: a Guerra dos Trinta Anos.

    A hostilidade se estendeu de 1618 até 1648, envolvendo a maioria dos Estados

    europeus. A perspectiva francesa é digna de destaque, tendo em vista o fato de que estava

    cercada quase que na totalidade de suas fronteiras. Sendo assim, a solução encontrada para

    romper o cerco foi exaurir o Império Habsburgo a fim de impedir que surgisse uma potência

    nas proximidades da França.

    Definido o objetivo, a estratégia francesa foi subsidiar o inimigo Habsburgo  –   os

     príncipes protestantes  –  para fins de política externa e, com o propósito de manter o Estado

    católico estabelecido, combatê-los dentro de seu território. Desobedecendo, mesmo que

     parcialmente, a doutrina religiosa regente e mantendo o interesse estatal como prioridade tal

    atitude dá origem ao conceito de “razão de Estado”, elaborado e praticado pelo Cardeal de

    Richelieu.

    1  “No mundo moderno, os Estados existem como partes do sistema de Estados. Entre eles não hádescontinuidades. Daí por que a rigorosa definição do espaço territorial configura-se como fundamental,constituindo-se no mais das vezes em motivo de numerosos con flitos entre Estados.” (SILVA; GONÇALVES,2010, p. 73)2 Segundo Carneiro (2006, p. 163) não há um número preciso de mortes resultantes da guerra. Estas variamdesde números exorbitantes, que contabilizam a morte de metade da Europa Central, até estimativas mais atuaisque determinam que, pelo menos, um quinto, ou seja, quatro milhões de mortos. Ainda segundo autor, a despeitodos números, durante séculos esta foi considerada a “pior guerra da Europa”.

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    Durante sua trajetória política, Richelieu representou um papel de extrema importância

    nas relações internacionais. Considerado pai do sistema moderno de Estados, o cardeal ficou

    marcado pelo seu pragmatismo e pela sua sensibilidade estratégica em relação à política

    externa e interna da França (KISSINGER, 2012, p. 39). Richelieu foi fundamental para a

    manutenção da integridade francesa frente à ameaça do Império Habsburgo.

    Entretanto, em virtude de sua brilhante carreira política, pouco se explora da trajetória

    anterior à atividade cardinalícia. Nascido em 1585, sob o nome de batismo de Armand Jean

    du Plessis, Richelieu tem as origens em uma família da pequena nobreza. Seu pai, François du

    Plessis foi proclamado, em 1585  –   coincidentemente com o ano em que nasce o Cardeal

    Richelieu - , Cavaleiro do Espírito Santo3, o que reservara uma ligação privilegiada com a

    Corte francesa. Após a sua morte, em 1590, as vezes de chefe de família ficam primeiramente

    destinadas à viúva, Suzanne de la Porte e, mais tarde, ao filho mais velho Henri,

    autoproclamado marquês de Richelieu (BLUCHE, 2005, p. 22, 23).

    As contribuições tanto do pai quanto do irmão mais velho de Armand para que se

    firmasse sua posterior carreira política e cardinalícia aconteceram cedo, mas foram suficientes

     para que fosse perpetuado o status da família, que rendeu conhecimento da existência dos du

    Plessis à Corte. O trabalho de Henri para conhecer exércitos e o próprio círculo social do rei promoveu relações de confiança com Maria de Médicis4 (Ibidem, p 23). Ainda assim, tardou

     para que Richelieu entrasse em contato com segmentos maiores da nobreza da França. A

     princípio, Armand não tinha pretensões de ingressar no sacerdócio, mas sim na carreira

    militar. Não fosse a desistência do bispado por parte de seu irmão, Alphonse du Plessis,

    Richelieu teria permanecido na ocupação previamente escolhida (BLANCHARD, 2011).

    O tio de Richelieu recebia benefícios financeiros do arcebispado de Luçon, que coube

    a Armand. Porém, desistir do bispado significava, para a família du Plessis, abrir mão de uma

    renda indispensável, o que configurou uma obrigação para que assumisse o cargo. Dessa

    forma, Armand foi proclamado bispo em 1607, aos 22 anos, e foi levado pelo irmão mais

    velho para conhecer a Corte francesa. Porém, decepcionado com a sordidez e a vileza do

    ambiente, só veio a retornar em 1610, com a morte do rei Henrique IV (GARCIA, 2002, p.

    14).

    3 Cargo pertencente à Ordem do Espírito Santo –  em francês, L'Ordre du Saint - Esprit  ou L'Ordre des Chevaliers du Saint - Esprit  -, ordem de cavalaria subordinada à monarquia francesa. (BLUCHE, 2005, p. 413)4 Maria de Médicis foi a segunda esposa do rei Henrique IV. Também foi rainha regente até que seu filho, LuísXIII, atingisse idade adequada para assumir o trono. (GARCIA, 2002, p. 14)

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    Tendo em vista as ambições que tinha, a lógica vista por Richelieu classificava Maria

    de Médicis como uma via mais acessível para sua ascensão na Corte francesa. Porém, o novo

    obstáculo a ser vencido seria o casal Concini, que havia conquistado um lugar confortável

     junto à nobreza. Sendo assim, Richelieu somente retorna de modo definitivo em 1615, com o

    casamento de Luís XIII com Ana da Áustria. Nesta data o cardeal é designado como um

    confessor da nova rainha (Ibidem, p. 14).

    Finalmente, após uma dificultada trajetória até o círculo íntimo do rei, em 1616,

    Richelieu recebe seu primeiro cargo político: secretário de Estado para negócios exteriores. A

     partir de então, e com a morte do casal Concini, para que conquistasse a confiança de Luís

    XIII, o cardeal teve que concentrar todas as habilidades possíveis ao manipular diversos

    elementos para que fosse bem sucedido em sua permanência na Corte (Ibidem, p. 15).

    A participação no ambiente monárquico foi, certamente, o estímulo inicial para que se

    desenvolvesse a personalidade política de Richelieu. Mesmo que envolvido em assuntos

    internacionais quando em seu primeiro cargo, estes não foram sua prioridade inicial. Antes de

    assumir o posto de primeiro-ministro do rei Luís XIII, foi preciso articular agentes internos ao

    séquito real. Em face dessas condições hostis, pode-se dizer que a perspicácia do Cardeal

    adquiriu formas mais sólidas no que tange aspectos estratégicos, tornando-se cada vez maiscalculista e incompreendido:

    Contudo, são muitos os pensamentos, as palavras, as acções que não condizem, noseu caso, com o que esperamos do bom padre. O seu gosto pela guerra, a suacupidez, a sua constante facilidade em mentir e enganar, uma severidade que

     partilha com o Rei seu senhor, uma crueldade por vezes quase sádica, nada têm deevangélico; e a razão de Estado  –   ou muito simplesmente a razão  –   não poderiadesculpar tantos defeitos. Eis porque é justo e legítimo não insistir exageradamenteno sacerdócio do estranho Cardeal. (BLUCHE, 2005, p. 29)

    A frieza com que tratava de assuntos relativos ao Estado que pretendia defender,

    sujeitaram-no à má fama em relação ao seu caráter. Porém, tão condenados defeitos renderam

    a Richelieu sensibilidade estratégica ímpar, à teoria política um conceito original e à história

    uma performance diplomática memorável.

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    O desempenho político do cardeal teve seu auge durante sua atuação na Guerra dos

    Trinta Anos (1618-1648)5. O que aparentava ser um refluxo mais violento das Guerras de

    Religião do século anterior ascende a outro nível bélico, quando com a entrada da França no

    conflito. Na metade do século XVII, o absolutismo francês desfrutava de uma fase próspera

    internamente, visto que se recuperou rapidamente - a partir de Henrique IV  –  após o período

    das Guerras de Religião6 (JONES, 2013, p. 157). O rei possuía concentração total de poder

    em suas mãos, porém, Luís XIII –  dada sua cumplicidade com o Cardeal Richelieu –  não foi a

    sumidade por trás do triunfo francês sobre o Império Habsburgo.

    Contudo, a entrada francesa no conflito não foi declarada abertamente desde o início.

