Maurício Tragtenberg A INTELIGÊNCIA DO · PDF fileses oeuvres cette pensée...

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    Maurcio Tragtenberg

    Il reste dun homme ce que donnent songer son nom, et les oeuvres qui font

    de ce nom un signe dadmiration, de haineou dindeffrence. Nous pensons quil

    a pens, et nous pouvons retrouver entreses oeuvres cette pense qui lui vient denous: nous pouvons refaire cette pense

    limage de la ntre.(Paul Valry Introduction la mthode de Lonard de Vinci)

    Maurcio Tragtenberg foi meu orientador para disser-tao de mestrado, que, uma vez pronta, se transformou,com adaptaes necessrias, em tese doutoral defendidana Unicamp.

    Maurcio ingressou nessa universidade, como profes-sor convidado, durante o segundo semestre de 1976. An-teriormente, perdera cargos da rede pblica, vtima daredentora, e fora boicotado em vrios concursos daUnesp, mesmo tendo sido aprovado em primeiro lugarem todos eles. Uma vez na Unicamp, ofereceu um cursosob o ttulo aparentemente rotineiro de MetodologiaHistrica. Ensinou a ler Marx, O capital, e Weber, Atica protestante, com rigor e pontualidade, porm sem orano do mtodo estruturalista ainda em moda na acade-mia. O substrato do curso era a juno entre esses auto-res, que j havia estudado em sua obra mais conhecida,Burocracia e ideologia. Contudo, por aquela porta deentrada para o mundo da Filosofia Poltica e da Histria,forneceu munio terica para muito mais do que o cursoexigia. Sugeriu Paul Mattick, Karl Korsch, AlexandraKollonta, Lucien Sebag, Anton Pannekek, Marcuse,Linhart, Guy Debord, Tocqueville e at mesmo IbnKhldun, o Maquiavel rabe. Para o meu caso, egresso daFilosofia, intoxicado por Fenomenologia, indicou-me doisantdotos homeopticos: Fenomenologia y materialismodialctico, do vietnamita Tran-Duc-Thao, e Introduction

    A INTELIGNCIADO ORIENTADOR

    Antonio Jos Romera ValverdeProfessor do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurdicos da Administrao

    da FGV-EAESP e do Departamento de Filosofia da PUC-SP.E-mail: [email protected]

    la phnomnologie, de J. T. Desanti. Funcionaram comotbua de salvao.

    A marca essencial de Maurcio Tragtenberg que medeixou siderado era sua inteligncia, tudo mais aciden-tes e derivaes. Inteligncia como Otto Maria Carpeauxreconheceu em Maquiavel ao afirmar: A inteligncia coisa mais rara do que se pensa. E Maquiavel foi um doshomens mais inteligentes de todos os tempos (Carpeaux,1999, p. 778). A de Maurcio sempre evoca algumas pas-sagens tpicas da Filosofia que se encontram, de certaforma, na contramo do prprio desenvolvimento da His-tria da Filosofia.

    Matizo, inicialmente, com uma passagem de A Gaiacincia. Nietzsche (1978, p. 200) escreveu: O intelecto,atravs de descomunais lances de tempo, no engendrounada alm de erros; alguns deles resultaram teis e conser-vadores da espcie: quem topou com ele ou os recebeucomo legado combatia seu combate por si mesmo e porsua prole com maior felicidade. Tais errneos artigos decrena, que eram sempre legados mais adiante e afinal setornaram quase o esplio e o fundo comum da humanida-de, so, por exemplo, estes: que h coisas que duram, queh coisas iguais, que h coisas, matria, corpos, que umacoisa como sempre aparece, que nosso querer livre, queo que bom para mim tambm bom em e para si. Smuito tarde vieram os que negavam e punham em dvidatais proposies s muito tarde veio a verdade, como aforma menos forte do conhecimento. Parecia que com elano se conseguia viver, nosso organismo era feito para ocontrrio dela; todas as funes superiores, as percepesdos sentidos e toda espcie de sensao em geral coopera-vam com aqueles antiqssimos erros fundamentais incor-porados. Mais ainda: aquelas proposies se tornavam,mesmo no interior do conhecimento, as normas segundoas quais se mediam verdade e inverdade...

    Outra recorrncia ainda na contramo a oitavatese de Ad Feuerbach, em que se l: Toda vida social

    RAE - Revista de Administrao de Empresas Jul./Set. 2001 So Paulo, v. 41 n. 3 p. 60-63

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    essencialmente prtica. Todos os mistrios, que induzems doutrinas do misticismo, encontram sua soluo racio-nal na praxis humana e no compreender dessa praxis(Marx, 1978, p. 52).

    Essas passagens ilustram meu preito de gratido aMaurcio, pois, como orientador, me fez cair na real.Puxava-me para a terra, como a dizer que quanto maisprximo dela, da realidade, tanto mais humano, verda-deiro, cientfico. Ficam de fora os falsos brilhos da lin-guagem empoada dos filsofos da moda. Isso no querdizer que fosse empirista nem ctico. Foi um pensadorinserido na melhor tradio do pensamento negativo, dematriz hegeliana. O pensar, a abstrao, a elevaoconceitual, tinham um nexo dialtico com a histria pre-sente e seus horizontes de negao. No s alturasmetafsicas s altitudes escorregadias do Ser , mas,contraditoriamente, ao grande mundo, ao universalsoerguido das profundezas efmeras do cotidiano, da tra-gdia humana diria. Entre o ontolgico e o ntico, reco-nhecia o valor do primeiro, mas privilegiava o segundo a participao do homem na Histria. Esse aprendizadodevo a ele.

