poesias de Júlio Dinis

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POESIAS

...quelle singulire et triste impression Produit un manuscritl Tout l'heure, ma table Tout ce que j'crivais me semblait admirable. Maintenant, je ne sais je n'ose y regarder. Au moment du travail chaque nerf, chaque fibre Tressaille comme un luth que Ton vient d'accorder On n'crit pas un mot que tout T'tre ne vibre. (Soit dit sans vanit, c'est ce que Ton ressent) On ne travaille pas on ecoute on attend. C'est comme un inconnu qui vous parle voix basse. On rest quelque fois une nuit sur la place. Sans faire un mouvement et sans se retourner. On est comme un enfant dans sea habits de fte, Qui criant de se salir et de se profanar. Et puis et puis enfin! On a mal la tete, Quel trange rveil ! Comme on se sent boiteux! Comme on voit que Vulcain vient de tomber des teux. (Alfred de Musset Premieres posies)

Rien, mon avis, de si insupportable que la lecture suivie d'un recueil de vers; ils ne peuvent se lire que fort batons rompus; cependant en les reprenant et les quittant souvent, on les lit tout entiers et quelque foi on y trouve de trs jolies choses.Essais dans le got de ceux de Montagne, on les loisirs d'un ministre d'tat (pg. 388).

Nota do Autor. Havia muito tempo que eu pensava isto mesmo em relao aos volumes de poesas.

PRIMEIRA PARTE

A MEU IRMO(JOS JOAQUIM GOMES COELHO)

Tambm tu, meu irmo, inda aos vinte anos, Dizes ao mundo teu extremo adeus! Deixas-me s e partes! os arcanos Vais da vida sondar aos ps de Deus? Inda h bem pouco aspiraes ridentes, Despertadas ao sol da juventude, Te apontavam futuros resplendentes De mil glrias, de amor e de virtude. H pouco em devaneios to risonhos, Cantavas em sentida poesia As meigas iluses, dourados sonhos Que te adejavam sempre fantasia. H pouco tu julgavas do horizonte Ver dum belo porvir sorrir-te a aurora, Bem como a urea luz c'roando o monte, Do Sol precede a chama animadora. Tudo isso era iluso, simples quimera, Que aos vinte anos sonhamos acordados; Curta pgina a sorte te escrevera No grande livro incgnito dos fados I

POESIAS

E enquanto descuidado te entregavas Aos sonhos da exaltada fantasia, Sob a florea vereda que trilhavas A morte, a fria morte, se escondia! Tu viste uma por uma emurchecerem As mais viosas flores da tua vida; E as esperanas seu verdor perderem Com a aridez da existncia desflorida. E a vida te pareceu spero deserto, Assim desguarnecida de iluses, De laos materiais cedo liberto Remontaste s celestes regies. No te lamento, irmo; a tua sorte, Ao que padece, inveja s produz; Porque s trevas finais da hora da morte Seguem-se anos sem fim de imensa luz. Eras justo, no Cu gozas a palma, Que ao mundo, aqui debalde pedirias, E os anjos acolheram a tua alma Num coro de suaves harmonias. Mas eu, que te amei, pra quem tu eras Mais que irmo, mais que pai, mais que amigo, Eu, a quem desde infante ofereceras, Pra suprir o de me fraterno abrigo. Mais infeliz fui eu; junto a meu lado Vago est o lugar que abandonaste. Vivo s, com as saudades do passado, Do tempo que de encantos povoaste. Nesta acerba aridez do meu presente Recordo-me da vida que passou, E bem vejo que a sorte fatalmente Na vida do infortnio me lanou.

POESIAS

Como a do nauta desditosa sorte, Que o mar arrosta em tormentosa viagem, E viu nas ondas que enfurece a morte Sucumbir todo o resto da equipagem; Tal o destino meu; entrei no mundo E saudei-o com hinos de alegria; Nos xtases dum jbilo profundo, O dom da vida a Deus agradecia. Em ambiente de amor desabrocharam Na infncia as flores da existncia minha. Amor de pai, de me, de irmos, douraram A amena senda, que ante mim eu tinha. E depois... ai, irmo! que acerbas dores Juntos sofremos! Murchas, ressequidas, Desfolharam-se as mais viosas flores, Ceifou a dura morte aquelas vidas. O belo cu, que nos sorriu na infncia, Em breve se mostrou turbado e triste; A terna me pedira a outra estncia A paz, que neste mundo no existe. E ai daquele, que no alvor da vida Perdeu pra sempre maternais afagos, Ai, que bem cedo a v ser consumida Por mil anelos, mil desejos vagos. Ai, bem cedo o sentimos! Separados Do sol que a infncia em luz nos envolvia, Quais estioladas plantas, assombrados, A fronte inda infantil, j nos pendia. E assim viveste! e quando a idade ardente De mil aspiraes te enchia o peito, Olhaste, e vendo a isolao somente, Cansado, te deitaste em frio leito.

POESIAS

E eu, em vo no atade me curvava, Em vo hei procurado a tua campa; A morte de mistrios te falava, Mas nos lbios do morto o dedo estampa. Em vo te perguntei: Nessa morada Outros flgidos sonhos imaginas? Ao sair da vida deparaste o nada? Ou acordaste em regies divinas? Mudo ficaste. Os ventos perpassaram, Soltando queixas no volver das folhas, E teus lbios imveis no falaram, Nem sequer o irmo saudoso olhas. Meu Deus! permite que atravs da lousa Possa ele ouvir a minha voz ainda, E desse leito, onde afinal repousa, Me diga: A vida neste p no finda; Me diga: A crena que na leda infncia Aprendemos da me verdadeira; H outra vida, h uma outra estncia, To feliz, quanto esta passageira; Que se encontram os entes mais queridos, E em eterno amplexo a Deus se humilham; Oue os prazeres em sonhos concebidos S h no espao onde as estrelas brilham. E ento, Senhor, com a f mais pura Eu ansiarei pelo supremo instante Em que, livre da humana desventura, Demandar tua estncia radiante. Deixa que o amigo ao amigo s revele Os segredos que a morte lhe confia, Esta incerteza... em vo a f repele, A dvida cruel continuo a cria.

Porque negas, Senhor, ao peregrino Que vai cumprindo s esta romagem , Um raio ao menos do saber divino, Que lhe brade na dvida: Coragem !? Porque no ha-de a lousa funerria Erguer-se voz saudosa da amizade, Para falar alma solitria Que anela por saber toda a verdade? Porqu?... Mas, Deus, perdoa! eu creio! eu creio! No seu leito de morte o conheci: Sim, nesse instante de tormentos cheio, No peito a voz da crena bem ouvi! E E E E por isso prostrei-me de joelhos, os lbios murmuravam a orao, cri ento no Deus dos Evangelhos, a dvida deixou-me o corao.

Repousa, irmo, sombra do cipreste; No repousar na terra desventura. Dorme no mundo e acorda luz celeste, Cruzando o limiar da sepultura.Dezembro de 1859.

Nota do Autor. Duvidar da verdade desta poesia, era duvidar dos meus sentimentos mais puros, dos meus mais queridos afectos e nesse caso, no sei de palavras que me pudessem justificar.

A MORTE DO POETA(A memria de A. A. Soares de Passos)

Calou-se a lira! E a criao nos coros De menos uma voz aos cus revoa! Na imensa harpa, em que o universo entoa Seus cnticos, de menos uma corda! Que foi? que nota falta s harmonias? Que foi? que mo deixou quebrar a lira? O poeta morreu, o canto expira, Cessam seus hinos do sepulcro borda! Morreu o teu cantor, Armamento! Teu sacerdote ardente, poesia! Deus, Ptria, a ltima agonia Gelou a voz que hosanas vos sagrara! Crente inspirado, os brados do entusiasmo No lhe esfriou dos homens a indiferena, E a venenosa taa da descrena Dos generosos lbios arrojara! O poeta morreu! E o Sol e os astros Que ele cantou, e a abbada celeste De lutuosas trevas se no veste; E tu, Ptria, que ele amava tanto, Tu dormes inda esse gelado sono ?! No te acorda o seu ltimo gemido? Sente-lhe a morte, se no hs sentido De animao e glria o eterno canto.

POESIAS

Mas no; os homens vem pasmar o fretro, Vem do sepulcro alevantar-se a lousa, E, olhando a nobre fronte que repousa, Quem ? perguntam com cruel frieza. um poeta, lhes respondem poucos. Um poeta! palavra incompreensvel! Por ele a multido passa insensvel, E a campa desampara com presteza. E um poeta morreu! listas palavras Nada vos dizem, povos, que as ouvistes? No as h mais solenes nem mais tristes. Oh! nelas reflecti um s momento! No sabeis o que diz a morte do homem Que se encaminha campa que lhe ergueram Seguido apenas dos que ainda veneram O culto da poesia e pensamento? No ouvis esse dobre, que o lamenta? como a voz do sculo, que brada: Chorai, multides, que na cruzada Da civilizao vos alistastes, Chorai, um dos soldados que h cado, Deus lhe dera a bandeira que vos guia, O estandarte da idia, a poesia; Mas vs na herica empresa o abandonastes ! Lamenta, liberdade, o teu apstolo! Amor, o corao que te entendia! Tu, Ptria, o filho que melhor podia Entre as naes da terra engrandecer-te! Religio, ai! chora o sacerdote, Que, entoando no templo os sacros hinos, Chamara os povos aos altares divinos E cultos sem iguais pudera erguer-te! E tu, 0 mundo, o vs quase indiferente! Curva a cabea ante essa campa aberta, Ajoelha-te, e a fronte descoberta, Venera as cinzas que deixou na Terra; Os restos so da mais violenta chama, Que o fogo do Cu no mundo ateia; A chama ardente de inspirada idia, Fogo que a mente do poeta encerra I

POESIAS

Verte, oh! verte uma lgrima na tumba; Uma lgrima s. Outros desejam Soberbos mausolus onde se vejam Fulgir os nomes seus em letras d'ouro; Ele no. Flores e lgrimas, eis tudo! Eis o diadema a que o poeta aspira; Porque lho negas? Que paixo te inspirar Delas fizeste, mundo, o teu tesouro? Ai, no; umas e outras as desprezas: As flores procuram as campinas, Porque a turba, ao passar, calca as boninas, E o sopro das cidades as murchava. As lgrimas, as flores do sentimento, No as diviso j nos olhos do homem, Ou das paixes as lavas as consomem, Ou morto o sentimento que as gerava. Fazes bem em passar, mundo, se ignoras Desta cena a solene majestade, Impassvel ficar era impiedade. Parte, vai; a indiferena era um insulto. Oh! mil vezes mais grato o isolamento... Mas no, o isolamento no existe: Junto da campa se rene triste Longo cortejo de lutuoso vulto. Ei-los; do vasto templo se avizinham, Trazem no rosto a dor, que os consome. Esses veneram do poeta o nome, Do fretro ao passar, curvam a fronte, Respeitai esse pranto, que sentido; Longe, indiferentes, que o lugar santo! Os que entenderam seu sublime canto, Sadam-no ao sumir-se no horizonte I Silncio! A Ptria do seu sono acorda! Sono talvez, que precursor da morte, Do filho s lamenta a triste sorte, 3eme saudosa com magoado acento! Ai, nos seus dias de passada glria, De me o desespero a voz lhe erguera, E, em seu clamor, s praias estendera Das naes mais longnquas o alto alento.

POESIAS

Mas hoje, j de foras exaurida, fraca a sua voz ante essa tumba; Do peito vem, porm j no retumba Nos ecos das naes mais poderosas. Apenas sua irm, a mais vizinha, Que quase a mesma linguagem fala, Compassiva parece lament-la, Ouvindo suas queixas dolorosas. Poeta, dorme pois: a tua campa No ficar sem lgrimas nem flores, As liras soltam fnebres clamores E os ventos reproduzem suas queixas. Dorme, dorme, poeta, que teu sono A turba inquietaria com seus passos; Mas qual o infante nos maternos braos, Dorme ao som dessas lnguidas endeixas. Dorme, dorme em sossego... mas, silncio! Para que solto a voz? Cala-te lira! Se o gnio da poesia no te inspira, Para que o seu cultor lamentas triste? Diante da mudez deste sepulcro Teus ais de dor, corao, suspende; V em silncio o Sol, que ao ocaso pende Como em silncio no znite o viste.

Maro de 1860.