    Há duas fases a serem contempladas nesse sentido: a fase da guerra “encoberta” (1629 a

    1635) e a fase da guerra “aberta” (1635 a 1642) (BLUCHE, 2005, p. 63). A função da guerra

    encoberta  –   que consistia em auxílio financeiro a Estados protestantes  –   “foi de criar um

    ‘terceiro polo’ entre a aliança espanhola imperial e o bloco dos protestantes alemães, suecos e

    holandeses” (CARNEIRO, 2006, p. 167). Ou seja, surgia a necessidade de neutralizar o bloco

    Habsburgo  –  liderado pelo Sacro Imperador Romano Fernando II -, e a solução de Richelieu

    foi dar apoio os protestantes fora de suas fronteiras:

    A Richelieu não compensava o fato de a Espanha e a Áustria compartilharem da fécatólica da França. Muito ao contrário, uma vitória da Contrarreforma eraexatamente o que Richelieu estava determinado a impedir. [...] Richelieu preferiutomar partido dos príncipes protestantes a explorar o cisma da Igreja Universal. [...]Richelieu olhou a fé de Fernando II como uma ameaça estratégica. (KISSINGER,2010, p. 42, 43)

    Foi somente em 1635, após assinar tratados de aliança com a Suécia e as Províncias

    Unidas, que se abre a fase “aberta” da Guerra dos Trinta Anos, quando a França declara

    oficialmente a guerra contra a Espanha (BLUCHE, 2005, p. 226). “A entrada da França na

    guerra, ao lado dos protestantes, favorecia o interesse nacional francês, pois lhe permitia

    incorporar as regiões da Alsácia Lorena, além de enfraquecer o principal inimigo Bourbon”

    5 A Guerra dos Trinta Anos foi um conflito, envolvendo diversas nações europeias, em virtude do insurgentedomínio católico encabeçado pelo Império Habsburgo. Porém, dentre as principais motivações da beligerância, areligiosidade não se faz exclusiva, sendo envolvidos também méritos territoriais, dinásticos e econômicos. Ver

    Capítulo 2.6 Pode-se dizer que dentre as monarquias absolutistas da época, a da França estava entre as mais bem sucedidasem questões de centralização de poder, a despeito das disputas burocráticas internas da Corte (POMER, 1986, p.24).

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    (CARNEIRO, 2006, p. 164). A declaração de estado de beligerância tardia foi prova do

    cuidadoso cálculo de poder feito por Richelieu, desde a análise do potencial inimigo, até a

    formulação de estratégia apropriada e, enfim, a ação.

    O Cardeal de Richelieu foi peça essencial para que a França saísse vitoriosa da Guerra

    dos Trinta Anos. Porém, tão importante quanto o personagem em si, é também sua

    idiossincrasia. A estratégia de Richelieu não consiste apenas na percepção de ameaça, mas,

    igualmente, em uma constante indispensável para o resultado final: o interesse do Estado.

    Todos os agentes envolvidos no conflito contavam com este elemento essencial, no entanto,

    somente na França ele foi priorizado. Daí a originalidade da estratégia do cardeal: a razão de

    Estado –  ou, em francês, raison d’État .

    Dos elementos tradicionais que constituem um Estado, o interesse é secundário e

    etéreo. Uma ameaça ao interesse não consiste em algo mensurável ou material, e nem mesmo

    é justificável reivindicá-lo como direito - de existir ou ser preservado a todo custo. Sua

    existência no sistema internacional produz efeitos variados, desde cooperação a conflito. No

    caso de Richelieu, onde o interesse se encontrava como base de conflito, a raison d’État  se

    faz indispensável para que o cálculo de poder e a estratégia sigam linhas lógicas de ação.

    O sucesso francês se deu pela habilidade de um indivíduo em mobilizar o sistemainternacional a favor de seu Estado. O Estado francês foi personificado em um agente único,

    que manipulou todos os elementos disponíveis a fim de obter a solução para um problema.

    Em um viés sociológico, o caso francês pode ser descrito no modelo estrutural da Teoria das

    Elites: quando um indivíduo, ou um grupo destes, manipula a massa em favor de seus

    interesses.

    Surgida no século XIX, a Teoria das Elites teve como fundador o filósofo italiano

    Gaetano Mosca, apresentando o termo pela primeira vez em sua obra  Elementi di Scienza

     Politica, publicado em 1896. Neste livro, Mosca estabeleceu os pressupostos da teoria,

    estipulando que em toda sociedade, seja ela antiga ou moderna, sempre haverá uma minoria

    que é detentora do poder em detrimento de uma maioria que dele está privada (BOBBIO,

    2000, p. 385).

    Entre as tendências e os fatos constantes que se acham em todos os organismos políticos, um existe cuja evidência pode ser a todos facilmente manifesta: em todasas sociedades, a começar pelas mais mediocramente desenvolvidas e que são apenas

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    chegadas aos primórdios da civilização, até as mais cultas e fortes, existem duasclasses de pessoas: a dos governantes e a dos governados. A primeira, que é sempremenos numerosa, cumpre todas as funções públicas, monopoliza o poder e goza asvantagens que a ela estão anexas; enquanto que a segunda, mais numerosa, édirigida e regulada pela primeira de modo mais ou menos legal ou de modo mais ou

    menos arbitrário e violento, fornecendo a ela, ao menos aparentemente, os meiosmateriais de subsistência e os que são necessários à vitalidade do organismo

     político. (MOSCA, p. 78 apud Ibidem, p. 385)

    Ainda na concepção de Gaetano Mosca, a elite se dá como uma lei constante e

    inerente a qualquer organismo estatal existente, sendo este dirigido por um indivíduo ou

    grupo destes. O exercício desta minoria é, portanto, manipular a massa menos capaz e dela se

    utilizar para se manter na posição dominante, seja ideológica ou coercitivamente.

    Valendo-se do caso francês, o objetivo deste trabalho é, portanto, forçar a

    compreensão sociológica da Teoria das Elites para o sistema internacional de Estados, tendo

    como base elementos do paradigma realista, como a anarquia e a hierarquização do sistema

    internacional. Desse modo, será analisado o papel do Cardeal de Richelieu  –   na posição de

    governante - como personificação do Estado francês e agente mobilizador de outros atores

    internacionais  –   na condição de governados -, a fim de garantir a segurança e o interesse

    nacional da França.

    O trabalho será dividido em três capítulos. O primeiro capítulo diz respeito à biografia

    de Armand Jean du Plessis, sua trajetória política e análise de sua obra, o Testamento Político.

     Neste item serão abordadas suas motivações ideológicas, bem como sua trajetória profissional

    até o clero e a Corte.

    Seguindo a linha temporal, o segundo capítulo permanecerá com o foco no cardeal,

     porém, em uma abordagem mais pontual: será analisado seu papel na política francesa durante

    a Guerra dos Trinta Anos. Assim, serão resgatadas as contribuições teóricas de Richelieu  –  

    com devido destaque à raison d’  État - para uma política prática de defesa da integridade da

    França frente à ameaça Habsburga.

    Finalmente, o terceiro capítulo será chave para a problemática do trabalho. Neste será

    apresentada a Teoria das Elites, bem como suas principais premissas e seus principais autores.

    Após a análise teórica, esta será aplicada à prática política de Richelieu, buscando provar sua

    utilidade para o sistema internacional de Estados.

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    O objetivo do trabalho é demonstrar a aplicabilidade da Teoria das Elites no sistema

    internacional, haja vista a sua origem sociológica. Para tanto, será necessária a utilização de

    elementos complementares às disciplinas principais aqui contempladas, envolvendo

    componentes de teoria política, história e teoria das relações internacionais.

    Apropriando-se da multidisciplinaridade, que é característica inerente a ambos os

    campos de estudo supracitados, neste trabalho procura-se acrescentar uma nova dimensão

     para a análise do sistema internacional, extrapolando o uso da Teoria das Elites para além dos

    limites da sociedade civil e do aparato estatal domésticos, ou seja, atestar a exequibilidade de

    suas principais premissas também no cenário internacional.

    Dessa forma, o desempenho do Cardeal de Richelieu na Guerra dos Trinta Anos será o principal instrumento para que se possa ilustrar tal fenômeno, haja vista sua condição de

    “indivíduo vetor” na política internacional. Condição esta manifestada na formulação de uma

    estratégia que busca mobilizar elementos complicadores, através de ação unilateral, a fim de

    salvaguardar o interesse francês.

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    1 DE ARMAND A RICHELIEU

    O nome “Cardeal de Richelieu” carrega consigo um importante simbolismo quando se

    trata de política e história da França. Não bastantes suas contribuições históricas e político-

    teóricas, a Richelieu também  pode se atribuir caráter de “personagem”. Retratado por uma

    enormidade de autores, as atitudes do cardeal ora são alvo de críticas por sua frieza, ora são

    enaltecidas por sua genialidade.

    Há muito tempo Richelieu é aclamado por historiadores franceses como arquiteto damonarquia absoluta que dominou a Europa no decorrer dos séculos XVII e XVIII.[...] Até mesmo críticos, como Alexandre Dumas, que o fez vilão em Os TrêsMosqueteiros, frequentemente cede à admiração pelo frio saber-fazer, que écapturado no famoso retrato de Philippe de Champaigne que adorna a capa da nova

     biografia de Jean-Vincent Blanchard. Como Richelieu pretendia, ele é mostradocomo um mestre do jogo político com suficiente crueldade para alcançar seusobjetivos, sendo o maior deles a ascensão francesa à grandeza. (BELL, 2012,tradução nossa)7 

    O Cardeal de Richelieu é o tipo de personalidade a quem se pode atribuir certa

    mitologia. Isto é, tornou-se uma figura icônica, com carga conceitual devido a sua

    importância histórica, assim como pela representação literária de Alexandre Dumas. A

    existência de um personagem literário, então, se confunde com o homem político, tornando

    nebulosa a distinção entre os fatos fictícios e históricos.

