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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito LIMITES JURÍDICOS DA TERAPIA GÊNICA EMBRIONÁRIA: por uma reconstrução crítico-discursiva dos direitos da personalidade Danúbia Ferreira Coelho de Rezende Belo Horizonte 2009 PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

LIMITES JURÍDICOS DA TERAPIA GÊNICA EMBRIONÁRIA:

por uma reconstrução crítico-discursiva dos direitos da personalidade

Danúbia Ferreira Coelho de Rezende

Belo Horizonte

2009

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Danúbia Ferreira Coelho de Rezende

LIMITES JURÍDICOS DA TERAPIA GÊNICA EMBRIONÁRIA:

Por uma reconstrução crítico-discursiva dos direitos da personalidade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Adriano Stanley Rocha Souza

Belo Horizonte

2009

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Rezende, Danúbia Ferreira Coelho de

R4671 Limites jurídicos da terapia gênica embrionária: por uma reconstrução crítico-

discursiva dos direitos da personalidade / Danúbia Ferreira Coelho de Rezende.

Belo Horizonte, 2009.

155f.

Orientador: Adriano Stanley Rocha Souza

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito.

1. Direito de família. 2. Fertilização humana in vitro. 3. Terapia gênica. 4.

Embrião. 5. Tutela. 6. Direitos de personalidade. 7. Direito Natural. 8.

Autonomia. 9. Princípio da dignidade da pessoa humana I. Souza, Adriano

Stanley Rocha. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de

Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 347.64

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Danúbia Ferreira Coelho de Rezende

Limites jurídicos da terapia gênica embrionária: por uma reconstrução crítico-discursiva dos

direitos da personalidade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Belo Horizonte, 06 de fevereiro de 2009.

____________________________________________________

Adriano Stanley Rocha Souza (orientador)

____________________________________________________

Taisa Maria Macena de Lima

___________________________________________________

Luiz Edson Fachin

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AGRADECIMENTOS

À minha família, pai, mãe e irmã, que, para garantir-me a tranqüilidade necessária à

consecução deste objetivo, não pouparam esforços. A vocês pertencem meus melhores

sentimentos.

Ao Felipe, pelo apoio, incentivo, ensinamentos e compreensão. Em verdade, pelos incontáveis

momentos de felicidade que tornaram esta jornada infinitamente mais agradável.

Ao Adriano Stanley, em quem encontrei mais que um orientador – um amigo, por permitir a

condução deste trabalho com total liberdade de expressão.

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“Quando alguém decide alguma coisa a respeito de

outrem, é sempre possível que lhe faça alguma injustiça,

mas toda a injustiça é impossível quando ele decide para

si mesmo.”

Kant

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RESUMO

O trabalho se volve à premente necessidade da imposição de limites jurídicos aplicáveis à

terapia gênica embrionária. O eixo personalista que percorre o ordenamento jurídico brasileiro

reverbera no Direito Civil – e diferente não deveria ser – impondo a releitura dos institutos

privados à luz da sua constitucionalização. Em decorrência, não há como subsistir qualquer

proposta científica que importe na instrumentalização do ser humano. Destaca-se a subdivisão da

terapia gênica em dois tipos, somática e germinativa, buscando-se analisar a compatibilidade de

cada uma ao sistema jurídico. Conclui pela autorização da terapia gênica que apresente caráter

terapêutico criticando-se, contudo, a definição adotada de defeitos genéticos, em virtude da

imprecisão e subjetividade que carrega. Busca apresentar uma nova limitação à intervenção

terapêutica pautada em critérios jurídicos. Com este intuito, a abordagem do tema passa pela

análise da reestruturação familiar ao longo dos séculos, destacando quais são os seus princípios

informadores atuais, questiona a utilização das tecnologias de assistência à reprodução, e busca

conferir um conteúdo concreto ao princípio da dignidade humana com o escopo de se proteger o

embrião. Há, ainda, a discussão a respeito dos limites presentes nos direitos reprodutivos, que se

afiguram fundamentais, mas não se revestem de caráter absoluto. Trazem-se à baila os princípios

do melhor interesse da criança, da paternidade responsável, da liberdade, da autonomia e da

igualdade, além de princípios bioéticos e documentos internacionais, entrelaçando-os aos

avanços genéticos. Demonstra-se, entretanto, a insuficiência dos mecanismos atuais na proteção

da vida embrionária, o que impõe a perquirição de uma nova modalidade hermenêutica. Para

tanto, recorrem-se às teorias dos direitos da personalidade, criticando o seu viés jusnaturalista e

propõe-se a redefinição de seus fundamentos por meio da proposta discursiva de participação

individual na construção da norma. Segundo a mesma, a capacidade comunicativa humana deve

direcionar-se à obtenção da legitimação das normas jurídicas, que somente serão reputadas

legítimas após passarem pelo crivo do discurso. Aduz-se que todo Estado Democrático deve

garantir a participação popular no debate produtor e legitimador das normas jurídicas,

trabalhando as noções de autonomia pública e privada como co-originárias e destacando a

relação entre os conceitos de dignidade, autonomia e liberdade. À guisa de conclusão, entende

pela autorização da intervenção do embrião humano que garanta a participação futura do

indivíduo no discurso.

Palavras-chave: Evolução do Direito de Família – direitos reprodutivos – técnicas de reprodução

assistida – terapia gênica – tutela da vida embrionária - direitos da personalidade- jusnaturalismo

– teoria discursiva- autonomia privada – princípio da dignidade da pessoa humana.

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ABSTRACT

This work addresses the urgent need to impose legal boundaries to the embrionary

genetic therapy. The personalistic chain that runs through the Brazilian law system reaches the

Civil Law – as expected – which requires the reinterpretation of the private institutes aiming its

constitucionalization. According to it, every scientific purpose must avoid any damages to the

human condition. There are two kinds of genetic therapy, in the somatic cells or in the stem cells,

and this work tries to analyze its compatibility to the law system. The conclusion is addressed to

authorize every procedure with therapeutic reasons; however, it criticizes the present definition

based on genetic problems, due to its subjectivity and inaccuracy. It tries to propose a new kind

of limit to the therapeutic intervention based on legal points. The adopted approach starts on the

analysis of the family rebuilding itself throughout the centuries, highlights its current principles,

calls a question on the use of the artificial conception technologies and tries to point out a solid

content on the human dignity principle in a way to protect the embryo. It brings out the

principles of the best interest of the child, parental responsibility, freedom, autonomy, and

equality, besides bioethical principles and international documents, pointing its correlation to the

genetic advances. However, these principles and documents are not enough to protect embryo

life nowadays, which imposes the persecution of a new kind of hermeneutic. In doing so, the

work resorts to the personality rights theories, criticizing its jusnaturalistic approach and

proposes the redefinition of its fundament based on the discursive purpose of the individual

participation on the building of the legal rules. According to it, the human communicative ability

should addresses itself to obtain the legitimacy on the legal rules, what is only possible after the

citizens’ approval. Every Democratic State should guarantee personal participation on the debate

that produces and legitimates legal rules, using the related concepts of public and private

autonomies and highlighting the relation developed between the concepts of dignity, autonomy

and freedom. To conclude, it is understood to consent on human embryo interventions to

guarantee the access of the future citizen to the discurse.

Key words: Evolution of the Family Law – reproductive rights– assisted reproduction

technologies – genetic therapy – embryo life protection – personality rights – jusnaturalism –

discursive theory – private autonomy – human dignity principle.

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SUMÁRIO

01 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................11

02 REFLEXOS DA EVOLUÇÃO BIOTECNOLÓGICA NA ESTRUTURA FAMILIAR

........................................................................................................................................................15

2.1-Evolução da família como instituto ao longo da história...................................................17

2.1.1 – A família no Direito Romano...........................................................................................17

2.1.2 – A estrutura familiar grega ...............................................................................................19

2.1.3 – A família para o Direito Canônico ..................................................................................20

2.1.4 – O liberalismo e o Código Civil de 1916............................................................................20

2.1.5 – A visão atual da família ...................................................................................................23

2.2 – Impacto das inovações genéticas sobre as relações paterno-materno-filiais ................26

03 GENÉTICA E PLANEJAMENTO FAMILIAR ................................................................37

3.1 – Abordagem jurídica ...........................................................................................................37

3.2 – Entrelaçamentos entre biologia e direito .........................................................................41

3.2.1 – Conceituação terminológica.............................................................................................44

3.2.1.1 – Manipulação, intervenção e engenharia genéticas ....................................................44

3.2.1.2 – Técnicas de reprodução assistida ...............................................................................47

3.2.1.3 – Testes genéticos, diagnóstico pré-implantatório, seleção embrionária, doenças

genéticas e hereditárias, aconselhamento genético ..................................................................49

3.2.1.4 – Terapia gênica ............................................................................................................ 53

3.3.3 – Direitos reprodutivos na era genômica............................................................................54

3.3.3.1- Limites ao direito reprodutivo ......................................................................................60

3.3.3.1.1 - O princípio do melhor interesse da criança..................................................................60

3.3.3.1.2 – Paternidade responsável...............................................................................................65

3.3.3.1.3 – Dignidade da pessoa humana.......................................................................................66

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04 – TUTELA DA PESSOA HUMANA EM FACE DAS INTERVENÇÕES GENÉTICAS

........................................................................................................................................................84

4.1 – Limites à liberdade de pesquisa ........................................................................................86

4.1.1 – Documentos Internacionais..............................................................................................88

4.1.1.1 – Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina (Oviedo, Espanha, 1997)

........................................................................................................................................................89

4.1.1.2 – Declaração de Helsinque (2000) ..................................................................................89

4.1.1.3 – Relatório Belmont (1979) ............................................................................................89

4.1.1.4 – Declaração Ibero-Latino-Americana sobre ética e genética – Declaração de

Manzanillo (1996 e 1998) ............................................................................................................90

4.1.1.5 – Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997)..........90

4.1.2 - Normas éticas nacionais....................................................................................................90

4.1.2.1 – Código de ética médica (Resolução n. 124688 do Conselho Federal de Medicina)

........................................................................................................................................................91

4.1.2.2 – Resolução 196/96 – Conselho Nacional de Saúde.......................................................91

4.1.2.3 – Resolução n. 1358/92 – Conselho Federal de Medicina ............................................92

4.1.3 – Princípios bioéticos...........................................................................................................92

4.1.3.1 – Princípio da beneficência ............................................................................................93

4.1.3.2 – Princípio da não-maleficência......................................................................................94

4.1.3.3 – Princípio da justiça ......................................................................................................95

4.1.3.4 – Princípio da autonomia................................................................................................96

4.1.4 – Princípios constitucionais................................................................................................97

4.2 – A ciência a serviço do homem............................................................................................99

4.2.1 – Terapia gênica ................................................................................................................104

4.2.1.1 – Terapia gênica somática.............................................................................................104

4.2.1.2 – Terapia gênica germinativa......................................................................................106

4.3 - Limites à intervenção efetuada sobre o embrião ...........................................................108

4.3.1 – Situação jurídica do embrião .........................................................................................111

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4.3.1.1 – O início da vida...........................................................................................................111

4.3.2 – Personalidade jurídica....................................................................................................116

4.3.3 – Direitos da personalidade ..............................................................................................123

4.3.3.1 – Construção jurídica ...................................................................................................123

4.3.3.2 – Conceito e sistematização jurídica brasileira...........................................................124

4.3.3.3 – A visão jusnaturalizante dos direitos da personalidade..........................................128

4.3.4 – Por uma reconstrução discursiva dos direitos de personalidade..................................132

O5 – LIMITES JURÍDICOS DAS INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS..........................137

06 – CONCLUSÃO ...................................................................................................................141

07 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................143

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01 INTRODUÇÃO

O trabalho se volve ao imprescindível debate sobre os impactos provocados pelas

inovações genéticas no ordenamento jurídico – em especial, à análise da tutela oferecida à vida

embrionária em face das possibilidades de manipulação genética. A despeito da controvérsia

subjacente ao tema, tem-se alcançado alguns pontos consensuais no que toca à utilização da

terapia gênica, assumindo-se legítimas as técnicas que visam tratar de anomalias genéticas e

repelindo-se aquelas cujos objetivos orientam-se ao aprimoramento das características

embrionárias.

Com o fito de se aferir a adequabilidade da terapia gênica no ordenamento jurídico adota-

se como ponto de partida a análise dos contornos definidores do Direito de Família hodierno,

passando por sua evolução histórica até chegar à sua configuração contemporânea. As relações

familiares pautam-se pela promoção da personalidade de seus membros, o que embasa a

constituição e a formação da família - esta não se justifica por si só. O objetivo de se promover o

respeito ao ser humano é resultado direto do movimento personalista trazido pela Constituição da

República de 1988 que, ao alçar o princípio da dignidade à condição de fundamento do sistema

jurídico, lançou as bases para a revolução nas relações públicas e privadas, conferindo primazia à

pessoa em detrimento do patrimônio.

Pode-se afirmar que a reprodução é parte integrante da personalidade humana. Em assim

sendo, as técnicas de reprodução assistida ocupam uma posição de destaque nas discussões

familiares, na medida em que possibilitam a concretização do projeto parental aos casais que

apresentam problemas de fertilidade. Há discussão sobre a possibilidade se ampliar o acesso às

pessoas solteiras e às pessoas que, mesmo dispondo da capacidade reprodutiva orgânica, optam

por recorrer `a procriação artificial. Tal motivação é ocasionada por vários fatores, dentre os

quais, o de evitar a transmissão de doenças hereditárias à prole. A genética, por meio do

diagnóstico do perfil do embrião, oferece a informação necessária para os casais decidirem, de

modo livre e informado, sobre a melhor forma de concretização do projeto parental. Caso ocorra

a detecção de alguma anomalia genética, há a opção de se socorrer à terapia gênica.

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A utilização destas técnicas de reprodução assistida - e da genética - não segue um

parâmetro bem delineado, em virtude da ausência normativa que impera nesta área. Faz-se

necessário o estabelecimento do debate jurídico com o fito de se alcançar um ponto de equilíbrio

que permita a fruição de todas as benesses científicas e, no mesmo passo, impeça a utilização

desenfreada e voluntarista de todas as possibilidades aventadas por este campo do conhecimento.

Apesar do temor que hoje impera não ser de todo infundado – na medida em que o mau uso da

técnica pode proporcionar uma nova forma de eugenia – ele não há de ser paralisante: o debate

jurídico impõe-se.

Na busca do aludido equilíbrio pretende-se analisar os princípios do melhor interesse da

criança, da paternidade responsável e da dignidade humana condicionados à função de limitar o

planejamento familiar, que, apesar de ser de livre decisão do casal, não se reveste de ares

absolutistas. A intervenção estatal justifica-se na medida em que as decisões tomadas pelos

particulares repercutirão não somente sobre eles, mas principalmente sobre o futuro filho. Nesta

toada, há que respeitá-lo, buscando sempre a efetivação do princípio do melhor interesse da

criança.

Não se deve olvidar dos direitos da personalidade que, com o escopo de protegerem os

direitos à vida e à integridade psicofísica, exercem papel preponderante neste debate. A questão,

entretanto, passa pela definição do início da vida, necessária à fixação de limites que demarcam

o início da proteção jurídica sobre o ser humano. Com este escopo, apresentam-se as diversas

teorias que versam sobre a questão e pretende-se analisar se há coerência entre estas e o

personalismo que orienta o sistema jurídico.

Com arrimo na delimitação da tutela embrionária, impõe-se aferir se a terapia gênica

legitima-se e, em caso afirmativo, em quais hipóteses. De antemão, aduz-se a orientação pacífica

de se autorizarem as intervenções embrionárias que visem o aspecto terapêutico. Para tanto,

surgem como diretrizes conceitos como anomalia genética e doença grave, a se falar sobre

quando seria possível buscar a terapia gênica. No entanto, tais definições não são precisas. A

concepção de doença grave é muito subjetiva, e não pode subsistir como critério de

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aplicabilidade da técnica. O trabalho busca, portanto, estipular um limite jurídico, e não ético ou

moral.

Cabe ressaltar que o trabalho pretende abordar a terapia gênica embrionária, entendendo-

se por tal a intervenção terapêutica intentada no embrião humano após a fase da diferenciação

celular, quando não há transmissão das características alteradas ao genoma da descendência. É

possível realizar-se a terapia no embrião in vitro, antes de ser transferido ao útero materno, ou

após a sua implantação. Portanto, os conceitos de embrião e nascituro serão usados como

sinônimos, a despeito do entendimento massivo de que nascituro é aquele que se encontra

alojado no útero. Amplia-se tal conceito, assumindo-se o nascituro como aquele que vai nascer, o

que justifica a extensão da denominação de nascituro aos embriões in vitro que são submetidos à

terapia justamente em razão da intenção de implantação. Estes ocupam posição diferente

daqueles que são mantidos crioconservados que, por não possuírem a expectativa de serem

transferidos – podendo permanecer no laboratório ad eternum, não recebem a tutela jurídica.

À guisa de conclusão explica-se que a perquirição dos limites da intervenção terapêutica

embrionária – usado neste trabalho como sinônimo de terapia gênica embrionária - passa pela

análise das fontes dos direitos da personalidade. Aponta-se a teoria adotada de forma majoritária

no ordenamento privado, sem, no entanto, se furtar a criticá-la, por entendê-la dissociada dos

contextos histórico, político, econômico e social contemporâneos. A diversidade e a pluralidade

são conceitos inerentes à sociedade atual, e quaisquer teorias jurídicas que se pretendam válidas

têm a função de, mais do que respeitá-las, promovê-las. Preconiza-se, ainda, a relevância dos

conceitos de autonomia, dignidade e liberdade que, ao se interrelacionarem, promovem a

edificação do ser humano.

Os limites jurídicos propostos à terapia gênica embrionária inspiram-se na teoria

discursiva habermasiana, segundo a qual as normas jurídicas dependem do crivo popular para se

reputarem legítimas. A capacidade comunicativa humana é erigida à função de instrumento

legitimador do ordenamento. Nessa medida, autonomia pública e privada são interdependentes e

co-originárias. A partir do raciocínio de que o indivíduo possui a capacidade de construção

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argumentativa das normas às quais se reputará, surge o limite de aplicação - e o fundamento - da

terapia gênica embrionária, conforme se passará a demonstrar.

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02 – REFLEXOS DA EVOLUÇÃO BIOTECNOLÓGICA NA ESTRUTURA FAMILIAR

O Direito, como produto do meio que o cerca, não está imune às alterações

experimentadas pela sociedade, seja no âmbito cultural, científico, político ou econômico. As

mudanças vivenciadas pelos indivíduos são absorvidas pelo ordenamento jurídico, que se

encontra em constante evolução. No momento atual, observa-se a redefinição de diversos

conceitos jurídicos, em especial aqueles relacionados ao Direito de Família, área que vem sendo

inundada pelas transformações causadas pela evolução da biotecnologia. O advento das novas

técnicas de reprodução assistida vem redefinindo conceitos basilares tais como filiação,

paternidade, maternidade e personalidade. E novas tecnologias continuam a surgir, mostrando

que muitas transformações ainda estão por vir.

O grande progresso alcançado em áreas delicadas como aquelas relacionadas à

engenharia genética, a criopreservação de embriões humanos, os transplantes de órgãos e tecidos

e a procriação medicamente assistida provocou a rápida desatualização e a insuficiência dos

institutos jurídicos tradicionais, demandando profundas reflexões a fim de se encontrarem

soluções adequadas para as emergentes exigências sociais. Assim nos ensina Paulo Otero:

Numa época em que a ciência evoluiu mais durante os últimos cinqüenta anos do que

durante os cinqüenta séculos precedentes, a revolução biológica ocorrida no domínio

da genética durante as últimas décadas, permitindo que de ―um saber acerca da vida‖ se

tenha passado a ―um poder sobre a vida‖, fez com que o estudo do Direito da Vida seja

no presente um imperativo científico e um verdadeiro dever de coerência axiológica de

uma ordem jurídica fundada no postulado da dignidade da pessoa humana. (OTERO,

2004, p. 16).

E ainda:

Muito do património jurídico herdado do Direito Romano e pacificamente integrado no

domínio do Direito Civil durante mais de dois mil anos ficou desesperadamente

desactualizado e sem resposta para algumas das novas interrogações colocadas. A título

meramente ilustrativo, a determinação da filiação nos processos de procriação assistida

heteróloga, os efeitos sucessórios perante aquele que nasce na seqüência de um

processo de inseminação artificial post mortem, a natureza gratuita ou onerosa do

transplante de órgãos ou tecidos humanos, a validade (ou a invalidade) dos testamentos

biológicos ou vitais, a admissibilidade (ou não) de mudança de nome próprio dos

transexuais, são exemplos de questões que traduzem novas situações totalmente

inimagináveis à luz do ordenamento jurídico assente na matriz proveniente do Direito

Romano. (OTERO, 2004, p.17-18).

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Fato é que não se permite ao Estado adotar uma postura de indiferença diante das

transformações provocadas pela ciência, posto estarem envolvidas relevantes questões que

podem repercutir nos princípios do direito à saúde, da igualdade, da liberdade, da integridade

psicofísica e da autonomia, tão caros a um Estado que se pretende Democrático de Direito. Tal

repercussão se dará, por excelência, no ambiente familiar, o que requer a reflexão direta dos

possíveis envolvidos, quais sejam, todos os cidadãos.

A Carta Constitucional de 1988 elevou o princípio da dignidade humana à condição de

eixo orientador de todo ordenamento jurídico, consagrando o personalismo como paradigma. A

conseqüência direta no âmbito privado foi a constitucionalização do direito civil, depreendendo-

se daí a importância conferida à pessoa, que deve ser vista como um fim em si mesma, e nunca

como meio para se alcançar um objetivo. Tal assertiva faz-se crucial em um momento em que se

apresentam possibilidades de manipulação do genoma humano – seja em células somáticas ou

em células germinativas. A dignidade da pessoa humana, portanto, emerge como limite de

atuação das inovações científicas.

No entanto, em diversas circunstâncias, será necessário conferir a esse princípio um

conteúdo claro, definido e concreto. Sua amplitude traz vários benefícios, entre eles a

elasticidade que permite sua constante renovação e atualização, mas em alguns momentos, não é

suficiente para dirimir conflitos entre interesses igualmente tutelados. Cite-se como ilustração o

direito de reprodução, tido como direito fundamental e decorrente dos princípios do livre

planejamento familiar e da liberdade. Poder-se-ia invocá-lo para se legitimar o uso das técnicas

de reprodução assistida com o objetivo de selecionar características do embrião. Este, por outro

lado, poderia ser socorrido fundamentando-se no direito a um patrimônio genético não

manipulado, à diversidade e à autonomia. A dignidade humana, no entanto, poderia ser alegada

em ambos os casos, porque aplicável, sem, contudo, solucionar a questão.

A fim de se proceder à análise dos impactos trazidos pelas novas biotecnologias – tais

como reprodução assistida, terapia gênica, diagnóstico genético e manipulação embrionária -

deve-se passar pelo estudo da evolução da família, pois, se hoje tais técnicas fazem parte da

realidade, não foi sem que um longo caminho fosse percorrido. Por certo, a inalterabilidade dos

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contornos da família ao longo dos séculos impossibilitaria a discussão - e certamente a aplicação

- das inovações ora em comento.

2.1 – Evolução da família como instituto ao longo da história

O contexto histórico encontra-se profundamente vinculado às alterações visualizadas na

família no decorrer do tempo. Certamente, a sociedade romana possuía características públicas

distintas da atual, o que refletia no ambiente privado. Corroboram este entendimento as palavras

de Luiz Edson Fachin:

Parece inegável que a família, como realidade sociológica, apresenta, na sua evolução

histórica, desde a família patriarcal romana até a família nuclear da sociedade industrial

contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais.

(FACHIN, 1999, p.11).

Em virtude dessa correlação, passar-se-á, em linhas gerais, ao estudo de alguns

momentos históricos da humanidade com o fito de apresentar os valores sócio-econômico-

culturais envolvidos em cada época, e demonstrar como eles se agregavam ao ambiente

doméstico.

2.1.1 – A família no Direito Romano

A sociedade romana ostentava como modelo familiar o patriarcalismo, estando

concentradas na figura do pater familias todas as decisões relativas a quaisquer dos membros

integrantes da família. A relação vigente era de dominação do homem sobre os filhos e as

mulheres, podendo-se estabelecer um paralelo com a relação existente entre o proprietário e a

coisa possuída. Filhos e mulheres não possuíam direito à manifestação de suas vontades. A

estrutura familiar reproduzia a estrutura do Estado Romano com seus súditos: um poder central

incontestável, ao qual todos deviam respeito e obediência. O pater familias era senhor absoluto

da casa, conjugando as funções econômica, jurídica, política e religiosa. São preciosas as lições

de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

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No período clássico de Roma antiga, a família romana se baseava no modelo

tipicamente patriarcal – após, portanto, o homem ter passado a dominar a ordem

jurídica e a propriedade privada-, tendo como figura proeminente o pater familias, ou

seja, o ascendente mais velho do sexo masculino, ainda vivo, que congregava os

descendentes sob sua autoridade, constituindo e mantendo a família. (...) Registros

históricos apontam para a incontestabilidade da autoridade do pater familias, com o

exercício do poder (potestas) sobre os escravos (dominica potestas), os filhos (patria

potestas) e as mulheres (manus). (GAMA, 2003, p. 355-356).

Da acentuada autoridade do patriarca decorria a situação de dependência dos demais

componentes da família para com ele. Em conseqüência, a fidelidade da mulher era necessária,

mas sua justificativa estava na proteção do patrimônio, e não na relação amorosa. A sociedade

romana era extremamente patrimonialista. Em uma escala de valores, os bens figuravam em

primeiro lugar, em detrimento das pessoas. A monogamia feminina, portanto, visava assegurar a

paternidade dos filhos, e, por conseguinte, a manutenção dos bens dentro da seara familiar- ou

em última análise, a proteção da herança.

Para além da questão patrimonial, outro fator de peso nas relações familiares era a

legitimação da filiação, que dependia do casamento. Os filhos havidos fora do casamento eram

reputados ilegítimos e, como punição, não possuíam direitos sucessórios. Os legítimos, por outro

lado, eram propriedade do pai, cujo julgamento determinava o futuro do filho. Ele poderia ser

emancipado, abandonado, reivindicado de quem ilegalmente o detivesse, vendido, e até mesmo

eliminado. Ana Carolina Brochado Teixeira esclarece a situação do filho na sociedade romana:

A potestade paterna era perpétua, assim, durava enquanto vivesse seu titular. As poucas

exceções a essa regra eram os casos de emancipação, elevação do filho a certas

dignidades, seu abandono pelo pai e a perda da libertas ou da civitas pelo pai. (...)

O pater familias tinha vários poderes sobre os filhos. Entre eles, está o ius vitae et

necis, que era o direito de eliminar o filho, porém não podia ser utilizado de forma

arbitrária. Antes de condenar o filho à morte, o pai devia ouvir o conselho de parentes –

o juridicium domesticum -, que se reunia para opinar sobre a conveniência da aplicação

da pena. (...) O ius noxae dandi concretizava-se quando o filho cometia um ilícito

contra terceiro e o pater poderia eximir-se da responsabilidade de indenizar a vítima

entregando-lhe o filho culpado, como pessoa in mancipio. O ius vendendi consistia na

faculdade do pater familias de vender o filho. A alienação, contudo, não era definitiva;

valia por cinco anos, após os quais o pai recuperava o poder parental. A venda do filho,

portanto, não representava a perda do referido poder, mas tão-somente a sua suspensão.

(TEIXEIRA, 2004, p. 25-26).