Nota do Autor. Obedeci a um impulso irresistvel escrevendo esta poesia. Admirei Soares de Passos durante a vida, como poeta, no seu livro; como homem, nas sempre lembradas noites em que, entre poucos mas escolhidos amigos, vamos em sua casa correrem as horas como instantes e passarem as longas noites de Inverno como um sonho delicioso e aprazvel. Foi ento que pudemos apreciar a pureza daquele caracter, aquela rigidez de princpios, que nesta poca de indiferentismo e egosta especulao, causava assombro a quantos o ouviam. Por isso, quando morreu, senti-o. como todos que prezavam as letras ptrias e como todos que respeitam os caracteres elevados; mas senti-o tambm, como ningum, pela dor que a sua morte deixava no corao de seu irmo, o mais sincero, desinteressado e generoso amigo que nunca hei encontrado. Tudo isto me levou a lamentar a sua morte, temerria empresa de onde me no podia sair bem.

UMA RECORDAO

Lembra-me ver-te inda infante, Quando nos campos corrias Em folguedos palpitantes; Eras bela! e ento sorrias. Depois, na infncia, eras inda, Junto ao cadver rezavas De tua me, com dor infinda; Eras bela! e ento choravas. Num baile vi-te valsando Da juventude nos dias, Todos de amor fascinando; Eras bela! e ento sorrias. Dias depois encontrei-te; Nos cus os olhos fitavas; Sem me veres contemplei-te; Eras bela! e ento choravas. Quando ao templo caminhando Entre flores e alegrias, De esposa a vida encetando, Eras bela! e ento sorrias.

POESIAS

Quando na campa do esposo Com teu filho ajoelhavas, Grupo inocente e saudoso! Eras bela! e ento choravas. Num atade deitada Eu te vi em breves dias, Mimosa flor desfolhada! Eras bela! e ento sorrias. Sorrindo, na vida entraste, Sorrindo deixaste a vida; Alguma flor que encontraste A espinhos a viste unida. Sim, s vezes tu sorrias, E os sorrisos o que so? Quase sempre profecias Das penas do corao.1857.

Nota do Autor. Sorrisos e lgrimas andam muitas vezes acompanhados, uns por os outros, na vida. Olhada por este lado. esta poesia verdadeira. Alguma coisa me podiam dizer as minhas recordaes, para o provar, mas no seria absolutamente o que escrevi. Neste ponto ela mentirosa. pecado de que me confesso arrependido.

S BELA

Es bela, sim, quando, corando, foges Dum beijo perseguida; Ou quando cedes com mais pejo ainda, Mas na luta vencida. s bela, sim, quando, banhada em lgrimas, Soltas mimosas queixas; Ou quando, comovida por maus prantos, J ameigar-te deixas. s bela, sim, luz do Sol nascente Regando tuas flores, Ou com os olhos no ocaso e o pensamento No pas dos amores. s bela sempre, e o mesmo fogo acendes No corao do poeta; s bela sempre, linda flor do prado, mimosa violeta,Maro de 1882.

Quem te disse o segredo destas lgrimas, Pra assim me consolares? Quem te disse que a dor que me angustiava Cedia aos teus olhares? Criana, onde aprendeste essa cincia, Ignorada de tantos? Algum anjo do Cu quem te inspira Do conforto os encantos? Oh! vem, vem junto a mim com teus sorrisos Livrar-me destas trevas, Rir-te do meu ar lgubre, falar-me, Vem, que s tu me enlevas. Protegido por ti em crculo mgico, Desafio a tristeza, Que onde a infncia se mostra tudo folga, Homens e natureza; Pra ti, pra tua idade descuidosa Semeou Deus as flores, Deu-te o cantar das aves por cortejo, Deu-te o Cu por amores.

POESIAS

Vem, pois, os teus cabelos d'ouro puro A pousar-me na fronte, Como os raios do Sol cingindo as serras Ao surgir no horizonte. Vem, que junto de ti nem compreendo Estes falsos tormentos; Mensageira celeste, s bem-vinda, Longe meus pensamentos! Quando, baixando a fronte, os olhos pousam Em sorrisos de infantes, Esquece-se o infortnio, os risos voltam E erguemo-nos radiantes. Assim como nos rimos de teus ogos, Tu ris das nossas penas; Ambos somos crianas, variando Nosso brinquedo apenas. Tu criaste uma vida imaginria Que cede fantasia. Ns co'a vida real tambm brincamos, Porm sem alegria.3 de Junho de 1862.

SAUDADE E ESPERANA

Ai no foi sonho, no. Era na infncia, Duas vises queridas Ao lado do meu bero me sorriam De uma amorosa aurola cingidas; Eu sorria tambm. Vendo-as to belas, Por anjos as tomava, E acordando dum sonho de inocncia, Inda a mais gratos sonhos me entregava. E repetindo as oraes ferventes, Que voz da me ouvia, Olhava-as, e julgava que era a elas Que to sentidas preces dirigia. Quando as via, to jovens e j tristes, Olhar a me chorando, Eu cismava, e o infortnio pressentia, Vago ainda, os meus dias ameaando. E o infortnio chegou. Era uma noite, E eu ainda infante Despertei aos gemidos dolorosos Das rfs junto me agonizante!

POESIAS

Transportaram-me ao leito aonde a triste Lutara na .agonia, Era tarde! A primeira vez na vida, Ao beij-la, suas bnos no colhia I E as lgrimas, tao fluentes na infncia Meus olhos no banhavam! Ento senti que os dias de ventura Com ela para sempre me deixavam. Depois os mesmos anjos, que na infncia No bero me sorriam, Em vez das vestes cndidas d'outrora, Agora negras tnicas cingiam. Nunca mais como a flor na Primavera Eu as vi radiantes; Mas sim como no Outono ela se ostenta, Pendendo as alvas ptalas fragrantes. Pobres flores! to cedo sem abrigo, Dia a dia enlanguescem Como as que adornam virginais capelas, E ao fim dum baile pelo cho fenecem. Como cndidas pombas surpreendidas Por furiosa tormenta, Voam amedrontadas a acolher-se Junto me que no seio as acalenta, Assim elas tambm amedrontadas Das tormentas da vida Voam pro Cu, e no materno seio Procuram contra elas fiel guarida. Um dia eu vi-me s! junto ao meu bero Os anjos no sorriam, Nem sequer suas lgrimas saudosas Uma a uma nas faces me caam.

POESIAS

Passaram tempos, e da infncia aos dias Seguiu-se uma outra idade; Mas nem o tempo, nem paixes mais vivas Me extinguiram a imagem da saudade. Ainda as vejo a ambas, quando s vezes Em sonhadas delicias, Recordo o tempo da passada infncia, Recordo seu amor, suas carcias. Outras vezes, mais vago o pensamento, Num s anjo as confunde; E ento adoro essa viso querida, Que n'aima ignotas sensaes me infunde. Se a imagem delas como o crepsculo Dum dia j passado, A nova imagem ser ainda aurora Dum dia ardentemente desejado? Meu Deus! a flor dos campos tambm murcha Vive um momento apenas; Mas depois nova quadra veste os prados De outro manto de rosas e aucenas. Tambm as flores de infantil idade Eu vi cair sem vida: Deixa que a nova quadra dos vinte anos Se adorne de uma tnica florida.

VISO

No s real. Para o seres No foras, flor, to bela; Se mente Deus te revela, No te cria o mundo, no. Vegetas no peito do homem, Mas no h vioso prado Onde te beije embriagado O sopro da virao.

MORENA

Morena, morena Dos olhos castanhos, Quem te deu morena, Encantos tamanhos? Encantos tamanhos No vi nunca assim. Morena, morena Tem pena de mim. Morena, morena Dos olhos rasgados, Teus olhos, morena, So os meus pecados. So os meus pecados Uns olhos assim. Morena, morena Tem pena de mim. Morena, morena Dos olhos galantes, Teus olhos morena So dois diamantes.

POESIAS

So dois diamantes Olhando-me assim. Morena, morena Tem pena de mim. Morena, morena Dos olhos morenos, O olhar desses olhos Concede-me ao menos. Concede-me ao menos No sejas assim. Morena, morena Tem pena de mim.De As Pupilas do Sr. Reitor.

MOMENTO DECISIVO

O Sol descia ao poente, E florente estava o prado; Ouviam-se auras suaves E das aves o trinado. Tu sentada ao p da fonte O horizonte contemplavas Vias o Sol declinando E, corando, suspiravas. E depois... seria acaso? Do ocaso a vista ergueste, E, ao olhar-me, mais coraste, Suspiraste e emudeceste. Foi bem rpido o momento Dum alento repentino; Porm nesse olhar de fogo Eu li logo o meu destino. Nesse olhar, no rubor vivo, No furtivo respirar... Diz, tu mesma nessas letras No soletras j: amar?1860.

Nota do Autor. No muito fcil esta espcie de leitura, o sentido das letras diferente, conforme os desejos do que as pretende decifrar e da mil decepes e amar gos desenganos. Eu no sei se li bem ou mal; mas certo que depois disso, o livro parece fechado... nao descubro caracteres novos.

CULTO SECRETO

Ouve, lnguida virgem das cidades, A paixo que me inspiraste. Curvada, como a flor em vaso d'ouro, Tu, bela, me encantaste. Eu vi-te Ao No nos Do assim pendida; a estrela d'alva surgir do oriente envia mais saudosos raios seu leito fulgente.

A virao da tarde, mais amena No bosque, no murmura; A alva aucena, que o vergel enfeita, No tem a cor mais pura. Eu vi-te, e desde ento sempre em meus sonhos Surges, e magoada Pareces ver as vagas desta vida Na margem debruada Vejo-te ento ainda, e pensativa, Os lbios entreabertos, Murmurando em sentida linguagem Pensamentos incertos.

POESIAS

Vejo-te ainda, as lgrimas ferventes Dos olhos rebentando, E, ao correrem nas faces, indiscretas, Segredos revelando. Que segredo o teu, lnguida virgem, Ideal dos meus amores? Que imaginas nos sonhos dessas noites To cheias de fulgores? Que mistrio procuras no ocidente Ao desmaiar do dia? Ou que viso esperas, quando a aurora Com rosas se anuncia? Que oculto sentimento reprimido Te faz ansiar o seio? Que ntima dor, que pensamento acerbo? Que indefinido enleio? Olha, se o corao te pede amores, Virgem, no chores, canta, Para ti que so as flores da vida E a luz que nos encanta. Tu, sim, podes amar; nas sacras aras Dessa chama inquieta, Ateia o sacro fogo com que inflamas O corao do poeta. Tu sim, podes amar; mas eu... se ao ver-te Interrogo o futuro, Uma voz me murmura: Adora, mrtir, Adora, e morre obscuro.

ENFIM!

Enfim! enfim! encontrei-te. Luz h tanto suspirada! Raiaste, aurora fadada Dum longo dia de amor! Resplandece, Sol brilhante Da primavera da vida! Surge, surge, estrela querida, Que to grato teu fulgorl Se soubesses como ansioso Aguardava este momento, Que h tanto no pensamento Me aprazia em conceber! Se soubesses, minha esp'rana, Que anelar ardente e incerto Na aridez deste deserto Me fazia esperar e crer! Ai, bem-vinda, mensageira Duma indizvel ventura! A uma vida de amargura, Ridente imagem, pe fim! Para longe esta tristeza, Vejo enfim formosos dias! Oh! d-me, d-me alegrias, Oue me cansa a vida assim!

POESIAS

Qual a terra desflorida Pelas mos do Inverno agreste, Que de gelos a reveste, E lhe afrouxa a luz do Sol; Cinge as vestes de verdura, Toda de amor palpitante, Qual virgem junto do amante Da Primavera ao arrebol; Tal minh'alma envolta em trevas Dum passado de incerteza, Rasga o seu vu de tristeza, Ao ver-te surgir, amor ! E num hino de alegria Sada a risonha aurora, Que deslumbrante a namora Com fatdico fulgor, Bela flor, fragrante rosa Nos agros campos da vida, Entre as outras escondida, Como pudeste florir! Como os vendavais furiosos Das tempestades humanas, Em suas frias insanas Te no puderam ferir? Foi condo do Cu por certo, Foi talvez aura celeste Que, ao nasceres, recebeste E em ti se difundiu; E, forte, desceste ao mundo, Brilhando de luz divina; Essa luz que me fascina, Que nas trevas me sorriu I Tambm, tu, bela, aspiravas A um futuro vago ainda? Tambm uma dita infinda Te pedia o corao? Ai, conta-me os teus segredos, Os teus sonhos, teus anelos, Conta-me, quero sab-los: Teus sentimentos meus so.