    Campbell (1991, p. 29) explica os motivos pelos quais esse fenômeno ocorre,

    afirmando que “quando se torna modelo para a vida dos outros, a pessoa se move para uma

    esfera tal que se torna passível de ser mitologizada”.  No caso do Cardeal, a assertiva se

    7 “French historians have long hailed Richelieu as the architect of the absolute monarchy that dominated Europethroughout the seventeenth and eighteenth centuries. Henry Kissinger, in Diplomacy, dubbed him “the father ofthe modern European state system.” Even critics, such as Alexand re Dumas, who made him the villain of The

    Three Musketeers, often cannot help admiring Richelieu’s icy savoir -faire, which is captured in the famous portrait by Philippe de Champaigne that adorns the cover of Jean-Vincent Blanchard’s new biography. AsRichelieu intended, it shows a master political player with the ruthlessness necessary to achieve his goals, chiefamong them raising France to greatness.” (BELL, 2012) 

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    manifesta na ruptura paradigmática8 causada pelo conceito de razão de Estado, que mesmo

    vista de maneira controversa aos contemporâneos tradicionais defensores da unidade católica,

    foi decisivo para modificar o sistema internacional após a Paz de Westfália.

     Nesses termos, analisando a imagem do Cardeal como concebida pelos observadores

    da época, não se pode afirmar que houve consenso de opinião em relação a sua estratégia,

     porém, o que se sucede em relação à forma de fazer política inaugurada por Richelieu não só

    lhe confere o valor de mito, como também de figura “carismática”:

    O carisma autêntico baseia-se na legitimação do heroísmo pessoal ou da revelação pessoal. Não obstante, precisamente essa qualidade do carisma como poderextraordinário, supranatural, divino, o transforma, depois de sua rotinização, numafonte adequada para a aquisição legítima de poder soberano pelos sucessores doherói carismático. [...] (WEBER, 1982, p. 302)

    As concepções de heroísmo pessoal são variáveis de acordo com o meio, no entanto, o

    reconhecimento que confere o status de herói como de Joseph Campbell, é algo que pode ser

    verificado em Richelieu, tanto na legitimação através do ato heroico de Weber, como na saga

    do herói, também expressa em Campbell9 (1991, p. 137, 138).

    Dessa forma, pode-se dizer que, em virtude da carga conceitual que lhe é atribuída, o

    “Richelieu antes de Richelieu” 10 também é um aspecto que não pode ser descartado para uma

    análise completa. Mesmo que o reconhecimento seja voltado a sua carreira política, a vida

     pessoal do Cardeal é uma base elementar para que se compreenda a dinâmica do período,

    assim como suas ambições iniciais e a maturação destas em sua experiência profissional.

    8 Essa ruptura pode ser associada à antinomia fundamental da ação de Weber, considerando a reprovação doSacro Imperador Romano-Germânico, Fernando II, em relação à preferência dada por Richelieu ao interesseestatal. Neste caso, aplica-se a moral da responsabilidade que, assemelhando-se à filosofia maquiavélica,interpreta a ação em termos de meios e fins, ou seja, “se define pela busca de meios adaptados aos objetivos”(ARON, 2000, p. 470, 471).9 Campbell descreve a saga do herói como a realização de uma proeza física ou espiritual, um rito de passagemque envolve, em ambos os casos, “uma partida e um retorno” em um sentido evolutivo, representado pelas fasesda vida humana. Isto é, saindo de uma condição imatura  –   representada pela partida  –   para um estágio deenobrecimento pessoal –  representado pelo retorno. (CAMPBELL, 1991, p. 137, 138).10 Na obra de Bluche (2005, p. 21), o autor utiliza essa expressão para descrever François III de Richelieu, pai docardeal, buscando ilustrar a semelhança da personalidade e ideologia de ambos. Porém, aqui o termo foi“apropriado” para definir um limite entre a vida de Richelieu antes do início de suas atividades cardinalícias edepois, quando se inicia sua ascensão na Corte.

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    Como sugere o título desta seção, este capítulo irá discorrer sobre a biografia do

    cardeal de Richelieu a fim de investigar evolução histórica deste personagem desde suas

    origens até o ápice de sua carreira política. Para que se entenda sua trajetória completa é

    necessária a análise de sua linhagem familiar 11, assim como de seu histórico profissional, a

    exemplo dos estudos para seguir carreira militar, o sacerdócio e o exercício do cargo de

     primeiro-ministro de Luís XIII. Também será contemplada a obra “O Testamento Político de

    Richelieu”, a fim de analisar de forma mais profunda as contribuições teóricas de Richelieu

     para a política, enfatizando os elementos da razão de Estado –  ou raison d’État .

    Ao decorrer do capítulo também será dada a devida importância à crescente

    sofisticação da percepção estratégica de Armand du Plessis como estadista. É necessário tal

    destaque na medida em que há visível amadurecimento no trato das problemáticas relativas à

    época, tanto na instituição estatal francesa quanto no sistema internacional.

    1.1 Da família

    Primeiramente, antes que se possa discorrer sobre os aspectos biográficos de Richelieu

    é necessária uma apresentação de determinadas particularidades do período histórico

    analisado. Haja vista a relação de longa data da família du Plessis com a monarquia, é

    fundamental entender o papel familiar e a carga inerente a este aspecto da vida pessoal no

    século XVII.

    A tradição familiar é uma peça indispensável para o entendimento da dinâmica de

     poder deste período. Além dos elementos tradicionais para expansão da capacidade de

    dominação e governança - como os âmbitos econômico e militar –  as alianças se destacavam

    como uma forma primitiva do que seria o alinhamento entre Estados no sistema internacional

    moderno. Visto que os limites fronteiriços eram mais flexíveis, havia dificuldade na distinção

    11 Em pleno absolutismo, a tradição familiar se fazia um aspecto primordial para a participação e aceitação dequalquer indivíduo na Corte. Trata-se de um círculo vicioso entre a manutenção da legitimidade monárquica einteresse  –   por parte daqueles que ainda não correspondiam à esfera social da nobreza - pelos privilégios

     proporcionados pelo relacionamento com a coroa e seu círculo.

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    nacional per se. Isso se devia aos numerosos feudos e principados associados à decadência da

    legitimidade e representatividade do Sacro Imperador Romano, o que ora facilitava a

    conquista territorial ora dificultava a efetividade do domínio na completude do território

    “adquirido”.

    Este elemento não só serviu de impulso inicial para que Armand ingressasse em

    carreiras promissoras relacionadas com a Corte francesa, como foi também o estigma que

    ameaçava a soberania da França. A façanha do Império Habsburgo destaca-se historicamente

     pelo seu método de dominação não necessariamente bélico. Obviamente o elemento

    estratégico se fez presente no arranjo da expansão territorial, porém, a aliança através do

    casamento se tornou uma alternativa pragmática à conquista militar e rendeu aos Habsburgos

    um amplo e disforme território 12.

    Já no caso de Richelieu, foi o compadrio da família du Plessis com a Corte que

     possibilitou seu ingresso em tal ambiente. De acordo com Bluche (2005, p. 20), “a

    antiguidade e as alianças no Antigo Regime não passam de dois parâmetros que permitem

    situar determinada família na hierarquia nobiliárquica, verdadeira escada de Jacob13”, ou seja,

    o uso da aliança, assim como as relações de vassalagem não eram métodos necessariamente

    exclusivos, mas também um molde hierárquico-social que possibilitava a ascensão de taisfamílias.

    Seja como for, existe no séc. XVI uma maneira muito fácil de ascender à nobreza: provar que se possui um feudo nobre sem ficar obrigado a pagar imposto dos feudoslivres, e isso por duas gerações. Quando numa família se acumula tal possessão e oexercício de um cargo militar honrado durante as duas mesmas gerações, é raro ser-se assimilado ao mundo dos vilãos. (Ibidem, p. 30)

    Dessa forma, torna-se inevitável a associação de qualquer personalidade com a sua

    árvore genealógica. Não indiferente a esta conjuntura, os du Plessis construíram um histórico

    significativo para preservar uma posição privilegiada do status social da época:

    12 Ver figura 3.13 A escada de Jacob é mencionada na Bíblia Sagrada em Gênesis (28, 11-19) e refere-se à visão de Jacó em umde seus sonhos e simboliza o meio entregue pelos anjos para subir e descer do céu. (BÍBLIA, 1993)

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     Não nos esqueçamos de ponderar em paralelo os serviços e a respectiva recompensa.Louis du Plessis, antepassado do Cardeal-Ministro, falecido “na flor da idade”,“serviu honrosamente os reis Francisco I e Henrique II” (P. Anselme); o seu irmãoJacques foi bispo de Luçon; os outros irmãos foram combatentes incansáveis. Umdeles, François, chamado Perna de Pau, especialista na guerra de cerco e matador de

    Huguenotes, tinha a promessa do governo de Havre. O outro, Antoine, igualmentemontador de cercos e matador de Huguenotes, foi governador de Tours. Os serviçosmilitares destes temíveis du Plessis não podiam senão ter favorecido a carreira deFrançois III de Richelieu, pai do Cardeal. (Ibidem, p. 21, grifo do autor)

    Embora fique clara a ligação da família com a monarquia, há divergência entre as

     pesquisas analisadas sobre a procedência nobre dos du Plessis. Enquanto François Bluche

    (2005, p. 19, 20) destaca o equívoco cometido por vários historiadores ao classificar a família

    du Plessis como “pequena nobreza”, Garcia (2002, p. 10) acentua essa condição, ressaltando

    a situação de pobreza vivida pelos du Plessis  –   sendo, inclusive, este o motivo pelo qual

    Richelieu assume o bispado de Luçon, visto que proporcionava uma renda indispensável para

    a família (Ibidem, p. 12).