Do exposto depreende-se a relação de absoluto domínio do pater sobre os filhos. A

satisfação dos interesses do chefe da família deveria ser buscada irrestrita e ilimitadamente,

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mesmo que para tal se prejudicasse a vida do filho. Uma faculdade paterna que chama especial

atenção, por sua correlação com o tema do presente trabalho, é a ius exponendi, que

representava, segundo Castelo Branco Rocha, a possibilidade de abandono do filho recém-

nascido pelo pai, no caso da criança apresentar alguma deformação, cuja permissão estaria no

direito paterno de proceder à seleção eugênica, em favor da comunidade doméstica. (ROCHA,

1978, p. 23).

A mesma configuração familiar era observada pelos gregos, conforme demonstrado a

seguir.

2.1.2 – A estrutura familiar grega

Relatos históricos demonstram a similitude entre as organizações familiares romana e

grega. O patriarcalismo, a concentração de poderes em torno da figura autoritária masculina, o

objetivo de manter a unidade familiar – utilizando-se, para tal, quaisquer meios que se fizerem

necessários; todos são elementos que se aplicam à definição tanto de uma quanto de outra

sociedade. Áurea Pimentel Pereira fornece mais ilustrações sobre a época:

A família grega antiga, disciplinada por direito não-escrito, é o grupo social, político-

religioso-econômico, com sede na casa em que reside o ancestral mais velho (...) que

mantém a unidade e dispõe das pessoas e dos bens, e conserva a religião doméstica,

transmitindo-a às novas gerações e às que a ela passam a pertencer, bem como através

do casamento de seus descendentes, com pessoas por ele escolhidas, possibilita, pela

procriação, a perpetuação da mesma. (PEREIRA, 1990, p.25)

Somente com a crescente intervenção da Igreja nos assuntos domésticos irromperam

algumas alterações nas relações familiares. O Catolicismo pretendeu assinalar a superioridade da

força divina em relação à vontade humana e aproximar os homens de Deus por meio da

igualdade, o que refletiu na vida em família, conforme se demonstrará a seguir.

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2.1.3 – A família para o Direito Canônico

Na vigência do Direito Canônico não se pode afirmar que as características supracitadas

tenham sido perpetuadas. O fundamento da reunião das pessoas em família passou a ser

religioso, em contraposição à motivação econômica anteriormente observada. Mas Fiúza alerta

que ―a estrutura familiar continuou sendo extremamente patriarcal. A adoção do catolicismo em

nada mudou essa estrutura. Muito pelo contrário, adicionou a ela toda uma carga de

patriarcalismo puritano, herança direta do judaísmo pauliano.‖ (FIÚZA, 2001, p. 601).

Nesse contexto modificou-se a concepção do casamento, antes tido como uma situação

de fato com conseqüências jurídicas patrimoniais, e que passou a ser considerado um

sacramento. Foi inaugurada nessa época, ainda, a noção de concubinato, pois ‗sendo o

matrimônio um sacramento e sujeito à indissolubilidade, todas as demais uniões entre homem e

mulher fora do casamento eram uniões instáveis e precárias, passíveis de pronta dissolução,

apresentando-se como mero concubinato e, assim, desqualificado‖. (GAMA, 2003, p. 361).

A Igreja Católica almejou, ainda, o estabelecimento da igualdade moral entre os

cônjuges, sem, contudo, preocupar-se com a igualdade material. A figura masculina continuava

tendo preponderância no lar, sendo delegada a ele a função de chefiar a sociedade conjugal. À

esposa, por sua vez, era determinado que procedesse aos cuidados da prole.

A influência da Igreja persistiu por muito tempo, a despeito do movimento de

secularização verificado no Ocidente. O modelo familiar canônico fez-se presente no Brasil, com

o advento do Código Civil de 1916, que se guiava pelos conceitos eclesiásticos de maternidade,

paternidade e filiação. É o que se passará a analisar.

2.1.4 – O liberalismo e o Código Civil de 1916

O Direito de Família brasileiro foi substancialmente influenciado pelas arquiteturas

familiares relatadas previamente, em especial pela dos romanos. Isso porque as primeiras normas

brasileiras buscaram inspiração em Portugal, cuja procedência jurídica foi precipuamente

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romana. Neste período as Ordenações Filipinas atuaram como regramento normativo no tocante

ao Direito Civil, situação que somente se modificou com o advento do Código Civil de 1916.

O diploma privatístico de 1916 surgiu em meio à doutrina liberal, que pugnava pela não

intervenção estatal, liberdade individual e respeito à autonomia da vontade. Não obstante, a

configuração da família era de forte institucionalização, na contramão do ideal do liberalismo. O

Code Civil de 1804, marco da época das grandes codificações – e paradigma do Código Civil em

análise, assim tratava a questão:

A família, tida como unidade política e econômica, comandada por um chefe patriarcal,

era como uma pequena pátria, segundo a imagem e ao serviço da grande pátria.

Marcadamente anti-feminista, o Code via com suspeição o divórcio, a adoção, o filho

natural – considerado o verdadeiro paria – pois significavam ameaças à ordem social

assim estabelecida. (LÔBO, 2004, p.247).

O modelo de família inscrito à época da codificação foi marcadamente patrimonialista,

hierarquizado – com o homem no vértice do sistema01

– e matrimonializado. Ressalte-se, ainda, a

importância conferida à legitimação da paternidade, que somente agraciava os filhos havidos em

decorrência do matrimônio. A explicação, mais uma vez, reside na proteção da paz e do

patrimônio familiares, aos quais os filhos extramatrimoniais representavam grande ameaça. A

mulher ocupava uma posição marginal na estrutura familiar. Ela dependia de autorização do

marido para exercer profissão, seus bens próprios passavam à administração do cônjuge e,

ademais, se tornava relativamente incapaz após as núpcias.

Rodrigo da Cunha Pereira elucida a posição delegada à mulher, observando que o Código

Civil brasileiro ―continuou reproduzindo a ausência da mulher na cena pública e excluída da

cidadania jurídica. Ela nunca aparece sozinha e só existe na cena jurídica em relação ao pai ou

ao marido. É quase um não-sujeito.‖ (PEREIRA, 1997, p. 112).

_____________________________

01- Art. 233, CCB/1916: O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do

casal e dos filhos.

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Guilherme Calmon Nogueira da Gama fornece outras informações:

Como visto, o Code Civil conferiu vários atributos à família codificada, estruturando-a

juridicamente com base na hierarquização, no patriarcalismo, na centralização, no

absolutismo, no individualismo e no patrimonialismo, excluindo de legitimidade

qualquer outra organização que não se encaixasse nos contornos da lei. Toda a

estrutura jurídica dos laços de parentesco (...) na tradição romano-germânica foi

edificada na pessoa do homem consagrando, desse modo, a paternidade vinculada à

legitimidade que é conseqüência do casamento. (GAMA, 2003, p. 366).

A validade da família dependia da sua conformação com a ordem social estipulada.

Qualquer outra configuração alijada daquela, era repudiada como ilegítima. Nas palavras de

Heloisa Helena Barboza, ―o casamento dava origem à família legítima, sendo, portanto, a causa,

o objeto e o destinatário, praticamente exclusivo, do Direito de Família.‖ (BARBOZA,1999, p.

135). O concubinato, ressalte-se, era tratado como sociedade de fato, da qual poderia resultar a

partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum, no caso de dissolução judicial, conforme

anunciava a Súmula 380 do Superior Tribunal Federal.

A relação de filiação era superficial: não havia espaço para o desenvolvimento

emocional, para o diálogo ou para a troca de experiências entre pais e filhos. A autoridade

paterna era incontestável, e da subserviência devida pelos filhos derivava-se uma distância

intransponível. O pátrio poder era visto com um direito subjetivo absoluto, e o filho era reduzido

à condição de objeto de direito. Diante de tal quadro, pode-se afirmar que pais e filhos

relacionavam-se apenas em nível patrimonial. Não havia espaço para a afetividade.

Em virtude do forte caráter patrimonialista do Código Civil de 1916, Gustavo Tepedino

sintetiza, argutamente, que seus principais personagens eram o contratante, o marido, o

proprietário e o testador. (TEPEDINO, 2003, p.116).

Cabe ressaltar, ainda, que aos cônjuges era imposto o dever de procriar, não existindo

grande liberdade quanto ao planejamento familiar. Com o fito de sistematizar os princípios

informadores da família nesse período, lança-se mão dos ensinamentos de Guilherme Calmon:

(...) podem ser destacados os seguintes princípios como prevalecentes durante

praticamente um século no período da República do Brasil (1890 a 1988): a) o da

qualificação de legítima apenas à família fundada no casamento, em conformidade com

o modelo civilista imposto; b) o da discriminação dos filhos, não apenas quanto ao

estabelecimento dos vínculos de paternidade-filiação e maternidade-filiação, mas

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também no que tocava aos efeitos da filiação; c) o da hierarquização e centralização no

governo e administração do patrimônio familiar e da própria família; d) o da

preservação da paz familiar, ainda que em detrimento de vários integrantes da família;

e) o da indissolubilidade do vínculo matrimonial; f) o da imoralidade e da exclusão do

companheirismo e da parentalidade extramatrimoniais. (GAMA, 2003, p. 368-369).

O decorrer do tempo proporcionou o estabelecimento de novas conformações familiares,

que guardam estreita relação com as mudanças culturais, sociais e políticas ocorridas na

sociedade. Houve uma grande subversão da antiga estrutura familiar, tanto na relação

desenvolvida entre pais e filhos, quanto no que tange ao próprio fundamento da constituição – e,

ressalte-se, da manutenção – da família em si. A família não subsiste como um fim em si mesma,

mas antes, na edificação dos indivíduos que a compõem.

2.1.5 – A visão atual da família

É um equívoco se afirmar que o homem detém hoje absoluto direito sobre o filho – ou

sobre sua esposa, em alusão à figura déspota que um dia desfrutou. A família na atualidade

reveste-se do caráter democrático, em que há o respeito pela participação de todos os seus

integrantes nos assuntos a ela inerentes, e que só se justifica se promover o desenvolvimento

físico e psicoemocional sadio de todos esses. Contemporaneamente, a família destaca-se como

um ―grupo de companheirismo e lugar de afetividade‖ (Villela, 1980, p. 11)02

.

__________________________

02 – ―Não se pode teorizar sobre a família na sociedade contemporânea sem ter em conta as profundas transformações por que passou a

instituição, a ponto de só guardar remota identidade com seus antecedentes históricos. A substituição, de um lado, da grande família, que

compreendida a própria linha dos escravos, pela família nuclear, centrada na tríade pai-mãe-filho, operada nos séculos XIX e XX, mas sobretudo

o aprofundamento afetivo no interior do grupo deram-lhe um novo rosto. De unidade proposta a fins econômicos, políticos, culturais e religiosos,

a família passou a grupo de companheirismo e lugar de afetividade‖. (VILLELA, João Baptista. Liberdade e família. Revista da Faculdade de

Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.3, n.2, 1980. p. 11).

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Os valores que inspiram a sociedade contemporânea provocam o rompimento definitivo

com o modelo clássico de família. A moldura familiar descentralizada e desmatrimonializada, o

afeto como mola propulsora e a promoção da dignidade e da personalidade de seus membros são

características marcantes da arquitetura familiar atual.

Exalte-se a valiosa contribuição de João Baptista Villela sobre o estado atual da família:

Tantas são as variáveis culturais, éticas, políticas, econômicas e religiosas que a

pressionam e modelam, mas sobretudo tantas são as imponderáveis aspirações e

inspirações do homem na situação de família que nenhum modelo cerrado atenderia a

uma e outras. Só a família fundada na aptidão para responder ao mistério do amor e

comunicação que habita cada ser humano o pode livrar do vazio e da solidão. O

modelo há de ser, por conseguinte, aberto, vale dizer, inspirado na liberdade. Se não for

resumir demais, a regra de ouro pode se estar em atribuir ao Estado a garantia e ao

homem a construção da família. (VILLELA, 1980, p. 40).

A Constituição da República de 1988 desempenhou papel fundamental na concretização

desse ideal de liberdade adotado pela família contemporânea ao recepcionar os princípios da

igualdade entre cônjuges3 e entre filhos, do livre planejamento familiar

4, do respeito às famílias

monoparentais5, e também ao reconhecer a união estável como entidade familiar

6. Mais

importante – houve o reconhecimento de que a família, por extensão da sociedade – é plural.

Inaugurou-se a era do paradigma personalista, em detrimento do patrimonialista, com a

inclusão, na Carta Constitucional, do princípio da dignidade humana como fundamento da

República Federativa brasileira. A valorização do indivíduo teve início com o advento do Estado

Social, cujo enfoque residia na promoção do bem-estar do cidadão, em contraposição ao Estado

Liberal, caracterizado pela proteção do patrimônio.

__________________

03- Art. 226, §5º, CR/1988: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

04- Art. 226, §7º, CR/1988: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de

livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma

coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 05 – Art. 226, §4º, CR/1988: Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

06 – Art. 226, §3º, CR/1988: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,

devendo a lei facilitar a sua conversão ao casamento.

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O decorrer do século XX assistiu ao deslocamento dos Códigos Civis do centro para a

margem dos ordenamentos jurídicos, em concomitância à crescente ingerência dos textos

constitucionais nos assuntos privados.

Há o rompimento da forte dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, no momento

em que a Constituição é alçada à posição nuclear do sistema jurídico. Surge o fenômeno da

publicização do Direito Civil, em que se faz premente a releitura das suas regras à luz das

normas e princípios da Magna Carta.

Essa constitucionalização das relações privadas encontra nas relações familiares uma

grande área para frutificar, posto ter a Constituição de 1988 incluído em seu texto vários

princípios informadores do Direito de Família, que devem ser observados diuturnamente. E, em

grande parte, foi essa condição de obediência a princípios constitucionais7 - como o da dignidade

- que proporcionou o desenvolvimento da atual configuração familiar, que pugna por liberdade,

igualdade e respeito.

As palavras de Ana Carolina Brochado trazem outras características presentes na família:

A família transcendeu uma concepção puramente eudemonista, na qual se visa à

felicidade individual, cujo fundamento é um individualismo despregado de valores. A

família da qual se trata é comprometida com os valores constitucionais, que transpôs

para seu interior a solidariedade social. Esses são os valores que preponderam na

família contemporânea e que foram transpostos para a ordem jurídica. A concepção de

família inscrita na Constituição de 1988 é a da família-instrumento, funcionalizada à

promoção da personalidade de seus membros. Não subsiste a família-instituição, a qual

deveria ser protegida a todo custo, pois valia por si só. Não importava a liberdade e a

realização de seus integrantes, mas sua preservação irrestrita, inclusive com uma

hipócrita paz doméstica. (TEIXEIRA, 2004, p. 37-38).

Gustavo Tepedino leciona sobre a questão, fornecendo outros elementos para a

caracterização da atual estrutura familiar:

_____________________

07- Sobre o tema, Luis Roberto Barroso dispõe que ―a ascensão política e científica do direito constitucional brasileiro conduziram-no ao centro

do sistema jurídico, onde desempenha uma função de filtragem constitucional de todo o direito infraconstitucional, significando a interpretação e

leitura de seus institutos à luz da Constituição‖. (Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade,

teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luis Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e

relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 47).

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Altera-se o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de

pais e filhos legítimos baseada no casamento, para um conceito flexível e instrumental,

que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos –

tendo por origem não apenas o casamento – e inteiramente voltado para a realização

espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros. (TEPEDINO, 2004,

p. 398).

Na esteira desse pensamento, pode-se afirmar que as relações entre os cônjuges e entre

pais e filhos experimentaram substanciais reformulações, porque foram estabelecidos

verdadeiros laços familiares, calcados no afeto, na solidariedade, no diálogo, na autonomia, na

cumplicidade, no amor e, principalmente, na liberdade. A família só persiste se for livre.

A transformação operada no seio da família é fruto de diversos fatores, dentre os quais se

devem incluir a revolução sexual, a inserção feminina no mercado de trabalho, o

desenvolvimento biotecnológico e a globalização. Incluem-se entre estes as técnicas de

reprodução assistida que, surgidas no final de século XX, desafiaram as antigas concepções de

filiação, uma vez que se tornou possível a dissociação de áreas antes correlatas, como a

sexualidade e a reprodução, e fizeram ruir todo um sistema construído em presunções de

paternidade. O elemento biológico passou a disputar espaço com o aspecto afetivo para a

determinação da paternidade, e nem mesmo a maternidade, antes tida como certa, resistiu: o

recurso do útero de substituição inaugurou o conflito positivo, entre a gestante, a doadora do

material genético e a mulher infértil. Tais inovações revolucionaram, na mais completa acepção

do termo, o Direito de Família, que hodiernamente, empenha-se na reconstrução de seus mais

salientes conceitos. É o que se passará a pesquisar.

2.2 – Impacto das inovações genéticas sobre as relações paterno-materno-filiais

Diante das extensas e volumosas alterações ocorridas no âmbito familiar, urgia, por

conseqüência, a reconfiguração das relações travadas entre pais e filhos. A mudança que se fazia

mais premente era a alteração dos contornos do pátrio poder, sob pena de se invalidar todo o

movimento de personalização que se desenrolava. Inaceitável e incoerente se mostrava a

possibilidade de um indivíduo deter poderes absolutos sobre outro, ainda que entre eles devesse

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existir uma relação de autoridade e respeito. Assistiu-se, progressivamente, à modificação do

conteúdo desse poder, que passou a se apresentar como poder familiar, cuja principal

característica é o complexo de direitos e deveres que encerra, em contraposição à postura de

poder e sujeição.

A contribuição de Pietro Perlingieri elucida a questão:

O esquema do Pátrio Poder visto como poder-sujeição, está em crise, porque não há

dúvidas de que, em uma concepção de igualdade, participativa e democrática da

comunidade familiar, a sujeição, entendida tradicionalmente, não pode continuar a

realizar o mesmo papel. A relação educativa não é mais entre um sujeito e um objeto,

mas uma correlação de pessoas, onde não é possível conceber um sujeito subjugado a

outro. (PERLINGIERI, 1999, p.258).

Não se pode afirmar que a mudança nas relações paterno-filiais cingiu-se à alteração

sofrida pelos contornos do pátrio poder. Outro elemento que deflagrou a criação de uma nova

tônica nessa convivência foi a extinção do sistema de legitimação da filiação. A CR/88

proclamou a igualdade entre os filhos, que anteriormente eram classificados em diversas

categorias de ilegitimidade, como os adulterinos e os incestuosos. O próprio diploma civil de

1916 determinava a legitimação dos filhos advindos do matrimônio08

. Com o escopo de alicerçar

esse sistema, criaram-se as presunções de paternidade.

Objetivava-se proteger a família fortemente institucionalizada, e, assim, manter o

patrimônio alocado na família matrimonializada e, por isso mesmo, legítima. Data da época do

direito romano o brocardo pater is est quem nuptia demonstrat. A paternidade, muito além da

questão biológica ou afetiva, determinava-se por critérios jurídicos09

.

_________________________

08- Art. 229, CCB/1916 - Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos.

09 – ―O ordenamento jurídico ‗escolhe‘ os critérios para revestir de certeza jurídica o fato natural da procriação. Não poucas vezes, contudo,

paternidade e filiação jurídicas apresentavam-se como paternidade e filiação presumidamente biológicas. Verdade e ficção se confundem no

vínculo jurídico paterno-filial. Esse confuso entrelaçamento decorre do interesse em preservar certos valores considerados fundamentais em dada

sociedade. (Assim, valorizando em demasia o casamento, o modelo de filiação anterior à Constituição da República de 1988 repudiava os filhos

adulterinos, proibindo o seu reconhecimento).‖ (LIMA, Taisa Maria Macena de. Filiação e Biodireito: uma análise das presunções em matéria de

filiação em face da evolução das ciências biogenéticas. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 13, abr-maio-jun/2002, p. 144)

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Outras presunções são demonstradas por Lôbo:

Em matéria de filiação, o direito sempre se valeu de presunções, pela natural

dificuldade em se atribuir a paternidade ou a maternidade a alguém, ou então de óbices

fundados em preconceitos históricos decorrentes da hegemonia da família patriarcal e

matrimonializada. Assim, chegaram até nós:

a) a presunção pater is est quem nuptia demonstrat, impedindo que se discuta a origem

da filiação se o marido da mãe não a negar em curto prazo preclusivo;

b) a presunção mater semper certa est, impedindo a investigação de maternidade contra

mulher casada;

c) a presunção de paternidade atribuída ao que teve relações sexuais com a mãe, no

período da concepção;

d) a presunção de exceptio plurium concumbentium que se opõe à presunção anterior;

e) a presunção de paternidade para os filhos concebidos 180 dias antes do casamento e

300 dias após a dissolução da sociedade conjugal, entre outros. (LÔBO, 2000, p. 35).

O Código Civil de 1916 prescrevia um prazo exíguo para que o marido da mãe

contestasse a paternidade da criança nascida. Decorridos dois ou três meses, esta se consolidava

impreterivelmente. In verbis:

Art. 178: Prescreve:

(...)

§3º: Em dois meses, contados do nascimento, se era presente o marido, a ação para este

contestar a legitimidade do filho de sua mulher;

§ 4º: Em três meses: a mesma ação do parágrafo anterior, se o marido se achava

ausente, ou lhe ocultaram o nascimento; contado o prazo de dia de sua volta à casa

conjugal, no primeiro caso, e da data do conhecimento do fato, no segundo.

(...)

O plexo de presunções foi sendo gradualmente abrandado no decorrer do século XX,

numa clara tentativa de se aproximar da realidade as relações parentais. O alargamento dos laços

de conjugalidade auxiliaram esse processo de ruptura com o sistema de legitimação da filiação.

O próprio STF acompanhava a evolução social, suavizando, em alguns casos, as presunções de

paternidade, como, por exemplo, se a paternidade do filho de sua esposa fosse repudiada pelo pai

ou se o casal encontrava-se separado de fato à época da concepção. (VELOSO, 1997, p.70).

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A Constituição da República de 1988 encerrou a discussão, igualando todos os filhos,

independente de sua origem, e proibindo quaisquer tipos de discriminação em relação àqueles

nascidos fora do casamento ou adotivos. Andou muito bem a Magna Carta, ao expressamente

reconhecer que a paternidade real não se constrói – ou se mantém - por meio de presunções de

legitimidade.

Ao lado da adoção do modelo do poder familiar – sobrepujando-se à idéia de pátrio poder

– e da extinção da categoria dos filhos ilegítimos, a genética também atuou expressivamente nas

alterações trazidas para o direito de filiação. A possibilidade de utilização de testes de DNA para

determinar a paternidade, além das técnicas de reprodução assistida que despontaram como

solução para a concretização do projeto parental das pessoas inférteis – e até das férteis em

alguns casos - causaram forte impacto no modelo familiar clássico.

Os direitos reprodutivos hoje são vistos sob um novo enfoque, coadunando-se com a

nova configuração da família, em que se ―visa, agora, a satisfação de exigências pessoais,

capazes de proporcionar o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus

membros‖ (MORAES, 2006, p.624). A reprodução não é tratada como uma conseqüência

obrigatória do casamento, já que a família subsiste como instrumento de realização pessoal. Se

os filhos não fizerem parte do projeto de vida do casal – ou pessoal, o Estado oferece tutela a

essa escolha, por meio do princípio do livre planejamento familiar10

. Por outro lado, a evolução

da genética oferece recursos àquelas pessoas que, por problemas alheios às suas vontades, não

podem satisfazer seus desejos de constituir uma família com filhos. Por meio das técnicas de

reprodução assistida, há a possibilidade de concretizar seu interesse. Há a definitiva integração

da ciência à dinâmica do planejamento familiar.

Há que se falar em liberdade de procriação, tanto no seu aspecto positivo quanto no

negativo – no sentido de se abster dessa faculdade. Paulo Otero elucida a afirmativa:

____________________

10 – Conforme artigo 226, §7º, CR/88, e Lei n. 9.263/96.

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30

Em termos constitucionais, ao lado de um inegável direito ou liberdade de procriação

natural, dotado de inerência à condição humana – enquanto expressão do direito de

constituir família e da reserva da intimidade da vida privada e familiar na justificação

de uma tutela constitucional da prática de relações sexuais – há quem entenda que

existirá hoje um correlativo direito de recusar a procriação natural. (OTERO, 1999, p.

19-20).

Prudente tecer algumas considerações acerca do direito à procriação, cujos contornos

variaram enormemente no curso da história, assumindo, em cada época, uma motivação diversa.

Fustel Coulanges ressalta que ―cada pai esperava da sua posteridade aquela série de banquetes

fúnebres que assegurasse aos seus manes repouso e felicidade.‖ (COULANGES, 2002, p.53). O

objetivo da reprodução do indivíduo era a garantia de que, após a morte, ele recebesse oferendas.

Em momentos posteriores, quando a família era tida como unidade de produção econômica, os

filhos representavam mão-de-obra gratuita; daí as famílias numerosas dos séculos XVII e XVIII.

Villela (1980, p. 23) aduz que ―enquanto unidade econômica, a família necessitava de braços.

Obtinha-os pela procriação. Incorporando-os ao seu sistema produtivo, elevava a

potencialidade econômica do grupo, então inserido na sociedade preindustrial, estável e

limitada em suas aspirações.” Em virtude de uma sucessão de mudanças ocorridas na sociedade

– em destaque, a Revolução Industrial que potencializou a atividade laboral por meio da inserção

das máquinas, pondo fim à necessidade do grande volume de pessoas para realizar a mesma

atividade – houve a regeneração dos fundamentos da procriação. Aliada ao advento dos métodos

contraceptivos, a atividade reprodutiva passou a ser controlável, não sendo imposta aos cônjuges.

É novamente Villela que convida à reflexão:

Onde quer que um casamento se instaure aí está também o convite à paternidade,

entendida, insista-se, não como a geração biológica, mas como a entrega, o

devotamento, que levam um ser pequeno, frágil e desvalido à autonomia e ao encontro

da própria identidade. (1980, p. 22)

Faz-se prudente, antes de prosseguir, destacar a discussão travada entre os juristas sobre a

natureza do direito à reprodução – e até mesmo da sua existência. José de Oliveira Ascensão

(1994, p. 98) apresenta uma opinião divergente da maioria, ao sustentar ser incoerente a

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existência desse direito, já que várias pessoas são naturalmente estéreis. Sua posição não acolhe

as inovações trazidas pelo desenvolvimento científico, entendendo pela manutenção da ordem

natural dos fatos. Frente a tal postura, carregada de um fatalismo descomunal, não se pode

concordar, em absoluto.

Outra posição de difícil defesa é apresentada por Carolina Carvalho (2007, p. 76), que

afirma que a existência de um direito fundamental à procriação não pode subsistir, diante das

limitações inerentes ao direito ao planejamento familiar, tais como os princípios da paternidade

responsável e da dignidade humana. Seu argumento reside na assertiva de que se esse direito

fosse fundamental, o emprego de qualquer meio para a obtenção de um novo ser humano seria

admissível. Prossegue a autora:

Ainda que a procriação fosse passível de ser considerada um direito fundamental,

permaneceriam possíveis diversas restrições legais com o objetivo de atender à

dignidade da pessoa do filho, a paternidade responsável, e fundamentais interesses da

sociedade. Desta feita, não há saída se não concluirmos que o direito de procriar nesse

aspecto ilimitado não existe e não é um direito fundamental. (CARVALHO, 2007, p.

81)

E ainda:

De fato, admitir a procriação como um direito absoluto, e em termos ilimitados, a

ponto de extrapolarem até mesmo os limites impostos a outros direitos anteriormente

tidos por absolutos, como a propriedade, equivale a falar de direitos desvinculados da

noção de deveres correlatos. (CARVALHO, 2007, p. 82).