    Devo a ele tambm o fato de redigir notas de rodapweberianas, que no somente fundamentassem o textoescrito, mas que lhe dessem porosidade. H uma anedotacorrente no meio acadmico de que um orientando apre-sentou uma tese com notas de rodap to expressivas, queoutros ps-graduandos puderam utiliz-las como fonte detemas e problemas para outros tantos trabalhos. Psicolo-gia do rumor parte, a preciso da pesquisa e sua indica-o foram uma constante no trabalho sob orientao deTragtenberg.

    Pela Literatura, Maurcio iniciara o conhecimentodo grande mundo. Lera bastante Dostoivski desde aadolescncia. Empapou-se de literatura russa, mas nos de Dostoivski e Gorki nem s de literatura russa.O dilema da liberdade absoluta da personagemRaskolnikov, a volpia do ato impulsivo de delegar aliberdade como suposta necessidade humana na pala-vra do nonagenrio cardeal inquisidor dos IrmosKaramazov e os heris absurdos como Kirilov, de Os pos-sessos, eram recorrncias constantes em suas prelees.

    Por ser autodidata, os aspectos libertrios de suavida e obra so plenos de caractersticas bastante par-ticulares, tanto do ponto de vista terico quanto hist-rico. Tragtenberg descende de imigrantes judeus ucra-nianos, que chegaram ao Brasil fugidos das persegui-es da Rssia czarista e dos progoms da dcada de 10(Tragtenberg, 1999, p. 11). Sua famlia residiu, de in-cio, no Rio Grande do Sul, mais precisamente na zonada colonizao de camponeses de origem judaica

    (Tragtenberg, 1999, p. 11) em Erebango, depois chamadade Erexim, atualmente Getulio Vargas. Em seguida, mu-dou-se para Porto Alegre e mais tarde para a cidade deSo Paulo.

    rfo de pai, desde a primeira infncia, como tantosoutros pensadores Rousseau, Sartre, Darcy Ribeiro... livre das injunes paternas, diluiu outra parte do superegoaos 15 anos quando, diante do dilema judeu ou cristo,se tomou por ateu. Por seu ser ateu... (Tragtenberg, 1991,p. 85). Dizia de si mesmo: Ateu, graas a Deus! Mas

    nunca deixou de ser judeu, assim como Einstein: A na-tureza da concepo judaica da vida se traduz assim: di-reito vida para todas as criaturas. A significao da vidado indivduo consiste em tornar a existncia de todos maisbela e mais digna. A vida sagrada, representa o supre-mo valor a que se ligam todos os outros valores. Asacralizao da vida supra-individual incita a respeitartudo quanto espiritual aspecto particularmente signi-ficativo da tradio judaica.

    O judasmo no uma f. O Deus judeu significa arecusa da superstio e a substituio imaginria para estedesaparecimento... Compreende-se claramente que ser-vir a Deus equivale a servir vida. Com esta finalida-de, as melhores testemunhas do povo judeu, em particu-lar os profetas e Jesus, se bateram incansavelmente... Ojudasmo no uma religio transcendente. Ocupa-seunicamente da vida que se leva, carnal por assim dizer, ede nada mais. Julgo problemtico que possa ser conside-rado como religio no sentido habitual do termo, tantomais que no se exige do judeu nenhuma crena, masantes o respeito pela vida no sentido suprapessoal... Comefeito, Deus no existe para o judasmo, onde o respeitoexcessivo pela letra esconde a doutrina pura. Contudoconsidero o judasmo como um dos simbolismos maispuros e mais vivos da idia de Deus, sobretudo porque

    PELA LITERATURA, MAURCIOINICIARA O CONHECIMENTO DOGRANDE MUNDO. LERA BASTANTEDOSTOIVSKI DESDE AADOLESCNCIA. EMPAPOU-SEDE LITERATURA RUSSA, MASNO S DE LITERATURA RUSSA.

    A inteligncia do orientador

    2001, RAE - Revista de Administrao de Empresas/FGV/EAESP, So Paulo, Brasil.

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    Maurcio Tragtenberg

    recomenda o princpio do respeito vida (Einstein, 1981,p. 114-115).

    Nunca abandonou o vis sapiencial do judasmo,mesmo sem a prtica, sem a exterioridade da religio.Reconheceria, como o pai da teoria da relatividade, quea paixo pelo conhecimento em si mesmo, a paixo dajustia at o fanatismo e a paixo da independncia pes-soal exprimem as tradies do povo judeu e considerominha pertena a esta comunidade como um dom do des-tino (Einstein, 1981, p. 113).

    Morador do bairro paulistano do Bom Retiro, tra-dicional ex-reduto judaico, aliviara ainda outra parte dosuperego: a tendncia familiar, digamos, mais mercantil,pelas leituras de romances de cunho social, jornais oper-rios e revistas de divulgao cientfica. Com um pequenodetalhe: em idiche o jargo do alemo medieval, queo judeu da Alemanha desenvolveu em funo da integra-o na sociedade alem (Tragtenberg, 1999, p. 16).

    Aprendeu sozinho francs, ingls, alemo. Para aaprendizagem do italiano, os Abramo colaboraram. Ocatalo veio da freqentao do Centro de Cultura Soci-al, no bairro do Brs, onde refugiados da Guerra CivilEspanhola compareciam, local tambm de ensino mtuo prtica comum nos meios anarquistas. Desenvolveu ummtodo prpr