     No entanto, é mencionado por Bluche (2005, p. 20) que as origens nobres da família

    du Plessis iniciam-se seis gerações anteriores a de Armand, dado o casamento entre Isabeu le

    Groing de Belarbre e Sauvage du Plessis  –  senhor de Vervolière. O casal concebeu o filho

    Geoffroy, que desposou Perrine de Clérembaut, dama e herdeira da senhoria de Richelieu  –  o

    que explica a herança do território pela família do cardeal.

    Dessa forma, havendo dados que corroboram para a imprecisão histórica, é necessário

    o esclarecimento da condição em que se encontrava a família. O impasse é solucionado por

    Blanchard (2011, p. 182, 188)14 quando relata a problemática relação de François III, pai de

    Armand, com a administração financeira da família:

    Como muitos outros oficiais de elite na corte, François usou sua privilegiada posição política para emprestar dinheiro, porém, com o reino em guerra, esse não foi um período propício para aventuras financeiras. Ele também arriscou dinheiro emempresas comerciais estrangeiras. François, ao que parece, encontrava-se com umconsiderável débito quando faleceu. (tradução nossa)

    14 “Like many other high-ranking officials at court, François had used his privileged position to borrow and lendmoney, but with the kingdom at war, this was not a good time for financial ventures. He also risked money inoverseas commercial enterprises. François, it appears, was in considerable debt when he passed way.”(BLANCHARD, 2011, p. 182, 188)

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    Também afirma a literatura que, devido às dívidas acumuladas por François III, a

    herança do bispado de Luçon seria indispensável para que a família mantivesse renda fixa.

    Dessa forma, o cargo de bispo seria obrigatoriamente repassado para um dos três meninos du

    Plessis. A Henri coube o caminho da nobreza, deixando Alphonse  –   o irmão do meio  –  

    determinado como “futuro bispo” 15 (GARCIA, 2002, p. 12).

    A família “du Plessis Richelieu” trilha o caminho à nobreza da maneira tradicional

    mencionada no início desta seção: as alianças. Havia três que serviriam de origem para a

    influência posterior dos Richelieu assim como ocupação de postos relevantes na Corte: os

    duques de Montpensier, a casa de Rochechouart e a casa Montmorency. No ano de 1542

    casam-se Louis du Plessis e Françoise Rochechouart, avós do cardeal. Um dos filhos do casal,

    François III de Richelieu, pai de Armand, é uma das figuras mais importantes no histórico da

    ascensão da família e foi definitivo para o sucesso do futuro cardeal:

    A personagem permanece envolta de mistério. Falecida prematuramente, tendoacumulado honras e cargos (grão-preboste da França, conselheiro de Estado, capitãoda guarda pessoal), figura na promoção do Espírito-Santo –  no cordon bleu  –  de 31de dezembro de 1585. Trata-se de um cursus honorum  quase perfeito. O grão-

     preboste não conta do número de grandes oficiais da Coroa, mas como chefe degabinete e alto dignitário da Corte, partilha quase todos os privilégios daqueles, emespecial o da nobreza de dignidade. Detém funções importantes: ele é magistradocomo preboste dos paços do concelho, mas juiz militar. Ele é polícia encarregado davigilância e da segurança, não somente da casa do Rei, mas também da Corte, e comuma eficácia policial ilimitada, dado que acompanha o Rei nas suas deslocações.(BLUCHE, 2005, p. 21).

    A partir das honrarias coletadas por François III, o pequeno dilema sobre os du Plessis

     pertencerem à condição de pequena nobreza fica mais claro, principalmente quando é

    analisado também o papel de Suzanne de La Porte16, mãe de Armand. Levando-se em conta

    que os de La Porte não possuíam grandes fortunas, obviamente, em um período inicial, os du

    Plessis Richelieu representavam certo “provincianismo” (Ibidem, p. 24), a despeito das

    conquistas de François. Entretanto, a constante ascensão do pai de Richelieu e o acúmulo

    15 Alphonse, posteriormente, abdica ao cargo de bispo, deixando a herança da carreira religiosa para Armand

    Jean. Este detalhe será explorado mais precisamente no item 1.2.16 Suzanne de La Porte não era exatamente nobre. Seu pai, François de La Porte, um advogado do Parlamento deParis, serviu a Ordem de Malta, sendo consagrado “cavaleiro da graça”. Por mais que a fortuna da família nãofosse significativa, Suzanne era digna de certa consideração. (BLUCHE, 2005, p. 24) (GARCIA, 2002, p. 10)

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     progressivo de cargos influentes foram cruciais para a perpetuação do  status privilegiado da

    família:

    Quando François du Plessis de Richelieu se tornou cavaleiro do Espírito Santo, a 31de dezembro de 1585 (o futuro Cardeal-Ministro já era nascido, mas não baptizado),só havia em França, aliás, só restavam, cento e quatro cavaleiros, representandonoventa famílias. Já não se pode classificar os Du Plessis na pequena nobreza. Já seencontram na Corte e bem colocados neste sítio privilegiado. Bastava um toque parafazer deles duques. [...] A partir de 1586, os Richelieu foram-se desembaraçando doseu provincianismo; será ainda o lugar no cordon bleu  que assinala seu lugar naCorte que consagra sua ascensão notável. (Ibidem, p. 22, 24)

    Outro personagem de considerável importância é o irmão mais velho de Armand17,

    Henri. Em virtude do falecimento do pai, em 1590, assim que aflora a idade, o rapaz assume a posição de chefe de família e se autoproclama Marquês de Richelieu. A fim de preservar o

     prestígio conquistado por François III, Henri se propôs a estreitar os laços tanto com o

    exército quanto com a Corte, obtendo, como resultado a confiança de Maria de Médicis e

    contribuindo consideravelmente para a ascensão do irmão, Armand (Ibidem, p. 25).

    É inquestionável a relevância da família du Plessis-Richelieu para a Corte Francesa,

    assim como a influência direta deste aspecto na vida e na carreira do Cardeal Richelieu. E é

     justamente neste ambiente que se funda a base de sua índole e de sua ambição. A partir de

     benefícios designados aos du Plessis, torna-se possível a escalada do cardeal até o cargo de

     primeiro ministro, posto que viabilizou a condição de transformador da política francesa e do

    sistema internacional.

    1.2 Armand Jean du Plessis

     No ano 1585 nasce o quarto filho18  da família du Plessis-Richelieu: Armand Jean.

    Armand seria o embrião da personalidade emblemática que, posteriormente, tornar-se-ia

    Cardeal de Richelieu, primeiro-ministro do rei Luís XIII. Estando consciente da carga

    17 Os filhos de François III du Plessis e Suzanne de La Porte ao todo eram cinco: Françoise, nascida em 1578;Henri, nascido em 1580; Alphonse Louis, de 1582; Armand Jean, nato em 1585 e Nicole, de 1586. (BLUCHE,

    2005, p. 24)18  Por vezes, em algumas obras, Richelieu é tratado como o terceiro filho. Essa ordem se faz quando sãoconsiderados somente os filhos homens do casal du Plessis. Quando se consideram as meninas na ordem denascimento, Richelieu é o quarto filho.

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    inerente ao nome da família du Plessis, fica evidente que a mediocridade era um aspecto não

    só já superado pelos novos integrantes do cordon bleu francês, como uma opção impraticável

    no futuro de Armand Jean.

    A vida pessoal de Richelieu, principalmente os aspectos anteriores a sua atividade

    como estadista, é um traço indispensável para a compreensão desse indivíduo, haja vista o

     papel de importância que ocupa na construção da personalidade e idiossincrasia do cardeal.