Os erros dos argumentos desenvolvidos consistem em igualar direito fundamental a

direito absoluto. Por óbvio, não são conceitos coincidentes. Desta feita, é possível afirmar a

existência de um direito fundamental à reprodução, porque integrante de relevante componente

de personalidade do indivíduo, sem, contudo, permitir a utilização desregrada das técnicas de

reprodução disponíveis. A própria Constituição da República, ao garantir o direito ao

planejamento familiar, estipula limites imanentes a esse direito, e o reconhecimento da

fundamentalidade do direito em análise não contradiz, em absoluto, a existência dos mesmos.

Não há que se falar em direitos desvinculados da noção de deveres correlatos, quando o que se

defende é exatamente o oposto: o reconhecimento do direito fundamental à reprodução,

condicionado ao atendimento dos pressupostos constitucionais.

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Ana Carolina Brochado e Maria de Fátima Sá elucidam a questão:

A formação da família está de tal modo imbricada no interior da maioria das pessoas

que a procriação é tomada como um direito. Mas seria ele um direito fundamental? A

nosso sentir, a resposta a esta indagação é afirmativa, visto que compõe a construção da

personalidade da pessoa humana e de seu projeto parental. Isso, porém, não significa

dizer que se afigura direito absoluto, vez que não podemos pensá-lo dissociado da

responsabilidade. Este direito encontra limites objetivos no Princípio do Melhor

Interesse da Criança a ser concebida, que será pessoa humana detentora de direitos de

personalidade. Portanto, não pode ser, apenas, instrumento de realização dos pais. (SÁ;

TEIXEIRA, 2005, p. 57).

Os primeiros limites ao direito de procriar começam a despontar, como o Princípio do

Melhor Interesse da Criança. Outros, como os princípios da dignidade humana e da paternidade

responsável - além dos direitos da personalidade - vão atuar como fronteira no atual debate entre

o tecnicamente possível e o juridicamente permitido.

Ultrapassados os posicionamentos que entendem pela inexistência do direito fundamental

à procriação, passar-se-á ao estudo dos argumentos daqueles que o reconhecem. Casabona (2002,

p. 41) apóia-se no direito à vida, esclarecendo que o direito reprodutivo deriva do primeiro,

incluindo-se aí a possibilidade de se adotar técnicas artificiais para gerar uma nova vida. Maria

Brauner (2003, p. 13-16) sustenta a correlação entre autonomia e liberdade de escolha do

indivíduo de planejar sua vida reprodutiva, além da garantia da livre elaboração do projeto

parental, como meio propício ao desenvolvimento do exercício responsável da paternidade.

Fazendo coro aos argumentos citados, pode-se embasar ainda o direito fundamental à

reprodução no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, que encontra limites na

obrigatoriedade de obediência a outros direitos e princípios igualmente fundamentais. Resta claro

a observância e o reconhecimento de fronteiras de atuação dos direitos reprodutivos, tanto pela

via natural quanto pela artificial. Compactua-se com o entendimento de Maria Brauner (2003, p.

71) de que ―o direito ao filho não pode ser um argumento que abra as portas a todas as

possibilidades de reproduzir artificialmente‖, de onde surge a necessidade de compatibilizar os

interesses de todos os envolvidos e de se analisar os riscos inerentes às tecnologias reprodutivas.

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Tem-se, portanto, o direito à procriação como fundamental, mas não absoluto, como

convém a qualquer direito que se insira no contexto de um Estado Democrático. A procriação

correlaciona-se, por conseguinte, a um projeto de vida, apresentando-se como parte integrante da

personalidade da pessoa. Há possibilidade de se optar por quando, como - e mesmo se - os filhos

virão. E, indiscutivelmente, nesse ponto as técnicas de reprodução assistida possuem a máxima

valia, na medida em que fornecem instrumentos para os casais que não possam ter filhos pelas

vias naturais.

A genética oferece diversas outras opções, mesmo para os casais férteis. Cite-se, a título

ilustrativo, o exemplo de um casal cujo filho desenvolveu uma doença genética ou hereditária.

Aqui, as técnicas de reprodução assistida podem prover a solução, ao se garantir a saúde da

próxima criança, através do diagnóstico genético pré-implantatório. Sem essa técnica,

provavelmente o casal optaria por não procriar novamente, face à forte possibilidade que o

próximo filho também carregasse os genes da doença. Resta demonstrada a grande importância

da tecnologia genética para a concretização dos direitos reprodutivos.

Diante das novidades apresentadas o Direito de Família encontra-se em um momento de

reestruturação. Lembra Fachin que:

A tecnologia da filiação ou a biotecnologia aplicada às relações de

descendência genética traz um novo horizonte jurídico a desvendar.

Situações como a esterilidade feminina ou a hipofertilidade, a

impotência generandi e muitas outras hipóteses provocam novos

desenvolvimentos na área. (FACHIN, 1999, p.226).

Tais inovações provocam a mobilização de juristas para que se proceda à revisão dos

conceitos basilares do direito de família, uma vez que as noções clássicas de filiação, paternidade

e maternidade apresentam-se inebriadas, conclamando uma compreensão contemporânea,

alinhada ao paradigma personalista.

Há que se atentar, ainda, para a necessidade de se estipular limites à aplicação das novas

biotecnologias, para que não se ofereçam riscos às vidas presentes e futuras11

.

__________________________

11 – ―Compreende-se que todas essas intervenções, possíveis com o progresso da medicina e da biotecnologia, provoquem interrogações e

desafios à ética e ao direito, abalando a solidez das convicções e dos critérios que, no direito da modernidade (sec. XIX), permitiam a concretude

dos valores da segurança e da certeza jurídica. É a própria sociedade que, acolhendo de bom grado todas essas conquistas, embora às vezes

perplexa com a rapidez do progresso científico, levanta a necessidade de uma nova ética social, pois uma civilização que adquire poderes sobre

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Por óbvio, o desenvolvimento científico não trouxe somente glórias. Há um longo

caminho a ser percorrido no sentido de se afastar a concretização dos temores populares, como a

utilização das técnicas genéticas para a criação de seres híbridos ou a clonagem reprodutiva. No

entanto, as benesses que podem advir são incomensuráveis, e não se deve permitir que sejam

ofuscadas pela cautela demasiada. Faz-se mister, indiscutivelmente, o estabelecimento de limites

à ciência, a fim de que se assegure a preponderância dos princípios constitucionais que informam

o nosso ordenamento. Acredita-se que a necessidade vai além, ao se considerar obrigatória e

inescapável a apresentação de soluções normativas para as novas situações vivenciadas pela

sociedade.

A pretensão aqui é de se provar que a vida e a saúde de milhões de pessoas podem se

beneficiar das recentes biotecnologias desenvolvidas pelos cientistas no Projeto Genoma

Humano. Com este intuito, defende-se que a análise da aplicação das técnicas de reprodução

assistida – e nessa toada, mais especificamente, da terapia gênica – deve ser procedida com

redobrada atenção, mas nunca refutada antecipada e irrefletidamente. É possível harmonizá-las

com os princípios que regem o direito civil-constitucional e, assim, desfrutar de seus enormes

benefícios. Memoráveis as palavras de Tepedino, Moraes e Lewicki:

No imprescindível diálogo entre o direito e a ciência, é preciso ir além da técnica

regulamentar, a que se credita a possibilidade de antecipar todas as situações em que as

pessoas possam vir a correr perigo. Esta sensação de onipotência do legislador, que

permeia os grandes monumentos codificados, parece ainda mais grave do que a

onipotência do cientista que se julga divino por lidar, em seu trabalho, com os limites

da vida. Temas assim tão caros aos novos tempos merecem uma técnica legislativa

também renovada, calcada em princípios e cláusulas gerais, permitindo ao intérprete

joeirar as situações que merecem tutela. Não se pode aceitar que matérias dessa

natureza sejam discutidas de forma maniqueísta, a respondermos sim ou não diante dos

avanços da Biotecnologia. Esse processo deve dar lugar a uma ponderação dos valores

envolvidos, a fim de que a promoção da dignidade da pessoa humana possa, em

qualquer circunstância, ser o norte para a definição do direito a ser aplicado.

(TEPEDINO, MORAES, LEWICKI, 2002).

___________________

ávida encontra-se necessariamente necessitada de uma nova reflexão sobre os direitos do homem, os direitos da sua personalidade. (...) Há que se

inventar, construir-se, um novo direito, um conjunto de valores, princípios e normas que tenham por finalidade proteger a vida humana,

disciplinando a pratica das intervenções e dos mecanismos de sua manipulação. De qualquer modo, e isto é importante registrar, o valor básico e

o objetivo fundamental é a defesa da personalidade e da cultura individual.‖(FRANCISCO AMARAL, A prova genética e os direitos humanos.

In: Leite, Eduardo de Oliveira. Grandes temas da atualidade de DNA como meio de prova da filiação: aspectos constitucionais, civis e penais. 2

ed., Rio De Janeiro: Forense, 2002, p.102).

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Diante do exposto, é simples a conclusão de que os avanços científicos, em especial no

tocante às descobertas genéticas, influenciam a conjectura familiar. As novas possibilidades

abarcadas pelas técnicas de reprodução assistida demandam um reajuste social, por parte tanto

dos particulares quanto dos poderes públicos. O Código Civil de 2002 fez uma tentativa de se

alinhar à ciência, ao incluir entre as presunções de paternidade clássicas, aquelas decorrentes de

fecundação artificial, senão observe-se:

Art. 1597, CC/02: Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I- nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência

conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por

morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III- havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV- havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes

de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização

do marido. (grifou-se).

No entanto, a despeito dos esforços de atualização do legislador, esse artigo foi alvo de

ferrenhas críticas por parte da doutrina, que censura a ambigüidade que ele pode suscitar. Além

disso, não houve uma preocupação legislativa em harmonizar as presunções de paternidade

advindas das técnicas de reprodução assistida com outros institutos do Direito Civil, criando-se

situações contraditórias, como, por exemplo, no Direito de Sucessões. Se há consentimento para

a fecundação post mortem, conforme se infere do art. 1597, III do Código Civil, há que se

autorizar, também, a incidência dos efeitos sucessórios para este filho. A redação do artigo 1798

intenta garanti-los, ao legitimar a suceder ―as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da

abertura da sucessão‖. Contudo, em que pese a preocupação de se alinhar os clássicos institutos

jurídicos às avançadas técnicas reprodutivas artificiais, não se atentou para o aspecto

instrumental, restando dúbio o modo pelo qual a sucessão se daria. Ana Carolina Teixeira e

Maria de Fátima Sá questionam como atribuir coerência ao sistema:

Ora, se os embriões são seres já concebidos – pois a concepção ocorre

no momento da junção do óvulo ao espermatozóide -, também eles

teriam capacidade sucessória para suceder à herança de seus genitores,

quando do falecimento destes. Mas como seria isso? A herança ficaria

reservada, o inventário seria sobrestado até o momento em que a mãe,

ou uma mulher, através de útero de substituição, resolvesse gerar

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aquele embrião? Não acarretariam esses fatores uma acentuada

insegurança jurídica? (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 87).

O exemplo destacado comprova a ausência de sistematização e harmonização que

perpassou o novo Código Civil, quando de sua elaboração, no que tange às técnicas de

reprodução assistida. As situações conflituosas podem ocasionar o desrespeito a princípios

constitucionais basilares, como os da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Ressalte-se que a falta de técnica não se restringiu ao aspecto sucessório. André Rüger

(2007, p.97) destaca outras situações embaraçosas, como a absurda conclusão derivada do inciso

III do artigo 1597, segundo a qual apenas da técnica de fecundação artificial – caracterizada pela

fecundação ocorrer dentro do corpo feminino – decorreria a paternidade. Caso a fecundação

ocorresse extracorporeamente, não se poderia concluir pela existência da relação paterna, mesmo

que o material genético fosse do marido. Com o escopo de solucionar essas e outras questões, a I

Jornada de Direito Civil aprovou o Enunciado 105, que propunha interpretar as expressões

―fecundação artificial‖, ―concepção artificial‖ e ―inseminação artificial‖ que aparecem,

respectivamente, nos incisos III, IV e V do artigo 1597 como ―técnica de reprodução assistida‖.

Pelo exposto, deduz-se a absoluta necessidade de se proceder a um estudo acurado das

técnicas de reprodução assistida, bem como de suas variantes, diante de suas inevitáveis

influências no Direito de Família contemporâneo.

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03 – GENÉTICA E PLANEJAMENTO FAMILIAR

3.1 – Abordagem jurídica

A presente pesquisa questiona a admissibilidade e os limites que devem ser apostos à

terapia gênica embrionária, técnica possível a partir da fertilização in vitro e mediante realização

de diagnósticos pré (ou pós) implantatório dos embriões que serão transferidos para o útero. A

legitimidade desta prática subordina-se estreitamente ao seu alinhamento com os princípios

jurídicos que fundamentam o Estado Democrático de Direito, entre os quais se encontram o da

igualdade, da liberdade e da dignidade.

Travam-se, no presente, diversas discussões acerca da utilização das modalidades das

técnicas genéticas disponíveis, bem como sobre seus limites de incidência e de acesso.

Questiona-se, por exemplo, se a fertilização in vitro, técnica que permite aos casais em

dificuldade reprodutiva que concretizem seu projeto parental, deveria também ser estendida

àqueles casais que, mesmo férteis, desejassem utilizá-la para intervir nas características genéticas

do embrião.

Outra controvérsia diz respeito à possibilidade de ampliação dos destinatários das

técnicas de reprodução assistida. O lapso normativo permite que as clínicas não restrinjam seus

usuários; no entanto a questão é polêmica no mundo jurídico. Discute-se se as técnicas estariam a

serviço apenas de casais ou se pessoas solteiras poderiam delas se valer a fim de também

concretizarem um projeto de vida, qual seja, o de ter filhos. A presença de fortes argumentos em

ambos os sentidos não facilita a tomada de posição. Os contrários à utilização da técnica pelos

solteiros embasam seu posicionamento no artigo 226, §7º da CR/88 que dispõe ser de livre

decisão do casal, e não das pessoas solteiras, o planejamento familiar12

. Ressaltam, ainda, as

conseqüências sinistras que pode sofrer o filho gerado e educado na ausência de um dos

genitores, aduzindo, inclusive, se tratar de postura flagrantemente atentatória aos interesses da

___________________________

12 - Art. 226, §7º, CR/1988: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de

livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma

coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

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criança e direcionada, exclusivamente, à vontade particular do indivíduo13

. Neste sentido,

manifesta-se Rose Vencelau Meireles:

Acolher a possibilidade de uma pessoa ser concebida sem pai, é frustrá-la do convívio

familiar e, principalmente, afrontar a sua dignidade. A criança tem direito à

biparentalidade. E não se argumente com o amparo das chamadas famílias

monoparentais, (...), pois o que se pretende com a norma do parágrafo 4 do art. 226 da

CF é que também tenham proteção do Estado, uma vez que venham a se formar tais

circunstâncias. Diferencia-se a hipótese do legislador estimular certas situações,

daquela em que se protege uma situação em que venha a ocorrer, como na

concretização da família monoparental. (MEIRELES, 2004, p. 56).

Já os defensores da ampliação de usuários expressam o direito à liberdade reprodutiva,

não se prendem à literalidade do texto constitucional e alegam que a presença do genitor pode ser

suprida por qualquer familiar, já que o essencial é a presença de uma referência masculina ou

feminina na vida cotidiana da criança – o que não é necessariamente equivalente a pai ou mãe.

São úteis os ensinamentos de Rodrigo da Cunha:

Para a Psicanálise, o que determina a constituição de uma família é sua

estruturação psíquica, isto é, importa saber se cada membro ocupa seu

lugar de filho, de pai ou de mãe. A não-presença física do pai, ou a sua

permanência, não é definidora da situação; este pai ou esta mãe não

precisam ser, necessariamente, biológicos. Qualquer um pode ocupar

este lugar, desde que exerça tal função. (PEREIRA, 1999, p. 74-75).

Ressalte-se, ademais, que o ambiente familiar em que essa criança se desenvolverá tende

a ser inteiramente favorável, uma vez que a pessoa que recorre à reprodução medicamente

assistida possui, indubitavelmente, um forte desejo de ter filhos, além de uma completa estrutura

para receber a criança.

__________________

13 – Guilherme Calmon Nogueira da Gama posiciona-se no sentido de evitar a formação de famílias monoparentais, podendo essa regra ser

relativizada no caso concreto: ―Não há como reconhecer, em regra, o direito à reprodução em relação à pessoa sozinha, levando em conta

especialmente o princípio do melhor interesse da (futura) criança que, privada do pai ou da mãe, se sujeitaria à estrutura familiar parcial,

tornando-a desigual em relação às demais pessoas desde o momento da concepção. Tal regra, no entanto, não deve ser absoluta, especialmente à

luz da ordem civil constitucional instaurada em 1988 no direito brasileiro. A lei n. 9263/96, no seu artigo 3º, autoriza a monoparentalidade na

reprodução assistida, desde que observados, no caso concreto, os princípios constitucionais relacionados ao planejamento familiar e à assistência

do Poder Público, além da própria esterilidade da pessoa‖. (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações

parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.

1004).

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No que toca à ampliação da técnica às pessoas solteiras, entende-se pela sua

possibilidade, em concordância com os argumentos apresentados. A presença de ambos os

genitores não oferece garantia de que o ambiente em que a criança crescerá será saudável e

harmônico. A experiência mostra, inclusive, que, com freqüência, casais se divorciam, restando

prejudicada a convivência do filho com um dos genitores em virtude do distanciamento.

Já a questão relativa à manipulação embrionária requer o aprofundamento da discussão.

Primeiro, em razão da confusão conceitual que encerra: dentro desse termo – manipulação

embrionária – estão presentes várias possibilidades. Em algumas delas, é possível que se alinhem

seus objetivos com os princípios jurídicos que regem nosso ordenamento; entretanto, há

situações em que devem ser peremptoriamente rejeitadas por não se coadunarem com a tutela da

pessoa humana. Com o escopo de se esclarecer esse limite entre as intervenções legítimas e as

ilegítimas há ainda um longo e imprescindível debate. Seria possível arguir sobre a finalidade da

intervenção no embrião como parâmetro de aferimento desta fronteira? Caso a manipulação

carregasse o objetivo de se evitar a transmissão de uma doença genética ou hereditária ou de

curar a enfermidade carregada por algum familiar, estar-se-ia diante de um permissivo? Diante

de finalidades terapêuticas há que se permitir a realização de testes genéticos que viabilizariam

tanto a terapia gênica quanto a seleção embrionária?

De pronto, deve-se esclarecer sob qual enfoque a temática será abordada. Sem dúvida, o

foco residirá no aspecto jurídico da questão, privilegiando a efetiva tutela do ser humano. No

entanto, para a total compreensão do assunto, faz-se necessário recorrer a um aprofundamento

interdisciplinar, já que a pretensão de se autorizar e limitar a terapia gênica embrionária esbarra

em objeções éticas, religiosas, sociológicas, biológicas e filosóficas.

Por conseguinte, o exame do tema se concentrará na tutela e promoção da pessoa, sem se

olvidar, contudo, do necessário amparo dos conceitos e discussões travadas em áreas correlatas.

Com efeito, os ensinamentos trazidos pela biologia, embora em alguns momentos pareçam

somente ilustrar a abordagem jurídica, são, em regra, imprescindíveis para a compreensão

adequada do tema. A título exemplificativo questiona-se: como é possível opinar sobre a

legitimidade dos testes genéticos se não há conhecimento do procedimento adotado? Ou como se

pretende autorizar a terapia gênica com finalidade terapêutica sem que se afira o conceito de

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doença genética? Caso se prescinda de tais informações, as conclusões obtidas serão simplistas e

irreais.

A ética, por seu turno, terá papel coadjuvante nesta pesquisa. Seu auxílio se restringirá a

enriquecer as discussões levantadas. A despeito de não se pretender usar argumentos éticos como

fundamentos da pesquisa que se desenvolve, não há como renegar o amparo que ela pode

oferecer, uma vez que é cediço existir um mínimo ético a ser observado pela sociedade, como

garantia da dignidade da pessoa.

A proposta interdisciplinar ora defendida encontra apoio nas palavras de Romeo

Casabona (2002, p. 26), que afirma que “a Filosofia, a Ética e o Direito giram em torno do

núcleo essencial do mundo conceitual dos valores, dos ideais humanos e da racionalidade de

que ele necessita como suporte irrenunciável”.

Há ainda que se trazer à tona o fato de que as discussões que envolvem a vida

embrionária revestem-se de argumentos religiosos. Um exemplo clássico extraído do cenário

nacional remete à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 54-8

Distrito Federal – acerca da interrupção da gravidez de um feto anencéfalo14

, em que se fez

patente a miscelânea de conceitos jurídicos e religiosos, éticos e filosóficos, e que acabou por

prejudicar a tão almejada imparcialidade nos julgamentos.

A discussão sobre o início da vida é o denominador comum entre todas as técnicas

genéticas controvertidas, e não se nega a complexidade que lhe é intrínseca. Determinar a partir

de que momento deve-se oferecer proteção jurídica é tarefa hercúlea, mas imprescindível. E a

resposta não se encontra, definitivamente, em convicções pessoais.

____________________________

14- O Ministro Celso de Mello ressaltou em seu voto que ―O dogmatismo religioso revela-se tão opressivo à liberdade das pessoas quanto a

intolerância do Estado, pois ambos constituem meio de autoritária restrição à esfera de livre arbítrio e de auto-determinação das pessoas, que hão

de ser essencialmente livres na avaliação de questões pertinentes ao âmbito de seu foro íntimo, notadamente em temas de direito que assiste à

mulher, seja ao controle de sua própria sexualidade, e aí surge o tema dos direitos reprodutivos, seja sobre a matéria que confere o controle sobre

sua própria fecundidade.‖ Acórdão disponível, na íntegra, no site http://www.stf.gov.br.

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Apesar de se reconhecer a presença de argumentos religiosos nos debates já travados

sobre as novas possibilidades advindas da revolução genética, saliente-se que eles não terão o

condão de embasar os deslindes do tema em desenvolvimento. Ademais, encontra-se

sedimentado o princípio da laicidade do Estado no Brasil, que impõe aos Entes Federativos a

adoção de uma postura de independência e afastamento de crenças religiosas. Ao mesmo tempo

em que garante aos cidadãos a liberdade de optar por uma crença – ou por nenhuma – cria um

limite para a atuação estatal, na medida em que impede a confusão de objetivos. A fé deve estar

restrita à esfera privada, e nunca transportada para as decisões públicas. Corroboram tal opinião

as palavras de Daniel Sarmento:

A laicidade de Estado, levada a sério, não se esgota na vedação de adoção explicita

pelo governo de determinada religião, nem tampouco na proibição de apoio ou

privilégio público a qualquer confissão. Ela vai além, e envolve a pretensão

republicana de delimitar espaços próprios e inconfundíveis para o poder político e para

a fé. (SARMENTO, 2006, p.34)

A dificuldade reside em harmonizar direitos universais com as opções individuais,

assumindo que hoje se vive em uma sociedade plural, na qual estão presentes concepções

pessoais das mais diversificadas. Não obstante, o pluralismo não deve ser combatido,

configurando-se, inclusive como uma característica desejável da democracia hodierna. Apesar da

dificuldade em se encontrar o consenso diante de opiniões divergentes, é possível encontrar uma

solução para as novas questões, desde que não estejam pautadas em convicções pessoais, mas em

razões cuja aceitação pela sociedade não se encontre subordinada às crenças religiosas privadas.

Ressalte-se, a título de conclusão, que a abordagem do tema terá por foco o prisma civil-

constitucional, valendo-se, para tanto, do estudo do conteúdo jurídico do princípio da dignidade

da pessoa humana.

3.2 – Entrelaçamentos entre biologia e direito

O século XX caracterizou-se como uma época marcada por terríveis conflitos, tais como

as duas guerras mundiais, além de diversos massacres ocasionados pela motivação econômica,

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em que se mostrou latente a vontade de expansão de domínios, um capricho que custava o

sacrifício dos povos subjugados, inexoravelmente. Não raramente escutavam-se histórias em

que as pessoas eram submetidas a condições degradantes de vida. A maior – e pior - notícia, sem

dúvida, remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, quando experimentos de pretexto

científico eram perpetrados em seres humanos. Brunello Stancioli relata a experiência médica

realizada nos EUA, conhecida como Tuksgee, no qual 412 afro-americanos pobres não foram

tratados de sífilis, sendo observados e comparados com 204 homens livres dessa doença, para

determinar a história natural da sífilis. A pesquisa continuou mesmo depois de a penicilina ser

amplamente disponível e sabidamente eficaz contra essa doença. (STANCIOLI, 2004, p. 50).

Relatos dessa natureza15

provocaram questionamentos a respeito do progresso tecnológico,

expuseram a necessidade de se estipular limites às experiências científicas e deram origem ao

movimento de proteção da pessoa humana, em que se destacam as declarações de direitos, como

o Código de Nuremberg (1947), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a

Declaração de Helsinque (cuja origem data de 1964, mas que é atualizada periodicamente), a

Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), o Informe Warnock (1984), o Relatório

Human Embryo Experimentation (1986), o In vitro Fertilization Act (1988), a Declaração de

Valencia (1990), a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem

(1997), dentre outros.

Apesar da existência das declarações de direitos, cujo intuito é proteger a pessoa e evitar

a ocorrência de novos episódios atrozes, o temor popular diante do progresso científico não se

esvaiu. A discussão é atual, já que a sociedade, de modo geral, vem sendo assombrada pelas

novas possibilidades trazidas pela evolução genética, e em particular, pela manipulação das

células embrionárias. O receio é causado tanto pela novidade em si, quanto pelo

desconhecimento dos riscos e conseqüências, além da ausência de limites bem estipulados.

___________________________

15 - Carlos Nelson Konder narra : ―Relatam-se judeus sendo submetidos a câmaras de descompressão para calcular o ponto de explosão dos

pulmões (de maneira a viabilizar vôos em grandes altitudes para evitar fogo antiaéreo inimigo), a exposição a temperaturas polares e a

congelamento (para testar métodos de ressuscitação aplicáveis aos pilotos da Luftwaffe ejetados nas águas do mar do norte) e a ingerir somente

água salgada, assim como a queimaduras por gás mostarda, corte de ossos, músculos e nervos, injeções de vacinas, soros cancerígenos e

hormônios e também remédios, gases e venenos. O maior exemplo de supremacia da ciência sobre qualquer valor de dignidade humana.

(KONDER, Carlos Nelson. O consentimento no biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de

Janeiro: Padma, v.15, p. 41-71, jul./set. 2003, n.04).

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Entretanto, o temor não pode ser paralisante: há que se desvelar com precaução esse novo

universo de possibilidades, posto existirem aspectos essencialmente positivos, como os

terapêuticos. Tal contradição foi bem retratada por Hobsbawn, que afirmou ―Nenhum período foi

mais penetrado pelas ciências naturais nem mais dependentes delas do que o século XX.

Contudo, nenhum período, desde a retratação de Galileu, se sentiu menos à vontade com elas.”

(HOBSBAWN, 2003, p. 504).

A falta de limites às intervenções genéticas parece ser o causador de maior desconforto

e desconfiança por parte da sociedade. Caso se demarque uma fronteira de atuação pautada no

respeito à integridade psicofísica e à dignidade humana, há que se permitir a concretização das

diversas possibilidades levantadas pelo Projeto Genoma Humano. Esta idéia é muito bem

desenvolvida por Mantovani:

Tal como ocorre nas atividades biomédicas em geral, também para as manipulações

genéticas, o problema jurídico não é tanto um ‗problema de ilicitude‘, de proibição,

mas, antes, um complexo ‗problema de limites da licitude‘, isto é, de uma

regulamentação que assegure os benefícios e que evite os danos para o homem.

(MANTOVANI, 2002, p.158) – destaques no original.