POESIAS

Diz-me se naquele instante, Em que te vi meiga e bela, Quando tu, formosa estrela, Te elevaste no meu cu, Uma voz misteriosa, Prendendo-te em doce enleio, Segredar-te ao ouvido veio: Ama! teu dia nasceu! Diz-me, se ao viver inquieto Por no sei que oculta chama No sucede, quando se ama, Uma existncia de paz? Se no horizonte sombrio, Novo astro fulgurando, Longnquas praias mostrando, Venturas ver-te no faz? Conta-me a vida passada Antes do mgico instante Em que te vi radiante Meiga viso a sorrir. Diz-me os teus jogos da infncia As lgrimas que verteste, As penas que padeceste, Sem eu as poder sentir. Tu choravas! quando longe Eu de ti, talvez sorria! Tu choravas! e eu podia To indiferente viver! Oh! no! mstica influncia, Que dois entes num s liga, Embora longe, os obriga Um com outro a padecer. E esse, esse o segredo Da tristeza indefinida, Que em certas horas da vida Nos oprime o corao; Esse o segredo das lgrimas, Que de olhos virgneos correm, E dos suspiros que morrem Nas asas da virao

POESIAS

Mas deixemos o passado, Suas penas, suas dores, Deixemos auras melhores Nos manda o porvir de alm, Qual no meio do oceano, Aps longnqua viagem, Ao nauta fragrante aragem Da Ptria falar-lhe vem. Em que mago encantamento Esta dita a alma me embebe! S quem o sente o concebe; No se exprime este prazer! Bem hajas, cndida virgem! Bem hajas tu, que no seio De aspiraes todo cheio, O amor fizeste nascer!

*Adeus pois, passado triste, Longas horas de amargura; Adeus, paz da sepultura, Sem encantos para mim; Adeus sofrimentos vagos, Adeus, febris pensamentos; Esperam-me outros momentos, Que o amor surgiu enfim. Acorda pois, minh'alma, Chegou enfim tua festa; E qual se adorna a floresta Da manh ao grato alvor, Veste tambm tuas galas, O teu mais florido manto E leva um sentido canto Ao sol da vida, ao amor!Julho de 1859.

Nota do Autor. Em vez de enfim antes lhe devera chamar rebate falso. A ser mais de que um sonho, no passou de um desejo. No se deve portanto tirar ilaes arrojadas porque seriam falsas.

METAMORFOSE

Repara: a imvel crislida J se agitou inquieta, Cedo, rasgando a mortalha, Ressurgir borboleta. Que misteriosa influncia A metamorfose opera! Um raio de Sol, um sopro Ao passar, a vida gera. Assim minh'alma, inda ontem Crislida entorpecida, J hoje treme, e amanh Voar cheia de vida. Tu olhaste e do letargo Mago influxo me desperta; Surjo ao amor, surjo vida, luz de uma aurora incerta.1 de Maio de 1860.

Onde vai teu pensamento Quando, os olhos elevando, Segues das aves ligeiras Esse harmonioso bando? Que te dizem os gorjeios Dessas pobres foragidas, Que vo procurar ao longe Outras selvas mais floridas? Acaso temes, como elas, As nuvens negras, pesadas, E os ventos que descem rpidos Das altas serras nevadas? Acaso invejas as asas Desses plumosos viajantes? Acaso aspiras vida Noutros climas mais distantes? No, querida, no receies Do Inverno os duros rigores; Quando do Sol falta a chama Brilha a chama dos amores.

No so para ns mais lcidas As noites que o prprio dia? Que onde a luz do cu falece, A paixo que alumia. E o gelo, que as pobres aves Na relva prostra sem vida, Fundir-se- ao fogo ardente Da nossa paixo, querida.18 de Outubro de 1862.

A CABREIRA

Andava a pobre cabreira O seu rebanho a guardar Desde que rompia o dia At a noite fechar. De pequenina nos montes No tivera outro brincar. Nas canseiras do trabalho Seus dias vira passar. Sentada no alto da serra Ps-se a cabreira a chorar. Porque chorava a cabreira Ides agora escutar: Ai! que triste a sina minha, Ai! que triste o meu penar, Que no sei de pai nem me Nem de irmos a quem amar, De pequenina nos montes Nunca tive outro brincar. Nas canseiras do trabalho Meus dias vejo passar.

POESIAS

Mas, ao desviar seus olhos Viu coisa que a fez pasmar: Uma cabra toda branca Se lhe fora aos ps deitar I Branca toda, como a neve, Que nem se deixa fitar, Coberta de finas sedas Que era coisa singular! Nunca a tinha visto ante3 No seu rebanho a pastar, E foi a fazer-lhe festa... E foi para a afagar... Eis vai a cabra fugindo Pelos vales sem parar ; Ia a cabreira atrs dela Mas no a pde alcanar. E andaram assim trs dias E trs noites, sempre a andar! At que s portas de uns paos Afinal foram parar. Chorava o' rei e a rainha H dez anos, sem cessar, Que lhe roubaram a filha Numa noite de luar. E dez anos so passados Sem mais dela ouvir falar; Eis chega a cabreira porta A porta se foi sentar. Ai que bonita cabreira Que l em baixo vejo estar! E uma cabra toda branca Que nem se deixa fitar.

POESIAS

Meus criados e escudeiros, Ide a cabreira buscar. Isto dizia a rainha, Este foi o seu mandar. Foram buscar a cabreira E a cabra de a acompanhar At s salas do pao Onde o rei a viu chegar. Pela minha c'roa de ouro Eu quero agora apostar, Que esta a filha roubada Numa noite de luar. Milagre! quem tal diria! Quem tal pudera contar! A cabrinha toda branca Ali se ps a falar: Esta a filha roubada Numa noite de luar, Andou dez anos no monte Quem nasceu para reinar! Que alegrias vo nos paos! E que festas sem cessar! A filha h tanto perdida No trono os pais vo sentar. E vm damas pra vesti-la E vm damas pra calar; E as mais prendadas de todas Para as trancas lhe enfeitar. Vo procurar a cabrinha... Ningum a pde encontrar; Mas um anjo de asas brancas Viram aos Cus a voar.De As Pupilas do Sr Reitor.

NUVENS

Vs as nuvens no azul do firmamento De brancuras ofuscantes, Como impelidas por tufo violento Se formam em legies extravagantes? Olha; acol, reunidas uma a uma, Um trono simbolizam; Ali, rasgam-se em flocos, como a espuma Das vagas crespas que em areais deslizam. Mais longe, vs? as massas vaporosas Informe monstro imitam, E alm, tingidas pela cor das rosas, Paos que ocultas mgicas habitam. Agora, vastos prticos, ogivas, E um longo peristilo, Colunas, capiteis, arcadas vivas, Arquitecturas de ignorado estilo. Logo por esses plainos dispersadas Pelo sopro do vento, Como nveos cordeiros s manadas Sucedem-se velozes cento a cento: Ora parecem gigantescas serras Com seus eternos gelos; Ora plancies de nevadas terras, E das guas boreais os caramelos:

POESIAS

Ali nos representam funda gruta E rochas diamantinas; Acol, mil exrcitos em luta; Mais alm, mil cidades em ruinas. E sabes tu no que essas formas vagas Perto de ns se tornam! Dize, quando no prado a ss divagas, Tens visto as gotas que o vergel adornam? Pois so esses os tronos deslumbrantes, A ogiva preciosa, Os fustes das colunas de diamantes, E encantados palcios cor-de-rosa. Esse vasto espectculo dos ares, Essas mgicas cenas, A que presos esto nossos olhares, V-los ao perto? so orvalho apenas. Bem assim os projectos, ureos sonhos Que na vida sonhamos; Belos fantasmas, flgidos, risonhos, Que nos cus do futuro divisamos. Pois que junto de ns, essas imagens, Essa viso querida, Desvanecem-se, prfidas miragens, Fundem-se como a neve derretida; Esp'rana no porvir, nuvens formosas, Em que assim te deleitas, Com esse orvalho que humedece as rosas Hs-de v-las em lgrimas desfeitas.4 de Setembro de 1862.

LAVA OCULTA

No me entendes? no suspeitas Que esta frieza fingida? No vs, .cega, que envolvida Est nela ardente paixo? Quando teus olhares evito, Quando julgas que medito, No compreendes que me agito Em profunda inquietao?

E julgas isto frieza? Julgas que o meu peito gelo? Se o que sinto no revelo, Julgas que isso no sentir? Ai, louca, que assim te iludes; Um momento que me estudes, Vers que tortnentas rudes Me esto no peito a brarnir.

POESIAS

Se a mo te cinjo partida, No a sentes vacilante? Diz, no vs como inconstante Busco e evito o teu olhar? Chamas a isto indiferena? No , no, repara, pensa; E o amor que se condensa Para mais me devorar.

E tu no sentes... nem podes; Pra que os olhos vejam tanto, E, sob indiferente manto, Descubram violento amor, No, no basta olhar somente; O que o peito no pressente, S quando fora rebente Pode aos olhos ter valor...

E o teu corao... outrora Esperei que me entendesse; Julguei que nunca esquecesse O que na infncia nasceu, E com os olhos no futuro Caminhei firme e seguro, E nunca este culto puro No peito me adormeceu-

Mas tu... Essa flor singela Da afeio que nos unia Se definhava e morria Desde que outra flor surgiu; Cenas da infncia, folguedos, Seus sorrisos, seus segredos, Passam, como nos olmedos, A folha que ao cho caiu.

POESIAS

E por isso as esqueceste; Eu no; que ento j no seio Ocultava com receio Mais do que infantil amor. Quando, s, em ti pensava, E s contigo me achava, No te lembras? j corava, Nem pra mais tinha valor.

Cresci, e esta idia sempre Afagava na lembrana; Sempre, sempre esta esperana, Sempre, sempre esta iluso! Iluso, sim, era apenas; Todas as passadas cenas E recordaes amenas Riscou-tas nova paixo.

Foi uma noite. Esta idia Inda a conservo bem viva, Cada dia mais se aviva Pra mais me fazer sentir; Desde ento j no me iludo, Foi uma noite; vi tudo, E fiquei gelado, mudo, Sem esperanas, sem porvir I

Um outro estranho, que importa? Te falava com meiguice E s palavras que te disse Tu sorriste e ele sorriu, E, desumana, no vias Que o amigo de outros dias, De cada vez que sorrias, Cruis angstias sentiu!

POESIAS

Ai, noite de insnia aquela! Tu caiaras o passado, Nem talvez nunca pensado Havias nele como eu; Quis esquecer-te, vingar-me, A outro amor entregar-me, Mas s consegui cansar-me; Este amor permaneceu.

At quando? S Deus sabe. Comprimido ele floresce, Mas vive, mas no fenece, Que j da infncia ele vem; Tu no vs, que uma outra chama H muito teu seio inflama, E quando deveras se ama, V-se o amante e mais ningum?

Bom pois que no suspeites Que esta frieza mentida, Que no vejas que envolvida Oculta ardente paixo. Quando teus olhares evito, Quando julgas que medito, Nunca saibas que me agito Em profunda inquietao.

Abril de 1860.

Nota do Autor. Esta poesia um enigma, que eu no decifrarei. Isto quase eqivale a dizei que ficar sendo um enigma para todos e para sempre talvez. Foi escrita o ano passado e esquecida. Encontrei-a, fiz-lhe algumas modificaes inclui-a nesta coleco. em grande parte imaginria.

PRESSGIO

Era em florente Junho; A Lua se ostentava Serena em seu brilhar; A brisa na alameda Saudosa suspirava Nas folhas ao passar. Contigo, eu s no bosque Ouvia-te, tao triste, Soltar, mais triste, a voz; Falavas magoada Da paz que s existe Da fria morte aps. E os olhos lacrimosos Fitavas nos espaos Da mais amena cor, Como se desejasses Romper terrenos laos E o azul do cu transpor. Calado eu te fitava, Porm ao ver-te o pranto Banhar-te a face assim, No sei que dor pungente, No sei que mago encanto, Me fez falar-te enfim.

POESIAS

E disse-te: No chores, Na Terra tudo flores, No Cu tudo luz. Escuta os sons do bosque, Respira os seus odores, O aroma que seduz. Olhaste-me e sorriste; E quanto no diziam Ento os olhos teus! Quo ntima tristeza, Que dor no reflectiam Quando os erguestes aos cus! E eu ficava mudo, Olhando-te inquieto, Sem bem te compreender; E um ramo de cipreste, O arbusto teu dilecto, Vieste-me oferecer. Bem vs, da campa beira Tambm a flor rebenta, Disseste-me a sorrir, Tambm no cho da morte De seiva se alimenta, Tambm a vs florir. Quem vir esta campina Virente e matizada Viar luz do Sol, Dir, que neste manto Se envolve a fria ossada Do morto em seu lenol! De novo emudeceste, E eu, triste, contemplei-te: Mas no, no te entendi, Parecia que na mgoa Achavas um deleite, Qual nunca igual senti!