     Nas palavras de Blanchard (2011, p. 93)19:

    O cardeal nasceu há mais de quatro séculos, e, como se percebe, ele cuidadosamenteesculpiu sua imagem pública. Ainda assim, os historiadores dão atenção à vida privada do cardeal. Isso porque, durante o século XVII, o homem francês nãodissociava o político do pessoal, e, para entender o que se dizia sobre o cardeal, é

     preciso considerar a vida ética e emocional do chefe de Estado. (tradução nossa)

    Ao condicionar o andamento desta seção à afirmativa de Blanchard, a formação de

    Armand será analisada com o propósito de relacionar aspectos de sua vida pessoal antes do

    ofício como cardeal e primeiro-ministro e a contribuição destes para a construção de sua

    futura identidade. Nesse sentido é importante acrescentar que, sendo Armand o terceiro filho

    homem da família du Plessis, não havia muita perspectiva de privilégios destinados facilitar a

    consolidação de sua carreira, impelindo-o à busca de formação de forma mais independente

    (Ibidem p. 200).

    O início das atividades acadêmicas de Armand se dá no ano de 1594, quando ele deixa

    Richelieu para se juntar ao seu irmão mais velho Henri, iniciando seus estudos no Collège de

     Navarre20

     em letras e arte da retórica (Ibidem, p. 195). Após Navarre, Armand frequenta aacademia de Antoine de Pluvinel - fidalgo comandante da estrebaria do rei - onde aprimora as

    habilidades como equitação, manuseio de armas, dança e etiqueta. O foco da escola era

    formar jovens que pretendiam seguir carreira militar (BLUCHE, 2005, p. 43).

    19 “The cardinal was born more than four hundred years ago, and, as just noted, he carefully crafted his publicimage. Yet historians do pay attention to the life of the cardinal as a private individual. That is becauseseventeenth-century Frenchmen did not dissociate politics from the personal, and to understand what they said

    about the cardinal one must consider this emotional and ethical life of the statesman.” (BLANCHARD, 2011, p.93)20 A escola estava localizada em uma região onde havia grande concentração de instituições privadas de altonível (BLANCHARD, 2011, p. 195).

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    A princípio, a carreira das armas foi a escolha de Richelieu, visto que a seu irmão mais

    velho, Henri, coube o segmento da nobreza, e ao irmão do meio, Alphonse, o bispado. No

    entanto, com a desistência de Alphonse para se tornar cartuxo21, em 1603, a obrigação recai

    sobre Armand, que deixa a academia de Pluvinel para iniciar estudos voltados à religiosidade.

    Salvo a competência intelectual comprovada do futuro cardeal, este, entretanto, ficou à mercê

    da realidade repentina que o acometeu, restando apenas conformar-se com o que lhe foi

    imposto:

    Porém, em 1603, Alphonse du Plessis, “bispo nomeado” de Luçon –  sede episcopalque Henrique III e depois Henrique IV reservaram à família do grão-preboste  –  renuncia à mitra e decide fazer-se cartuxo. É necessário modificar todo o programaRichelieu. É Henri que assim decide. Armand deve sem demora preparar-se para ser

     bispo. Pouco importa se não tem vocação, nem lhe perguntam opinião. Aliás, umadiocese é mais que um regimento. É necessário que o prelado, contra a sua vontade,mais dócil que Alphonse, estude filosofia. Mandam-no para o colégio de Calvi edepois para Navarra, em seguida para a Sorbonne, onde irá preparar o bacharelatoem teologia. (BLUCHE, 2005, p. 43)

    Ingressando na escola de Sorbonne  –   ou Collège du Sorbonne  -, uma das mais

     prestigiadas instituições de ensino teológico europeia, Armand trilhou o caminho precoce ao

     bispado, tendo iniciado o processo para assumir o cargo em 1606, quando é nomeado pelo rei

    Henrique IV (BLANCHARD, 2011, p. 205). Os estudos de Richelieu se concluem em abril

    do ano de 1607, com vinte e dois anos de idade, quando o bispado é finalmente concedido

     pelo papa Paulo V (BLUCHE, 2005, p. 43).

     No momento em que Richelieu se insere em um segmento de importância na Igreja

    Católica francesa, é revelada a oportunidade de ascensão e influência transcendentes ao mero

    exercício do sacerdócio. Paralelamente à insurgência do protestantismo como ameaça ao

    catolicismo - e à própria instituição da Igreja Católica -, a França passava um momento

    relativamente próspero e pacífico promovido pelo rei Henrique IV, dados os conflitos

    religiosos do século anterior (BLANCHARD, 2011, p. 237). Servindo-se desta conjuntura,

    Henrique IV também promoveu reformas na estrutura da capital francesa, buscando

    representar em Paris a força e a resistência do Estado francês após um longo período de

    hostilidades:

    21 Espécie de monge.

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    Henrique IV demonstrou compromisso quase incondicional com a capital. Aimportância de Paris para a legitimidade e a força do regime fora sublinhada nas

    fases finais das Guerras de Religião. [...] Ambicioso, o novo rei empenhou-se emmodelar a cidade de modo a espelhar a grandeza almejada por ele para a naçãofrancesa e a dinastia real. (JONES, 2013, p. 160)

    Essas reformas foram estendidas a todo território francês, em questões de

    infraestrutura, desenvolvendo diversos setores relevantes para a vitalidade Estatal. Somando-

    se a outros fatores, como o fortalecimento da fé cristã –  em decorrência do revigoramento do

    Concílio de Trento (1545  –   1563), face ao sucesso da Reforma Católica -, havia certa

    “efervescência espiritual”, o que reafirmava a legitimidade do governo absoluto e da relação

    deste com a Igreja Católica22 (BLANCHARD, 2011, p. 225).

    A interdependência de ambos os elementos - políticos e religiosos - tornou a

     participação no clero uma condição que implica influência além da instituição da Igreja. Tal

    conjuntura não passou despercebida aos olhos de Richelieu (Ibidem, p. 219); o conjunto de

    obras suntuosas e o crescimento significativo da construção de igrejas a fim de “catolicizar” o

    espaço parisiense revelaram a ideologia religiosa como um assunto voltado muito mais à política do que ao credo e à fé (JONES, 2013, p. 174).

    O bispo francês daquele tempo tem várias funções. Além das responsabilidadesespirituais, tem papel político e administrativo, econômico e social. A Igreja tem

     bens que é preciso administrar. Tem a seu cargo a instrução (pequenas escolas) e aassistência (obras da cidade e hospitais). (BLUCHE, 2005, p. 51)

    Estando em Paris durante seus últimos anos de estudo, fica claro para o futuro cardeal

    que a estrutura da cidade parisiense possuía um profundo simbolismo, que viria a ser

    difundida por toda a França. No entanto, quando chega a Luçon, em 1608, tal é sua decepção

    com o bispado local que Richelieu se torna um símbolo de apoio à Contra Reforma.

    22 A relação entre o agente Estatal e a instituição da Igreja Católica se dá no princípio fundamental que inspira oabsolutismo quando se trata da influência da religião na sociedade: a colaboração de ambas em busca do objetivocomum do bem do homem. (MARTINA, 1994, p. 24)

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    Em 1609, o senhor de Luçon deseja ocupar-se do que é mais urgente. Sente-se perturbado pelo triste estado do clero local. Os curas são pouco instruídos,indisciplinados, negligentes, sem zelo mesmo que tenham alguma convicção. Nãosão nada edificantes. [...] Enquanto Richelieu mora no local –  e tanto quanto a saúdelhe permite  –  percorre a diocese para observar, vigiar e animar os responsáveis da

     paróquia. (Ibidem, p. 54)

    Durante todo período em que assumiu o bispado, Richelieu teve desempenho

    exemplar. Esse fator foi indispensável para a manutenção dos contatos que mantinha com a

    Corte em Paris, que se estreitaram ainda mais a partir de 1610, após de morte de Henrique IV:

    Em 1612 Richelieu rezou perante Maria de Médicis, segunda esposa de Henrique IVe regente do reino após a morte do marido, na igreja de Saint-André-des-Arts, emParis. O Bispo de Luçon declarou sua admiração pelo Cardeal du Perron, um

     prelado-diplomata que teve também uma reputação por ser um ótimo orador. Talvezesse fosse o tipo de perfil mais influente que buscava o futuro Cardeal. Na verdade,é impossível de determinar quais eram as aspirações dele naquela época, e que

     propósito havia por trás de seu bom relacionamento com a rainha, exceto que elequeria ser um respeitável bispo da Reforma Católica Francesa. (BLANCHARD,2011, p. 274, 280, tradução nossa)23 

    Mesmo com a apreciação da Corte, especialmente de Maria de Mécicis, Richelieu não

    tinha grandes expectativas com os resultados de sua atuação como bispo em Luçon. Porém,

     para sua surpresa, é justamente devido à figura da Rainha-Mãe24 que sua ascensão se inicia:

    em 1614 é nomeado deputado do Clero nos Estados Gerais, aos vinte e nove anos (BLUCHE,

    2005, p. 44).