A despeito do destaque conferido às inseguranças e conflitos16

trazidos pelo referido

projeto, há que se recordar que ele também é sinônimo de esperança e de cura, representadas pela

capacidade de desenvolvimento de uma terapêutica muito eficiente, porque personalizada. O

conhecimento das particularidades de cada organismo permitirá aos médicos que adotem

medidas adequadas para a solução almejada. Há ainda que se recordar da medicina preditiva, que

poderá intervir de modo prioritário e antecipado, dispensando a espera pelo surgimento dos

sintomas para que se busque tratamento. Assim leciona Léo Pessini:

____________________

16 – Segundo a lição de Aroldo Plínio Gonçalves ―Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de permitir a eficiência em grau de excelência para o

culto da vida ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade que o

homem possui de produzi-la, mas da vontade que a direciona para os fins. Porque se a pedra foi, segundo os antigos textos sagrados, a primeira

arma de um crime, para se acabar com os crimes não basta destruir as pedras‖. (GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do

processo. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1992, p. 10).

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Estamos definitivamente iniciando o chamado ‗século da biotecnologia‘. Após

convivermos séculos com uma ‗medicina curativa‘, bastante rude, surgiu a ‗medicina

preventiva‘ (vacinas, antibióticos, saneamento básico etc). Mais recentemente nasceu a

‗medicina paliativa‘, que cuida dos pacientes terminais, doentes fora de possibilidades

terapêuticas. Agora está chegando a ‗medicina genômica‘ (ou pós-genômica) ou

‗preditiva‘, estreitamente ligada aos progressos e pesquisas do genoma, e que mais do

que intervir a partir de sintomas de doenças já instaladas no corpo, vai atuar na raiz das

predisposições genéticas das doenças. (PESSINI, 2002, p. 147)

Antes que se discutam os limites de atuação da genética, faz-se necessário esclarecer a

terminologia a ser utilizada. De imediato, adianta-se que a conceituação da nomenclatura

utilizada nesse campo de atuação não é tarefa consensual. Em diversos momentos visualiza-se

uso de variados termos de modo indiscriminado tanto pela doutrina, quanto nas normas que

tratam do tema. Por vezes há referência às palavras engenharia genética, em outras se utiliza o

termo intervenção, ou ainda, manipulação genética como expressões sinônimas. Mister

proceder-se, logo, a um esclarecimento.

3.2.1 – Conceituação terminológica

O esclarecimento de alguns termos inerentes à genética é essencial, já que integrantes

deste trabalho e indispensáveis à sua adequada compreensão.

3.2.1.1 – Manipulação, intervenção e engenharia genéticas

O termo manipulação genética carrega, para alguns autores, uma acepção negativa. José

de Oliveira Ascensão esclarece sua preferência em utilizar o conceito de engenharia genética

como o gênero, da qual o primeiro seria uma espécie, cuja finalidade carrega um valor negativo.

Fala-se usualmente, quer em engenharia genética, quer em manipulação genética. Mas

a manipulação implica um juízo negativo. Tomaremos por isso engenharia genética

como a expressão-base, livre de qualquer valoração, para designar toda a intervenção

em células através do ADN recombinante. Podemos falar em manipulação genética,

como modalidade de engenharia genética com caráter arbitrário, por não ser dirigida ao

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reforço ou obtenção de caracteres a valorar positivamente. (ASCENSÃO, 2004, p.

239) - grifos no original.

Há tese17

que defenda a inclusão de quaisquer alterações realizadas sobre o domínio

genético humano na categoria da engenharia genética, sendo este termo utilizado como gênero,

do qual a manipulação genética seria espécie, assim como a reprodução assistida, clonagem,

diagnóstico genético, dentre outros. No entanto, a crítica a essa posição reside no argumento de

que dentre as atividades relacionadas, em algumas não há intervenção no genoma humano.

Calmon (2003, p. 71) apresenta sua visão ampla de engenharia genética, conceituando-

a como o ramo que congrega as operações e pesquisas que permitem interferência e

transformações na hereditariedade.

Já Maria Helena Diniz (2002, p. 382) compartilha do pensamento de que a engenharia

genética ―na lição de Suzuki e Knudtson, consiste no emprego de técnicas científicas dirigidas à

modificação da constituição genética de células e organismos, mediante manipulação de genes‖.

Leonardo Lenti, citado por TRÍAS, manifesta-se na mesma direção:

A engenharia genética aplicada ao ser humano, em seu conjunto, é uma atividade que

consiste em modificar uma ou mais características do genoma de um indivíduo.

Consiste, em outras palavras, em inserir, no genoma, um gene ausente cuja falta é

considerada responsável por uma determinada anomalia ou moléstia; ou na substituição

por um gene isolado que desempenhe uma função análoga a um gene que, embora

presente no genoma, tenha um defeito considerado responsável por uma determinada

anomalia ou moléstia. (TRÍAS, 1995, p. 25.)

A noção de engenharia genética supracitada apresenta grande semelhança com o que

Herman Nys (2002, p. 66) conceitua por terapia gênica, em que se procede à modificação,

substituição ou inserção genética no DNA humano. A mesma técnica, contudo, é reputada por

Loureiro (1999, 312-313) como prática de engenharia genética negativa (enquanto sua atuação se

destine à corrigir defeitos genéticos) e o melhoramento genético, por seu turno, se

consubstanciaria em um tipo positivo de engenharia genética, porque relacionada ao

_____________________________

17 – Tome-se como exemplo MANTOVANI, Ferrando. Problemas penales de La manipulación genética. In: Doctrina Penal. Buenos Aires:

Depalma, 33-4:11, 1986, apud DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

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aperfeiçoamento de características humanas. O mesmo autor relata quatro tipos de intervenção

do genoma humano colecionados pela doutrina especializada: a intervenção terapêutica em

células somáticas; em células germinais; aquelas que visam ao melhoramento; e aquelas cujo

escopo é eugênico. (1999, p. 308).

O conceito de manipulação genética é retratado por Maria Helena Diniz:

Técnica de engenharia genética que desenvolve experiências para alterar o patrimônio

genético, transferir parcelas do patrimônio hereditário de um organismo vivo a outro ou

operar novas combinações de genes para lograr, na reprodução assistida, a concepção

de uma pessoa com caracteres diferentes ou superar alguma enfermidade congênita.

(DINIZ, 2002, p. 422).

Elio Sgreccia (1996, p. 214), por sua vez, conceitua manipulação genética como um

termo genérico que corresponde a toda e qualquer intervenção operada sobre o patrimônio

genético, enquanto a expressão engenharia genética agrupa ―o conjunto das técnicas que tendem

a transferir para a estrutura da célula de um ser vivente algumas informações genéticas que, de

outro modo, ele não teria tido‖.

Demonstrada a confusão que impera na doutrina quanto à acepção dos termos

provenientes das técnicas genéticas, resta provar que a legislação também enfrenta dificuldades

nesta tarefa. A Lei de Biossegurança, nº 11.105/2005, faz menção no artigo 1º, caput e § 1 e 2, à

manipulação de organismos geneticamente modificados, sem aludir ao termo engenharia18

. O

artigo 3, por sua vez, define, no inciso IV, engenharia genética como ―a atividade de produção e

manipulação de moléculas de ADN/ARN recombinante‖ e, no inciso V, organismo

____________________________

18- Art. 1 - Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação o

transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio

ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estimulo ao avanço cientifico

na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a

proteção do meio ambiente. Paragrafo 1 – Para os fins desta Lei, considera-se atividade de pesquisa a realizada em laboratório, regime de

contenção ou campo, como parte do processo de obtenção de OGM e seus derivados ou de avaliação da biossegurança de OGM e seus derivados,

o que engloba, no âmbito experimental, a construção, o cultivo, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o

armazenamento, a liberação no meio ambiente e o descarte de OGM e seus derivados. Parágrafo 2 – Para os fins desta Lei, considera-se atividade

de uso comercial de OGM e seus derivados a que não se enquadra como atividade de pesquisa, e que trata do cultivo, da produção, da

manipulação, do transporte, da transferência, da comercialização, da importação, da exportação, do armazenamento, do consumo, da liberação e

do descarte de OGM e seus derivados para fins comerciais.

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geneticamente modificado como aquele ―cujo material genético - ADN/ARN – tenha sido

modificado por qualquer técnica de engenharia genética‖. Não sem razão esta Lei foi alvo de

ferrenhas críticas por parte da doutrina especializada, posto ser patente o desconhecimento dos

termos correlatos à área.

Apesar da inexistência de um firme consenso a respeito do significado que os termos

relacionados encerram, se optará no presente trabalho por adotar a expressão manipulação

genética ao se referir a qualquer intervenção genérica sobre o patrimônio genético do embrião,

na tentativa de se obter coesão conceitual. A manipulação, nesse sentido, não alude à

modificação da constituição do genoma humano, mas tão somente ao manuseio de embriões,

com o fito de conhecê-los geneticamente, como ocorre na realização dos testes genéticos. Cabe à

engenharia genética, por sua vez, a atividade de alterar o patrimônio genético, seja por meio de

substituição, modificação ou inclusão de genes.

Ultrapassada essa discussão, cabe agora definir outros termos de larga utilização pelos

geneticistas sem, contudo, se pretender esgotá-los. Certamente há polêmicas no campo biológico

que não serão abordados no presente, já que fogem em muito da temática proposta. O intuito

aqui consiste em buscar elementos para se adequar o discurso jurídico.

3.2.1.2 – Técnicas de reprodução assistida

Há grande variedade de técnicas de reprodução artificial, diferenciadas tanto pelo custo

financeiro como pela complexidade do tratamento, cuja escolha encontra-se estreitamente

relacionada ao tipo de infertilidade que atinge o casal. “Assim, após detectado o problema de

infertilidade que afeta o homem, a mulher ou ambos, o esterileuta poderá indicar a técnica de

fertilização assistida que melhor solucionará o caso.‖ (QUEIROZ, 2001, p. 70).

Na atualidade, destacam-se sete tipos de reprodução assistida, quais sejam: a

inseminação artificial intrauterina, a fertilização in vitro (FIV), a transferência tubária de gametas

e embriões, a transferência de gametas para as trompas (GIFT), a transferência intratubária de

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zigoto (ZIFT), a transferência tubária de embrião (TET) e a Injeção Intracitoplasmática de

Espermatozóides (ICSI). (QUEIROZ, 2001).

Foge ao objetivo da presente pesquisa pormenorizar cada uma das referidas técnicas,

devendo-se, contudo, dispensar atenção à fecundação in vitro, posto ser o instrumento necessário

para se alcançar as técnicas aqui questionadas, tais como seleção embrionária, diagnóstico pré-

implantacional e terapia gênica. Juliane Queiroz assim a conceitua:

Fecundação in vitro é o procedimento pelo qual um óvulo é removido de um folículo e

fertilizado por espermatozóides fora do corpo da mulher, em meio artificial adequado

para se iniciar a reprodução celular, quando, então, o embrião será implantado no útero

materno. (QUEIROZ, 2001, p. 74).

Precisamente em virtude da fecundação ocorrer fora do organismo feminino, há

possibilidade de se atuar de modo ativo nesse processo. O desenvolvimento científico cria

possibilidades tanto de intervir na constituição genética embrionária quanto de realizar um

diagnóstico anterior à implantação, como forma de selecionar aqueles que serão transferidos ao

útero.

Há, ainda, outra distinção relativa às técnicas de reprodução assistida que deve ser

mencionada em razão das conseqüências jurídicas que acarreta: a relativa à fertilização

homóloga e heteróloga. Diz-se homóloga a fertilização obtida com o material genético do

próprio casal, enquanto heteróloga aquela que se socorre dos gametas de um doador,

normalmente anônimo. Em princípio, a fertilização homóloga não acarreta discussões morais ou

jurídicas, pois como afirma Eduardo Leite ―já que independe da intervenção de um terceiro na

intimidade do casal, é encarada como um serviço que a medicina presta à vida humana.‖

(LEITE, 1995, p. 40).

A controvérsia reside na determinação da paternidade ou da maternidade na

fertilização heteróloga, uma vez que não haverá liame genético entre o filho e os pais (um ou

ambos). Apesar das críticas dirigidas à técnica, caminha-se para a valorização da paternidade

socioafetiva, em que o trato diário suplantará o elemento biológico na definição da paternidade.

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É cediça a velocidade em que despontam novidades nessa área do conhecimento

humano, sempre acompanhadas por críticas e elogios que se seguem na mesma rapidez. Como

alerta Juliane Queiroz,

A biotecnologia não pode vir a se tornar uma ciência ingovernável. A humanidade

desponta maravilhada com tantos benefícios que as técnicas oferecem no campo da

infertilidade; porém, esquecendo-se do porvir, estaremos então enfrentando as

conseqüências de nossos atos agora realizados, sejam eles pensados ou impensados.

(QUEIROZ, 2001, p. 76).

3.2.1.3 – Testes genéticos, diagnóstico pré-implantatório e pós-implantatório, seleção

embrionária, doenças genéticas e hereditárias, aconselhamento genético

Cumpre investigar a realização de testes genéticos, utilizados para a obtenção do

diagnóstico pré-implantacional, que, por sua vez, possibilitará a escolha dos embriões

fertilizados a serem transferidos para o útero da mulher. O diagnóstico pode ocorrer, ainda, em

fase posterior à implantação e, se detectácveis quaisquer anomalias, pode-se recorrer à terapia

gênica. Mayana Zatz afirma serem os testes uma das mais importantes aplicações decorrentes do

Projeto Genoma Humano, já que apresentam enormes vantagens se comparados aos exames

tradicionais para a detecção de doenças que são, muitas vezes, fortemente invasivos e pouco

esclarecedores19

. Nas palavras da notável geneticista:

O objetivo do seqüenciamento do genoma humano é tentar entender o que os nossos

genes fazem, como interagem entre si e com o ambiente, como causam doenças, como

controlam o envelhecimento, quanto dos nossos genes influenciam nossa personalidade

e comportamento. (ZATZ, 2002, p. 23)

________________

19 – Mayana Zatz noticia em seu blog, hospedado no site da Revista Veja , a criação do teste que identificará doenças hereditárias em embriões:

―Um novo teste de mapeamento genético, que permite saber se o embrião implantado no útero por meio de inseminação artificial é portador de

alguma doença hereditária, pode estar disponível já no próximo ano, afirmaram cientistas britânicos em outubro. O anúncio foi feito pela equipe

do instituto de pesquisas Bridge Centre de Londres. ‗Uma das principais vantagens para o paciente é que, muitas vezes, não há um teste para uma

condição específica. Este é um teste único - um método universal‘, afirmou à rede britânica BBC o professor Alan Handyside, que desenvolveu o

teste. ‗Casais que pretendem ter filhos por meio de inseminação artificial poderão, caso estejam dispostos a desembolsar 1.500 libras

(aproximadamente 5.490 reais), realizar no embrião o teste que detecta quase todas as 15.000 doenças hereditárias existentes. Atualmente, os

testes são capazes apenas de identificar 2% dessas doenças.‘‖. Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/genetica/20081106 - acesso em 22 de

janeiro de 2009.

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Esclarece ainda que:

Os nossos genes, quando defeituosos, são responsáveis por mais de 7.000 doenças

genéticas que nos afetam direta ou indiretamente. Elas atingem 3% das crianças

nascidas de pais normais e são responsáveis, nos países do primeiro mundo (onde as

doenças sociais já estão controladas), por 50% das mortes no primeiro ano de vida.

Além disso, cerca de 10% das doenças de adultos (como diabetes, doenças

psiquiátricas, vários tipos de câncer, entre outras) tem um componente genético

importante. Compreender é o primeiro passo para poder prevenir e tratar tais doenças,

o que constitui ao mesmo tempo o maior interesse e o maior desafio do Projeto

Genoma Humano para os geneticistas que trabalham com doenças humanas. (ZATZ,

2002, p. 24)

Os benefícios que podem advir da adoção dos testes genéticos são enormes, já que se

fala em prevenção da transmissão hereditária de certas doenças ainda incuráveis, além da

detecção da probabilidade de desenvolvimento de uma moléstia antes que o indivíduo apresente

seus sintomas.

Os casais que apresentam algum histórico familiar de doença com componentes

genéticos podem recorrer à fertilização in vitro, mesmo se não apresentarem problemas de

fertilidade, a fim de conhecer o perfil genético dos embriões e selecionar aquele que não

carregue o gene patológico20

. Por óbvio, essa possibilidade aventa sérias discussões, porque

selecionar embriões significa descartar aqueles que não atendem a padrões específicos, o que

atenta contra os princípios da igualdade e da vida, analisando-se a questão sob o ponto de vista

daqueles que assumem o início da vida no momento da união dos gametas.

__________________

20 – Mayana Zatz noticia, em seu blog, hospedado no site da Revista Veja: ―Foi notícia de todos os jornais. ‗Nasce o primeiro bebê britânico sem

o gene do câncer de mama.‘ Na realidade, esse bebê, uma menina nascida na primeira semana de janeiro, foi selecionada para não ter uma

mutação no gene BRCA1, responsável por uma das formas hereditárias do câncer de mama, que já havia afetado várias mulheres da sua família.

Isso não significa, infelizmente, que essa menina não corre risco de vir um dia a desenvolver câncer de mama ou outros tipos de tumores. Ela

explica que o risco de qualquer mulher vir a desenvolver um câncer de mama é de cerca de 10% a 12%. Basta viver o suficiente. Os especialistas

concordam que a incidência tem aumentado mais do que seria de se esperar simplesmente pelo aumento da expectativa de vida. Por quê? Ainda

não sabemos. Mudanças de comportamento, número de filhos, hábitos alimentares, ingestão de hormônios... São hipóteses a serem confirmadas, e

ainda não há um consenso. Essas formas mais comuns de câncer, embora classificadas como doenças genéticas, não são hereditárias, ou seja, não

são causadas por uma mutação em um gene específico transmitido diretamente de pais para filhos‖. A geneticista explica a diferença: ―existem

pelo menos dois genes bem caracterizados que causam as formas hereditária de câncer de mama - o BRCA1 e o BRCA2. A sigla BRCA vem do

inglês breast cancer. Se uma mulher tiver uma mutação em um desses genes, o risco de que possa desenvolver câncer de mama passa de 10% - o

risco que todas nós corremos - para 50% a 80%. Felizmente essas formas hereditárias correspondem a menos de 10% dos casos totais. Você só

deve se preocupar com isso se houver vários casos de câncer de mama na sua família, geralmente de início precoce. Foi o caso do bebê britânico,

tão alardeado pela imprensa mundial, já que o pai da menina que acaba de nascer tinha uma história familiar de câncer de mama, com vários

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Há, por outro lado, a visão de que, disponíveis os meios para se evitar a transmissão de

uma doença, seria negligência por parte dos pais não utilizá-los, já que constitui obrigação

parental zelar pela saúde dos seus filhos. Nesse sentido, Sergio Ferraz afirma ser ilícita a

utilização de gametas problematizados – que carreguem anomalias genéticas ou doenças

hereditárias - na reprodução assistida, sabendo-se que a célula germinativa é altamente suscetível

de desenvolver uma criança com doenças graves, por contrariar o interesse do futuro filho, cuja

tutela constitucional aponta para a necessidade do nascimento ser precedido de cuidados

assecuratórios, visando não só o direito à vida, mas o direito à uma vida saudável. (FERRAZ,

2001, p. 44-45).

Casabona apresenta opinião semelhante, ao defender que o casal diante do resultado

positivo para o desenvolvimento de enfermidades hereditárias ou genéticas não possa optar pela

implantação desse embrião, já que as técnicas de procriação assistida devem perquirir a

reprodução saudável. (CASABONA, 2002, p. 54-55).

Discussões à parte, três principais conclusões podem ser obtidas por indivíduos

clinicamente saudáveis que decidem se submeter aos testes genéticos: na primeira, a pessoa

descobre ser portadora de uma mutação genética, mas que não se desenvolverá (por se tratar de

uma anomalia autossômica recessiva). No entanto, há chances de que seus descendentes sejam

afetados, em virtude da combinação com a carga genética do outro genitor, caso ele também

carregue os genes da doença. Na segunda hipótese, o indivíduo se descobre portador dos genes

__________________________

parentes de primeiro grau afetadas. O estudo molecular revelou que ele herdou a mutação no gene BRCA1 de sua mãe e, portanto, tem uma

probabilidade de 50% de transmiti-la a seus descendentes. Uma filha que herdasse essa mutação teria um risco de entre 50% e 80% de vir no

futuro a ter câncer de mama - um risco que esses pais não queriam correr. Como evitar? Resolveram recorrer ao diagnóstico pré-implantação ,

uma técnica que requer que o casal faça uma fertilização "in vitro", fora do útero. Quando o embrião tem oito células é possível retirar uma única

célula e verificar se ela possui ou não a mutação. Se ela não estiver presente, não há risco e esse embrião pode ser implantado no útero. Não há

risco, repito, para essa forma hereditária de câncer. Ou seja, ao invés de um risco de cerca de 50% a 80%, o risco de que essa menina venha a ter

algum dia câncer de mama vai ser o mesmo da população em geral, aqueles 10%.‖ A geneticista discute a eticidade deste diagnóstico:

―Só quem passou pelo drama de ver a mãe, avó, tias e outras parentes próximas morrerem precocemente pode avaliar o sofrimento que isso

acarreta. A decisão de recorrer ao DPI para evitar a transmissão de uma mutação como essa não deve ser fácil. Em primeiro lugar, porque o risco

continua. E em segundo, porque temos esperanças, e muitas, que em um futuro próximo seja possível curar o câncer. Mas esperanças não são

garantia de nada. Hoje não podemos prometer nem estimar quando o câncer poderá ser curado. Submeter-se ao DPI e selecionar um embrião livre

de uma mutação que causa câncer ou outras doenças ainda incuráveis, mesmo quando aprovado por comitês de ética, é uma decisão muito

pessoal‖. Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/genetica/143050, acesso em 21 de janeiro de 2009.

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que ocasionam uma doença de manifestação tardia – e para a qual ainda não há tratamento. No

presente, ele não apresenta sintomas, mas há grande probabilidade de apresentá-los no futuro, e

também de transmiti-la aos seus descendentes. O terceiro exemplo trata do caso de indivíduos

que possuem uma predisposição genética ao desenvolvimento de uma doença de manifestação

tardia, porém tratável – como ocorre em alguns tipos de câncer. No entanto, a ocorrência da

doença depende da interação entre diversos fatores - orgânicos, ambientais e comportamentais.

Além disso, não são transmitidos hereditariamente. (ZATZ, 2002).

Pertinente fazer menção à diferença existente entre doenças genéticas e hereditárias. A

primeira caracteriza-se por ser desencadeada pela estrutura contida no genoma da pessoa. É a

carga genética que o indivíduo carrega que determinará a incidência da anomalia. Cite-se como

exemplo a Síndrome de Down, cuja ocorrência se dá em função de uma mutação genética

ocorrida durante a fecundação, sem, contudo, estar relacionada à carga genética recebida dos

genitores. Já a segunda guarda estreita relação entre a constituição genética do(s) genitor(es) e do

filho, já que a doença apresentada pelo último foi transmitida pelo(s) primeiro(s).

O resultado de um teste genético pode ser de fundamental importância para o

planejamento familiar. Após ter acesso aos dados relativos à probabilidade da prole desencadear

uma doença - genética ou hereditária – o casal pode optar, de modo consciente, por não ter filhos

ou por evitar o nascimento do embrião afetado. A informação sobre o perfil genético dos

embriões obtidos in vitro recebe o nome de diagnóstico pré ou pós implantatório, variando

conforme o momento em que é realizado – antes ou depois da transferência dos embriões

para o útero.

Casabona (2002) aponta os caminhos que podem ser seguidos após se tomar

conhecimento dos resultados do teste: realização de terapia gênica sobre o embrião, seleção

embrionária ou do sexo do embrião ou a desistência da implantação. Essas informações fazem

parte do assessoramento que o casal recebe e é conhecido por aconselhamento genético21

.

_________________________

21 – Segundo Mayana Zatz esclarece no site do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, ―o aconselhamento genético tem por objetivo

fornecer informações detalhadas sobre determinada condição que é ou pode ser genética. O atendimento é direcionado para indivíduos afetados

por doenças genéticas e suas famílias e para pessoas sem histórico familiar de doença genética, mas que possuam risco de que seus descendentes

apresentem alguma dessas doenças. As etapas do aconselhamento genético são: Levantamento de histórico pessoal e familiar, avaliação dos

exames clínicos e genéticos já realizados e indicação de outros exames, se necessário; análise dos dados, visando diagnosticar, confirmar ou

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3.2.1.4 – Terapia gênica

Por meio desta técnica são realizadas intervenções no genoma com o escopo de se

corrigir, substituir ou retirar um gene anômalo. Diniz a conceitua como ―a transferência de

informação genética, ou melhor, de genes de um organismo para outro para curar ou diminuir

distúrbios, moléstias genéticas ou não genéticas.‖ (DINIZ, 2002, p.407).

Há, essencialmente, uma relevante subdivisão dessa técnica, uma vez que a terapia

pode incidir nas células somáticas ou nas germinativas. As primeiras são encontradas no

organismo humano em qualquer fase de desenvolvimento após a diferenciação celular. Já as

segundas compreendem tanto as células reprodutivas - como os óvulos e espermatozóides –

quanto os zigotos.

Diz-se que as células somáticas são diferenciadas, porque especializadas em se

transformar em apenas um tipo de tecido ou órgão do corpo humano, enquanto as células

embrionárias possuem a capacidade de se converter em células de quaisquer tecidos ou órgãos -

e por isso são conhecidas como totipotentes22

.

________________________

excluir uma condição genética conhecida; fornecimento de informações acerca da natureza da doença genética identificada e de suas implicações

para a saúde física ou mental do individuo; esclarecimento sobre o mecanismo de herança e cálculo de risco de ocorrência ou recorrência em

irmãos ou filhos de um indivíduo; identificação de familiares assintomáticos - que não apresentam sintomas mas são portadores de alteração

genética - e dos riscos desses familiares desenvolverem a doença ou transmiti-la para seus filhos; orientação pré-natal para casais ou gestantes

com risco de ocorrência ou recorrência de doenças genéticas em seus descendentes. Nos casos com diagnóstico definido clinicamente e

mecanismo de herança conhecido, é oferecido o aconselhamento genético para as famílias, com explicação dos riscos genéticos.No caso de

afecções em que existe a influência de fatores genéticos, mas cujos mecanismos de herança não são conhecidos, a informação sobre riscos de

recorrência é baseada em estimativas empíricas (riscos estimados pela observação direta de famílias com a mesma doença). Disponível em

http://genoma.ib.usp.br/. Acesso em 22 de janeiro de 2009.

22 – Urge diferenciar as células totipotentes das pluripotentes. Segundo Mayana Zatz elucida em seu blog hospedado no site da Revista Veja:

―Logo após uma fertilização bem sucedida a célula-ovo começa a se dividir: uma em duas, duas em quatro, quatro em oito e assim por diante.

Até o estágio de oito células, cada uma delas é chamada de célula-tronco totipotente. Isso porque qualquer uma dessas células, se for inserida em

um útero tem o potencial de formar um ser completo. Ou seja, se fosse possível separar as oito células sem destruí-las e colocá-las em útero,

poderíamos gerar, teoricamente, oito gêmeos idênticos. A divisão continua e cerca de cinco dias após a fecundação o pré-embrião (ainda não é

embrião) tem cerca de 100 células. Nessa fase, onde o pré-embrião é chamado de blastocisto, já ocorre uma primeira diferenciação. As células já

não são todas iguais. As células externas já estão programadas para formar a placenta e os anexos embrionários, enquanto a massa interna vai

formar os diferentes tecidos do corpo. As células que formam a massa interna, são chamadas células-tronco pluripotentes. Essas células,

conseguem formar todos os tecidos do corpo, com exceção da placenta e anexos embrionários. Se forem inseridos em um útero, não conseguem

mais formar um ser completo‖. Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/genetica/20081113l - acesso em 25 de janeiro de 2009.