POESIAS

Mas cedo teus perfumes Da Terra aos Cus subiram, E soube tudo ento! Era uma voz proftica Das que o poeta inspiram, Falando ao corao. No meio dos festejos Da estiva natureza, Sentias s a dor, Vias a campa aberta E em sua profundeza Sumir-se a esp'rana em flor. E hoje, sim, compreendo Tua conversa triste, Quando comigo a ss... E porque a entende agora? No sei. Talvez existe Em mim a mesma voz. Oh! sim, ele me mostre No meio destas galas, Que vejo em torno de mim, A terra hmida e fria, Do cemitrio as valas E o esquecimento enfim.Abril de 1860.

Nota do Autor. Esta filha de um momento de spleen. Pareceu-me verdadeira ento, hoje no. Estes pensamentos lgubres acometem-me de quando em quando, mas passam. Estando dominado por eles, acho nesta produo um valor que. depois, debalde lhe procuro. No decerto no primeiro caso que melhor a avalio no que ela vale. No h ningum que no tenha os seus momentos de hipocondria, muitos com menos razes do que eu. Desculpem-me portanto os efeitos de um desses momentos.

JUNTO A UMA CAMPA

Que seria de ti, se desfolhada No fosses, linda flor, no cho da morte? Quem pode ler na pgina cerrada Do livro do futuro a ignota sorte? Ningum; e quantas vezes iludidos Choramos o que nncio de ventura? Quantas, na esperana de prazeres mentidos, Vemos luz onde tudo noite escura? Que seria de ti? No sei. Se escuto A voz do corao, fala de amores. Mas quem me diz que a dor com que hoje luto No findar com o aroma doutras flores? Que me diz que minh'alma, que palpita Ao recordar-te, virgem desditosa, No viria inda um dia a ser precita Ao fogo da paixo mais poderosa? Quem sane ? Tudo muda: o peito do homem Como a ondulante face do oceano; A um volvem as paixes que nos consomem, A outro as frias do vento vrio e insano.

POESIAS

Tudo muda! E meu seio no se exime Da eterna lei que rege este universo: Bno ou maldio. Ela se exprime Sem cessar na existncia desde o bero. E ento se no porvir o ardente culto Que eu te votava, sombra idolatrada, Tivesse de findar, antes sepulto Seja todo este amor na urna gelada. Foste feliz talvez, talvez na vida Tivesses de provar amarga taa, E hoje sombra da campa, adormecida Colhes a prece e o pranto de quem passa. Vivias para amar, morreste amando, Morreste rodeada do perfume Da divindade, e virgem, no ansiando No pungir aflitivo do cime. Morreste amando e amada. Sobre o leito Onde tombaste innime, sentiste A sacra chama que me enchia o peito E na extrema agonia inda sorriste. No devo lamentar-te, no. Podias Sentir na vida dores que ignoraste; E eu mesmo, a quem do tmulo sorrias, Talvez te desse a coroa, que enjeitaste; A coroa do martrio, que a no colhe Quem verga, como tu, to cedo terra; Mas sim quem vive e ao tmulo se colhe Depois de transes de porfiada guerra. Eu li na descrio de antigas viagens O destino de um nufrago, que os ventos Sobre parcis e incgnitas voragens De longe arremessaram violentos.

POESIAS

Ia a desfalecer, no hmido abismo Buscando o ltimo leito e o eterno olvido, Mas no esforo do extremo paroxismo Firmou-se s rochas de um penhasco erguido. E salvou-se! prostrado sobre as Ao Eterno com jbilo agradece; E, olhando ao longe as furiosas vagas, Do destino dos mais se compadece. Mas bem cedo na estril penedia Colheu o triste amargo desengano, Vendo seguir-se um dia aps um dia, E tudo s na vastido do oceano. Era a mudez da campa! Em passos lentos Se aproximava a descarnada fome; Longos dias de horrficos tormentos A preceder-lhe um tmulo sem nome! At que enfim o pobre, quase louco, Pra fugir tortura que o devora, Nas prprias ondas, que evitara h pouco, Busca o refgio, o passamento, agora! Nos naufrgios da vida, quantas vezes Ns, pobres nautas, o furor das vagas Vencemos, pra mais rspidos reveses Irmos sofrer em solitrias plagas! Feliz o que sucumbe na tormenta; Um instante de angstia... e o eterno sono O livra do martrio que experimenta O que sofre na Terra o abandono. Feliz pois tu, que cedo desfolhada Caste, bela flor, no cho da morte; Quem sabe o que na pgina cerrada Do livro seu te reservava a sorte?20 de Dezembro de 1861.

A ESPERANA

No passado, uma saudade, No presente, uma amargura, E no futuro, uma esp'rana De imaginria ventura; Eis no que consiste a vida Imposta por Deus ao homem. Nisto se consomem dias! Nisto anos se consomem! Saudade flor sem perfumes Quando ainda verdejante, Mas medida que murcha, Ai, que aroma inebriante! A amargura duro espinho Que nas carnes penetrando, Faz desesperar da vida, Suas flores definhando. A esperana frouxa luz Que nas trevas nos fulgura; Vendo-a, ousados caminhamos: Mas, ai, que bem pouco dura;

POESIAS

Quantos mais passos andados Na agra senda desta vida, Mais amargo o presente, E a saudade mais sentida. Mas a esperana no; os anos Fazem-lhe perder o brilho; Caem-lhe uma a uma as folhas Da existncia pelo trilho. A velhice nada espera, Nada da esperana lhe dura... Mas no, cansada da vida, Tem a paz da sepultura. Tem a morada fulgente Da inteligncia divina; Tem as regies sagradas, Que eterno sol ilumina. Bendito sejas, meu Deus! Que nos ds na vida inteira A filha dos cus, a esperana, Por suave companheira. Ela nos enxuga o pranto O pranto alegre e amargoso; No a acusemos de prfida, Esperar j um gozo. A mente, esperando, concebe, Concepo sempre iludida, Prazeres talvez entrevistos Nas cenas duma outra vida. Esperemos, pois, companheiros Desta fadigosa viagem! Se a esp'rana a imagem do gozo, Adoremos essa imagem.

POESIAS

E cruzando este oceano Com os olhos no porvir. Esqueamos no presente Seu horroroso bramir. E quando enfim, j cansados, Reclinarmos nossa fronte. Que a esperana nos revele Mais dilatado horizonte.Agosto de 1859.

ILUDAMO-NOS

Desenganos do passado, No servireis ao porvir? Sempre a perder iluses Sempre iluses a sentir! No mais, no mais; nesta vida Ainda esperar loucura. Sofrer: eis nosso destino! Sonhar: eis toda a ventura! Soframos pois... No, sonhemos, Criando mundos ideais, E com mentidos prazeres Curemos penas reais. Iluses, sede bem-vindas, Povoai-me o pensamento: Convosco, sim, a ventura Se goza per um momento.

I

O ANJO DA GUARDA DA INFNCIA

Desci dor celestes coros, Por Deus mandada escutar Da infncia as queixas e os choros, Para lhos ir confiar. Desci. Na terra, nos mares Tanta misria encontrei, Que os meus magoados olhares De terra e mar desviei. Desci. E tantos gemidos, To dolorosos ouvil Que, turbados os sentidos, Quis recuar... mas desci. Nesta colheita de dores Pelo mundo todo andei, No pranto dos pecadores As minhas vestes molhei. Vagueando dias e dias Chegara Judeia enfim, Quando um clamor de agonias Veio de longe at mim.

POESIAS

O Sol, o Sol inflamado Destas terras orientais Tinha no disco afogueado No sei que estranhos sinais. Soavam menos distantes Sinistros brados de dor Choros de mes e de infantes Cantos de morte e terror. Vi anjos de asas nevadas Em bandos subir ao Cu, Quais pombas amedrontadas Fugindo voz de escarcu. Onde ides? Quem vos persegue? A que tormentos fugis? Um que triste o bando segue, Estas palavras me diz: Somos as almas de infantes Mortos em guerra feroz; Inda das mes delirantes Nos chama a sentida voz. S a materna saudade Nossa carreira detm, Embora no Cu, quem h-de Esquecer o amor de me? Disse e o semblante formoso Com as asas encobriu, E ao bando silencioso Silencioso se uniu. Eu segui. Na ampla cidade Aterrada penetrei... Ai, da fera humanidade Os meus olhos desviei!

POESIAS

Que cena! Corre nas praas Sanguinria multido Como nuvem de desgraas Semeando a desolao. Caem por terra, sem vida, Tenras crianas s mil, E uma turba enfurecida Corre matana, febril. As mes plidas, chorosas, Suplicam, pedem em vo! Nessas feras sanguinosas No palpita um corao. Outros tentam, em delrio, Os seus filhos disputar E com eles no martrio Gostosas se vo juntar. Sobre a terra ensangentada Eu soluando, ajoelhei, E de intensa dor magoada, A Deus piedade implorei. Findava a prece, e uma estrela No horizonte despontou, Pura, cintilante, ela O caminho me traou. humilde e escondida estncia Da venturosa Belm Cheguei; vi um Deus na infncia Nos ternos braos da me. Minha colheita de dores Naquele bero depus, Da humanidade aos rigores Pedi remdio a Jesus.

POESIAS

No olhar do divino infante Raiou luz e fulgor, Foi a aurora radiante Que anuncia um redentor.Publicados no romance A Morgadinha dos Canaviais,

HINO DA AMIZADE(A meu primo e amigo Jos Joaquim Pinto Coelho)

Amigo, concede que as notas da lira Te sagre num dia a que tantos sorri; Se a triste, saudosa, de mgoas suspira, Soar d'esperanas agora por ti. Escuta-a; se as vozes so fracas, afeita Que ela desde muito com os cantos da dor, Seu dbil tributo, seus hinos aceita Qual tnue perfume de lnguida flor. Os anos so marcos na senda da vida, Nos quais o viajante costuma parar, E os olhos volvendo na estrada corrida, As cenas passadas lhe apraz recordar. Suspende um momento teus passos, suspende, Na santa romagem que cumpres al, E alm, ao passado teus olhos estende, Alm, ao passado, contempla-o daqui. Oh! pra, paremos, que as cenas doutrora, To ricas de encantos, so minhas tambm; Pois juntos nos vimos da vida na aurora, E juntos passamos os anos alm.

POESIAS

Alm,- ao mais longe que avistam teus olhos, Estende-os amigo; repara, que vs? Formosa campina de flores, sem abrolhos, Mais bela a distncia, que ao perto talvez. Ai no te lembras ? correu-nos a vida, Qual linfa tranqila no prado em Abril, De dia em folguedos a mente esquecida, De noite enlevada por sonhos aos mil. Ai tempos de encantos, ai flgidas cenas Volvidas com os anos chorados em vo; Ai, quanto mais gratas no so tuas penas, Que a prpria ventura que as outras nos do! Paremos, amigo, paremos ainda A olhar esta quadra to longe de ns; Que a luz que a ilumina bem cedo se finda, Que os entes que a adornam deixaram-nos ss. To "gratos nos eram da aurora os fulgores, Como o ltimo raio do dia a findar, Que se uns ainda ao peito nos falam d'amores, Os outros saudades nos vem despertar. Aps esta parte da nossa jornada, To bela e to curta, l se ergue uma cruz, E eu, rfo mesquinho, na campa ignorada No pude ajoelhar-me, nem flores depus. E as cinzas queridas... mas no, adiante, Perdoa, perdoa, se esqueo o meu fim; lira, teus crepes arroja distante; alma, tuas dores divulgas assim? Mas nesses instantes em que eu na orfandade Aos ecos to tristes falava da me, Os laos ligando da nossa amizade, As vestes de luto cingias tambm.

POESIAS

Porm nova quadra se segue. A corrente Da vida mais turva pra ns se mostrou; Pequenos martrios que sofre o inocente De que hoje nos rimos, o peito provou. No meio de estranhos eu vi-me sozinho, E assim na carreira das letras entrei. A mo que meus passos guiou com carinho A morte roubou-ma, eu s caminhei. Mas ainda ento mesmo na vida de criana A nossa amizade no pde esfriar; Nas horas votadas grata folgana De jbilo cheio te vinha encontrar. Mais tarde a ns ambos na senda da vida Guiou-nos os passos benvola mo. Recordas-te dele? Da imagem querida, Da imagem saudosa do amigo, do irmo? Que tempo, que cenas passmos unidos! " Prazeres, trabalhos, leituras comuns! Ai, quantas saudades dos tempos volvidos Me restam no peito, remorsos nenhuns! Aquela nobre alma, j perto da morte, Que negra adejava de si ao redor, Mais nobre por isso, mais bela, mais forte, Pra as lutas da vida nos dava calor. O Sol florinha que adorna a colina, J perto do ocaso no nega o luzir; Sem ele os rigores da brisa ferina Faziam-lhe o sopro da vida exaurir. A estrada apontou-nos que afouto seguira, E onde to firme marchar sempre o vi, Em ns verte o alento que a ele o inspira, E pra ao dizer-nos: Eu fico parti!