    É devido às boas relações com a rainha regente que Richelieu consegue iniciar a

    carreira política na Corte, além de receber a nomeação para se tornar cardeal em 1622

    (Ibidem, p. 59). A permanência no bispado de Luçon se manteve até 1623, com a crescente

    ausência de Armand nos últimos anos, devido ao progresso de seu relacionamento com a

    23 “In 1612, Richelieu preached before Marie de’ Medici, Henri’s second wife and  regent of the kingdom afterher husband’s death, in the church of Saint-André-des-Arts, in Paris. The Bishop of Luçon stated his admirationfor Cardinal du Perron, a prelate-diplomat who also had reputation for being an outstanding orator. Perhaps thisis the kind of larger profile that he aimed for. In truth, it is impossible to determine what was the exact scope ofhis aspirations at the time, and what purpose there was to his good relations with the regent queen, except that he

    wanted to be a respectable bishop of the French Catholic Reformation.” (BLANCHARD, 2011, p. 274, 280)24 Embora cultivasse boas relações com a Corte antes da morte de Henrique IV, Richelieu compreende que a viade acesso mais fácil para progredir profissionalmente seria através da simpatia de Maria de Médicis, segundaesposa do rei. (GARCIA, p. 15)

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    monarquia. Este fator foi decisivo para sua permanência e favoritismo em Paris, dando

     progressão e continuidade à futura ascensão política do Cardeal.

    1.3 Da púrpura à política

    Após o assassinato de Henrique IV, em 1610, Maria de Médicis - a Rainha-Mãe  –  foi

    rainha regente até que seu filho, Luís XIII, tivesse idade suficiente para assumir a coroa. Uma

    vez oficializada como regente, sua escolha foi de manter o corpo de ministros os quais

    serviam o falecido rei a fim de manter a estabilidade do conselho real. Porém, haja vista o

    contexto político instável resultante da ascensão do protestantismo, Maria acabou por fazer

    escolhas equivocadas e prejudiciais à integridade francesa (BLANCHARD, 2011, p. 280,

    286).

    Pode-se afirmar que Maria de Médicis não estava ciente da ameaça representada pelo

    cerco Habsburgo. Desatenção que somente agravou o quadro após o arranjo do casamento, no

    ano de 1612, de Luís XIII com Ana da Áustria  –  filha do rei espanhol Filipe III. Tal decisão

    causou revolta entre os membros do conselho25, que colaboraram para acentuar ainda mais o

    afastamento existente entre a rainha e seu filho (Ibidem, p. 315, 327). Associando-se aos

    únicos confidentes restantes, Concino Concini e Leonora Galigai26, formalizou seu

    isolamento, dificultado, inclusive, a participação de Richelieu nos assuntos políticos da coroa

    (GARCIA, 2002, p. 15).

    Ainda bispo em Luçon nessa época, o futuro cardeal mantinha relações amigáveis com

    Maria de Médicis, porém, devido ao favoritismo direcionado ao casal Concini  –   os quais

    Richelieu buscou o apoio sem sucesso -, não foi possível que lograsse grandes feitos no

    25 Havia, de certa forma, entre os membros do conselho, descontentamento com a Rainha-Mãe, em virtude doCorte de gastos que implicava diminuição de seus salários. Configurando rancor generalizado, associado àameaça aos interesses pessoal do conselho, tal medida culminou em isolamento total de Maria de Médicis.(BLANCHARD, 2011, p. 327)26 “Eram, ambos, florentinos como Maria, e haviam acompanhado a soberana até o dia de seu casamento com

    Henrique IV. Leonora Galigai, inteligente e astuciosa, após ter sido companheira de infância de Maria deMédicis, tinha-se transformado na sua conselheira principal. Concini era o favorito da coroa. Um casal ávido ehábil: haviam conseguido poder e acumulado riquezas. Mas toda a corte e toda a Paris os detestavam.”(GARCIA, 2002, p. 14,15)

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    segmento político. No entanto, a manutenção do relacionamento com a Rainha-Mãe

    direcionou o cardeal a uma posição privilegiada aos olhos da Corte. Dessa forma, talvez com

    fins de comprovar as “boas intenções” do bispo, em 1615, após do casamento de Ana da

    Áustria com Luís XIII, Richelieu foi designado confessor da futura rainha (Ibidem, p. 15).

    A constante presença de Richelieu no ambiente da Corte - que durante algum tempo

    não ultrapassou o limite de espectador das agitações e hostilidades entre o conselho, a rainha e

    o futuro rei  –   não foi tratada com demérito pela Rainha-Mãe. Mesmo que não fosse um

     participante de atividade significativa nos assuntos políticos da dinastia, sua colaboração e

    fidelidade fizeram com que ficasse em evidência como alguém confiável, ou seja, um aliado

    interno em potencial (BLANCHARD, 2011).

    Sendo assim, no momento em que as tensões internas na Corte ficaram críticas, Maria

    de Médicis nomeia novos membros para o conselho. Dentre estes, se encontra Richelieu, que

    recebe seu primeiro cargo político de importância: secretário do Estado para relações

    exteriores27  –  tornando-se, mais tarde, responsável também por assuntos militares (Ibidem, p.

    479, 485). É neste momento que aparece clara para Richelieu a oportunidade de ascender a

    cargos mais importantes na política francesa. Para que se concretizassem suas ambições, dada

    a diversidade de elementos complicadores, foi preciso manipular diversas personalidadesimportantes simultaneamente, configurando um jogo político complexo.

    A peça inicial da estratégia, a Rainha-Mãe, já vinha sido trabalhada de longa data. Era

    clara a consideração que Maria de Médicis tinha por Richelieu. No entanto, Concini e sua

    esposa, Leonora, ocupavam o posto de “favoritos” da rainha. Sendo assim, mesmo declarando

    fidelidade e vassalagem exaustivamente, o casal Concini o ignorava, o que o encorajou a

    seguir cortejando Maria de Médicis. Embora o casal se manifestasse como um claro obstáculo

    ao relacionamento de Richelieu com a rainha, os cargos que lhe foram designados retratam

    uma atitude mais acolhedora da mesma (GARCIA, 2002, p. 16).

    Superada essa dificuldade, mesmo que parcialmente, o próximo elemento de

    importância para o avanço de Richelieu era Luís XIII. Fator crucial para a contínua ascensão

    do futuro cardeal, o jovem rei comportava certa carga emocional que foi decisiva para o

    desenvolvimento de sua relação com Richelieu. Desde menino, Luís XIII sofreu com os

    abusos de autoridade da mãe e com o constante assédio moral do casal Concini, assim como

    27  Já nesta época, Richelieu encaminhava relações diplomáticas de tolerância com príncipes protestantes.(BLANCHARD, 2011, p. 504)

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    de outros aliados e membros do conselho. A mágoa crescente fez com que, quando rei, Luís

    se retirasse em um isolamento voluntário e desenvolvesse constante desconfiança de todos

    que o rodeavam, exceto por uma pessoa: o Duque de Luynes28 (Ibidem, p. 15, 16).

    Assim estavam ordenados os agentes os quais Richelieu deveria manipular se quisesse

    manutenção e expansão de poder. Quanto ao casal Concini, o problema foi resolvido

    rapidamente sem que fosse preciso sua intervenção direta. Assim que proclamado rei, Luís

    XIII ordenou a morte de Concino, que foi executada pelo comandante da guarda, Vitry 29,

    deixando Richelieu como o principal confidente de Maria de Médicis. No entanto, esta vitória

     parcial foi minada pelo desprezo de Luís XIII pelo, ainda, bispo de Luçon. Dentre as

    motivações do rei destacam-se dois fatores principais. Primeiramente, pode-se dizer que Luís

    confere ao bispo certa incompatibilidade ou antagonismo, haja vista o bom relacionamento de

    Richelieu com a Rainha-Mãe e o rancor do rei pela mãe abusiva. Combinado a essa questão, a

     presença constante do duque de Luynes e a confiança que lhe depositava o rei, deram-lhe

    liberdade para que fizesse o possível para manter-se no poder (Ibidem, p. 17, 18).