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Há certo consenso – tanto ético quanto jurídico - na aceitação da terapia gênica na linha

somática, e o motivo se resume ao fato da alteração operada nos genes do indivíduo não

alcançarem seus descendentes, permanecendo limitada ao paciente.

Ela pode ser realizada por dois métodos: a terapia gênica ex vivo, na qual são extraídas

células do organismo do paciente, tratadas em laboratório e posteriormente devolvidas ao

mesmo; e a terapia gênica in vivo, em que a intervenção atua no organismo do paciente

diretamente, por meio de vetores que carregarão o gene sadio (LOUREIRO, 1999).

No que diz respeito à geneterapia efetuada na linhagem germinativa, há grande

reprovação por parte de estudiosos e algumas legislações, em virtude da extensão de seus

resultados, que atingirão o organismo como um todo, provocando a alteração da estrutura do

genoma e gerando efeitos sobre os descendentes. Cumpre ressaltar a existência de duas vertentes

dessa modalidade de terapia: a primeira visa à intervenção terapêutica propriamente dita,

destinada à correção de defeitos genéticos, enquanto a segunda objetiva o aperfeiçoamento das

características humanas.

Tal diferenciação configura-se essencial, pois não é o instrumento que deve ser

condenado, mas sim a finalidade à qual se destina. Assim sendo, cabe analisar sua

compatibilidade com os princípios que informam o ordenamento jurídico pátrio a fim de aferir a

legitimidade da terapia gênica em caráter terapêutico, condenando-se, de pronto, aquela que visa

o aperfeiçoamento genético da espécie humana.

A apresentação dos conceitos aqui abordados teve o condão de permitir a continuação

da pesquisa, já que o esclarecimento dos termos biológicos era condição necessária para sua

adequada compreensão. As discussões jurídicas que lhe são inerentes, bem como a

regulamentação jurídica existente serão abordadas em momento oportuno.

3.3.3 – Direitos reprodutivos na era genômica

À semelhança do que vem ocorrendo em áreas correlatas, a temática relativa aos

direitos reprodutivos também reagiu aos avanços científicos. As técnicas de procriação assistida

alargaram em muito as possibilidades de exercício desse direito, uma vez que a infertilidade,

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antes obstáculo, hoje se apresenta como ponto de partida. Diante da constatação da

impossibilidade de se gerar um filho pela via natural, o indivíduo não mais é tolhido em seu

direito reprodutivo. Há a possibilidade de se recorrer a uma dentre as várias técnicas disponíveis

a fim de concretizá-lo.

Indubitavelmente, o domínio da tecnologia reprodutiva provocou a desagregação entre os

conceitos (antes) correlatos de procriação e sexualidade, transformando a compreensão

tradicional da relação travada entre genitores e descendentes. Diante de tão recentes

modificações, Paulo Otero pondera:

Resta saber, no entanto, em que medida este novo progresso científico, reduzindo as

indeterminações dos processos naturais de procriação conduzindo mesmo ao controlo

da reprodução humana até o ponto de pretender fixar os determinantes da pessoa, não

ofenderá ‗o direito àquela margem de indeterminação que está na pré-história de toda a

liberdade‘. (OTERO, 2004, p. 12).

Na esteira deste pensamento é acurado afirmar que a primeira repercussão nesse âmbito

alcançou as relações paterno-materno-filiais, na medida em que se impulsionou a valorização do

elemento volitivo, em detrimento do biológico, com o escopo de se atribuir o vínculo parental. O

movimento de desbiologização da paternidade encontrou na reprodução medicamente assistida

uma forte aliada. Revisitam-se os conceitos clássicos de paternidade e maternidade, em busca da

dilatação conceitual que promova a sua necessária atualização. As palavras de Heloisa Helena

Barboza confirmam a idéia de que o conteúdo de tais conceitos encontra-se em constante

renovação:

as contínuas transformações sofridas pela família fizeram com que deixasse de ser uma

unidade de caráter religioso, econômico e social, para se firmar especialmente como

um grupo de afetividade e companheirismo. (...) Nem na Antiguidade, nem em tempos

mais próximos se pode dizer que a relação biológica foi toda a base da relação paterno-

filial. O conceito de paternidade não é, historicamente, imutável. (BARBOZA, 1999,

p.139)

Para além da possibilidade ofertada pela procriação medicamente assistida de

proporcionar descendentes aos casais inférteis, o desenvolvimento da genética oferece outras

alternativas na concretização do projeto parental, que não mais se resume a atender apenas às

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pessoas estéreis. É possível recorrer à medicina reprodutiva com o fito de evitar a transmissão de

doenças genéticas, por meio da análise do perfil genético do embrião, por exemplo. Há ainda a

opção de intervir no genoma embrionário, utilizando-se da terapia gênica para corrigir defeitos

genéticos. Os direitos reprodutivos dão um salto qualitativo na era do desenvolvimento

genômico.

Diante de tamanhas possibilidades, salta aos olhos a necessidade de se estipular limites

aos direitos reprodutivos, pois se eles se incluem na categoria dos direitos fundamentais,

certamente se excluem dos direitos absolutos. Enquanto integrante da personalidade individual,

ele recebe inclusive proteção constitucional, o que não o exime da responsabilidade com a

pessoa por nascer, que também será dotada de direitos da personalidade e deverá ter sua

autonomia respeitada. Não há, portanto, autorização para o indivíduo utilizar as técnicas

assistidas de modo inescrupuloso, desarrazoado ou egoísta. Nessa toada, Tepedino alerta:

Parece oportuno sublinhar, contudo, que as técnicas de procriação assistida, para serem

compatíveis com a ordem constitucional, devem se desassociar de motivações

voluntaristas ou especulativas, prevalecendo sempre, ao contrário, quer como critério

interpretativo – na refrega de interesses contrapostos – quer como premissa de política

legislativa, o melhor desenvolvimento da personalidade da criança e sua plena

realização como pessoa inserida no núcleo familiar. (TEPEDINO, 2004, p. 472).

Oportuna a colocação de que o direito à procriação constitui reflexo do direito à

liberdade, e para tanto, não há diferença se a concepção de uma nova vida ocorre por meio

natural ou artificial. É dever do Estado garantir o respeito à decisão do casal, que se inclui na

esfera privada de seus interesses, bem como se abster de influenciá-la. Esse conjunto de ações

relativas à decisão de como e quando ter filhos encontra-se regulamentado pela Constituição da

República23

, pelo Código Civil24

e também pela Lei 9.263/96, que dispõe sobre o planejamento

familiar, assim definido, in verbis:

________________________

23 – Art. 226, §7º da CR/88: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é

livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma

coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

24 – Art. 1565, §2º do CC/02: O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e

financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.

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Art. 2 – Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o

conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos

iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo

homem ou pelo casal.

O planejamento familiar implica em uma série de decisões a serem tomadas pelo

particular, a começar pela mais elementar, a escolha sobre ter ou não filhos, e caso a opção seja

positiva, passa por várias outras, entre as quais com quem tê-los, quando, por quais meios, o

número de filhos e o intervalo entre eles.

A partir do surgimento de meios contraceptivos as mulheres desfrutam da possibilidade

real de escolha sobre quando reproduzir, enquanto o advento das novas tecnologias reprodutivas

proporciona a faculdade da reprodução tardia, em idades improváveis sem o recurso da

procriação assistida. Esse controle sobre o momento da reprodução confere verdadeira liberdade

à mulher, uma vez que ela pode evitar a gravidez precoce, quando não há aptidão para assumir as

responsabilidades que dela decorrem, assim como permite o enfoque na carreira profissional e,

por conseguinte, o retardamento da maternidade, de modo a conciliar seus interesses da melhor

forma possível.

Tais mecanismos - tanto os métodos contraceptivos quanto as técnicas de reprodução

assistida - contribuíram para a liberdade de planejamento familiar, uma vez que os indivíduos

passaram a melhor administrar os diversos fatores que interagem na decisão de formar uma

família. A irrupção de novas tecnologias genéticas, dentre as quais o diagnóstico pré-

implantatório, a seleção embrionária e a terapia gênica, integram-se a essa dinâmica, na medida

em que oferecem a opção de intervir no genoma embrionário. Este é um dos aspectos mais

controversos da liberdade reprodutiva porque carrega incertezas e traz o fantasma da eugenia

devido à habilidade do controle da natureza do embrião. A despeito desse receio, há que se

usufruir dos benefícios oriundos da genética, e coibir sua aplicação abusiva por meio de uma

regulamentação jurídica que combine os princípios constitucionais com as possibilidades tecno-

científicas, de forma que a tutela da pessoa humana seja inequívoca.

Entre os recursos oferecidos pela genética humana que têm implicação no planejamento

familiar destaca-se a possibilidade dos pais se submeterem à testes com o intuito de descobrirem

se são portadores de alguma anomalia genética transmissível à prole. A informação obtida será

de grande valia, uma vez que os pais poderão recorrer a formas alternativas de formação de

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família - que vão desde a opção pela adoção até a utilização de gametas de terceiros - com o fito

de evitar que a criança herde a anomalia.

Outro cenário que se afigura pertinente à temática em questão é o que abarca os caminhos

possíveis de serem seguidos a partir da identificação do perfil genético do embrião in vitro.

Pode-se optar pela seleção embrionária, em que serão transferidos os embriões sadios para o

útero ou, ainda, pela intervenção no embrião in vitro com o escopo de se alterar o genoma que

apresente algum problema. Apesar de toda a polêmica que envolve a questão, tem-se obtido um

relativo consenso para autorizar a prática quando a finalidade for terapêutica. O problema reside

na precisão desse conceito. Cada indivíduo apresenta uma compreensão do que seria um

problema a ser corrigido no seu filho, razão pela qual se faz extremamente necessária – senão

obrigatória - a definição dos limites de intervenção no embrião. A tentativa de se estipular essa

fronteira, objetivo maior desse trabalho, será desenvolvida em momento posterior, já que

depende da análise de alguns pontos cruciais porvir. Enquanto isso, prossiga-se com o estudo de

outros elementos caracterizadores do planejamento familiar.

Apesar do Estado não poder influenciar a decisão do casal, ele não deve manter completa

distância do assunto em comento. Ele possui sim uma dupla função no que toca ao planejamento

familiar, qual seja: a promocional, representada pelo emprego de recursos e técnicas científicas

que garantam o acesso e o exercício do direito reprodutivo dos cidadãos, e expressa no artigo 9º

da Lei 9263/9625

, além do papel de prevenção, em que se faz essencial educar, educar, informar e

conscientizar as pessoas acerca dos métodos de concepção e contracepção, a fim de que seja

possível, de fato, optar conscientemente por ter ou não filhos.

Essa segunda função está expressa no artigo 4º da referida lei, senão observe-se:

Art. 4º – O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e

educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios,

métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.

______________________

25 – Art. 9º da Lei 9263/96: Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e

contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção.

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A ingerência estatal justifica-se em virtude dos impactos causados na seara pública pela

decisão privada de ter filhos. Apesar de a decisão ser unicamente particular26

, seus reflexos serão

sentidos e administrados pelo Estado. O aumento populacional desmedido, por exemplo, incidirá

diretamente sobre a utilização dos recursos disponíveis, legitimando a ação estatal. Flávia

Piovesan (1998, p. 170) relata a importância da Conferência de Cairo sobre População e

Desenvolvimento, porque houve o reconhecimento, no plano internacional, da liberdade de

decisão sobre os direitos reprodutivos e da necessidade de se investir em áreas como a educação

da população no que tange à saúde reprodutiva e crescimento populacional sustentado.

Aliando-se o conteúdo dos dispositivos contidos na Lei 9263/96 ao artigo 226, § 7º da

CR/88 verifica-se que o ordenamento jurídico reconhece a liberdade de escolha do particular no

que tange à concepção, inclusive quanto aos métodos a serem adotados, incluindo-se aí as

técnicas de reprodução assistida. No entanto, tal afirmação não autoriza a utilização desmedida

das mesmas. A existência de limites faz-se imperiosa, e a despeito da inexistência de

regulamentação legal específica sobre a procriação medicamente assistida, inferem-se do texto

constitucional limitações quanto ao seu uso. É inequívoca a condição de se priorizar o interesse

da futura criança, por meio do princípio do seu melhor interesse. Não se deve olvidar, ainda, dos

princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, que atuam como

fronteira entre o permitido e o proibido diante das possibilidades genéticas. Assim, coadunam-se

o conhecimento científico e a perspectiva solidário-humanista que reveste o Direito de Família

atual. Demonstrada a importância de tais limites, passar-se-á à análise dos mesmos.

_____________________

26 – Conforme pontua precisamente Maria Irene Szmrecsányi, citada por Guilherme Calmon Nogueira da Gama ―o Estado que não garante a

liberdade de seus cidadãos em problemas dessa ordem de privacidade não respeita os redutos de liberdade que fundamentam a democracia. E o

Estado que tenta resolver seus problemas financeiros e políticos aceitando pressões para intervir na vida reprodutiva dos indivíduos passa a

inserir-se no rol dos Estados facistas. (SZMRECSÁNYI, Maria Irene de Q. F. Educação e Fecundidade. São Paulo: Editora Hucitec e Editora

Universidade de São Paulo, 1998, p. 220).

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3.3.3.1- Limites ao direito reprodutivo

3.3.3.1.1 - O princípio do melhor interesse da criança

O movimento de valorização da criança e do adolescente teve início com a promulgação

da Constituição da República de 1998 que, ao estabelecer novas bases interpretativas para as

relações familiares em geral, alçou o menor à posição de sujeito de direito, retirando-o da

posição de objeto que antes ocupava, o que provocou uma forte mudança na forma como ele

passou a ser encarado no ambiente familiar. Villela magistralmente resume esse momento ao

afirmar que ―nenhum fenômeno talvez ponha mais a claro a derrocada da velha ordem familiar

que a irrupção de um novo interlocutor no seu ambiente: o menor.” (VILLELA, 1980, p. 29).

A alteração foi além, na medida em que não só houve a atribuição da qualidade de sujeito

ao menor, como também se passou a enxergá-lo como merecedor de tratamento prioritário frente

aos demais integrantes da família. Em função do processo de desenvolvimento psicofísico em

que se encontram, a criança e o adolescente dignam-se a receber absoluta tutela na defesa de seus

interesses. Esse entendimento vem expresso no artigo 227 da CR/88:

Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à

criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à

saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à

cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e

comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Constata-se, destarte, que a proteção conferida ao menor foi elevada ao status

constitucional, insere-se no contexto dos direitos fundamentais do indivíduo e é exigida de toda a

sociedade, além do Estado e da própria família. Tais prescrições são fruto da encampação, pela

Constituição Federal, da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente que substituiu,

conforme esclarece Gama (2003, p. 458), a doutrina da situação irregular anteriormente adotada

pelo já revogado Código de Menores – Lei n 6.697/79.

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A doutrina da proteção integral abraça outros princípios e, em destaque, encontra-se o

referente à tutela do melhor interesse da criança (e do adolescente). Tânia da Silva Pereira (2000,

p. 31) remete à Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ocorrida em novembro de

1989, na qual houve a reunião, em um único documento, de todas as normas aplicáveis aos

menores e que representam o mínimo a ser-lhes garantido por toda a sociedade. Sua ratificação

no Brasil se deu através do Decreto n 99.710/90, que traz em seu artigo 3.1 o seguinte preceito:

―todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de

bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos devem

considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.‖ A referida autora faz uma ressalva

relativa à tradução que o Decreto recebeu, diante da redação original do texto da Convenção que

assim dispõe: ―In all actions concerning children, whether undertaken by public or private social

welfare institutions, courts of law, administrative authorities or legislative bodies, the best

interests of the child shall be a primary consideration.‖ A versão brasileira discorre sobre o

‗interesse maior da criança‘, enquanto a redação em inglês trata do ‗best interest of the child‘, o

que implica no surgimento de uma diferenciação: enquanto o primeiro encontra-se vinculado a

um critério quantitativo, o segundo faz menção ao aspecto qualitativo do conceito.

Acertadamente, a autora se posiciona no sentido de que a redação original do documento contém

o conceito mais apropriado e justifica sua escolha no próprio conteúdo da Convenção e na

orientação constitucional e infraconstitucional adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

A origem do princípio ora estudado volve ao instituto do parens patriae, típico do direito

inglês, que atribuía à Coroa inglesa a prerrogativa de tutelar os interesses daqueles que não o

podiam fazer por conta própria. Gama (2003, p. 458) ressalta que, dessa feita, também o

patrimônio ficaria sob os cuidados da Coroa27

.

_________________________

27 – Tânia da Silva Pereira relata que embora o instituto do parens patriae tenha surgido na Inglaterra ligado à guarda de pessoas incapazes e de

suas eventuais propriedades, esta responsabilidade, inicialmente assumida pela Coroa, foi delegada ao Chanceler a partir do século XIV. Assim,

as Cortes de Chancelaria receberam a incumbência de tutelar todas as crianças e adultos portadores de doenças mentais sem discernimento

suficiente para administrarem seus próprios interesses. A autora faz menção às decisões dos juízes ingleses Cardozo e Mansfield como

precedentes quanto ao reconhecimento da prioridade do interesse da criança sobre o de outras pessoas, inclusive o de seus pais. (PEREIRA, Tânia

da Silva. O princípio do ―melhor interesse da criança‖: da teoria à prática. Revista Brasileira de Direito de Família. n 6. Porto Alegre: Síntese,

jul.-ago.2000. p. 33).

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O princípio do melhor interesse também foi acolhido nos Estados Unidos, tendo sido

introduzido em 1813, ocasião do julgamento do caso Commonwealth v. Addicks, na Corte da

Pensilvânia, em que se disputava a guarda de uma criança cuja mãe havia cometido adultério. A

Corte dissociou a figura da mulher como mãe e como esposa, estabelecendo que a conduta

apresentada pela primeira não guardava relação com aquela desempenhada pela segunda. Neste

momento ocorreu a absorção da Tender Years Doctrine, segundo a qual a criança carecia de

cuidado e assistência em razão da idade diminuída e que tal papel seria melhor exercido pela

mãe. Tribunais de todo o país passaram a declinar frequentemente a guarda do menor à mãe,

salvo restasse comprovada a sua inaptidão. Somente no século XX tal presunção foi afastada, por

meio da adoção do critério do tie breaker em que se buscava de fato a solução que melhor

atendesse ao interesse do menor mediante a análise de todos os fatos do caso concreto.

(PEREIRA, 2000, p. 33).

O sistema jurídico brasileiro, como é cediço, também se utiliza do referido princípio que

privilegia o interessa da criança e do adolescente. No entanto, a fim de se promover o correto

entendimento da sua aplicação, Tânia Pereira afirma a necessidade de se analisar as diferentes

correntes doutrinárias a respeito da proteção conferida ao menor que já se aplicaram no Brasil

desde o século XIX.

A primeira corrente, denominada Doutrina do Direito Penal do Menor, vigorou entre os

Códigos Penais de 1830 e 1890, e atentava principalmente para os casos de delinquência entre os

menores, baseando-se no grau de discernimento que a criança dispunha sobre a prática delituosa

cometida para imputar a responsabilidade criminal. A atribuição de culpabilidade era de

competência do juiz que, ao analisar um conjunto de elementos informadores, decidia pela

intenção do menor ao cometer o crime. Em grande parte das vezes os menores eram punidos com

medidas educativas, o que demonstra a tentativa de protegê-los. Tais resoluções passaram a ser

criticadas, e passou-se a exigir que medidas repressivas fossem adotadas.

Já a segunda escola ficou conhecida por Doutrina Jurídica da Situação Irregular, tendo

entrado em vigor com o advento do Código de Menores de 1979. Elencava situações arriscadas

que poderiam conduzir o menor a um estado de marginalização, o que decorreria diretamente do

abandono moral ou material ao qual ele fosse submetido. Entendia-se que a desagregação da

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família, por exemplo, configuraria causa suficiente para a marginalização do menor, já que a

irregularidade deste seria reflexo da irregularidade de sua família (PEREIRA, 2000).

Logo em seguida, em 1988, houve a promulgação da Constituição Federal que encampou

a doutrina da Proteção Integral e agasalhou o princípio do Melhor Interesse da Criança como seu

corolário. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao apontar na mesma direção, sedimentou a

mudança operada na temática relativa à proteção infanto-juvenil. Ao contrário do que ocorria

quando da vigência da Doutrina Jurídica da Situação Irregular, em que os menores eram

considerados objetos de direito, seres sem vontade própria que dependiam do arbítrio do

magistrado, a Doutrina da Proteção Integral impõe uma nova forma de lidar com os mesmos ao

torná-los os principais personagens nas decisões em que estejam envolvidos. A manifestação de

vontade dos menores passa a ser valorizada e respeitada – inclusive juridicamente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, acompanhando as orientações constitucionais,

traz vários dispositivos elucidativos da proteção oferecida aos menores, entre os quais se

encontram os artigos 3º, 17 e 18:

Art. 3º – A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à

pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-

se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes

facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de

liberdade e de dignidade.

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica

e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da

identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a

salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou

constrangedor.

A formulação do conceito do referido princípio, mesmo após todo o exposto, não é tarefa

simples, em virtude da própria indeterminação conceitual inerente a qualquer princípio.

Conforme esclarece Rodrigo da Cunha,

Os princípios, diferentemente das regras, não trazem em seu bojo conceitos

predeterminados. A aplicação de um princípio não o induz à base do tudo ou nada,

como ocorre com as regras; sua aplicação deve ser ―prima facie‖. Os princípios, por

serem standards de justiça e moralidade, devem ter seu conteúdo preenchido em cada

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circunstância da vida, com as concepções próprias dos contornos que envolvem aquele

caso determinado. Têm, portanto, conteúdo aberto. (PEREIRA, 1999, p. 91).

Tânia da Silva Pereira anui com o pensamento acima exposto ao asseverar que a análise

do caso concreto far-se-á sempre necessária. A aplicação do princípio do best interest permanece

como um padrão, considerando, sobretudo, as necessidades da criança em detrimento dos

interesses de seus pais, devendo realizar-se sempre uma análise do caso concreto. (PEREIRA,

1999, p.03).

Em face à imanente indeterminação conceitual que o princípio carrega, mais apropriado

do que buscar engessá-lo em uma definição exata é assumi-lo como critério interpretativo em

qualquer situação em que o interesse do menor esteja envolvido. E, para além da sua aplicação

na solução de casos atuais, o princípio deve embasar a elaboração de novas leis atinentes à

infância e à adolescência.

Fácil concluir que o princípio em comento ocupa posição destacada no que toca ao

planejamento familiar. Em primeiro lugar, porque seu interesse deve ser visto como prioritário

frente aos dos demais componentes da família. E em segundo, porque a expressão ―melhor

interesse da criança‖ não se resume às crianças já existentes, abarcando também as crianças

futuras. Tal constatação é crucial para a temática da reprodução artificial e, em especial, para a

do presente trabalho, uma vez que constitui fundamento para a proibição da utilização

desmotivada e voluntarista de indivíduos que pretendam utilizar-se das inovações genéticas para

obter um bebê cujas características tenham sido escolhidas. Sobre as crianças por vir, assim se

manifesta Gama:

Pode-se considerar que o espectro do melhor interesse da criança não se restringe às

crianças e adolescentes presentes – na adjetivação normalmente adotada na legislação

brasileira – mas abrange também as futuras crianças e adolescentes fruto do exercício

consciente e responsável das liberdades sexuais e reprodutivas de seus pais. Trata-se de

uma reformulação do conceito de responsabilidade jurídica – no mais amplo sentido do

termo – para abranger as gerações futuras, e, nesse contexto, é fundamental a

efetividade do princípio do melhor interesse da criança no âmbito das atuais e próximas

relações paterno-materno-filiais. (GAMA, 2003, p. 462).

O princípio do melhor interesse da criança, além de atuar como critério interpretativo na

tutela dos interesses dos menores, constitui um crucial limite ao exercício dos direitos

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reprodutivos, principalmente diante da utilização das técnicas de procriação assistida aliadas às

descobertas genéticas.

3.3.3.1.2 – Paternidade responsável

Como matéria de foro personalíssimo, o direito de reprodução - e a liberdade sexual –

inserem-se na esfera de liberdade individual, livres de pressões externas. Por conseguinte, e

como derivação inescusável, a responsabilidade pelo exercício desse direito deve ser assumida

pelo seu titular. Conforme leciona Villela, ―a liberdade não exclui a responsabilidade. Ao

contrário: é esta que não tem como exercitar-se onde falta aquela.‖ (Villela, 1980, p. 19).

Assim, o disposto no artigo 226, §7º da Constituição Federal prevê o livre planejamento familiar

ao mesmo tempo em que impõe restrições – entre elas, a responsabilidade parental.

Interessante destacar a ressalva trazida por Guilherme Gama (2003, p. 452-453) que se

dirige à expressão ―paternidade responsável‖ escolhida pelo constituinte, contestando seu

significado por induzir à conclusão de que a responsabilidade estaria restrita apenas ao pai,

enquanto a mãe poderia ser irresponsável. O autor sugere a substituição de tal expressão,

claramente equivocada, por ―parentalidade responsável‖, que por representar com fidelidade o

sentido do compromisso assumido pelos genitores, será adotada neste trabalho.

A idéia ínsita à noção de parentalidade responsável é a correlação entre direitos e

deveres. Do exercício da autonomia reprodutiva acarretará a assunção do dever parental, de

modo inarredável, que não se exaure na ocasião do nascimento da criança - se perdura no tempo.

A consciência a respeito da paternidade e da maternidade abrange não apenas os efeitos

posteriores ao nascimento do filho, para o fim de gerar a permanência da

responsabilidade parental principalmente nas fases mais importantes de formação e

desenvolvimento da personalidade da pessoa humana: a infância e a adolescência, sem

prejuízo logicamente das consequências posteriores relativamente aos filhos na fase

adulta – como, por exemplo, os alimentos entre parentes. Tal deve ser a consideração a

respeito do sentido da parentalidade responsável, o que de certo modo se associa aos

princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança e do

adolescente, dentro de uma perspectiva mais afetiva e social do que puramente

biológica. (GAMA, 2003, p. 455).

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Diante do exposto, entende-se que o exercício dessa liberdade deveria vir sempre

acompanhado de profunda reflexão, a fim de que haja plena consciência do compromisso

assumido. Frivolidade e parentalidade são conceitos completamente divorciados. Além da

imensa responsabilidade pela formação de um indivíduo, a decisão de ter um filho atinge o

próprio projeto de vida, na medida em que se firma um compromisso com a existência.

Essa liberdade responsável faz-se necessária quaisquer que sejam os meios escolhidos

para a reprodução – natural ou artificial, e tem início antes mesmo do nascimento do filho:

começa com a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diante de tantas possibilidades,

o(s) genitor(es) há que se conscientizarem também sobre a necessidade de se fazer o bom uso da

ciência. Não se pode valer do direito à liberdade ou da autonomia com o fito de se manipular o

genoma embrionário injustificadamente, como se o direito à procriação fosse absoluto.

A tecnologia reprodutiva apresenta grandes benefícios, como quando concretiza o projeto

parental de um casal infértil, ou quando evita a transmissão de uma grave doença genética a uma

criança. No entanto, a utilização abusiva de tais técnicas pode desencadear o início de uma era de

discriminação genética, em que os pais desejam não um filho, mas um bebê desenhado, com

características pré-definidas. É nesse sentido que se ressalta a responsabilidade da utilização das

técnicas de reprodução assistida como uma vertente da paternidade responsável.