POESIAS

E a sombra seguindo do irmo, que lhe aponta, Fugenta de esperanas a estrada do Cu, A terra abandona, no empreo desponta, E cedo para sempre de ns se perdeu. Ao ver-me sem ele sozinho na vida, Faltaram-me as foras, tentei recuar, Que a luz que me guiava, na campa sumida, Em trevas profundas deixou-me ficar. Mas ainda de novo pra mim sua imagem, Surgindo da campa, me veio sorrir, Alento infundir-me, bradar-me: Coragem ! E eu, forte, sua obra no quis destruir. Por outro caminho seguiste, contudo De espaos a espaos cingimos as mos: Nas lides da vida, nas lides do estudo, Jamais esquecemos o nome de irmos. Mil vezes sombra do denso arvoredo Falvamos ambos do nosso porvir, Dos tempos passados, do ignoto segredo Que dentro do peito tentava florir. Ao fim da carreira, que ansiado trilhava, Aps mil fadigas enfim te encontrei; Mas antes, de novo a dor nos magoava: De um tmulo beira contigo chorei. Aos mares da vida teu barco lanaste: Na margem parado, meu barco sustei. tempo! Partamos. Tu, forte, cruzaste As ondas, e Ao largo! bradar escutei. Mas l que me espera? nas vagas furiosas Veria afundar-se meu pobre baixei; Vogando to longe de praias formosas Ir destruir-se num outro parcel?

POESIAS

Calai-vos, inquietos anelos dum peito, Que muito receia, por muito querer; Calai-vos, esp'ranas com que eu me deleito Nas horas mais gratas dum triste viver. Oh! deixa, deixemos to longo horizonte, Que vago e obscuro para todos ele : Deixemo-lo, amigo, 't quando desponte, Esperemo-lo fortes de esperana e de f. E a vista lancemos mais perto: no espao Bem curto em distncia, de afectos maior, Que vemos? Os entes, que um cndido lao Rene em famlia com santo fervor. Nos rostos que anima fulgente alegria, Amor e ventura bem fcil se l; E a idia que hoje de encantos um dia, O seio lhes enche de jbilo. V. Louvemos o Eterno, que assim te permite Provar duma taa tao pura e sem fel; Saudemos o dia que aos rostos transmite Os gozos, que verte no peito fiel. Desviemos o rosto das nuvens passadas, Fechemos os olhos s trevas por vir, E as horas presentes, paz consagradas, Gozemos; gozemos to belo existir. E agora perdoa se as notas da lira Num dia como este, que a tantos sorri, As vezes, saudosa de mgoas, suspira, Em vez de esperanas soar s por ti.20 de Outubro de 1861.

VOZ DE SIMPATIA

Ao despontares da amena juventude, De galas e de flores ornaste o seio. E de mil sonhos de prazer no meio, Com que o peito se ilude, Aguardaste o alvor do Sol fulgente, Que a luz e vida ao corao dispensa, De amores ideais, na dita imensa, Deleitava a mente.

Ele surgiu! esse astro rutilante! No;efmera luz, que instantes brilha, Porm cujo fulgor cedo se humilha, Nasce e morre inconstante. Surgiu! no como a chama das estrelas, Que em multido infinda o cu povoam, E plidas o vu da noite coroam, Quais lcidas capelas;

POESIAS

Mas nico brilhante, duradouro, Como o astro do dia, que surgindo, E luminosas vagas difundindo Raios de fulgente ouro, Dispersa na amplido a imensa turba Dos outros astros que no espao giram, Enquanto eles no cu sua luz admiram, E nenhum o perturba.

Volveram anos, risos e fulgores Da idade juvenil se desvanecem, Mas no morre a afeio, mas no fenecem Teus cndidos amores; No fenecem, no morrem; crescem antes, O sentimento e a razo os gera, Sentimento e a razo, que Deus vertera No teu ser, abundantes.

Volveram anos... e afinal? Gozaste Essa ventura, esp'rana de teus dias? Ai, no; em vez do clix de alegrias, O do travor provaste. Traram-te! e um frio esquecimento O prmio foi de teu amor constante I E a luz que te guiava fulgurante Sumiu-se num momento.

E a dvida no veio na tua alma Negar dum Deus supremo a existncia, Descrer dessa irrisria providncia, Que aos maus concede a palma? Oh! no; curvaste a fronte angustiada, Escondeste tuas lgrimas ardentes, E mostraste-te aos olhos indiferentes Vitima resignada.

POESIAS

301

Eles vem em teus lbios o sorriso, E julgam que provm do esquecimento 1 Cegos! vissem-te luz do sentimento Como eu te diviso. Saberiam que angstia ele escondera, Que pungente amargura nele oculta! Saberiam que a dor que mais avulta No a mais sincera.

Que mundo! quele que sua f trair, Os prazeres, os gozos, a riqueza; A ti saudade, isolao, tristeza! E no Deus mentira ?! E o crime folga, e vitima a inocncia!... No folga; o Cu justo, e o mau condena, D-lhe o remorso por amarga pena, E a ti a conscincia.

35 de Abri] de 1860.

Nota do Autor. Se chegar aos olhos da pessoa a quem dirigida, ela compreender.

O DESTINO DA LIRA

Cantar o amor destino Quando o seio pulsa ardente, Quando no nosso horizonte Surge a imagem resplendente Dum sol que a aridez da vida Transforma em jardim florente. Mas quando a chama se extingue, Que no peito nos ardia, A lira no canta amores, Nem os sonha a fantasia; Ento natureza e ptria S nos inspiram poesia. Depois, os anos declinam Como o Sol no azul dos cus; E quando a noite da vida J nos estende seus vus, Todos os cantos da lira So consagrados a Deus!12 de Agosto de 1860.

...

* * *

luz do Sol nascente Resplendem pelas selvas Mil prolas nas relvas, Nos ares mil rubis; . No azul do cu nevoado No brilham as estrelas, Mas so imagens delas As flores do tapiz. As aves perpassando Agitam a ramagem, E a perfumada aragem Nos bosques se introduz; A mil vozes falam Ao cu sereno e mudo; No bosque sombra tudo, No cu tudo luz. Ridente madrugada, Hora em que do oriente Com o gldio refulgente O arcanjo da luz vem; E as trevas se dissipam, Com as trevas a tristeza, Que em toda a natureza A noite eivado tem.

POESIAS

Oh! vinde, vinde ao prado Que o orvalho inda humedece; Ali tudo parece vida ressurgir. Em vrtices contnuos, Em doudejantes ,valsas Elevam-se das balsas Insectos a zumbir. Subi do prado ao vrtice Da florida colina, Ento pela campina, Os olhos prolongai Ao longe, ao longe as vagas, Lutando nos fraguedos; Mais perto os arvoredos Que o arroio banhar vai. A tudo anima a esp'rana No monte e vale e praia; No cu Vsper desmaia Ao matutino alvor. O cntico das aves, Das flores o aroma Nos diz: O dia assoma I Hosana ao Criador!1 de Julho de 1862.

NOVA VNUS

Solta aos ventos as trancas douradas, Meiga filha das bordas do mar, E no meio das vagas iradas Solta aos ventos o alegre cantar. No, no temas as nuvens sombrias. Que uma a uma se elevam d'alm, Que rodeado d'amor e alegrias, O teu cu dessas nuvens no tem. Canta sempre; de noite s estrelas, De manh ao luzir do arrebol, Ao passarem no mar as procelas, Ao sorrir aos outeiros do sol. Canta sempre, alcone destas vagas, Nova filha da espuma do mar, Canta sempre, e eu sentado nas fragas, Voltarei para ouvir-te cantar.28 de Fevereiro de 1863.

* * *

Hoje, quando te vi, estavas cismando; Em que cismavas tu, virgem formosa, Desmaiadas as faces cor-de-rosa, E o seio, o gentil seio, inquieto arfando? Em que cismavas tu? De quando em quando Elevavas ao cu, triste, saudosa, A vista amortecida, lacrimosa, Para a baixar depois em gesto brando. No cho jaziam murchas, desfolhadas, As rosas, que ainda h pouco te toucavam, Agora j por ti abandonadas. Os ltimos clares do Sol douravam As tuas belas tranas desatadas; Diz, que ntimos anelos te turbavam?

DESESPERANA

Meu Sem No Nos

Deus, que destino!... viver isolado, ter quem no mundo me possa entender! era esta a vida que tinha sonhado sonhos passados dum outro viver!

As feras, as aves, as flores, quanto existe, Se abrasam num terno, dulcssimo ardor! S eu, solitrio, viver sempre triste! Viver ? No: que vida, faltando-lhe o amor ? ermo entre gelos, hrrida noite, Onde um s astro, sequer, nem reluz! Como hei-de, sem crenas onde a alma se aoite, Do Glgota ao cimo levar minha cruz ?! O anseio, este fogo que lento me inflama No hei-de apag-lo num gozo real? E os vagos transportes que sente quem ama Ter de abaf-los paixo mundanal? No ter seio amigo no qual eu repouse A fronte cansada de ardente pensar, Uma alma conforme com a minha, a quem ouse Dizer quanto sinto no peito a pesar I

POESIAS

Ai! triste, que sorte! viver entre gelo, Sentindo atear-se c dentro um vulco! Nutrir tanto afecto no peito, e perd-lo!... Desejos que abrasam, mant-los em vo! Meu Deus! Es injusto!... mas oh! se blasfemo, Perdoa, que a mente mal pensa o que diz! Perdoa, perdoa-me, Ente supremo, Concede-me ainda que eu seja feliz! Oh! d-me a ventura que em sonhos j tivel... Uma alma que esfalma soubesse entender! Um ente, se acaso na Terra ele vive, Que possa este vcuo de amor preencher. Que imenso tesouro d'afectos lhe dera! Sorria-lhe a vida num den gentil! Entre outros segredos ento lhe dissera Tais falas, cortadas por beijos aos mil! Ai! foge, deixemos da vida mundana Seus vos devaneios, seu fogo falaz! Busquemos sozinhos deserta cabana, Aonde no turve ningum nossa paz! Que imensos prazeres que l nos esperam I Que ledo futuro que ento nos sorri! Ali no h mgoas, que o peito laceram, Dos homens o bafo no chega at 'li! Que To Que Que vida, essa vida que ento l teremos rica d'afectos, de gozo sem fim! ternos enlevos, que doces extremos, belos os dias, passados assim!

D'esp'ranas e flores no quadro to lindo No cimo do monte, da aurora ao nascer, Iremos saud-la, dizer-lhe: Bem-vinda Tu sejas, que Terra ds luz e prazer!

POESIAS

Depois, vendo as aves com doce harmonia Soltarem seus cantos no bosque alm, Na lngua dos anjos, na maga poesia, Aos Cus nossos hinos se elevam tambm; Oremos ao Eterno, sagremos-lhe os cantos, Que d'alma espontneos prorrompem ento! Depois resolvamos provar dos encantos Da vida inefvel que anima a solido. Da tarde ao crepsc'lo, nos breves instantes Dessa hora em que se unem as sombras e a luz, Tambm nossas almas unidas e amantes Anelem delcias que a noite conduz! Ali, o murmrio da rpida brisa Banhada em perfumes, roubados flor, A linfa, que mansa no prado desliza, Viro segredar-nos mil falas d'amor! Amor repercutam os ecos da serra! Amor l das aves se escute na voz! E as nuvens, as fontes, os bosques, a terra, Amor s respirem em torno de ns! Amor alta noite veremos escrito Com letras douradas no livro de Deus!... Pressgio divino do gozo infinito, Que um dia teremos unidos nos Cus. E um dia l corre, d'amor bafejado, Ao outro que surge prazeres iguais! E sempre esta vida!... Mas, ai! desgraado!... Que assim me enlevava d'esp'ranas banais! Debalde iludir-me procuro num sonho! Cruel desengano, cruel que ele ! Ele aponta o futuro, sombrio e tristonho, Sem crenas, sem glria, sem vida, sem f!

POESIAS

A mim s me resta viver isolado! Sem ter quem no mundo me possa entender! Ai! sonhos to Belos que outrora hei sonhado I Delcias passadas dum outro viver.

SIMILIA SIMILIBUS

Nova seita proclamaram De Esculpio os descendentes; Do vivas os boticrios, Estremecem os doentes. Mas que achado! Os velhos mdicos Vem o passado com mgoa; Estes, de novo sistema, Aquecem gua com gua. O fogo apagam com fogo, Do vista aos cegos, cegando, E at pra coroar a obra, Curam da morte... matando.