    Tal liberdade foi reforçada devido ao exílio de Maria de Médicis, que foi convidada a

    se retirar das suas dependências de Paris, a pedido do filho. A mediação desta situação foi

    feita pelo próprio Cardeal de Richelieu, que se ofereceu ao conselho para que desempenhassetal competência:

    Após o resultado do golpe, Luís, Luynes e o conselho real foram deixados com um problema sério: o que fazer com Maria de Médicis, ainda mantida em severavigilância em seu apartamento no Louvre. A Rainha-Mãe teve que ser mandadaembora de forma condizente ao seu posto. Destemido apesar de seu fracassoanterior, Richelieu vislumbrou uma oportunidade. Com o próprio consentimento darainha [...] e a despeito da antipatia de Luís, ele convenceu os novos governantes de

    que poderia mediar a situação. Negociando um acordo que fosse satisfatório paraambos os lados, Richelieu salvou sua carreira política. [...] Richelieu tornou-se chefedo conselho da rainha e administrador de sua casa. (BLANCHARD, 2011, p. 592,tradução nossa)30 

    28 O Duque de Luynes pode ser considerado um amigo e confidente de longa data de Luís XIII e, tendo em vistao ressentimento que tinha pela maior parte das autoridades da Corte, tornou-se praticamente a única pessoa emquem o rei depositava total confiança (BLANCHARD, 2011).29 Após de morte do marido, Leonora sofreu de um ataque de histeria, o que foi considerado uma espécie demanifestação demoníaca. Considerada pela crença da época uma “bruxa” Leonora morreu queimada em praça

     pública, como muitos hereges deste período (GARCIA, 2002, p. 18).30 “In the aftermath of the coup, Louis, Luynes, and his royal council were still left with quite a problem: what to

    do with Marie de’ Medici, still kept under tight surveillance in her Louvre apartment. The queen mother had to be sent away in a fashion befitting her rank. Undaunted by his earlier setback, Richelieu spotted an opportunity.With the queen’s own consent […] and despite Louis’s animosity, he convinced the new rulers that he couldmediate the situation. By negotiating an arrangement that was satisfactory for both sides, he saved his political

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    Mesmo tendo salvado sua carreira política, a ausência de Richelieu deu margem para

    que Luynes construísse uma forte base de influência sobre Luís XIII além de reforçar cadavez mais a discórdia entre o rei e sua mãe (Ibidem, p. 649). No entanto, mesmo que sua

    ingerência sobre Luís fosse decisiva para dificultar a ascensão do bispo, o rei ainda sentia o

    ônus da falta de experiência de Luynes na política, ficando à mercê dos antigos membros do

    conselho, nos quais não confiava (Ibidem, p. 664).

    Dessa forma, para que Richelieu pudesse cativar Luís XIII, foi preciso que

    manipulasse forças de ambos os lados. Para que conseguisse manter-se inserido em ambos os

    lados do conflito familiar, foi preciso que lidasse com o triângulo formado pela Rainha-Mãe,Luynes e o rei, contando com a ajuda de François le Clerc du Tremblay31  –  mais conhecido

    como Padre José:

    Em Blois, Richelieu fez duplo jogo: espionava a rainha e mantinha Luynes a par detodos os seus movimentos. Na sombra, Padre José tramava para desfazer asdesconfianças de Luís XIII que, embora apegado à mãe, temia-a e queria mantê-laafastada do trono. [...] Richelieu procurava ganhar ouvidos de Luís XIII,

    denunciando os complôs da rainha-mãe. Não conseguia vencer as resistências nem aantipatia do rei porque Luynes, que ambicionava ser o homem mais poderoso daFrança, tornou-se seu inimigo. Apesar de sua pouca inteligência, Luynes haviaavaliado a força intelectual e a ambição de Richelieu. (GARCIA, 2002, p. 19)

    Após um longo período de forte hostilidade entre mãe e filho, as inúmeras negociações

    e acertos de paz tiveram resultados, fazendo com que Maria de Médicis estivesse presente de

    forma mais regular na Corte. Dada tais circunstâncias, Richelieu encontrava-se em situação

    mais favorável profissionalmente, haja vista as garantias proporcionadas pela aliança com aRainha-Mãe (BLANCHARD, 2011).

     No entanto, os frutos dos esforços para ganhar a empatia do rei só se materializaram

    após o dia 15 de dezembro de 1621, quando morre em Paris Charles d’Albert –   duque de

    Luynes. Sensibilizado pela morte do amigo, Luís desistiu da defensiva constante imposta à

    career. [...] Richelieu became chief of the queen’s council and administrator of her household.” (BLANCHARD,

    2011, p. 592)31  Padre José, mais tarde conhecido como “Eminência Parda”, foi um amigo de longa data de Richelieu. E leesteve ao seu lado desde seus tempos de aprendizado até seus 18 anos na função de cardeal. (GARCIA, 2002, p.13, 14)

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    mãe, cedendo-lhe mais credibilidade. E os resultados para Richelieu foram quase imediatos:

    no mesmo ano foi submetida sua requisição para se tornar cardeal, fato que ocorreu em 1622,

    quando finalmente se viu em posse do característico manto púrpura dos cardeais católicos

    (Figura 1) (Ibidem).

    Figura 1 –  Cardeal de RichelieuFonte: NNDBDisponível em: http://www.nndb.com/people/894/000092618/cardinal-richelieu-3-sized.jpg

    Ainda a passos lentos, somente em 1624 que se concretiza mais um resultado dainsistência do, então, cardeal para que fossem reconhecidas suas habilidades políticas além do

    sacerdócio. De acordo com Bluche (2005, p. 73):

    Em 1624, quando o rei, pressionado pela mãe e consciente da mediocridade relativado seu séquito, chamou Richelieu para o governo, não lhe mostrou a menorsimpatia. Se o Cardeal se chamou “chefe do Conselho”, só se d eveu a sua qualidadede príncipe na Igreja. Durante muito tempo Armand Jean desagradou ao seu senhor,

    que o achava demasiado seguro de si, superior, vaidoso, intimidante, pouco digno deconfiança. 

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    De fato, a confiança do rei só será ganha após o episódio em La Rochelle 32, no ano de

    1628. A partir de então, já se torna indiscutível a credibilidade de Richelieu, não deixando

     justificativas para a antipatia do rei, resultando na promoção para seu cargo de maior

    importância: primeiro-ministro33 de Luís XIII, em 1629.

    Começou então seu verdadeiro poder e a longa colaboração com Luís XIII, estaextraordinária amizade que uniu durante 8 anos dois homens igualmente doentios,recalcados, misteriosos, mas animados por uma paixão: realizar a unidade da França.[...] Os ministros anteriores acreditavam chegar ao poder explorando as conhecidasfraquezas do rei. O cardeal, ao contrário, resolveu encorajar a atração do enigmáticoLuís XIII pela grandeur, a grandeza. E foi bem-sucedido. O rei convenceu-se de quecontava com um homem de gênio. (GARCIA, 2002, p. 20)

    Devidamente inserido no segmento mais importante da dinastia francesa, Richelieu foi

    o elemento decisivo para que a França saísse vitoriosa da Guerra dos Trinta Anos. Após

    inúmeras falhas na estratégia estatal, seja por negligência ou por falta de experiência dos

    envolvidos, a dinâmica de ação do cardeal é um turning point   tanto na política francesa

    quanto mundial. Pode-se dizer que é inaugurada uma nova maneira de se pensar o Estado e

    seus interesses, desenvolvendo profundamente o exercício da razão em sua forma maisgenuína e mantendo-a acima de quaisquer que fossem as crenças ou doutrinas religiosas

     predominantes.

    1.4 O Testamento Político

    Richelieu redigiu alguns escritos ao longo de sua carreira, no entanto, a maioria

    voltada para fins do sacerdócio (BLANCHARD, 2011, p. 632). A obra-prima do cardeal,

    32 La Rochelle era o centro de resistência protestante. Em 1627 houve quebra do acordo de trégua previamenteassinado entre Richelieu e os protestantes, resultando no cerco que durou um ano. O cardeal era o general damissão, saindo vitorioso no ano de 1628, após a resistência ficar exaurida pela fome. (CARNEIRO, 2002, p. 469,470)33  “As instituições do reino capetiano nunca previram a existência de um ‘primeiro -ministro’. Por outro lado,‘um ‘principal ministro, como lhe chamam naquele tempo’, tem uma posição muito mais ambígua. Richelieu éem princípio, o homem do Rei e deve gerir a sua política, mas sem ter papel nem função bem determinad os.’ (J.Bergin)” (BLUCHE, 2005, p. 74)

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    destinada para o rei Luís XIII, é um marco na teoria política. “O Testamento Político”,

    embora inacabado, tem objetivo semelhante ao da obra “O Príncipe”, clássico político escrito

     por Nicolau Maquiavel, publicado em 1532: é um guia político dirigido ao rei –  ou príncipe,

    como é denominado o soberano em ambas as obras. O conteúdo da obra em si é abrangente,

    tocando em diversos aspectos relativos à arte de governar  –   o que abrange desde a teoria

     política a detalhes como armazenamento de alimentos durante a guerra (GARCIA, 2002, p.

    8).

    Entretanto, mesmo com o caráter eclético do texto, o fator de maior importância

    destacado pelo autor é o papel da razão no ato de governar. Dentre as maiores qualidades que

    se pode atribuir a um príncipe, a razão acima de todos os outros valores é a principal,

    especialmente quando unida ao amor pela nação que este representa. Dessa forma,

    espelhando-se, talvez, em sua própria estratégia utilizada durante a Guerra dos Trinta Anos, o

    cardeal inaugura um conceito original e revolucionário da teoria política deste período: a

    razão de Estado  –   ou, em francês, raison d’État 34. A razão de Estado é um elemento

    diferencial da compreensão política de Richelieu na medida em que não se restringe somente

    à teoria, mas também à prática  –   sendo, inclusive, o fator decisivo na manutenção da

    soberania francesa.

    Embora as características acima sejam as percebidas neste trabalho, Bluche (2005, p.