3.3.3.1.3 – Dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade humana, mais do que exercer papel limítrofe na aplicação das

tecnologias reprodutivas, subsiste como alicerce da República brasileira e sustentáculo de um

Estado Democrático de Direito, consoante se infere da clara redação do artigo 1º, III da CR/88:

Art. 1 – A República Federativa do Brasil, formada pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-

se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III – a dignidade da pessoa humana

(...)

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Ana Carolina Brochado Teixeira informa que a positivação desse princípio se deu pela

primeira vez em 1949, na Alemanha, quando a Lei Fundamental de Bonn28

a elevou à condição

de princípio fundamental. Em seguida, veio o reconhecimento por parte das Constituições

portuguesa29

e espanhola30

. (TEIXEIRA, 2004, p. 64).

O âmbito de atuação do citado princípio possui largo espectro, ao consubstanciar-se como

eixo orientador da ação estatal, centro normativo e legitimador da ordem jurídica. Sua

consagração é tal que foi alçado à posição de supremacia na ordem jurídica democrática,

repousando sobre ele a esperança da unificação axiológica e da edificação do ser humano. Daniel

Sarmento prossegue:

O princípio da dignidade humana representa o epicentro axiológico da ordem

constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não

apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se

desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado. A despeito do caráter

compromissório da Constituição, pode ser dito que o princípio em questão é o que

confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de

respeito irrestrito ao ser humano – razão última do Direito e do Estado. Assim, é

apenas o respeito à dignidade da pessoa humana que legitima a ordem estatal e

comunitária, constituindo, a um só tempo, pressuposto e objetivo da democracia. Por

outro turno, transparece da própria dicção do princípio a sua pretensão universalista,

que se evidencia, por exemplo, na redação da Declaração Universal dos Direitos do

Homem, em cujo preâmbulo consta que a dignidade inerente a todos os membros da

família humana é fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

(SARMENTO, 2002, p. 59-60).

Apreende-se do pensamento explicitado a real dimensão do que se espera do princípio em

análise: a tutela integral e incondicional do ser humano, na medida em que insurge contra

qualquer tentativa de abjeção do indivíduo, nas esferas pública e privada.

_________________

28- A Lei de Bonn, em seu art.1, assim dispõe: ―A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes

estatais‖.

29– Art. 1º da Constituição de Portugal: ―Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e

empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária‖.

30 – Art. 10º da Constituição da Espanha: ―A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da

personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem pública e da paz social‖.

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Guilherme Gama relata o momento inicial da construção do conceito de dignidade

humana, apontando o Antigo e o Novo Testamento como as residências das primeiras menções a

um valor inerente ao ser humano que impediria sua instrumentalização. Por conseguinte, o

Cristianismo passou a considerar todos os seres humanos – e não apenas aqueles que

professassem a religião cristã – como dignos de proteção. Posteriormente, na Antiguidade, era a

posição social que determinava o grau de dignidade gozado pelo indivíduo. Hodiernamente, não

há diferenciação entre os indivíduos: todos são dotados dessa qualidade, que os diferencia dos

objetos, por não serem passíveis de valoração patrimonial. (GAMA, 2003, p. 130). Tal raciocínio

tem forte inspiração kantiana, cuja doutrina assentia que ―quando uma coisa está acima de todo

o preço, e portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade‖ (KANT, 1993, p. 77).

O reflexo da doutrina de Kant na concepção do princípio da dignidade humana é

substancioso, na medida em que fornece as bases para a valorização do homem, coibindo sua

reificação. Kant considerava o homem a sua própria medida, o que impedia que ele fosse o meio

utilizado para se alcançar um fim. Tal noção é de grande serventia para a compatibilização do

desenvolvimento biotecnológico com o sistema jurídico, uma vez que tanto a elaboração quanto

a aplicação de quaisquer políticas legislativas devem se pautar pela edificação do ser humano.

Caso tal orientação não seja seguida, corre-se o risco de ferir de morte preceitos caríssimos ao

Estado Democrático de Direito, tais como os da liberdade, da igualdade e da autonomia. A

aplicação das tecnologias genéticas, ainda sem regulamentação jurídica, apresenta reais

possibilidades de afronta à tutela do ser humano, caso se proceda de modo arbitrário. A

descoberta do limite jurídico passa pelo respeito ao princípio da dignidade humana,

essencialmente, a despeito de nele não se encerrar. No mesmo sentido argumenta Cleber Alves:

A questão da proteção e defesa da dignidade da pessoa humana e dos direitos da

personalidade, no âmbito jurídico, alcança uma importância proeminente neste final de

século, notadamente em virtude dos avanços tecnológicos e científicos experimentados

pela humanidade, que potencializam de forma intensa riscos e danos a que podem estar

sujeitos os indivíduos, na sua vida cotidiana. (ALVES, 2001, p. 118).

Frente à verificação da indisponibilidade desse princípio pelo ordenamento jurídico como

um todo se faz imprescindível sua conceituação, a fim de que se proceda à efetiva proteção do

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indivíduo. No entanto, tal tarefa não se afigura como simples, já que os contornos desse conceito

não são em nada precisos, a ponto de existir quem verse sobre sua total impossibilidade31

. Tal

posição não será aqui tomada, em virtude de se entender a definição - ainda que ampla - como

condição para sua adequada compreensão e aplicação no mundo jurídico.

Maria de Fátima Sá e Ana Carolina Teixeira (2005, p. 104) baseiam-se em Hasso

Hofmann32

, cujos ensinamentos preconizam a existência de duas correntes que conferem

conteúdo à dignidade humana: a teoria della dote e a teoria della prestazione. A primeira atribui

à natureza ou ao Criador a concessão da dignidade do homem, como uma dádiva. O indivíduo é

visto como possuidor de um valor absoluto. Já a segunda teoria não assente com a atitude passiva

do homem: a dignidade resulta do seu próprio agir. As autoras prosseguem:

Assim, ao que nos parece, o grande desafio dos nossos operadores do Direito e da

sociedade como um todo está em entender a dignidade não somente como uma

qualidade do ser humano ou como ‗uma condição do espírito‘, tal como preconiza a

teoria della dote, acima mencionada, mas entender que se funda no reconhecimento

social, através da valoração positiva, na busca de respeito social. A dignidade deve ser

buscada em meio às relações sociais, compreendida, portanto, como uma categoria do

próximo, na comunhão dos indivíduos. Somente assim poderemos buscar soluções

legítimas para questões intricadas. (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 105)

_________________________

31 – Ingo Wolfgang Sarlet informa a existência de doutrinadores ―que refutam a possibilidade de uma definição, ou pelo menos, uma de uma

definição jurídica da dignidade‖. Entre estes, destacam-se ―NEIRINCK, Claire, La Dignité de La Personne ou Le Mauvais Usage d‘une Notion

Philosophique, in: P. Pedrot (Dir). Ethique Droit et Dignité de La Personne, Paris: Economica, 1999, p.50, advertindo que ‗as noções filosóficas

(como é o caso da dignidade) não encontram solução no Direito‘. Na mesma direção, BORELLA, François, Le Concept de Dignité de La

Personne Humaine, in: P. Pedrot (Dir). Ethique, Droit et Dignité de La Personne, Paris: Economica, 1999, p.37, nega que a dignidade seja um

conceito de direito positivo, embora admita que possa ser reconhecida e protegida pelo Direito. (SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da

Dignidade da Pessoa Humana: Uma Compreensão Jurídico-Constitucional Aberta e Compatível com os Desafios da Biotecnologia. In:

SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (Coord.) Nos Limites da Vida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 210).

32 – HOFMANN, Hasso. La promessa della dignità umana. La dignità dell‘uomo nella cultura giuridca tedesca. Revista Internazionale di

Filosofia Del Diritto. Roma, série 4, ano 76, p. 625, out.-dez. 1999

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Interessante a contribuição de Gama para o debate, ao ressaltar a diferença entre as

noções de dignidade humana e dignidade da pessoa, já que a primeira se correlaciona com a

humanidade enquanto conjunto, corporificando a idéia da dimensão social da dignidade da

pessoa, que parte da estruturação do indivíduo frente aos demais, e não limitado à sua própria

situação.

O mesmo autor prossegue, destacando o fato de que as noções sociais de dignidade não

são imutáveis; ao contrário, cada comunidade apresenta uma noção do que configura a conduta

indigna, em virtude da assunção de critérios religiosos, culturais, históricos e políticos

observados por cada grupo. Por óbvio, diferentes experiências vivenciadas por comunidades

também diferentes ocasionam diversas concepções acerca de um mesmo tema. Por isso, a noção

de dignidade deve se alinhar aos valores aceitados pelo grupo social ao qual se relaciona, sob

pena de cair no ostracismo. (GAMA, 2003, p. 134). Assim sendo, o conceito de dignidade não é

fixo, imutável e nem passível de definição apriorística – porque decorrente do caso concreto.

Sarlet enriquece a discussão:

É impossível reduzir a uma fórmula abstrata e genérica tudo aquilo que constitui o

conteúdo da dignidade da pessoa humana, em outras palavras, a definição do seu

âmbito de proteção ou de incidência (em se considerando sua condição de norma

jurídica), o que, por sua vez, não significa que não se possa ou deva buscar uma

definição, que, todavia, acabará alcançando pleno sentido e operacionalidade em face

do caso concreto. (SARLET, 2001, p. 57).

Fazendo coro à opinião apresentada, a doutrina, de modo geral, admite a construção caso

a caso do conceito do princípio em tela, em razão do seu conteúdo aberto e elástico. Canotilho

(1992, p. 367) manifesta-se no mesmo sentido, ao assentir que ―a literatura jurídica mais recente

tem evitado formular um conceito sobre princípio da dignidade da pessoa humana para não

incorrer num conceito „fixista‟ e filosoficamente sobrecarregado.‖ Com efeito, pretender obter

uma conceituação rígida, operada in abstrato e a priori da dignidade é uma tarefa cujo fracasso

se antevê, posto serem tais elementos provocadores do engessamento do conceito, o que

contraria toda a base sobre a qual se assenta a hermenêutica atual. Edilsom Pereira de Farias

ilustra essa questão, ao consentir que o princípio da dignidade da pessoa humana.

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é um princípio semântico e estruturalmente aberto, de ‗abertura

valorativa‘, o que faz com que o mesmo seja em grande parte

colmatado pelos agentes jurídicos no momento da interpretação e

aplicação das normas jurídicas. Assim, em razão de o princípio da

dignidade humana ser uma categoria axiológica aberta, considera-se

inadequado conceituá-lo de forma ‗fixista‘. Além do mais, uma

definição filosoficamente sobrecarregada, cerrada, é incompatível com

o pluralismo e a diversidade, valores que gozam elevado prestígio nas

sociedades democráticas contemporâneas. (FARIAS, 2000, p. 61,

destaques no original).

A formatação do princípio em concreto explora a dimensão relacional que lhe é inerente e

proporciona a sua contextualização histórica e cultural, além de obstar a redução de seu aspecto

protetivo.

Coerentemente com o pensamento acima trazido, Sarlet oferece sua conceituação do

princípio jurídico em análise:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser

humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e

da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres

fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho

degradante de desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais

mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e

co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os

demais seres humanos. (SARLET, 2001, p. 60)

A proposta citada traz a dupla dimensão do princípio – uma negativa, no sentido da

necessidade de abstenção, por parte da coletividade, de ações atentatórias à dignidade individual

– e outra positiva, socorrendo-se da vertente promocional do Estado de garantir o substrato para

uma existência digna. Estritamente ligada a essa noção, encontra-se o fato de que a dignidade

impõe, a um só tempo, a promoção do ser humano e o limite de atuação, não só do Poder

Público, mas da sociedade em conjunto. Seu aspecto limítrofe guarda relação com o alcance das

ações estatais: apesar de soberano, o Estado não possui permissão para atropelar a dignidade de

seus súditos (aspecto negativo da ação pública). A empreitada, por outro lado, simboliza a tarefa

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de promover as condições indispensáveis para que a dignidade se faça presente na vida dos

cidadãos – uma vertente positiva da atuação estatal33

.

Maria Celina Bodin de Moraes (2003, p. 81-117) procede à definição conceitual por meio

da decomposição do princípio fundamental do ordenamento jurídico em quatro elementos

integrantes – e condicionantes – da persecução da dignidade. Assim, emergem os princípios da

igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade como desdobramentos e

corolários do princípio da dignidade da pessoa humana. É a própria autora que apresenta a

fundamentação desta construção:

De fato, quando se reconhece a existência de outros iguais, daí dimana o princípio da

igualdade; se os iguais merecem idêntico respeito à sua integridade psicofísica, será

preciso construir o princípio que protege tal integridade; sendo a pessoa essencialmente

dotada de vontade livre, será preciso garantir, juridicamente, esta liberdade; enfim,

fazendo ela, necessariamente, parte do grupo social, disso decorrerá o princípio da

solidariedade social. (MORAES, 2003, p. 117).

A assunção dos quatro princípios jurídicos relatados como norteadores da delimitação

conceitual do princípio da dignidade humana guarda importante relação com o tema

desenvolvido neste trabalho, a partir da averiguação do respeito a esses (princípios) como limite

jurídico da intervenção embrionária. Torna-se possível verificar se a tutela do ser humano está

sendo promovida a partir da aferição do acatamento da liberdade, da integridade psicofísica, da

solidariedade e da igualdade. De modo reflexo, o ataque a qualquer um desses princípios redunda

em afronta à sua dignidade.

____________________

33 – No mesmo sentido posiciona-se Daniel Sarmento: ―É importante destacar que o princípio em pauta não representa apenas um limite para os

Poderes Públicos, que devem abster-se de atentar contra ele. Mais do que isso, o princípio traduz um norte para a conduta estatal, impondo às

autoridades públicas o dever de ação comissiva, no sentido de proteção ao livre desenvolvimento da personalidade humana, com o asseguramento

das condições mínimas para a vida com dignidade. É por isso que, do princípio em tela, é possível extrair prestações estatais positivas, ligadas à

garantia do mínimo existencial, mesmo quando relacionadas a direitos não contemplados expressamente no texto constitucional (e.g., direito à

alimentação). Cabe também ao Estado impedir os atentados à dignidade da pessoa humana cometidos por terceiros, coibindo-os e reprimindo-os,

após a sua prática‖. (SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.113-114).

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A necessidade – assim como a dificuldade - de se encontrar elementos suficientes para

definir o preceito jurídico em questão também são destacados pela mesma autora:

O valor da dignidade alcança todos os setores da ordem jurídica. Eis a principal

dificuldade que se enfrenta ao buscar delinear, do ponto de vista hermenêutico, os

contornos e os limites do principio constitucional da dignidade da pessoa humana. Uma

vez que a noção é ampliada pelas numerosíssimas conotações que enseja, corre-se o

risco da generalização, indicando-a como ratio jurídica de todo e qualquer direito

fundamental. Levada ao extremo, essa postura hermenêutica acaba por atribuir ao

princípio um grau de abstração tão intenso que torna impossível a sua aplicação.

(MORAES, 2003, p. 84)

Extremamente relevante é a conclusão obtida pela autora: a aplicação não criteriosa do

princípio da dignidade acaba por esvaziar seu conteúdo, que passa a ser aplicado em qualquer

situação, mas cuja compreensão resta prejudicada. Desta forma, ainda que seja inegável sua

essência abstrata, urge conferir elementos que sustentem a aplicação desse princípio no

ordenamento. Maria Celina Moraes assim o fez, alçando a dignidade humana à condição de

macroprincípio e subdividindo-o em quatro, dos quais o presente trabalho se ocupará a partir de

agora.

a) Princípio da liberdade

A noção do que consiste a liberdade perpassou por vários estágios na história dos homens

até alcançar o patamar em que hoje se encontra. O pensamento liberal conferia-lhe um sentido

negativo no que concerne à atividade estatal, caracterizando-se pela abstenção nas decisões

afetas à vida privada. Nesta época encontrava-se vigente a perspectiva formal da igualdade, que

correspondia aos direitos individuais. A convicção de que o mercado – e, por extensão, os

homens – se auto - regulariam de forma harmônica não frutificou. Rapidamente verificou-se a

subjugação dos mais fracos, o que obrigou uma intervenção estatal a partir de um viés

protecionista, culminando na adoção da igualdade material e na propalação dos direitos sociais.

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A inegável junção entre os conceitos de liberdade e dignidade é trabalhada por Ingo

Wolfgang Sarlet (2003, p. 206): ―a liberdade e, por conseguinte, também o reconhecimento e a

garantia de direitos de liberdade (e dos direitos fundamentais de um modo geral) constituem

uma das principais (se não a principal) exigências da dignidade da pessoa humana”. Fácil

concluir que só pode ter uma vida digna quem é livre para escolher qual caminho seguir.

Com esteira nesse pensamento surge a noção de autonomia, umbilicalmente vinculada à

discussão que se desenrola e de importância vital para a adequada compreensão do princípio da

dignidade. Tal correlação originou-se no pensamento kantiano, que propunha a autonomia como

fundamento da dignidade humana. Brunello Stancioli desenvolve esta idéia:

Para Kant, a consecução de valores universais, que traduzam a boa vontade em si, a

parte do principio que toda pessoa é um legislador em potencial, ou seja, todos devem

exercer a autonomia na criação de normas, tendo como base que todas as outras

pessoas são livres para também fazê-lo.

Por tido, nota-se que Kant, ao averiguar como se obter leis válidas para toda a

humanidade, conclui que tal só é possível quando toda pessoa é capaz de ser

legislador, não em âmbito particular, mas para toda a comunidade de seres racionais

(pessoas). Kant filia-se à mesma linha, já citada, de Mirandola, ao afirmar que

autonomia é, pois, o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza

racional. (STANCIOLI, 2007, p. 69 – destaques no original)

Deriva desse raciocínio a adoção do homem como um fim em si mesmo, o que serve de

substrato para a não instrumentalização do ser humano frente aos avanços científicos. Maria

Celina corrobora esta afirmativa:

Compõe o imperativo categórico a exigência de que o ser humano seja visto, ou usado,

jamais como um meio para atingir outras finalidades, mas sempre como um fim em si.

Isto significa que todas as normas decorrentes da vontade legisladora dos homens

precisam ter como finalidade o homem, a espécie humana enquanto tal. O imperativo

categórico orienta-se, então, pelo valor básico, universal e incondicional da dignidade

humana. (MORAES, 2003, p. 80)

Acurado dizer que o princípio da liberdade individual consolida-se na admissão da

autonomia individual, que autoriza o exercício do projeto de vida desenhado pelo próprio ser

humano, livre de intervenções externas. Ser digno é, por derivação, ser livre para se auto-

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determinar. Segundo o preceito kantiano: ―Ninguém me pode constranger a ser feliz à sua

maneira [...], mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa.‖

(KANT, 2002, p. 75).

O respeito ao liame existente entre liberdade, dignidade e autonomia faz-se premente

para a discussão dos limites lícitos de aplicação da engenharia genética. O atendimento de tais

princípios demonstra a direção certa a ser trilhada pela ciência. Brunello Stancioli compartilha da

mesma opinião:

A intervenção no corpo pode ser feita, desde que se respeite, como parâmetro, as outras

dimensões estruturais da pessoa: sua autonomia, sua abertura à alteridade e o auto-

reconhecimento da sua dignidade. (...) Em outras palavras, qualquer intervenção no

corpo humano não lhe pode retirar, em definitivo, a própria condição de se auto-

realizar como pessoa, seja por meio de terapia genética, seja pela medicina intra-uterina

ou qualquer outro meio. A manipulação não pode elidir a capacidade de auto-

referência, em especial quando se trata de seu nível mais elementar: o orgânico.

(STANCIOLI, 2007, p. 139-140)

Tais conceitos devem ser seguidos nos processos do aconselhamento genético, da seleção

embrionária, do diagnóstico pré-implantatório e da terapia gênica, em virtude não só de

assegurarem a legitimidade de tais práticas, mas, sobretudo, em respeito à autonomia, à liberdade

e à dignidade da pessoa por nascer.

b) Princípio da igualdade

Ostentam-se como marcos da elevação da igualdade à categoria de princípio jurídico as

Constituições dos Estados Unidos da América, datada de 1787, e da França, promulgada em

1791, porém precedida pela Declaração dos Direitos do Homem, ocorrida na Revolução

Francesa, em 1789. (ABREU, 2001, p.258). Inserida na época do liberalismo clássico, a primeira

vertente da igualdade era meramente formal, apregoando a abolição das desigualdades antes

existentes, com o fito de que cada cidadão desenvolvesse suas habilidades, numa alusão à

igualdade também de oportunidades entre os trabalhadores. No entanto, o Poder Público ocupava

posição abstinente, não se envolvendo nos assuntos particulares. Não se falava em

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76

desenvolvimento de políticas promocionais das necessidades humanas, tais como moradia,

alimentação, saúde, lazer. A letra da lei era considerada suficiente para fornecer a subsistência

aos cidadãos. Comparato (2001, p.12) retrata a correlação entre legalidade e igualdade formal:

―essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados pelo

simples fato de sua humanidade nasce vinculada a uma instituição social de capital

importância: a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicada a todos‖.

No entanto, esse modelo não interventivo não logrou êxito, carecendo da participação

estatal para regular as relações travadas entre particulares e proporcionar o acesso às condições

mínimas de existência à população carente.

Buscou-se uma nova concepção de igualdade, baseada na intervenção estatal em setores

políticos, econômicos e jurídicos, com o fito de se alcançar a efetiva equiparação entre os

homens. A igualdade material foi a resposta oferecida, cujo marco inicial subtrai-se da

Constituição de Weimar, datada de 1919 e berço dos direitos sociais e coletivos.

A Constituição da República brasileira preconiza o princípio da igualdade, consagrando

sua vertente substancial e propiciando condições diferentes para indivíduos que não se

encontrem na mesma condição. O princípio alcança normas dos mais diversos ramos do Direito,

dentre os quais o Direito de Família, no que tange, por exemplo, à equiparação entre os filhos,

independente da origem34

. Seu papel na consubstanciação do princípio da dignidade é inegável.

Consoante Maria Celina de Moraes (2003, p.86): ―O fundamento jurídico da dignidade humana

manifesta-se, em primeiro lugar, no princípio da igualdade, isto é, no direito de não receber

qualquer tratamento discriminatório, no direito de ter direitos iguais aos de todos os demais‖.

Outra vertente desse princípio vem se desvelando. A doutrina mais abalizada discute,

atualmente, o direito à igualdade na perspectiva do reconhecimento de um direito à diferença, no

sentido de respeitar a diversidade inerente à espécie humana. Tais conceitos, apesar da primeira

impressão, não são contraditórios: ambos devem se articular, a fim de que se promova a integral

tutela do ser humano, na medida em que a diversidade de todos os povos seja igualmente

respeitada.

_____________________

28 – O artigo 226, parágrafo 7 da CR/88 expressamente prevê que os filhos, havidos ou não da relaçao matrimonial, ou por adoção, gozarão dos mesmos direitos e

qualificações.

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77

Maria Celina Bodin de Moraes apresenta arguta contribuição:

Ao princípio da igualdade deve ser integrado o princípio da diversidade, ou seja, o

respeito à especificidade de cada cultura. A identidade da cultura de origem é um valor

que deve ser reconhecido, e o respeito da identidade e da diferença cultural encontra-se

na base do próprio princípio da igualdade, que justamente o funda e o sustenta. O

paradoxo é aparente. Cabe distinguir igualdade como estado de fato e igualdade como

regra ou princípio. A diferença é o contrário da igualdade como estado de fato (se duas

coisas são diferentes é porque não são iguais); todavia, quanto à igualdade como

princípio, seu oposto não é a diferença, mas a desigualdade. (MORAES, 2003, p. 124)

Nesta senda, invocam-se as palavras de Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 115), para

quem ―temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser

diferentes quando a igualdade nos descaracteriza‖. Na sociedade contemporânea, caracterizada

pela existência dos mais variados grupos étnicos e culturais, a sentença aplica-se com perfeição.

O respeito ao princípio da igualdade encontra-se em momento crucial em face das

possibilidades discriminatórias oriundas das descobertas genéticas. Os dados obtidos a partir do

screening genético – técnica apta a traçar o perfil genético individual – devem receber proteção

com o fito de evitar sua equivocada utilização por empregadores e companhias de seguro e de

saúde. A instauração de uma nova era discriminatória – com base na informação contida no

genoma – deve ser coibida através da consecução do respeito ao princípio da igualdade.

Diversos documentos internacionais, alinhados à tendência mundial, têm proclamado o

respeito às diferenças inerentes ao patrimônio genético individual. A Declaração Universal sobre

o Genoma Humano e os Direitos do Homem, adotada pela UNESCO, declara, na redação do

artigo 6º, que ―nenhum indivíduo deve ser submetido a discriminação com base em

características genéticas, que vise violar ou que tenha como efeito a violação de direitos

humanos, de liberdades fundamentais e da dignidade humana‖.35

O desenvolvimento da aludida modalidade discriminatória é problemática em vários

aspectos: além de constituir clara afronta ao princípio da igualdade, atinge a constituição mais

elementar do cidadão.

_________________

35 – No mesmo sentido, o artigo 11 da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, adotada pelo Conselho da Europa em 1996.

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78

Além disso, revela-se profundamente injusta, na medida em que considera o

determinismo genético uma teoria adequada, quando não o é. O indivíduo pode carregar genes

que indiquem a propensão a certa doença, por exemplo, que nunca evoluirá em virtude da

interação de fatores ambientais, comportamentais e genéticos. A informação presente no DNA

não é prova cabal da irrupção da doença, que está subjugada às mais variadas condicionantes.

Outro argumento que revela o total descabimento da noção de discriminação genética é o

que toca à biodiversidade. Para além da constatação de que a diversidade é inerente à espécie

humana, vários autores declaram que ela promove o enriquecimento da própria humanidade.

Portanto, aliado ao fato de não ser causa de discriminação, deve ser motivo de orgulho. Roberto

Andorno (1998, p. 74-75) sintetiza tal pensamento: ―A diversidade genética não é um fardo para

a humanidade, sendo uma riqueza que se deve proteger 36

‖. Stela Marcos de Almeida Neves

Barbas (1998, p. 18) expõe na mesma direção: ―cada ser humano tem o direito de ser diferente

de todos os outros e é nesta diferença que se constrói o equilíbrio social.‖.

Por conseguinte, a diversidade intrínseca a cada indivíduo e, em decorrência, à

humanidade considerada em conjunto, manifesta-se, na lição de Paulo Otero (1999, p. 66) ―no

respeito pela biodiversidade: não obstante a natureza humana ser sempre a mesma, a verdade é

que ela se realiza de forma exclusiva em cada ser humano, integrando o núcleo da respectiva

dignidade o respeito pelo carácter único e diverso dos seus elementos genéticos‖.

Por fim, acurado ressaltar que é na singularidade atinente à cada ser humano que reside a

sua identidade e, por isso mesmo, é digna de ser respeitada. A originalidade individual professa o

soterramento de qualquer pretensão discriminatória fundada nas características genéticas.

______________________

36 – Tradução livre. No original: ―La diversidad genética no es um fardo para la humanidad, sino uma riqueza que debe protegerse‖.

ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de La persona. Madrid: Tecnos, 1998.

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79

c) Princípio da integridade psicofísica

A proteção do princípio da integridade psicofísica encontra-se em um momento

desafiador diante das possibilidades de manipulação conduzidas pelo avanço genético. Há receio

de que a tutela do princípio em causa seja desrespeitada, o que não é novidade na história da

humanidade. Em verdade, os avanços científicos e os temores decorrentes de sua aplicação

sempre andaram juntos. Com o intuito de garantir a tutela da pessoa humana, vários documentos

internacionais foram editados, dentre os quais: o Código de Nuremberg (1947), a Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração de Helsinque (1964), a Convenção

Americana de Direitos Humanos (1969), a Declaração de Valencia (1990), a Declaração

Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem (1997).