HISTRIA DE UNS BEIJOS

Ouvia gabar os beijos, Dizer deles tanto bem, Que me nasceram desejos De provar alguns tambm. Esta fruta no rara, Mas nem toda tem valor, A melhor muito cara E a barata sem sabor. Colhi-os dos mais mimosos, Provei trs; mas, por meu mal, Ao princpio saborosos, Amargaram-me afinal. Um colhi eu de uma bela Que era Rosa, sem ser flor, Se tinha espinhos como ela, Dela tambm tinha a cor. Vi-a a dormir e furtei-lhe Um beijo, que a acordou, Eu gostei, porm causei-lhe Tal susto que desmaiou.

POESTAS

Logo que a v: sem Fugi sem outro lhe Pois beijos sem ser No so coisas pra

sentidos dar, pedidos brincar.

Porm deste beijo ainda Pouco tive que dizer, Pois a tal rosa... era linda E tornou a reviver. Outra vez, duma morena, Olhos azuis, cor do cu, Corpo 'sbelto, mo pequena, Um beijo me apeteceu. Pedi-lho, e ento por bom modos, Pedi-lho do corao. Zombou dos meus rogos todos E respondeu-me: que nao. Zombei, como ela zombava E um beijo, fora lhe dei; Mas... bem dado ainda no estava E c'um bofeto o paguei. Custou-me caro o desejo, Que mui caro ela o vendeu. Pagar por tal preo um beijo! Assim no os quero eu. Este mais do que o primeiro, Me deixou fraca impresso; Quis provar inda um terceiro, Para no jurar em vo. Mas no quis fruta roubada, Que mal com ela me dei; Uma dama delicada Ofereceu-ma... eu aceitei.

POESIAS

Ai que boa fruta era! Estava mesmo a cobiar. Passar a vida quisera, Tal fruta a saborear. Mas no meio da colheita... Da fruta o dono apareceu; Zelosos olhos me deita: Se zelava o que era seu! Vendo o caso mal seguro Eu logo ali lhe jurei Restituir at com juro A fruta que lhe tirei. E acaso no discordasse, No me parecia mal Que a ele os juros pagasse, E senhora... o capital, Esta sensata proposta Em frias o arrebatou, E, por nica resposta, Pra luta se preparou... Oio ainda gabar os beijos, Dizer deles muito bem, Mas findaram-me os desejos, J sei o sabor que tm.1859.

Nota do Autor. Desde j afirmo que no fui eu o protagonista da histria. Ainda no tive uma indigesto deste gnero de fruta, e nem sei, para falar francamente, se mesmo quando a tivesse, a ficaria abominando para sempre. O caso, enquanto a mim, no foi de natureza que justificasse semelhante averso; mas enfim h susceptibilidades tais... No afirmamos, contudo, que a dieta tenha sido escrupulosamente observada. Nesta espcie de fruta, parece-me que, ao contrrio do que se diz para as outras, a qualidade e no a quantidade que faz o mal.

SEGUNDA PARTE

A J. , ,

Acredita que os anjos tambm sofrem Nesta manso de dores, E no olhes o mundo lacrimosa, Quando o vires despido de fulgores. Mal sabe, a rosa, ao vicejar lasciva Em plena Primavera, Que passageira a quadra; que aps ela Se despovoa o prado e a morte a espera. O terreno que pisas nesta vida Oculta um precipcio O caminho, onde ao fim vemos a glria, Quantas vezes termina no suplcio! Eu j vi, sobre um tmulo isolado, Um grupo de crianas Dando as mos, e travando em cho de morte, Com risos infantis, alegres danas. Vi-as tambm sorrindo descuidadas, Se piedoso viandante Parava pensativo e, murmurando, Uma humilde orao, passava adiante.

POESIAS

Assim tambm sorris, se melanclico Eu penso no futuro, Quando uma sombra vem turbar-me a fronte. Com elas, ris do meu semblante escuro. Mas olha, vais saber a histria triste Desses trs inocentes, Que sobre as cinzas frias duma campa Se entregavam a jogos complacentes. noite a me, beijando-os, estranhou-lhes Das faces a brancura; E um pressgio sentiu; ao alvor do dia Levava-os todos os trs sepultura. que os ares do tmulo do morte Em afago homicida; Nesse ar infecto em que se extingue a chama, Tambm arqueja e expira a luz da vida. Teme pois tambm tu, cndida virgem, O ar que aqui respiras; E no perguntes mais ao viandante Que pensamentos d'amargor lhe inspiras.

Nota do Autor. Esta poesia foi enviada ao redactor da Grnalda, Joo Marques Nogueira Lima, assinada com o pseudnimo Jlio Dinis, em 9 de Maro de 1861 e publicada no 3. nmero daquele jornal. No dia 18 de Maro, noite, o Passos elogiou-a, sem saber quem ara o autor.

A NOIVA(NO LBUM DA EX.maSR.a D. ISABEL M. FIGUEIREDO DE CARVALHO)

Mal as regies do oriente A luz da manh tingia, J ao cristalino espelho A linda noiva sorria, E a alva flor da laranjeira Ao vu de neve prendia. A noite passara vela E que noiva a dormiria? E ao desmaiar das estrelas, Alvoroada se erguia. E a alva flor da laranjeira Ao vu de neve prendia. Depois, ligeira, impaciente, Chegava-se gelosia A ver se o sol j dourava Os cimos da serrania, E a alva flor da laranjeira Ao vu de neve prendia.

POESIAS

De quando em quando chorava... E o que chorar a fazia? Saudades do que passara? Terrores do que viria? E a alva flor da laranjeira Ao vu de neve prendia. Mas so lgrimas de noiva, Um s beijo as secaria, So como gotas de orvalho Quando o Sol as alumia; E a alva flor da laranjeira Ao vu de neve prendia. Que longo porvir d'amores, Que futuro de poesia, Que palcios encantados Lhe pintava a fantasia, Quando a flor da laranjeira Ao vu de neve prendia! E ao casto leito de virgem Dentro da alcova sombria, A noiva, de quando em quando, Inquieta os olhos volvia; E a alva flor da laranjeira Ao vu de neve prendia. Por entre o rosai florido, Que o balco lhe entretecia As avezinhas cantavam Com festiva melodia. E ela a flor da laranjeira Ao vu de neve prendia. Alto ia o Sol, resplendente Na manh daquele dia, Cuja noite... Esta lembrana Da noiva as faces tingia; E a alva flor da laranjeira Ao vu de neve prendia.

POESIAS

A me, vendo-a to formosa, Julgava um sonho o que via, Que o vestido de noivado As graas lhe encarecia, E a alva flor da laranjeira Do vu de neve pendia. Vm as irms, que a contemplam Com inveja, eu juraria: Ela baixa os olhos, cora, O que mais bela a fazia, E a alva flor da laranjeira Do vu de neve pendia. Junto delas, perturbada, Quase nem falar podia; So as mes bem compreendem O que a noiva ento sentia, Quando a flor da laranjeira Do vu de neve pendia. As horas passam to lentas! E o corao lhe batia, A me chorava, coitada, Com saudades o fazia; E a alva flor da laranjeira Do vu de neve pendia. A sala j estava cheia; A noiva achava-a vazia, Que entre tantos convidados Ainda o noivo se no via; E a alva flor da laranjeira H muito do vu pendia! Passa a manh, e no chega! No chega, e j meio-dia! Nas varandas, nos eirados, Se dispersa a companhia; E a alva flor da laranjeira H tanto do vu pendia!

POESIAS

O rosto da bela noiva Cada vez mais se anuvia, No sei que voz misteriosa Desgraas lhe pressagia; E a alva flor da laranjeira Inda do vu pendia. Fenece a tarde. Eis a noite, Hora de melancolia. No rosto dos convidados Desassossego se lia, E a alva flor da laranjeira No vu da noiva tremia. Tudo silncio. A coitada Uma esttua parecia... To plida como mrmore, Como ele imvel, fria; S a flor da laranjeira No vu da noiva tremia. Abrem-se as portas. ele! Disse toda a companhia: Porm ilusria esperana! Um pajem s aparecia: E a alva flor da laranjeira Do vu da noiva caa. Tristes novas traz o pajem, Que triste o rosto trazia; Fz-se um silncio profundo Entanto que ele as dizia, E a alva flor da laranjeira Inda por terra jazia. Dispam-se as galas da festa, Calem-se os sons da alegria, Que morto em cruel combate O noivo... Um grito se ouvia, Junto flor da laranjeira, A noiva no cho caa..

POESIAS

Cercam-na todos... debalde, O seio j no batia; Aquela mimosa planta Sem alentos sucumbia, Como a flor da laranjeira, Derrubada ali jazia. Mal sabia a pobre noiva Pra que bodas se vestia! Mal sonhava a desposada Que a morte esposar devia! Quando a flor da laranjeira Ao vu da neve prendia. Com as vestes do noivado Para o sepulcro ela se ia; Em vez do rubor da noiva A palidez da agonia E a alva flor da laranjeira Do vu de neve pendia. Tantos sonhos que sonhara!... Tanta esp'rana que nutria!... Por esposo tinha a morte, Por tlamo, a lousa fria, E a flor da laranjeira Com ela campa descia.

O DESPERTAR DA VIRGEM

Que isto? que sentimento Me faz palpitar o seio? Meu Deus, meu Deus, porque anseio? A que aspira o corao? Que me revela este fogo, Esta vaga inquietao? Da vida a clara corrente Porque que se perturba? Porque, fugindo da turba, Eu s folgo ao ver-me a ss, Escutando ignotas falas De no sei que estranha voz? Inda h pouco me apraziam Da alegre infncia os folguedos; Hoje no sei que segredos O corao me prediz. Enfadam-me as alegrias Desses tempos infantis. s horas do fim do dia, Quando o Sol no mar declina E d'urea luz ilumina Todo o horizonte ao redor, Porque me sinto enleada Num indizvel langor?

POESIAS

De manh, quando nas selvas O dia desperta as aves, E mil aromas suaves Sobem dos campos ao cu, Porque sinto ante meus olhos Estender-se hmido vu? E esta imagem resplendente, Que sorrir-me em sonhos vejo, Ai, to bela que desejo Sempre mais tempo sonhar! Quem que em to mago enleio Me faz, sem querer, sonhar? Este ansiar incessante, Esta esp'rana inda to 'vaga De gozos, que a mente alaga, Mal lhe sabendo o valor, Este ignoto sentimento... Deus do Cu, ser o amor? Amor! que palavra esta, Que ela s me sobressalta E mil sensaes exalta Desconhecidas pra mim... Que poder mgico encerra Para me agitar assim? o amor o sentimento Que me faz arfar o seio? Este gozo por que anseio E a que aspira o corao? pois amor este fogo, Esta vaga inquietao?1859.

Nota do Autor. No sou por certo eu o melhor juiz da verdade desta poesia, crevi-a de palpite. Julgue-a quem pode.

QUINZE ANOS(NO LBUM DO MEU AMIGO J. M. NOGUEIRA LIMA)

Que so quinze anos, quando a virgem cora? Quando, j triste, na solido vagueia? Que so quinze anos, se ao surgir da aurora, A embala em sonhos embriagante idia? Se ao fim da tarde, em languidez cada, Do peito sente o palpitar inquieto, E aspira, ansiosa, mas ardente vida, Vida de amores, de paixes, de afecto? Que so quinze anos, quando um sangue ardente No peito infunde abrasadora lava? Quando aos assomos da paixo nascente, A alma da virgem se submete escrava? Ai, quantas vezes nesses jovens seios Se esvai bem prestes a infantil bonana? Quantas se ocultam juvenis enleios, Nas aparncias de pudor, criana? Vs a palmeira, que no nosso clima Arbusto humilde, um vendaval derruba, Como nas plagas, que o calor anima, Eleva altiva a majestosa juba?

POESIAS

A mesma vida, que recebe a planta Nessas paragens onde o Sol dardeja, O amor, o astro que a existncia encanta, A mesma vida ao corao bafeja. E tu, que deixas os pueris folguedos, Como a grinalda que esfolhada viste, E erras em choro por jardins e olmedos, Ai, virgem, virgem, j o amor sentiste. J o aspiraste, percorrendo a relva, Entre perfumes de violeta e rosas; Falou-te dele o rouxinol na selva, E a estrela em noites de Vero formosas. Falou-te dele a matutina brisa, Por entre as folhas sussurrando meiga; No prado a linfa, que a correr desliza, E a borboleta nos rosais da veiga. Falou-te dele esta gentil paisagem, O azul dos cus, a secular floresta. Esse o mistrio que em subtil linguagem s virgens conta a natureza em festa. Ouvindo, pois, as namoradas falas, Que eu delirante te falei, donzela, O que receias? porque assim te calas, Rubra de pejo, que te faz mais bela? Esconde a fronte no meu peito, esconde, Mas no hesites ao dizer-me que amas. Que so quinze anos, linda flor? responde, Quando o teu seio se devora em chamas?1862.