    194) expõe outros possíveis objetivos que foram explorados ao longo do tempo, todavia, não

    confirmados:

    Por ser famosa (além de inacabada), esta obra não deixa de ser ambígua. Acreditou-se durante muito tempo que “a obra não fora concebida para ser publicada” (Léon

     Noël); e agora já não se sabe bem o que pensar. Muito se afirmou que esteTestamento  nada tinha de tratado teórico; e actualmente cria-se o hábito de ver afacilidade com que Richelieu introduz axiomas no meio de um discurso pragmático,ou enxerta exemplos muito específicos no seio de uma demonstração que aparentaser abstracta. O livro apresenta-se como resumo das  Memórias, obra interminável einacabada –  teoricamente redigida no intuito de celebrar o monarca - , atrasada pelos“contínuos incómodos” de que sofria o Cardeal-Ministro devido à “fraqueza da [sua]compleição e ao peso dos assuntos”. 

    34 Por mais que este seja o aspecto mais famoso da obra, o termo per se só e empregado três vezes no decorrer dolivro. (BLUCHE, 2005, p. 199)

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    Mesmo que não tenha sido concebida a intenção inicial de se tratar de um “tratado

    teórico”, como afirmou François Bluche, a atribuição de tal característica é inevitável, tendo

    em vista a multiplicidade de elementos pertencentes à teoria política clássica.

    A obra é composta por duas partes, cada delas uma dividida, respectivamente, em oito

    e dez capítulos. Esses estão subdivididos em seções direcionadas a objetivos mais específicos

    relativos a cada capítulo.

    A primeira parte discorre sobre alguns fatos históricos, além das instituições de maior

    importância do Estado francês, tratando também de algumas questões político-teóricas

    relacionadas ao Estado, como a legitimidade do absolutismo e a divindade do príncipe. Essas

    questões são mais bem desenvolvidas na segunda parte do livro, onde se aprofundaclaramente o estudo em torno das diretrizes e fundamentos de Estado, além de aspectos

    funcionais das instituições apresentadas na primeira parte, englobando questões de logística,

    economia, organização da sociedade francesa e relações de poder no círculo social

    monárquico.

    O livro é iniciado com uma breve narrativa dos feitos do rei, em forma de

    congratulação pelo seu desempenho na contenção das revoltas huguenotes35  na França. A

    narrativa discorre de forma elogiosa, apresentando as dificuldades burocráticas enfrentadas

     por Luís XIII, além de manifestar a devoção e a lealdade do cardeal ao seu soberano. Esta

     parte inicial, pequena, em relação ao resto do livro, não condiz com o restante da obra.

    Mesmo que incansavelmente respaldada pelo “bem da França”, as palavras de apoio de

    Richelieu mascaram as críticas incisivas que faz ao  status do reino naquele período e servem

     para minimizar o efeito ofensivo das inúmeras recomendações que redige ao longo da obra:

    Apesar das fórmulas respeitosas, a epístola do rei disfarça mal o objetivo da obra. OCardeal-Ministro dá ao monarca um manual capaz de o ajudar na “gestão de umgrande Estado”, ou seja, a prosseguir a obra inaugurada, conduzida e mantida peloseu conselheiro mais eminente desde a sua entrada no Conselho. [...] Não é amodéstia que leva o Cardeal a atribuir ao monarca os êxitos do seu ilustre auxiliar.Este sabe, há mais de doze anos, como falar com seu amo. Convém “dizer -lheincessantemente que ele é o amo”. (Ibidem, p. 195, 196) 

    35 Denominavam-se assim os protestantes franceses - que eram, em sua maioria, calvinistas - durante os séculosXVI e XVII.

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    A partir de então, os próximos capítulos fazem com que o livro tome forma mais

    semelhante a um manual36, apresentando sugestões de correção em múltiplos segmentos da

    corte, da nobreza e da Igreja. As reformas sugeridas se referem ao âmbito eclesiástico, à

    supressão e limitação de segmentos privilegiados que buscam tirar vantagem de sua posição

    excepcional, além de reivindicações para membros da Igreja Católica  –  a exemplo do pedido

    de garantia dos direitos dos bispos, na seção XII, na página 139 da obra -, e também de

    observações sobre questões como educação e organização de determinadas instituições do

    Estado francês37.

    Após apresentar a estrutura de funcionamento esperada para o Estado e suas

    instituições, Richelieu passa para uma análise mais ampla do elemento estatal, onde expõe

    uma visão sistemática das instituições exploradas anteriormente. O cardeal faz um

    ordenamento hierárquico das divisões do Estado, ressaltando sua importância e a ordem nas

    quais devem ser consideradas:

    Depois de ter falado separadamente das diversas ordens de que o Estado se compõe,não me resta quase nada a dizer em linhas gerais senão que, assim como um todonão subsiste senão pela união das partes em sua ordem e no seu lugar natural,

    também esse grande reino não pode ser florescente, se V. M. não faz subsistirem oscorpos de que é composto em sua ordem; a igreja tendo o primeiro lugar, a nobrezao segundo e os oficiais que marcham à frente do povo, o terceiro. (RICHELIEU, p.207)

    Ao final da primeira parte, no capítulo XIII, o último assunto a ser tratado é o do

    conselho do Príncipe, que se refere à importância que deve ser dada pelo rei à formação do

    seu conselho de Estado e a atenção com que devem ser escolhidos seus membros. O conteúdo

    desta seção enf atiza o papel do “conselheiro de Estado”, que é, basicamente, a condição do próprio Cardeal. O destaque dado pelo autor a esse fator específico somente reforça a

    afirmativa de que o Testamento Político pode ser considerado uma crítica velada.

    Um príncipe capaz é um grande tesouro num Estado; um conselho hábil e tal comodeve ser, não o é menos, mas o conjunto de ambos é inestimável, pois que é daí que

    36 É importante destacar que a nomenclatura de “manual” se atribui à obra na medida em que esta contém uma

    série de instruções para que o príncipe domine a arte de governar. Ainda que limitador, o termo serve,meramente, para ilustrar o formato na qual a obra é escrita, mesmo não contemplando a profundidade de seuconteúdo.37 Como o Capítulo IV, que trata da Terceira Ordem do Reino, na página 176.

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    depende a felicidade dos Estados. [...] Muitas qualidades são requeridas para fazerum conselho perfeito; podem ser reduzidas, entretanto há quatro a saber, capacidade,fidelidade, coragem e aplicação que compreendem várias outras. (RICHELIEU, p.242, 243)

    Por mais que seja digno de suspeita o destaque dado ao dilema do conselho, não há

    unanimidade sobre o objetivo por trás do capítulo VIII. Nas palavras de Bluche (2005, p.

    196):

    É incorreto que o capítulo VIII da obra tenha por vezes sido considerado um

    autorretrato: o “conselho do príncipe” não depende de um Richelieu ideal, perfeito,como sonhava ser ou poderia ter sido. “Os melhores príncipes necessitam de bomconselho” significa singelamente: o rei Luís escolheu bem o seu braço direito. 

    Por mais que seja precipitada ou equivocada a suposição de que o capítulo VIII seja

    um “autorretrato”, é difícil contestar que haja intenção de passar uma mensagem para o

    soberano. É possível identificar em várias passagens a semelhança do conselheiro ideal à

     personalidade do Cardeal de Richelieu, tendo em vista que os conselhos são dados com base

    na sua própria idiossincrasia, condizendo com seu desempenho e modus operandi.

    Já a segunda parte discorre de maneira mais aprofundada sobre questões teóricas

    relativas ao Estado. Richelieu estabelece nove princípios para a boa governança, sendo estes

    indispensáveis para a boa administração estatal (RICHELIEU, p. 283). São eles:

    estabelecimento do reino de Deus (capítulo I); a razão como regra e diretriz do Estado

    (capítulo II); prevalência do interesse público acima do particular (capítulo III); dar a devida

    importância à previdência (capítulo IV); o papel relevante da pena e da recompensa paradireção do Estado (capítulo V); dar atenção equivalente à política aos negócios estatais

    (capítulo VI); atenção à especialidade de cada indivíduo para determinado emprego (capítulo

    VII); manter afastados os aduladores (capítulo VIII); e, finalmente, a última seção é dedicada

    ao poder do príncipe, subdividindo-se em mais oito subtítulos.

    Os três primeiros capítulos se relacionam entre si. O estabelecimento do reino de Deus

    é o primeiro passo estabelecido para o bem estar do Estado. Sem a garantia deste fundamento

    não há possibilidade de que se consiga um governo saudável (Ibidem, p. 284), o que implica,além do estabelecimento de um Estado livre das malícias através do culto, que haja

  • 8/15/2019 Richelieu e a Raison d’État - A Teoria Das Elites

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    comprometimento genuíno do príncipe em se manter longe da tentação, podendo garantir a

    virtude do seu séquito e de seu reino.

    Como os príncipes são obrigados a estabelecer o verdadeiro culto de Deus, devemter cuidado em banir as falsas aparências, tão prejudic