O princípio da integridade psicofísica oferece alicerceamento para a consagração do

direito `a vida, na medida em que promove a sua inviolabilidade. Sérgio Ferraz (1991, p. 25)

constata divergências entre a Constituição atual e a anterior no que concerne ao direito à vida.

Enquanto a primeira garante a inviolabilidade do ‗próprio direito à vida‟, a segunda referia-se

apenas à ‗inviolabilidade dos direitos concernentes à vida‟. O respeito à vida ocupa posição de

destaque no ordenamento jurídico, porque atua como guia – e, além disso, como condição - da

aplicação de todos os demais.

O conteúdo desse direito apresentou variações no decorrer da história, partindo de uma

forma rudimentar de proteção, configurada apenas no direito a não morrer, e adquirindo hoje a

conotação da vida que vale a pena ser desfrutada, ou seja, a vida digna. Busca-se com afinco,

cada vez mais, a qualidade de vida.

Qualidade de vida e direito à saúde são conceitos correlatos, já que o segundo configura

uma das condições de exercício do primeiro. A Organização Mundial de Saúde (OMS)37

conceitua esse direito de modo bastante abrangente, asseverando que ―a saúde é um estado de

completo bem-estar físico-mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade‖.

__________________________

37 – Definição contida no Preâmbulo do Ato Fundador da Organização Mundial de Saúde, assinado por 61 Estados, dentre os quais se inclui o

Brasil.

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A busca por essa sensação de bem-estar é de competência privativa do indivíduo, já que a

cada um é garantido o direito de viver da forma que melhor lhe aprouver, consoante se infere da

interpretação e conjugação dos princípios da autonomia e da liberdade.

O direito à saúde integra o elenco dos direitos sociais previstos no artigo 6º da CR/88,

sendo considerado ―direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal

e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.38

A conceituação de saúde oferecida pela OMS é criticada por Brunello Stancioli, para

quem ―atingir a saúde, em termos objetivos, torna-se uma tarefa impossível, talvez só reservada

àqueles que conseguem uma espécie de nirvana, no curto período da vida terrena.‖

(STANCIOLI, 2004, p. 86). A partir da definição proposta por tal órgão, a saúde converte-se

em um fardo, porque exaustiva a sua busca. A definição apresentada reúne elementos carregados

de parcialidade, como o estado de completo bem-estar, o que é inadequado para caracterizar a

saúde, por não carregar termos científicos passíveis de verificação. O mesmo autor traz relevante

contribuição ao falar na existência do direito ao tratamento, ao cuidado da saúde, em

contraposição a um dito direito à saúde. A diferença reside na exigibilidade. Não há que se falar

em exigir saúde de outrem, em virtude de não estar ao alcance de nenhum ser humano o poder de

desempenhar esse papel. O tratamento, no entanto, é dever estatal passível de exigência,

integrando o rol de direitos sociais do cidadão. (STANCIOLI, 2004, p. 87-88).

O debate se renova com a introdução da terapia gênica entre as possibilidades de

tratamento disponíveis – se não de imediato, em um futuro muito próximo. Seja efetuada nas

células somáticas, seja nas germinativas, há que se atentar para a irrupção de uma nova forma de

tratamento, a bem da verdade, bastante útil, em razão dos fortes indícios de sucesso – por ser

uma técnica personalizada, anterior à manifestação sintomática da doença e capaz de contornar

situações ainda incuráveis. Maria Helena Diniz destaca que ―as novas técnicas de engenharia

genética têm capacidade para detectar mais de 3 mil patologias congênitas, entre elas a anemia

falciforme, a anencefalia, a doença de Tay-Sachs,, a talassemia e a miopatia de Duchenne.”

(DINIZ, 2002, p. 468).

_______________

38 – Art. 196, CR/88

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O princípio da integridade psicofísica, no que abarca as novas descobertas genéticas

relacionadas ao direito à saúde (ou ao tratamento), exerce função conciliatória entre a

biotecnologia e o princípio da dignidade humana, porque permite a usufruição das benesses e

limita a aplicação arbitrária da genética que poderia dar azo, por exemplo, à eugenia. Trata-se,

por conseguinte, de um campo por excelência da aplicação do princípio da dignidade.

d) Princípio da solidariedade

O preâmbulo da Constituição da República destaca os valores que devem fundar o Estado

Democrático de Direito e assegurar a existência de uma sociedade pluralista assentada na

harmonia social. Nesta toada, ao elencar os princípios constitucionais, o constituinte dispôs como

o primeiro objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa

e solidária39

.

Neste sentido, busca-se a dignidade social, à medida que se propõe o seu reconhecimento

como parte integrante do princípio da dignidade, aliada à autonomia individual. A concepção

mais abalizada do princípio da dignidade sustenta a presença de duas vertentes, uma pública e

outra privada, por assim dizer. Em face de uma sociedade plural, em que se faz premente o

respeito de todas as singularidades, não encontra lugar a consideração isolada da pessoa humana

que desconsidere o contexto social que a circunda. A dignidade individual, composta pelo direito

a autodeterminação pessoal, a ela não se restringe.

A consideração do ser humano a partir de uma visão individualizada está fadada ao

insucesso, já que a dignidade assume uma perspectiva relacional: é na interação com o outro que

a dignidade se edifica.

___________________

39 – Art. 3 da CR/88: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

(...)

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Nas palavras de Umberto Eco

assim como ensinam as mais laicas das ciências, é o outro, é seu olhar, que nos define e

nos forma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não

conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. Mesmo

quem mata, estupra, rouba, espanca, o faz em momentos excepcionais, e pelo resto da

vida lá estará a mendigar aprovação, amor, respeito, elogios de seus semelhantes. E

mesmo àqueles a quem humilha ele pede o reconhecimento do medo e da submissão.

Na falta desse reconhecimento, o recém-nascido não se humaniza (ou, como Tarzan,

busca o outro a qualquer custo no rosto de uma macaca), e poderíamos morrer ou

enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos

tivessem decidido não nos olhar jamais ou comportar-se como se não existíssemos.

(ECO, 2002, p. 83)

A reciprocidade, portanto, é um elemento da dignidade, e deve se fazer presente no

desenrolar das situações cotidianas. O indivíduo não pode agir tendo em mente apenas sua

vontade, porque se insere em uma sociedade multicultural, em que há diversos interesses - por

vezes conflitantes – igualmente tutelados. A autonomia e a liberdade individuais devem ser

revisitadas, a fim de que se proceda à sua atualização condizente com a visão abrangente

pretendida. O respeito à autonomia de uma pessoa não autoriza a mitigação da tutela da

dignidade de outro ser humano – existente ou futuro – cujos efeitos o atinjam. Portanto,

ampliam-se situações de suavização do princípio da autonomia a partir do seu necessário

equilíbrio com os interesses sociais.

Taísa Maria Macena de Lima desenvolve a correlação do princípio em tela com a

persecução de uma sociedade cujos componentes estejam a ela integrados, e não à sua margem, a

partir da vertente do direito-dever:

O relacionamento baseado na solidariedade é mais que uma questão de moralidade

social ou preceito religioso. No âmbito da normatividade jurídica, pode-se falar do

direito-dever de solidariedade social: todo ser humano é, ao mesmo tempo, credor e

devedor dessa solidariedade social. (LIMA, 2008, p. 162)

Destarte, essa feição de direitos e deveres correlacionados repercute na aferição da

possibilidade da redução do alcance da autonomia de um indivíduo para se resguardar a

dignidade de outro, em especial no que toca à manipulação embrionária. Por óbvio, o caso

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concreto fornecerá os elementos que serão condicionantes da melhor solução. No entanto,

inegável o conteúdo humanista da visão social da dignidade que contribui, em muito, para se

alcançar a tutela integral do(s) ser(es) humano(s).

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04 –TUTELA DA PESSOA HUMANA EM FACE DAS INTERVENÇÕES GENÉTICAS

A despeito do caráter incontroverso – a até redundante - da afirmação, oportuno recordar

a necessidade inescapável de se buscar soluções normativas para o progresso científico. Frente

ao rápido desenvolvimento da genética, diversas situações até então inimagináveis mostraram-se

viáveis, provocando conflitos entre os bens jurídicos igualmente tutelados e a insuficiência dos

institutos vigentes, o que proclama a reflexão com o fito de se atribuir coerência normativa ao

ordenamento, por meio do respeito ao eixo orientador que o perpassa, qual seja, a valorização da

pessoa humana.

A reviravolta das bases jurídicas é natural, e até esperada, já que é cediço o paralelo

existente entre avanço científico e reconstrução jurídica por meio reflexo. Conforme Comparato

(2001, p.50) ―as grandes etapas históricas de invenção dos direitos humanos coincidem com as

mudanças nos princípios básicos da ciência e da técnica‖. Desenrola-se, neste sentido, a

discussão acerca da existência dos direitos de 4º e 5º gerações, dentre os quais se

compreenderiam os direitos genéticos40

.

_________________

40 – Na lição de José Adércio Leite Sampaio: ―Os direitos de quarta geração estão em fase de definição e ainda não despertaram consenso entre

os estudiosos. Seriam, para uns, desdobramento da terceira geração, com o destaque necessário para a vida permanente saudável na Terra,

compondo os direitos intergeracionais a uma vida saudável ou a um ambiente equilibrado, como se afirmou na Carta da Terra ou Declaração do

Rio de 1992, repetindo-se no Manifesto do Tenerife e, incluindo-se ao lado da proteção da cultura (...). Reconhecem-se os direitos à vida das

gerações futuras; a uma vida saudável e em harmonia com a natureza e ao desenvolvimento sustentável. Também incluiriam limites ou restrições

aos avanços da ciência e especialmente da biotecnologia nos domínios de interferência com a liberdade, a igualdade e dignidade humanas. Assim

temos os direitos bioéticos ou biodireitos, referidos à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia. Lembremos da Convenção

Européia para Proteção dos Direitos do Homem e Dignidade do Ser Humano de 1997 e da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e

Direitos do Homem de 1997, que proíbem discriminações com base em herança genética e a clonagem humana. (...)

Como o sistema de direitos anda a incorporar os anseios e necessidades humanas que se apresentam com o tempo, há quem fale já de uma quinta

geração dos direitos humanos com múltiplas interpretações. (...) Para Marzouki (2003), tais direitos seriam direitos oriundos de respostas à

dominação biofísica que impõe uma visão única do predicado ‗animal‘ do homem, conduzindo os clássicos direitos econômicos, culturais e

sociais a todas as formas físicas e plásticas, de modo a impedir a tirania do estereótipo de beleza e medidas que acaba por conduzir a formas de

preconceitos com raças ou padrões reputados inferiores ou fisicamente imperfeitos. Essa visão de complementaridade é encontrada também em

Lebech (2000), todavia em relação ao direito à vida sob os desafios das novas tecnologias, derivando então um direito à identidade individual, ao

patrimônio genético e à proteção contra o abuso de técnicas de clonagem.‖ (SAMPAIO, José Adércio Leite.Direitos Fundamentais. Belo

Horizonte: Del Rey, 2004 , p. 298 e 302).

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A tecnologia ligada à genética encontrou farto campo de aplicação no domínio

reprodutivo. Fecundação artificial post mortem, útero de substituição, formação voluntária de

famílias monoparentais, clonagem terapêutica e manipulação genética são somente alguns dos

temas em recente análise provenientes da revolução genético-científica. A liberdade de pesquisa,

com expressão na investigação científica, é garantida pelo ordenamento jurídico e acarreta,

inegavelmente, benefícios para a humanidade, o que impede a adoção de uma postura

francamente constestatória assentada no pânico irrefletido. Clara é a obrigação de se sopesar os

ônus advindos das técnicas da engenharia genética, harmonizando-a com os valores que emanam

da Lei Magna, por meio inclusive de limitações à liberdade investigativa dos cientistas. No

entanto, as limitações apostas a ela devem ser fundamentadas, já que a regra é, a rigor, da livre

pesquisa41

. O Direito, portanto, terá a função de legitimar as práticas biomédicas, apondo os

limites necessários, com o condão de se atingir aceitação social. Nesta toada, a lição de Paulo

Otero:

...a denunciada tendência da moderna investigação cientifica ser conduzida sem

qualquer alusão a uma visão moral ou ética, levando certos cientistas a defenderem a

pesquisa como um fim em si mesma, (...), mostra-se agora contrariada pelo imperativo

constitucional no âmbito da pesquisa biomédica: a liberdade de criação de

experimentação científica não são ilimitadas, antes se encontram teleologicamente

orientadas ao serviço do homem e condicionadas a respeitar a dignidade e a identidade

genética de cada ser humano. (OTERO, 1999, p. 96)

Ao Direito não cabe, por decorrência, nem o papel de indiferença, assumindo que tais

questões são de responsabilidade estritamente científica, nem de prepotência, presumindo que as

alterações observadas serão naturalmente absorvidas pelo mundo jurídico por um processo

subsuntivo.

__________________

41 – As palavras de Matilde Carone Slaibi Conti corroboram a idéia de que a regra é a da liberdade de pesquisa, mas que há especo para

limitações: ―A liberdade de investigação encontra, indubitavelmente, as suas fronteiras, onde a experiência científica colide com os interesses,

valores ou bens jurídicos tutelados constitucionalmente. Em suma, a liberdade de pesquisa é a regra, mas não é plena, total, irrestrita: deve sofrer

as limitações imprescindíveis para a integridade e a preservação da pessoa humana, na sua dignidade. Tais limites devem estar, no entanto,

devidamente fundamentados e não podem ser inspirados por preconceitos, morais ou religiosos, ou por sentimentos inconsistentes de medo em

relaçao à biotecnologia moderna‖. (CONTI, Matilde Carone Slaibi. Ética e Direito na manipulação do Genoma Humano. Rio de Janeiro:

Forense, 2001, p. 90).

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4.1. – Limites à liberdade de pesquisa

O conhecimento advindo do mapeamento dos genes humanos, fruto do Projeto Genoma

Humano, trouxe inúmeras possibilidades e desconfianças, conforme já aventado. Mister atentar-

se para a destinação que será dada à essa informação, com o intuito de harmonizá-la com os

preceitos civil-constitucionais. Consoante expõe Stela Marcos de Almeida Neves Barbas (1998,

p. 206) ―há, pois, que se disciplinar os avanços da ciência no domínio da genética, acolhendo,

claro, como bênçãos os seus resultados positivos, mas não tolerando que se ponham em causa

os grandes princípios e valores que definem a nossa civilização‖.

Há largo campo para a ocorrência de desvios, tanto por parte dos cientistas quanto por

parte dos usuários das biotecnologias. Há que se cuidar da tutela do embrião, por exemplo, diante

das possibilidades de uma neoeugenia, corporificadas na implantação daqueles embriões

escolhidos a partir de determinadas características42

. A técnica da seleção embrionária não é por

si condenável, se utilizada com escopos terapêuticos. No entanto, esse controle ético não será

feito por particulares de forma espontânea já que os pais, embasados pela vontade de escolher o

melhor para o seu filho (ou seria o melhor filho?),43

não terão o pudor de recusar a transferência

para o útero daquele embrião que carregar genes desfavoráveis44

. Habermas trabalha a idéia da

repercussão causada no homem a partir dos avanços científicos:

Não se trata de uma atitude de crítica cultural aos avanços louváveis do conhecimento

científico, mas apenas de saber se a implementação dessas conquistas afeta a nossa

autocompreensão como seres que agem de forma responsável e, em caso afirmativo, de

que modo isso se dá. (HABERMAS, 2004, p. 18)

_______________________

42 – O debate sobre a fronteira entre o aprimoramento da qualidade de vida e a eugenia é acirrado em razão da linha tênue que a separa. Neste

sentido, a manifestação de Tereza Rodrigues Vieira: ―condenamos o eugenismo por parte do Estado, quando este objetiva a eliminação das

pessoas indesejáveis do circuito procriativo.‖ (VIEIRA, Tereza Rodrigues de. Bioética e Direito. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999. p.

70).

43 – Matilde Carone Slaibi Conti traz um dado relevante para o debate sobre os testes genéticos embrionários: ―Este processo de conhecimento

pode levar a um processo de eugênese através do aborto seletivo. Na Índia, milhares de abortos já são realizados somente com base no sexo do

feto. Nos EUA, um alarmante estudo revelou que 10% das mulheres entrevistadas não hesitariam em abortar uma criança propensa à obesidade‖.

(CONTI, Matilde Carone Slaibi. Ética e Direito na manipulação do Genoma Humano. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 65)

44- Madalena Sapucaia adverte: ―é um controle extra-corporal, que coloca o filho desejado numa linha de montagem, podendo se escolher os

traços, o sexo, e o número de filhos em cada gestação‖. (SAPUCAIA, Madalena Ramirez.‘ Pater semper incertus est‘, enquanto a mãe é

certíssima: o fim de uma era. In: RIOS, André Rangel et al. Bioética no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1999, p. 80).

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87

O interesse econômico que cerca a questão constitui outra ameaça à tutela do ser

humano45

. Não se deve perder de vista que a realização do Projeto Genoma Humano despendeu

milhões de dólares, financiados em parte por empresas privadas que desejam,

inquestionavelmente, reverter o investimento em lucro46

. Os interesses econômicos não prezam

pela solidariedade social, o que, frise-se, constitui outro motivo para a intervenção normativa

estatal. Vicente de Paulo Barreto (1999, p. 56-57) observa que ―o progresso científico (...)

principalmente no campo da engenharia genética, envolve uma rede imensa de interesses

econômicos que acabam por questionar os próprios fundamentos da tradição ética ocidental”.

Surge fácil a conclusão a respeito da urgência da edição de normas que indiquem os

casos legítimos para a utilização da técnica; essencial é a existência de regras efetivas e dotadas

de caráter obrigatório que estipulem limites sobre a aplicação das técnicas de reprodução

assistida e engenharia genética. O tratamento de tais questões no Brasil se limita à Resolução n.

1358/92 do Conselho Federal de Medicina que, além de desatualizada, somente apresenta uma

indicação ética de como se proceder.

A despeito da inexistência de uma legislação sobre o assunto, a utilização das

biotecnologias não é totalmente discricionária, já que se deve seguir os parâmetros trazidos por

Documentos Internacionais, princípios bioéticos e constitucionais e respeitar os já propalados

limites ao direito de procriar47

, além de esbarrar nos direitos de personalidade e em alguns

____________________________

45 – Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves corroboram esse pensamento: ―Não é nossa intenção contrariar os

avanços da biotecnologia, mas também não faremos ode a tudo o que é pensado e desenvolvido pelos nossos cientistas. A manipulação de

embriões humanos é, acima de tudo, discussão moral e deve ser enfrentada com cautela. Dizemos isso porque a pesquisa biogenética está atrelada

a interesses de investidores, unida à pressão dos governos, que reivindicam ações bem-sucedidas. Assim, não é forçoso concluir que o

desenvolvimento biotecnológico revela uma dinâmica que ameaça derrubar os longos processos normativos de esclarecimento na esfera pública.

(NAVES, Bruno Torquato de Oliveira Naves; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biotecnologia e aspectos relevantes da nova Lei de Biossegurança.

Revista da Faculdade Mineira de Direito. v.8, n.14, 1 semestre 2005. Editora PUC Minas.p. 5)

46 - Guilherme Calmon Nogueira da Gama aduz: ―A ausência de qualquer abordagem criticamente alicerçada nas questões morais envolvidas nas

descobertas científicas vem se mostrando dissociada dos interesses sociais, coletivos e difusos, gerando muitas vezes benefícios voltados à

apropriação de riquezas econômicas por parte de empresas sem qualquer preocupação propriamente com os benefícios de tais descobertas. O

sistema de patenteamento de determinados códigos genéticos de algumas bactérias, como o genoma do Helicobacter pylori, e a sequência

genética da Mycobacterium tuberculosis retardam a possibilidade de descobertas de tratamentos mais eficazes contra a úlcera gástrica e a

tuberculose, respectivamente, diante da garantia do sigilo das pesquisas realizadas‖. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o

biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de

Janeiro: Renovar, 2003. p. 21).

47 – Cabe relembrar: princípio da dignidade da pessoa humana, do melhor interesse da criança e da paternidade responsável.

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88

dispositivos da legislação infraconstitucional. Proceder-se-á à apresentação de tais mecanismos a

fim de se averiguar se eles oferecem proteção ao ser humano.

4.1.1 – Documentos Internacionais

Com vistas à proteção da pessoa humana também no plano internacional, uma série de

documentos têm sido elaborados em resposta aos avanços científicos. Não há como se proceder à

regulamentação compartimentalizada entre os países, uma vez que toda a população mundial é

interessada – no sentido de poder ser alvo dos impactos causados pelo progresso científico. Cada

nação deverá proceder à internalização dos preceitos divulgados nos Documentos Internacionais,

adequando-os à própria realidade48

. No entanto, a existência de tais Documentos ratifica o desejo

de cooperação entre os povos, demonstrando a união de esforços para se coibir a

instrumentalização do ser humano49

. Proceder-se-á à breve apresentação dos referidos

Documentos, destacando-se os dispositivos que guardam relação com o tema do presente

trabalho.

________________________

48 – Novamente Guilherme Calmon Nogueira da Gama traz relevante contribuição: ―Sem dúvida que há determinados pontos sobre as pesquisas

e aplicações práticas da biotecnologia que não devem merecer o mesmo tratamento nos vários países em virtude de questões morais –

moralidades particulares -, culturais e sociais, mas há outros em que a uniformidade se faz imprescindível, sob pena de se violarem os deveres de

solidariedade e cooperação internacional, atualmente existentes com base em Atos Internacionais.‖ (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A

nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida

heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 76).

49 – Guilherme Calmon Nogueira da Gama justifica a existência dos Documentos Internacionais: ―Oportuno se faz observar que os impactos não

se restringem a determinado território de um país ou nação no globo terrestre, especialmente diante da circunstância de que as pesquisas e

técnicas se referem à vida humana e, consequentemente, o interesse é de toda a civilização e sociedade mundial. Assim, a par das relações

internacionais entre os Estados sobre uma série de outros temas, surge a responsabilidade internacional de todos os governos, na condição de

representantes dos Estados, no campo da teoria e prática da biotecnologia. (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito

e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro:

Renovar, 2003. p. 75).

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89

4.1.1.1 – Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina (Oviedo, Espanha, 1997)

Os países integrantes do Conselho da Europa se reuniram em abril de 1997 para assinar a

Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, cujas diretrizes sinalizam a sobreposição

dos interesses e do bem-estar do ser humano sobre o interesse da sociedade ou ciência. Conforme

aduz Maria Celina Moraes (2003, p. 99) ―a regra expressa o conceito da não-instrumentalização

do ser humano, significando que este jamais poderá ser considerado objeto de intervenções e

experiências, mas será sempre sujeito de seu destino e de suas próprias escolhas‖.

Ficam proibidas pela Convenção as práticas de clonagem, a fabricação de embriões

humanos para pesquisa, a manipulação genética que altere o patrimônio genético da

descendência, a discriminação por motivos genéticos e a seleção de embriões de acordo com o

sexo - salvo para evitar a doença relacionada ao gênero.

Noutro giro, invoca a necessidade do consentimento livre e esclarecido para qualquer

intervenção no indivíduo, assegura a privacidade sobre as informações relativas à saúde da

pessoa e estipula que a intervenção sobre o genoma humano só será autorizada se visar

finalidades preventivas, terapêuticos ou de diagnóstico.

4.1.1.2 – Declaração de Helsinque (2000)

Neste Documento encontram-se relatados os objetivos primordiais da pesquisa médica

em seres humanos, quais sejam, o aprimoramento dos procedimentos de prevenção, diagnose e

terapia; além de se proceder à melhor compreensão da etiologia e patogênese das anomalias.

Declara, expressamente, a prevalência dos interesses individuais em detrimento dos

interesses científicos e sociais.

4.1.1.3 – Relatório Belmont (1979)

Traz os princípios de respeito às pessoas, beneficência e justiça como primordiais nas

pesquisas envolvendo seres humanos. Ressalta, ademais, a obrigatoriedade de se obter o

consentimento informado e de se proceder à avaliação dos riscos e benefícios da investigação.

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4.1.1.4 – Declaração Ibero-Latino-Americana sobre ética e genética – Declaração de

Manzanillo (1996 e 1998)

Estimula a reflexão a respeito do impacto provocado pelo desenvolvimento científico e

tecnológico no campo da genética humana, adotando como ponto de partida o respeito à

dignidade, à integridade e aos direitos humanos. Aduz à inclusão do genoma humano como parte

integrante do patrimônio comum da humanidade; preconiza a solidariedade entre os povos em

razão das diferenças sociais e econômicas. Clama pela igualdade de acesso aos serviços,

independente da capacidade econômica individual. Ressalta a importância da privacidade dos

dados genéticos e coíbe a comercialização do corpo humano e de suas partes.

4.1.1.5 – Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997)

A UNESCO prevê, por meio deste documento, diversas medidas que tratam da promoção

e da defesa da dignidade da pessoa humana, condenando o determinismo e a discriminação por

motivos genéticos, além de conferir primazia ao princípio da autonomia.

4.1.2- Normas éticas nacionais

Apesar de destituídas dos atributos de cogência e juridicidade e desprovidas do caráter

sancionatório, a interpretação do conjunto de suas disposições pode colaborar na descoberta dos

limites necessários para harmonizar o desenvolvimento biomédico e a preservação dos valores

que informam e orientam o sistema jurídico brasileiro.

Maria Celeste Cordeiro Leite Santos trata da insuficiência das regulamentações

alternativas:

Duas seriam basicamente as críticas que poderiam se levantar contra estas alternativas.

Primeiro, essas regulamentações são ineficazes, são destituídas de qualquer cogência,

podem ser facilmente contornáveis e, portanto, não permitem se atingir o objetivo

visado. (...) São destituídas de juridicidade e, pois, não abrem especo a reais recursos

perante a ordem jurídica. Um paciente pode até questionar a conduta de um médico

perante o Conselho Federal de Medicina, por exemplo, mas a queixa formalizada

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produzirá, no máximo, uma sanção de ordem disciplinar. (...) Num segundo momento,

as críticas se direcionam em outro sentido: além de ineficazes, as regulamentações

seriam antidemocráticas. Ou seja, estas regulamentações impostas por determinados

seguimentos profissionais não representariam o interesse do corpo social como um

todo, não corresponderiam a propostas tiradas de um debate político. (SANTOS, 2001,

p. 109-110 e 116).

Logo, tendo-se em vista a ineficácia das regulamentações alternativas, clama-se pela edição

de normas jurídicas firmes e, no entanto, flexíveis, capazes de controlar estas inovadoras

questões. O retrato das regras éticas aqui exposto tem somente o condão de apresentar as

diretrizes seguidas hodiernamente, sem a pretensão de opinar pela sua adequabilidade às

soluções exigidas.

4.1.2.1 – Código de ética médica (Resolução n. 124688 do Conselho Federal de Medicina)

Veda a participação em qualquer tipo de experiência realizada no ser humano com fins

bélicos, políticos, raciais ou eugênicos, bem como a aplicação de técnicas terapêuticas em fase

experimental sem a devida autorização por parte do órgão competente (art. 124). Destaca a

necessidade do consentimento livre e informado para a consecução de pesquisas em seres

humanos.

4.1.2.2 – Resolução 196/96 – Conselho Nacional de Saúde

Aduz que a eticidade da pesquisa encontra-se atrelada ao consentimento livre e esclarecido

dos indivíduos e à proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes. Recomenda-se

proceder à ponderação entre riscos e benefícios das biotecnologias, tanto atuais quanto

potenciais, em âmbito individual ou coletivo, comprometendo-se a evitar o máximo possível de

danos.