O BOM REITOR

Sabem a histria triste Do bom reitor? Msero, toda a vida Levou com dor. Fez quanto bem podia, Mas... afinal Morre, e na pobre campa Nem um sinal. Nem uma cruz ao menos Se ergue no cho! Geme-lhe s no tmulo A virao. Vedes, alm, na relva Junto ao rosai, Flores que h desfolhado O vendaval? Cobrem-lhe a lousa humilde; A criao Paga-lhe assim a dvida De compaixo.

POESIAS

Pobres, que amava tanto, Nunca, ao passar, Choram, curvando a fronte Para rezar. Nunca, ao romper do dia, O lavrador Pra e lamenta a sorte Do bom reitor. As criancinhas nuas Que estremeceu, J nem sequer se lembram Do nome seu. No salgueiral vizinho, Ao pr do Sol, Vai carpir-lhe saudades O rouxinol. Lgrimas... pobre campal Ai, no as tem; S da manh o orvalho Roci-la vem. Da solitria Lua A triste luz Grava-lhe em vagas sombras, Estranha cruz. E ele repousa, dorme, Vive no Cu. Dorme, esquecido e humilde, Como viveu. H nesta vida amarga Sortes assim: Vive-se num martrio, Morre-se enfim.

POESIAS

Sem que memria fique Para contar s geraes que passam, Nosso penar. Quem me escutar, se um dia Ao prado for, Ore pelo descanso Do bom reitor.Julho de 1864.

Publicada no Jornal do Porto Faz parle do folhetimImpresses do campo A Ceclia assinado Diana de Aveleda

INICIAO

Alm, naquela avenida, De pltanos e salgueiros, Foi que em teus beijos primeiros Bebi a primeira vida. Sob os copados verdores Daquela frondosa rua, Mal vistos da prpria Lua, Falvamos ns d'amores. Todos em nossa procura, Ns a rirmos escondidos. Oh! que instantes decorridos! Oh! que rpida ventura! Vai, cusseste-me ao partires, Que estes beijos te dem vida. Adeus, a infncia volvida! Luta, e... se no sucumbires... E a voz faltava-te em meio; E eu disse com modo brando: Se no sucumbir?... Chorando Apertaste-me ao teu seio.

POESIAS

Volta; e a sentida promessa, Que em meus beijos entendeste, Cumprida ser. Disseste: Adeus. A luta comea. E comeava! Ai, por vezes Me tomou o desalento; Porm aquele momento Lembrava-me nos reveses. Lutei. E ao voltar agora Com as lembranas do passado, Dize-me, anjo, se me dado Recordar-te ainda essa hora?1885.

A JOVEM MAE

Vistes a jovem me junto do bero Do filho adormecido? Que lhe importava o resto do universo? Tudo o que a mo de Deus nele h disperso Via ali resumido. A guerra vai acesa, o sangue corre Pelas naes da Terra; Mas todo esse rumor no bero morre: A aumentar o silncio at concorre Que o gineceu encerra. Um dia, ao pr do Sol, ela embalava O bero do inocente. E, com os olhos nele, se entregava A sonhos de ventura e olvidava No porvir o presente. Por um momento a olhou ele e sorria: Mas que sorriso aquele! A me, que todos os gestos lhe entendia, Estranhou-lhe o sorrir, que de alegria Ai, no, no era ele.

POESIAS

O seio a palpitar-lhe, e mansamente Nos lbios o beijava. Mas no amoroso sculo. somente Recebeu o esprito inocente, Que a Terra abandonava, Tendes j visto o mar tranqilo e unido Nas praias deslizando, E depois levantar-se embravecido Qual o leo, do caador ferido, As crinas eriando? Tendes j visto o vento pela serra Gemendo brandamente, Para depois, em tumultuosa guerra, Descer aos vales, devastar a terra Assolador, fremente? Assim a pobre Enchendo Como a fera a Corre a pobre Volvendo me se ergueu, os ares com seus gritos! rugir entre os palmares, sem tino, os seus olhares ao Cu aflitos.

Ao v-la, di-la-eis impelida Por sobre-humana fora. Nem mais veloz, no bosque foragida. Atravs das devesas perseguida, Corre a tmida cora. De repente parou, como escutando Uma vaga harmonia. E um estranho fulgor de quando em quando Vinha animar-lhe as faces, revelando Inslita alegria. Volta ao bero do filho inanimado. Pra, olha-o, medita. Depois cingindo-o ao seio angustiado, Corre praia do mar, que o vento irado Ento revolve e agita.

POESIAS

Filho, filho, no partas s da vida, Espera, eu vou contigo. Disse, e nas penhas hmidas erguida, Com o inocente, na vaga enfurecida Busca o final jazigo.

Viste a jovem me na campa fria Unido o filho ao peito? Que lhe importava o mundo, onde o no via? Como outrora, embalando-o, adormecia, Mas no funreo leito.1862.

A VIDA

A alvorada foi risonha; Ergueste-te como o dia, Eu fiz, naquela alvorada, Uma alegre profecia. Inda radiava fulgente Vnus, a saudosa estrela, Ja tu ornavas as trancas E cantavas janela. E dos laranjais vizinhos Os rouxinis acordados Respondiam-te com trinos Da tua voz namorados. Dos virentes jasmineiros, Que a Primavera enflorava, Vinha cheio de perfumes O vento que te beijava. Quem Nessa Que a Serias dissera ento ao ver-te risonha alvorada, noite, estrela cadente, inanimada?Escrito em um lbum a pedido de F. M. de Sousa Viterbo em 1870.

TRIGUEIRA

Trigueira! que tem? Mais feia Com essa cor te imaginas? Feia! tu, que assim fascinas Com um s olhar dos teus! Que cimes tens da alvura Desses semelhantes de neve! Ai, pobre cabea, leve! Que te nao castigue Deus. Trigueira! se tu soubesses O que ser assim trigueira! Dessa ardilosa maneira Porque tu o sabes ser; No virias lamentar-te, Toda sentida e chorosa, Tendo inveja cor da rosa, Sem motivos para a ter. Trigueira! Porque s trigueira que eu assim te quis tanto. Da provm todo o encanto Em que me traz este amor. E suspiras e murmuras; Que mais desejavas inda? Pois serias tu mais linda, Se tivesses outra cor?

Trigueira! onde mais reala O brilhar duns olhos pretos, Sempre hmidos, sempre inquietos, Do que numa cor assim? Onde o correr duma lgrima Mais encantos apresenta? E um sorriso, um s, nos tenta, Como me tentou a mim? Trigueira! E choras por isso! Choras, quando outras te invejam Essa cor, e em vo forcejam Por, como tu, fascinar? louca, nunca mais digas, Nunca mais, que s desditosa. Invejar a cor da rosa, Em ti, quase pecar. Trigueira! Vamos, esconde-me Esse choro de criana. Ai, que falta de confiana! Que graciosa timidez! Enxuga os bonitos olhos, Ento, no chores trigueira, E nunca dessa maneira Te lamentes outra vez.Abril de 1864. Escrita no lbum da Ex.mn Sr." D. M. Veloso e aproveitada para o romance As Pupilas do Sr. Reitor publicada no jornal do Porto em 1866 e em volume em 1867.

A INTERCESSO DA VIRGEM(H. HE1NE)

I

Jazia o filho no leito, A me olhava o balco. No te levantas, meu filho, Para ver a procisso? Ai, me! se estou to doente, Que no posso ouvir nem ver! Penso nela... a pobre morta... Como no hei-de eu sofrer! Ergue-te, filho, e romagem Iremos juntos a orar, Que aos coraes doloridos Sabe a Virgem consolar. J se ouvem os sacros hinos, Da cruz flutua o pendo; Em Colnia sobre o Reno Vai passando a procisso.

POESIAS

E a me e o filho acompanham A turba que segue o andor Dizendo em coro com ela: Glria a ti, Me do Senhor!

Il

Como a Senhora est linda Com o seu mais rico vestir! Correm-lhe em chusma os doentes Muito tem ela que ouvir! Todos lhe trazem promessas Com ferventes devoes: Membros, ps e mos de cera, Jazem no altar aos montes; Quem lhe der um p de cera, Logo do p sarar; Quem mos de cera lhe oferea, A mo curada ver. Mancos, que romagem foram, Vem-se na corda saltar; Outros de mos aleijadas, Destros agora a tocar. Da alva cera duma vela Fez a me um corao. Leva isto Virgem Maria, Que te cure essa paixo. Gemendo, o filho a recebe, Gemendo a vai ofertar; Dos olhos lhe brota o pranto Do corao este orar;

POESIAS

Maria gloriosa! Serva pura e me de Deus: Virgem, dos Cus Soberana, Escuta os lamentos meus i Em Colnia, onde as igrejas Se podem contar s cem, Os meus dias descuidado Passava com minha me. E junto de ns vivia Margarida... a que morreu... Dou-te um corao de cera, Cura as feridas do meu! Cura minh'alma dorida, Que eu com devoto fervor Direi de dia e de noite: Glria a ti. Me do Senhor!

III

Alta noite, adormecidos Jaziam o filho e a me, E a Virgem mui de mansinho Entrando no quarto vem. Pendida sobre o doente No peito a mo lhe pousou, E com gesto suavssimo Sorrindo se retirou. Como se atravs dum sonho, Tudo isto a me percebeu E acordando alvoroada, Junto do filho correu.

POESIAS

Estendido sobre o leito, Morto, a triste o foi achar; Andava-lhe a luz da aurora Pelas faces a brincar. Vendo-o assim, a me piedosa Juntou as mos com fervor E em voz baixa disse, orando: Glria a ti, Me do Senhor IAbril de 1864.

METEORO

No a viram passar? Era no Outono; Quando languesce a flor, quando na selva Se cala o rouxinol e ao abandono Jazem as folhas na crestada relva. No a viram passar? Revestiam das serras E em vez das brisas Assopravam violentas As altas neves as cumeadas, perpassando leves, as rajadas.

No meio da tristeza destas cenas, Ela s, muda e plida, sorria, O seio a anuviar-se-lhe de penas, O rosto a iluminar-se de alegria. No a viram? Passou. A natureza outra vez de galas revestida, Mas minh'alma coberta de tristeza Como naquele instante da partida.Setembro de 1860. Escrita em um lbum.

A DESPEDIDA DA AMA(A meu primo e amigo J. ]. Pinto Coelho)

Adeus filho do meu peito, Que do meu peito nutri... Parto. Vou deixar-te, filho, Ai, que farei eu sem ti?! Adeus! J quando acordares Chorando no me vers; As noites a acalentar-te Outra voz escutars. Que amor te ganhei, meu filho I Que triste amor este meu! Se assim tinha de deixar-te, Pra que tanto te quis eu? Os teus primeiros gemidos Tua me no quis ouvir; E a mim, que os calei com beijos, Mandam-me agora partir! Pus volta do teu bero Todo o amor que um seio tem, E arrancam-te de meus braos, Porque eu no sou tua me!

POESIAS

Os teus vagidos de infante Fui eu quem os sosseguei; Carinhos que semeava, Para a outra os semeei ! Parto. Dentro em pouco, filho, Nem tu me hs-de conhecer; E assim de pequenino Te ensinam j a esquecer. Adeus! Nesta despedida A alma toda se me vai. E, sem querer, o meu pranto Sobre a tua fronte cai, Que desse sono inocente Te no v ele acordar; Que as foras me faltariam Ento, para te deixar. Vamos, pobre mulher, vamos Est finda a criao, Deste vida a este menino, No lhe ds o corao. O corao? Quem to pede? Pedem-te o leite, no mais. Vamos, pobre mulher, vamos, Que o acordas com teus ais! Adeus filho da minha alma, Teus carinhos no so meus, O choro corta-me a fala, Mal posso dizer-te... adeus.Maro de 1865.

NO ALTAR DA PTRIA(Ao meu amigo Joo Marques Nogueira Uma)

1

Tinge do oriente as serras O matutino alvor; E do clarim das guerras Se ouve o mortal clangor. Ai, grata paz dos lares, Adeus, fora partir. sombra dos pomares! rosas a florir! As hostes reunidas Chamam-me a combater, Ai, longas avenidas, Tornar-vos-ei a ver? Adeus, loucos amores! Adeus, beijos febris, Adeus, mudos verdores, Que em sombras os encobris.

POESIAS

me, d-me uma espada Oio da Ptria a voz! Ei-la. imaculada, Era a de teus avs! Pura a trarei, voltando... Se no morrer ali. Vai! disse a me, chorando, Eu rezarei por ti.

Filho, meu filho, espera! No me ouve j. Partiu! E o ardor que a sustivera De todo se extinguiu.

il

No campo j se escuta Das alas o marchar. Que agigantada luta Alm se vai travar? D-se o sinal! Furiosas Partem as legies; Encontram-se raivosas Bramem como os lees. Ai, que tinir de espadas! Que estrpito fatal! Que vozes angustiadas Se escutam no arraial! O sangue rutilante Inunda e tinge o cho; Aos ais do agonizante Responde a imprecao.

POESIAS

Em p, os combatentes, Perdidos os corcis, Cingem-se quais serpentes Em prfidos anis. A luta brao a brao, A golpes de punhais; Se caem de cansao, No se levantam mais. A luta peito a peito, Terrvel e cruel! s cs no h respeito, dor no h quartel!

III

Findou! Tranqilo tudo... J tudo emudeceu. O campo triste e mudo; triste e escuro o cu! A custa de mil vidas Salvou-se a Ptria enfim! Mas porque so sentidas As vozes do clarim? As hostes vitoriosas Porque to tristes vm? Ai, que nsias dolorosas Sentia a pobre me! Passa a primeira fila... Msera, que o no vs!... Outra, outra mais. Vacila... Cresce-lhe a palidez!

POESIAS

Olha-as uma por uma, E a ltima passou; E delas em nenhuma Inquieta o filho achou! E o cu mais se escurece; O campo envolto em p; E a triste permanece Absorta, muda e s I

IV

Que solido de morte! Que erma a plancie jaz! Dorme no campo o forte, Sono de glria e paz. Dorme a valente raa De intrpidos heris! Cegos, ao sol que passa Sadam novos sis. Que sepulcral figura Se adianta alm subtil; To cheio de amargura O gesto e o olhar febril! ensangentada arena Os passos seus conduz; Raiou sobre esta cena Da Lua a tarda luz. Sbito em desvario Solta um sentido ai, Junto a um cadver frio Desfeita em pranto cai.

POESIAS

s tu! s tu? ai, filho! Ai, como te encontrei! Como esto j sem brilho Os olhos que eu beijei! Vai, sombra idolatrada, tua Ptria, aos Cus! Cinge-lhe ao peito a espada; Morre ao dizer-lhe: < Adeus!

HINO AO TABACO

No centro dos crculos De nuvens de fumo, Um deus me presumo, Um deus sobre o altar! Nem doutros turbulos Me apraz tanto o incenso Como o deste imenso Cachimbo exemplar! Em divas esplndidos, Cruzadas as pernas, Fuma, horas eternas. O ardente sulto Subindo-lhe ao crebro O mgico aroma, Esquece Mafoma, Houris e Alcoro. Longe, oh! longe o pio, Que os sonhos deleita Da msera seita Dos Theriakis! Horror ao narctico Que vem das papoulas! E ao que arde em caoulas No altar de Caciz!

POESIAS

Que a raa gentlica Das zonas ardentes Consuma as sementes Do arbio caf. Despejem-se as chvenas Da atroz beberagem Da cor do selvagem Da adusta Guin. E a tal folha extica, Delcias da China, Por nossa m sina Trazida de l, Servida em famlia Num morno hidro-infuso?... Antema ao uso Das folhas do ch! Nem tu, alcolico Humor dos lagares, Ters meus cantares, Meus hinos ters, Embora das nforas, Vazado nas taas, Aos outros tu faas, A lngua loquaz. Cerveja britnica, De furor espuma? De coisa nenhuma Me podes servir. Quando oio do lpulo Gabarem proezas s boas inglesas, Desato-me a rir. Nem venha da cnfora Pregar maravilhas O das cigarrilhas Famoso inventor. Raspail cismtico E eu sou ortodoxo O seu paradoxo No me h-de ele impor.

POESIAS

Meu canto da Amrica, Pas do tabaco, Perante o qual Baco Seu ceptro partiu. A Europa, sia e frica E a Terra hoje toda Este heri da moda De fumo cobriu. At na Lapnia Da gente pequena, Se fuma; e no Sena, No Tibre e no P, No Volga e no Vstula, No Tejo e no Douro; Que imenso tesouro Se deve a Nicot! Meus ridos lbios Mais fumo inda aspirem; Que os parvos suspirem Por beijos aos mil. No quero outros sculos, No quero outra amante.. Qual mais doudejante Que o fumo subtil? Tornadas Vesvios, As bocas fumegam De nuvens que cegam Vomitam montes. Fumar! Oh delcias! Prazer de nababo! E leve o Diabo Do mundo as paixes.

vol. II12

TERESA(A minha sobrinha Ana C. Gomes Coelho)

Era uma criana loura Quando a conheci pequena; Mais branca do que a aucena E pronta sempre a chorar. Havia naqueles olhos De um certo azul esvado, No sei que oculto sentido Que me fazia cismar. Quantas vezes, ao p dela, Correndo-lhe a mo nas trancas, Eu lhe disse: Tu no danas, Como vs danar as mais? Ela olhava-me e sorria, Sorria, mas suspirava, E inda mais triste ficava, Como nem imaginais. Meu Deus, que criana aquela! Que to precoce tristeza! Dizem-lhe um dia: Teresa Sabes? tua me morreu. Fz-se plida de morte... E, levando as mos ao seio, Ia a falar, mas, no meio, Reprimiu-se e emudeceu.

POESIAS

E desde ento nunca a viram Mais com as suas companheiras; Ficava-se horas inteiras sombra do laranjal. Surpreendiam-na sozinha Com os olhos fitos no espao E esfolhando no regao As rosas do seu rosai. As brisas, gemendo tristes Por entre a verde folhagem, Segredavam-lhe a linguagem Sonora da solido. Essas mil vozes do campo, Todas ela compreendia, Que fadado pra poesia Fora aquele corao. Ai, que infncia to de gelo! Que madrugada da vida! Ai, pobre alma estremecida Pelas saudades da me! Quantas vezes, alta noite, A triste julgava v-la Em cada flgida estrela Que o firmamento contm! Um dia, ao cair da tarde, E de uma tarde de Outono, Acordou de um brando sono E ps-se a rir para mim. J sorris? s salva, filha, Enfim! E a beijei contente. Olhando-me ternamente Ela repetiu: Enfim! Enfim!... mas que triste acento Nessa palavra vertera! Foi como que se dissera A vida um ltimo adeus. Era como um grito d'alma, Rompendo a priso que a encerra, E partindo-se da Terra Pra fundir-se nos Cus.

POESIAS

Iluminavam-lhe as faces Os raios de estranho fogo. Ao v-la compreendi logo Tudo o que se ia passar. Teresa, que tens? Responde. Disse, cingindo-a a meu peito; E ao levant-la do leito Assustou-me aquele olhar. As faces so-lhe de neve Na frialdade e na alvura. O sorrir que a transfigura D-lhe um todo divinal. Por sobre as cndidas roupas Caem-lhe as trancas douradas, E nas plpebras cerradas Se extingue o alento vital. Nos lbios j descorados Que meiga expresso escrita! O seio j no palpita... Lnguida a fronte lhe cai... Uma lgrima saudosa Pelas faces lhe resvala, E a vida inteira se exala Num sumido e extremo ai.

Era uma criana loura Quando a vi na sepultura, Da aucena tinha a alvura, Teve seu curto durar. Daqueles olhos serenos De um certo azul esvado, Ai, fatal era o sentido Que me fazia cismar.

NUM LBUM

Se exigirem perfumes s flores Pra tecerem com elas grinaldas, No procurem do monte nas fraldas A modesta e inodora cecm. Se igualmente desejas, amigo, Para aqui mais que versos, poesia, Antes deixes a folha vazia, Pois meus versos poesia no tm.

SONHO(DE H. HEINE)

Sonhando, chorei. Sonhava Que morta te estava a ver. Acordei: ardentes lgrimas Senti nas faces correr. Sonhando, chorei. Sonhada Que tu me querias deixar. Acordei: amargamente Fiquei depois a chorar. Sonhando, chorei, Sonhava Que esse amor ainda era meu. Acordei: corre o meu pranto Como ainda assim no correu,Abril da 1864.

A

NOVIA

(NO LBUM DA EX.MA SR. D. JLIA ALVES PASSOS)

Oh! vem, querida irm, do santurio do templo, J desce a receber-te o celestial Esposo. Vem ser da nossa f sublime o vivo exemplo; Vem, deixa sem pesar do mundo o falso gozo. Vem; dos crios luz, ao som de alegres hinos, Cinge o hbito escuro, emblema da humildade, E, abrasada no ardor dos teus estos divinos, Despe, ao entrar no claustro, as galas da vaidade, Esposa do Senhor, virgem cndida e pura, Do teu noviciado expiram hoje os dias. No tremas ao fitar as portas da clausura; Tambm na estreita cela h brandas alegrias. Assim das monjas soa o religioso canto: Juntas, em procisso pelas extensas naves, Espalham-se na igreja as vozes do hino santo, Melanclica voz de aprisionadas aves. Cado o longo vu por sobre a fronte airosa Caminha lentamente a plida novia; Nos olhos lhe fulgura uma aura misteriosa, Um como cintilar de lmpada mortia.

POESIAS

Sobre os degraus do altar humilde se ajoelha E ao culto fervorosa as trancas sacrifica. Recolhe-te ao redil, imaculada ovelha, Teus tesouros d'amor nas aras santifica. E o coro ergue outra vez o ritual hosana, Entre nuvens de incenso, voz do rgo sagrado; Responde-lhe o rezar da multido profana, Que transps curiosa o prtico elevado. A cerimnia finda; a monja de joelhos Permanece, inclinada a face sobre a terra; Era no ocaso o Sol; e seus clares vermelhos Vinham tingir o altar, tingindo ao longe a serra. Longo tempo ali esteve, as plpebras descidas. Imvel, silenciosa, em xtase absorta. Ergueram-na afinal as monjas comovidas: Doloroso mistrio... a pobre estava morta!Julho de 1865.

O CASTIGO DE DEUS

Terminara a peleja. Ensangentado Jaz o campo da atroz carnificina: Um sinistro claro avermelhado Do exrcito ao longe a marcha ensina.

O incndio, a ruina e a feroz matana So as relquias da j finda guerra. Ai dos vencidos! Gritos de vingana, Perseguem os fugidos pela serra.

Ai dos vencidos! A furiosa plebe Erra nos campos com medonha grita; No d quartel, piedade no concebe; Um cruento furor a move e agita.

Corre em tropel, corre bria de vitria, Arrastando os cadveres despidos. Maculando os lauris da sua glria Na lama, envolta em sangue dos vencidos.

POESIAS

Num vale retirado, umbroso, oculto, Estorcia-se um velho agonizante. Ouve em delrio, um hrrido tumulto, Qual de demnios infernal descante. Com o rosto alterado, o olhar extinto, Plida a fronte, sem vigor, j fria. Ai, que sede cruel esta que sinto! gua, dai-me gua! diz. Ningum o ouvia. gua, dai-me gua! brada com voz rouca, Que se lhe prende na rida garganta. Ao longe, a turba, numa orgia louca, Hinos blasfemos, implacvel, canta. No delrio violento, que alucina, Julga-se s vezes de um regato borda; Bem-diz, chorando, proteco divina, Mas ai, que cedo deste sonho acorda. Acorda, e v-se beira de um abismo; Queimam-lhe os lbios qual ardente frgua, E a custo, em terrvel paroxismo, Sufocado repete: gua, dai-me gua! Como se Deus escutasse O grito do agonizante, Surge do velho diante Uma anglica viso; Com as lgrimas em fio Pelas faces cor de neve Caminha com passo leve Para o prostrado ancio. Na brandura do semblante, No olhar magoado e aflito L-se um poema inteiro escrito De caridade e de amor. Corre ansiada e pressurosa E toda cheia de graa Em socorro da desgraa Com piedoso fervor.

POESIAS

Junto do velho ajoelhada Ergue-o com meigo desvelo; E as trancas do seu cabelo s cs se vo misturar. Aproxima-lhe dos lbios A gua que ele pedia; E ao v-lo beber sorria... Sorria... mas a chorar. E uma lgrima fervente, Gentil prola preciosa, Caiu na fronte rugosa Do velho, que estremeceu. E s ento, como em sonhos, Foi que o triste moribundo Fitou um olhar profundo Neste enviado do Cu. Ela sorrindo-lhe meiga, Ao v-lo assim admirado Lhe disse: Velho soldado, Bebei, coitado, bebei. H dez anos, nestes stios, Como vs, velho, ferido, O m