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92

4.1.2.3 – Resolução n. 1358/92 – Conselho Federal de Medicina

É a única regulamentação em vigor no país que trata da reprodução humana assistida.

Apesar de inadequada e insuficiente em alguns pontos, anda bem ao prever a obrigatoriedade de

consentimento informado - exigível tanto dos pacientes inférteis quanto dos doadores. Prevê,

ainda, que as técnicas de reprodução assistida não devem ser aplicadas com o fito de selecionar o

sexo ou qualquer outra característica do futuro filho, exceto quando se busque evitar doenças

atreladas ao sexo.

É pacífica a utilização das técnicas de procriação assistida para a realização do

diagnóstico e da terapia de embriões, desde que sejam perfeitamente indicadas e apresentem

suficientes garantias, mas ressalta que qualquer intervenção sobre embriões in vitro, com fins

diagnósticos, não poderá ter outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou detecção de

doenças hereditárias, sendo obrigatório o consentimento informado do casal.

4.1.3 – Princípios bioéticos

Consoante relata André Ruger

o principialismo teve como marco inicial o Relatório Belmont, que agrupou os

chamados princípios bioéticos em três categorias: beneficência, autonomia e justiça.

Em sua obra Principles of Biomedical Ethics, Beuchamp e Childress distinguiram o

princípio da beneficência do que chamaram princípio da não-maleficência. (RUGER,

2007, p. 59)

Estes são, portanto, os quatro princípios bioéticos consagrados, e apresentam larga

vantagem sobre os Documentos Internacionais e os Códigos Éticos no que toca à regulamentação

dos avanços científicos. Os princípios são, por definição, fluidos, elásticos e maleáveis,

possuindo a capacidade de se moldarem diante da pluralidade e diversidade de concepções

morais reinantes nas sociedades contemporâneas.

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93

Estes princípios carregam as esperanças da humanização dos avanços da ciência,

marcados pela irrupção de conflitos morais.

4.1.3.1 – Princípio da beneficência

Frequentemente invocado na área de saúde, implica na realização de ações a favor do

paciente. Caracteriza-se pela prestação de auxílio e apoio, calcado no dever médico de

assistência. A controvérsia na aplicação deste princípio subsiste na apuração do que seria fazer o

bem, conceito inegavelmente subjetivo. O médico, apesar de ter o dever de zelar pelo paciente,

pode desfrutar de uma noção muito pessoal de quais ações devam ser realizadas para se alcançar

esse auxílio devido. Essa carga moral individual introjetou uma carga negativa a este princípio,

que não pode ser invocado sozinho para resolver alguma situação. Guilherme Calmon Nogueira

da Gama apresenta a solução:

Diante da constatação quanto aos perigos do emprego único do princípio da

beneficência, reconheceu-se a existência de limites: atualmente, a beneficência é

limitada por quatro fatores: definição sobre o que é ―bem do paciente‖; não-aceitação

do paternalismo contido tradicionalmente na beneficência; aparecimento e

desenvolvimento do critério de autonomia; novas perspectivas e preocupações na área

da saúde. (GAMA, 2003, p. 63).

Atente-se para o fato de que este princípio deve orientar a normatização jurídica com o

objetivo de ser concretizado em situações específicas, garantindo a defesa dos interesses da

comunidade científica e, no mesmo passo, tutelando a integridade física e a privacidade dos

sujeitos da pesquisa.

A principal correlação deste princípio com as perspectivas trazidas pela genética situa-se

na vertente assistencialista que ele apresenta. Apesar de ser difícil a obtenção de consenso sobre

o que seja, em termos exatos, fazer o bem, pode-se apurar com maior facilidade quando se está a

praticar o mal, obtendo-se o conceito por via inversa. Esse parâmetro pode ser tomado como de

grande utilidade, por exemplo, com relação à divulgação aleatória dos dados genéticos. Fácil

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depreender o gravame imposto ao particular que sofrer a perda da privacidade genética, a

contragosto. Ou ainda no que diz respeito à manipulação genética, motivo pelo qual tanto os

genitores quanto os profissionais geneticistas devem embasar suas atitudes e escolhas no

interesse da criança por nascer.

4.1.3.2 – Princípio da não-maleficência

Sua conceituação – ou mesmo aplicação – vincula-se ao princípio da beneficência.

Enquanto este último, conforme denotado, comporta uma postura ativa direcionada ao fazer o

bem, o primeiro importa em uma postura abstinente de não causar o mal. Em termos práticos,

com freqüência há uma interpenetração dos princípios, porque um constitui um prolongamento

do outro, sendo inoportuno buscar a definição conceitual exaustivamente.

Brunello Stancioli traz outras informações:

Este princípio está associado com a máxima Primum non noncere, ou seja, sobretudo

não causar dano. (...) Em geral, o dever de não-maleficência é mais preciso que o de

beneficência. Não se confundem: a não-maleficência implica não inflingir mal ou dano,

enquanto a beneficência impõe o dever de prevenir e remover males e danos, além de

promover o bem do paciente. (STANCIOLI, 2004, p. 101).

O referido autor propõe a reflexão ao questionar a existência de hierarquia entre os

princípios da beneficência e da não-maleficência. A resposta é negativa, conforme o próprio

autor indica, em virtude da inexistência de um escalonamento principiológico em abstrato. A

priori, todos os princípios são dotados da mesma força interpretativa. No caso concreto,

entretanto, com freqüência observa-se a situação da antinomia, devendo-se então, a partir dos

dados apresentados in concreto, promover-se a análise de qual princípio deve subsistir.

Transportando-se a questão para o tema do presente trabalho, pergunta-se: é válido

intervir em um embrião com o intuito de retirar genes defeituosos? Ou seja: deve-se seguir o

princípio da beneficência – concretizado na terapia – em detrimento do princípio da não-

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maleficência – que se daria pela afronta do direito ao patrimônio genético não manipulado? Não

se afigura adequado apresentar uma resposta de pronto, uma vez que ela depende dos elementos

concretos. No entanto, para se decidir qual princípio deve ceder deve-se atentar sempre para o

conceito de defeito genético e quais os riscos impostos ao embrião pela intervenção.

4.1.3.3 – Princípio da justiça

Busca garantir a todos os cidadãos igualdade de condições de acesso e fornecimento de

benefícios no campo da saúde, independente da capacidade econômica individual. Apresenta

forte caráter social e humanista, propugnando que todos recebam exatamente o mesmo

tratamento e preocupando-se com o bem-estar individual e coletivo. No entanto, a consecução

dos objetivos deste princípio revela-se um tanto idealizada em temos práticos. Na ausência de

recursos suficientes para atender a todos, como determinar quem será merecedor de recebê-los?

No campo da genética, Ruger (2007, p. 66) aduz ―uma concepção de justiça pode ser útil

para resolver possíveis conflitos de interesses entre o paciente e demais afetados pela atuação

médica, como no caso de informações genéticas que transcendem a subjetividade do paciente‖.

Vislumbra-se outra aplicação deste princípio no que toca à própria distribuição dos benefícios

advindos do conhecimento obtido pela decodificação do genoma. Não é forçoso concluir pela

necessidade de se garantir a todos as benesses, por exemplo, da farmacogênica, porque muito

mais eficaz será o medicamento ministrado a partir do conhecimento das falhas, necessidades e

reações orgânicas individuais. Entretanto, fácil prever a desigualdade na utilização de tais

recursos, já que eles encontrar-se-ão, com enorme probabilidade, atrelados ao poder econômico

individual.

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96

4.1.3.4 – Princípio da autonomia

Consubstancia-se na capacidade de autodeterminação individual, isenta de pressões e

influências externas. Atrela-se aos princípios da liberdade e da dignidade, porquanto só aquele

que se autogoverna, é livre; só quem é livre, é digno.

A estruturação deste princípio é fruto de uma diversidade de fatores que passa pela

identificação, ampliação e promoção dos direitos civis, decorrentes da repercussão negativa das

barbaridades perpetradas contra o ser humano na Segunda Guerra Mundial, do desenvolvimento

da saúde pública e da queda do aspecto onipotente da medicina por meio da ingerência do direito

e da economia em assuntos antes restritos à primeira. O princípio da beneficência, antes tido

como suficiente para oferecer proteção ao paciente, revelou-se ineficaz, na medida em que

relegava apenas ao médico decisões que repercutiriam na esfera individual de outro ser. O

paciente passou a ser visto como parte ativa da relação, e para tal, a irrupção do princípio da

autonomia demonstrou ser de crucial importância. (GAMA, 2003, p. 65).

Este princípio ganhou tamanha expressão que, por vezes, questiona-se a sua prevalência

sobre os demais princípios da bioética. No entanto, há que se recordar, segundo a melhor

doutrina, a inexistência de preponderância principiológica in abstrato, na medida em que

somente diante do caso concreto é possível verificar qual princípio deve ceder - e qual deve ser

invocado – visando à tutela da pessoa humana. A consideração isolada, invariavelmente,

acarretará decisões injustas. Elucidativas as palavras expostas por Barreto (1998, p. 33), para

quem ―O princípio da autonomia pode instaurar o reino da anarquia nas relações entre médico

e paciente, isto acontecendo, quando a liberdade individual passa a representar o escudo

através do qual o paciente impede que o médico exerça sua função‖.

Rüger (2007, p.60) esclarece que, a despeito da base filosófica da autonomia estar ligada

ao pensamento kantiano50

, o conteúdo principiológico deste princípio apresenta alcance diverso,

porque ―A noção de vontade no modelo principialista relaciona-se com a possibilidade e

___________________

50 – André Rüger traz as lições de Pessine e Barchifontaine : ―A autonomia é entendida num sentido muito concreto, como a capacidade de atuar

com conhecimento de causa e sem coação externa. O conceito de autonomia da comissão não é o kantiano, o homem como ser autolegislador,

mas outro muito mais emprírico, segundo o qual uma ação se torna autônoma quando passou pelo trâmite do consentimento informado‖.

(PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. 6 ed. . São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 46).

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97

liberdade para a prática de escolhas individuais de natureza, em princípio, autoreflexiva‖.

No campo da biogenética, este princípio traduz-se, por exemplo, como liberdade para o

indivíduo submeter-se ou não a testes genéticos e, ademais, para decidir se deseja ter acesso às

informações obtidas.

Outra implicação deste princípio no campo genético diz respeito à proibição da

intervenção no embrião, uma vez que não há como se obter consentimento. A questão é deveras

polêmica, pois confronta o direito da pessoa se autodeterminar, de se compreender como

responsável por seu próprio destino. Na esteira deste pensamento, a contribuição de Habermas:

Uma intervenção genética não abre o espaço de comunicação para dirigir-se à criança

planejada como uma segunda pessoa e incluí-la num processo de compreensão. (...) As

intervenções eugênicas de aperfeiçoamento prejudicam a liberdade ética na medida em

que submetem a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros, que ela rejeita,

mas que são irreversíveis, impedindo-a de se compreender livremente como o autor

único de sua própria vida. Somente no caso de se evitar males extremos e altamente

generalizados é que surgem bons motivos para se aceitar o fato de que o indivíduo

afetado concordaria com o objetivo eugênico. (HABERMAS, 2004, p. 86-88)

Surge, com espeque no pensamento exposto, uma relevante diferenciação quanto ao

objetivo de se proceder à intervenção embrionária justificada na perquirição da saúde da futura

pessoa, quando se poderia presumir um consentimento. Diante da finalidade de aperfeiçoar um

embrião saudável, a intervenção seria condenável, legitimando-se somente se o escopo fosse

terapêutico ou, segundo Habermas, ―somente no caso de se evitar males extremos e altamente

generalizados‖. Urge definir, portanto, quais são estes males.

4.1.4 – Princípios constitucionais

O movimento de personalização que perpassa o ordenamento jurídico tem origem na

consagração, pela Constituição da República, do princípio da dignidade humana e identifica-se

pela funcionalização de todos os institutos jurídicos, visando a promoção do desenvolvimento do

ser humano em todos os seus aspectos. No entanto, há também a consagração de outros

princípios, tais como os da liberdade de pesquisa, da igualdade, da privacidade e da liberdade de

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planejamento familiar, todos relevantes na discussão sobre os limites da pesquisa e aplicação dos

avanços genéticos.

Harmonizar todos esses princípios é tarefa árdua, porém necessária, já que dela derivará a

promoção da justiça social sem prejuízo da liberdade do ser humano. Se a Ética fornece os

parâmetros morais de atuação para os cientistas, cabe ao Direito – e somente a ele – estipular os

limites e regulamentar a aplicação das técnicas genéticas. Segundo Giselda Hironaka

O papel do Direito não é o de cercear o desenvolvimento científico, mas justamente o

de traçar aquelas exigências mínimas que assegurem a compatibilização entre os

avanços biomédicos que importam na ruptura de certos paradigmas e a continuidade do

reconhecimento da Humanidade enquanto tal, e, como tal, portadora de um quando de

valores que devem ser assegurados e respeitados. (HIRONAKA, 2003, p. 43).

Foge ao propósito do trabalho narrar todas as situações em que os avanços científicos

provocariam conflitos entre princípios, e mais ainda, apontar as soluções de antemão. O se pode

asseverar, contudo, é a necessidade de se verificar, in concreto, qual princípio realiza a tutela

humana, por meio da análise histórico-cultural em que a disputa se insere. Qualquer proposta

realizada em abstrato revestir-se-á dos contornos da insuficiência, irresponsabilidade e ineficácia.

No que toca à investigação científica, Paulo Otero (1999, p. 91) observa que ―a pesquisa

não é um fim em si mesma, nunca se justificando por si como um valor, antes traduz um

instrumento de serviço de cada homem e de toda humanidade‖.

Por todo o exposto, conclui-se que a pesquisa científica que versa sobre o conteúdo dos

dados genéticos humanos encontra limites na autonomia e nos direitos à intimidade, à liberdade,

à igualdade e à privacidade, com o escopo de se coibir a discriminação em razão de motivos

genéticos e de se garantir a tutela da pessoa humana por meio de sua dignidade, a partir da

realização de um debate plural51

que respeite a diversidade cultural da sociedade.

________________________

51 –Daury Ceésar Fabriz (2001, p. 361) traz a contribuição de Martín Mateo ao tratar da necessidade da legitimação normativa por meio da

participação popular, e ressalta, que ―ante a impossibilidade de se identificar com precisão um código de valores de geral aceitação, aplicável ao

âmbito em que incidem as condutas relacionadas com as ciências da vida, poderíamos chegar a duas conclusões extremas: atribuir esta

responsabilidade ao Estado, que imporia por via imperativa o acatamento de determinadas normas, ou permitir que os indivíduos apliquem em

cada caso os princípios éticos que estimem relevantes. Salienta, no entanto, que tais posições não se mostram as mais adequadas, devendo-se

buscar soluções intermediárias que se vislumbram através de uma dialética que se estabeleça entre os conceitos de liberdade-coação‖. (MATEO,

Martín Ramón. Bioética y derecho. Barcelona: Editora Ariel, 1987, p. 71)

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99

Conforme Daury César Fabriz:

Partindo desses princípios, há que se estabelecer uma vinculação entre Ciência,

Tecnologia, Política, Ética e Direito. Todas essas esferas devem desembocar em

atitudes que possam viabilizar o conhecimento como práticas sociais,

democraticamente aceitas. Torna-se necessário uma reaproximação daquelas esferas, a

fim de que suas especulações possam convergir para um sentimento de adequabilidade

social e no empreendimento de teorias compartilhadas que possam estar abertas a

outros pontos de vistas, de acordo com as várias possibilidades no campo da ambiência

social. Tais procedimentos se justificam frente a uma possível hermenêutica da

realidade co-concebida democraticamente, na pluralidade das vozes que podem se

manifestar em dada comunidade politicamente organizada. (FABRIZ, 2001, p. 67)

4.2 – A ciência a serviço do homem

Dentre as novas ofertas genéticas, destacam-se para o tema do trabalho que se

desenvolve o diagnóstico genético e a terapia gênica, que possuem entre si um sólido vínculo. O

primeiro corresponde ao mapeamento do genoma, indicando-se se há genes responsáveis por

enfermidades e anomalias hereditárias e a localização destes. Aplicados tanto em pacientes

adultos quanto em seres embrionários, suscita profundas controvérsias. Maria Cláudia Crespo

Brauner (1998, p. 206) aduz que através da ―intervenção de técnicas apuradas, será possível

eliminar a doença através da modificação dos dados presentes no DNA, reprogramando-se a

natureza de qualquer ser vivo.‖ É a terapia gênica se apresentando.

Um, dentre os vários aspectos controvertidos suscitados pela biotecnologia, traduz-se na

possibilidade de programação das características genéticas do embrião, mesmo que revestido sob

o manto da terapia. Explica-se: de posse do perfil genético do embrião, os futuros pais podem

pretender intervir no embrião com o intuito de corrigir algum ―defeito genético52

‖.

________________

52 – Ressalte-se o disposto no artigo 8, III da Lei n. 8.975/95 que, apesar de revogada pela Lei n. 11. 105/05, assim previa:

Art. 8 – É vedado, nas atividades relacionadas a OGM: (organismo geneticamente modificado)

(...)

III – a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se princípios éticos, tais

como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência, e com a aprovação prévia da CTNBio;

(...)

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100

A conceituação do aludido termo, contudo, não dispõe de regulamentação jurídica,

restando dependente da concepção ética - subjetiva e individual. Assim, fácil enxergar a

possibilidade dos genitores requisitarem a intervenção sobre o embrião que carregue o gene da

obesidade, por exemplo, sob o argumento de se preocuparem com as conseqüências para a saúde

do seu filho, tendo em vista que a obesidade está atrelada à incidência de doenças cardíacas,

diabetes, dentre outras. Fácil também é imaginar que, a despeito dessa preocupação – que pode

ser verdadeira – a real inspiração à intervenção seria o aspecto estético do filho por nascer.

O mesmo resultado poderia ser obtido por via indireta, qual seja, o da seleção

embrionária. Legitimando-se tal prática para finalidades terapêuticas, abre-se um leque grande de

oportunidades, mas não necessariamente tutela-se o ser humano. Há que se promover uma

rigorosa conceituação destes termos - terapia, defeitos genéticos e afins – para que se alcance a

utilização sábia da técnica.

O receio não é infundado, já que a busca pelo aperfeiçoamento da espécie humana

constitui uma constante na história da humanidade. Informa Paulo Gilberto Cogo Leivas (2002,

p. 553) que ―Platão, por exemplo, propunha a eliminação do nascimento entre os pobres, que

estimava pouco inteligentes. Em Esparta, os recém-nascidos que um Comitê de Velhos julgava

malformados eram precipitados do alto de uma falésia‖.

O desenvolvimento dos estudos genéticos, nos séculos XIX e XX, forneceu o

combustível necessário para o surgimento de sociedades eugênicas que, acreditando na teoria do

determinismo genético53

– segundo a qual os genes são os únicos responsáveis pelas

características, aptidões e mazelas do homem – dizimaram grupos populacionais que padeciam

de alguma enfermidade, como, por exemplo, a demência mental.

____________________

53 – ―Em 1883 um pimo de Darwin, Francis Galton, lançou o livro Hereditery genius, cunhando pela primeira vez a palavra eugênica, que

significa literalmente ―bons genes‖. Disse Galton que capacidades intelectuais como a inteligência, a loucura ou mesmo a pobreza eram

hereditárias. Propôs, então, produzir uma raça de homens altamente dotados graças a casamentos judiciosos durante várias gerações

consecutivas‖. (LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. A genética no limiar da eugenia e a construção do conceito de dignidade humana. In: MARTINS-

COSTA, Judith. A Reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 554).

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101

Interessante notar que cientistas de ilibada reputação compunham essas sociedades54

.

(LEIVAS, 2002, p. 554). Rafael Allende demonstra a falsidade da idéia carregada pelo

determinismo genético55

:

O determinismo genético, sinal de influencia da mentalidade darwiniana, que identifica

a pessoa com seus genes em uma espécie de predestinação biológica, é uma falsa idéia,

situada em uma perspectiva jusnaturalista que identifica o homem com sua natureza, e

que tem trazido decisões políticas horríveis desde perspectivas eugenésicas que tem

conduzido ao genocídio, por considerar as raças e grupos sociais diferentes como

portadores de aspectos não desejados. (ALLENDE, 1995, p. 44).

Cabe proceder à conceituação da subdivisão observada pela ideologia eugênica: há a

eugenia positiva, consubstanciada na adoção de uma postura ativa direcionada ao nascimento de

pessoas que apresentem características desejáveis, e a eugenia negativa, quando se promove a

eliminação dos seres dotados de alguma anomalia. Carlos Maria Romeo Casabona (2002, p. 28)

refere-se à eugenia negativa ao tratar das práticas impeditivas do nascimento de um ser

―defeituoso‖ apontando entre tais a eutanásia neonatal, aborto ou esterilização de deficientes

mentais.

Maria Helena Diniz (2002, p. 417) também apresenta distinção entre os dois tipos de

eugenia, porém tratando da vertente negativa como aquela cujo objetivo volta-se para a obtenção

de cura ou a prevenção de doenças e malformações genéticas, e da positiva como a que visa o

aperfeiçoamento das habilidades humanas, traços de caráter ou de personalidade.

________________________

54 – Paulo Leivas relata: ―Daniel Kevles, em sua obra In the name of eugenics, faz a demonstração da existência de uma linha de continuidade

entre Galton e o criminoso nazista Joseph Mengele, passando por Eugéne Fisher, o melhor geneticista humano da Alemanha à época, que presidiu

o Comitê dos cruzamentos inter-raciais e foi um doa autores do manual A hereditariedade humana e a higiene das raças, lido por Hitler na

prisão.‖ (LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. A genética no limiar da eugenia e a construção do conceito de dignidade humana. In: MARTINS-

COSTA, Judith. A Reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 554).

55 – No original: ―El determinismo genético, signo de influencia de la mentalidad darwiniana, que identifica a la persona con sus genes en una

especie de predestinación biológica, es uma falsa idea, situada em uma perspectiva ius naturalista que identifica al hombre com su naturaleza, y

que há traide decisiones políticas tremendas desde perspectivas eugenésicas que han conducido al genocídio, por considerar a razas y grupos

sociales diferenciados como portadores de aspectos no deseados‖. (ALLENDE, Rafael de Mendizábal. Man`s freedom and the human genome.

Right to confidentiality: use of genetic information. In:PULLMAN, Bernard; CASABONA, Carlos Maria Romeo. The legal and ethical aspects

related to the Project of the Human Genome,Vaticano: Pontificia Academia Scientiarum: Fundacion BBV, 1995, p.35-52) .

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102

O avanço no campo genético fez surgir, conforme informa Maria Helena Diniz (2002, p.

418), um novo termo: a eugenesia - caraterizada pelo encontro das técnicas genéticas com os

obejtivos da eugenia. A eugenesia negativa corresponderia, assim, à seleção embrionária, quando

seriam transferidos somente os embriões aprovados pelo crivo dos futuros pais, enquanto a

positiva implicaria na intervenção direcionada à otimização dos traços genéticos embrionários.

As técnicas de reprodução assistida vêm acrescentar mais um capítulo na história da

eugenia, já que se pode a elas recorrer com o objetivo de se efetuar o diagnóstico genético

embrionário56

. A informação obtida pode levar a diversas soluções – algumas com potencial

eugênico, dentre as quais a intervenção no genoma para o aprimoramento das características de

um embrião saudável e o descarte dos embriões considerados ―imperfeitos‖.

A questão do aprimoramento genético pode ser tratada sob uma perspectiva liberal57

,

como um prolongamento da liberdade reprodutiva inserida na seara do planejamento familiar,

não sujeita à regulamentação estatal. Os pais estariam autorizados a decidir, fundados em suas

preferências pessoais, quais características a futura criança carregaria em seus genes. Para além

disso, a questão poderia ser tratada sob a ótica de um dever. Na esteira deste pensamento,

Habermas (2004, p. 123) noticia a existência de pensamentos da seguinte ordem: ―Quem rejeita

uma prática eugênica permitida e prefere aceitar uma deficiência que poderia ser evitada tem de

suportar a crítica de omissão e possivelmente o ressentimento do próprio filho‖.

Contudo, entende-se que a atribuição irrestrita da capacidade de decisão aos pais

configura o uso irracional da técnica, motivo pelo qual não pode subsistir.

_______________

56 – Habermas relata o risco advindo com o conhecimento do perfil genético embrionário: ―Com o diagnóstico genético de pré-implantação, hoje

já é difícil respeitar a fronteira entre a seleção de fatores hereditários indesejáveis e a otimização de fatores desejáveis‖. ( HABERMAS, Jürgen.

O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pg 29).

57 – Habermas apresenta um tipo de argumento desenvolvido pelos liberais a autorizando a irrestrita ocorrência de intervenções no embrião,

independente da finalidade buscada: ― Para justificar a não-colocação de objeções de ordem normativa em relação a essas intervenções, os

defensores da eugenia liberal procedem a uma comparação entre a modificação genética do patrimônio hereditário e a modificação de atitudes e

expectativas por meio da socialização. Pretendem mostrar que, sob o ponto de vista moral, não existe nenhuma diferença considerável entre

eugenia e educação: ―If special tutors and camps, training programs, even the administration of growth hormone to add a few inches in height are

within parental rearing discretion, why should genetic intervention to enhance normal offsprings traits be any less legitimate?‖ (Se já se deixa a

critério dos pais o modo de criar os filhos, a opção por increvê-los em acampamentos onde estarão sob a tutela de monitores especiais e em

programa s de formação, e até mesmo a possibilidade de administrar os hormônios de crescimento, para que os filhos ganhem alguns centímetros

na altura, porque então a intervenção genética para salientar os traços normais da prole deveria ser menos legítima?) Esse argumento deve

justificar a ampliação da tutela educativa dos pais, assegurada pelos direitos constitucionais, sobre a liberdade eugênica para melhorar a estrutura

genética dos próprios filhos‖. (HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pg 69).

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A otimização das características genéticas embrionárias resta condenada em virtude da

ofensa ao princípio da diversidade e da instrumentalização do ser humano, pois, como bem

sintetiza Habermas (2004, p. 132), a perseguição de tal finalidade equivale dizer ―precisamos ter

um filho próprio, mas este só deve vir ao mundo se corresponder a determinados critérios de

qualidade‖.

Noutro giro, há argumentos no sentido de proibir qualquer intervenção embrionária

diante da impossibilidade de se obter consentimento, de modo que se estaria alterando a noção de

autocompreensão individual58

. O desconhecimento dos efeitos provocados a longo prazo no

genoma humano, bem como a existência do direito das futuras gerações a herdarem um

patrimônio genético não-manipulado, são outros obstáculos para a aplicação das técnicas

referidas .

A posição intermediária autoriza a intervenção embrionária que se destine a curar

doenças ou anomalias genéticas, presumindo-se o consentimento da futura pessoa. Apesar de ser

considerada a posição mais acertada, porque usufrui dos benefícios da técnica ao mesmo tempo

em que atenta para a necessidade de tutela, autodeterminação e não-instrumentalização do ser

humano, não está isenta de questionamentos.

A questão da realização dos testes genéticos é regulamentada, no Brasil, pela Resolução

n. 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, permitindo-se a perpetração do diagnóstico

genético para a avaliação da viabilidade dos embriões in vitro ou para a diagnose de doenças

hereditárias, autorizando-se a intervenção apenas com finalidade terapêutica, obrigando-se, em

qualquer caso, o fornecimento de consentimentos dos pais.

Entretanto, argúi-se: qual tipo de anomalia genética legitimaria o uso da técnica?

Pretende-se apontar uma resposta jurídica para tal, não antes sem abordar questões preliminares à

sua obtenção.

_______________

58 – Conforme propugna Habermas: ―As alterações biotécnicas promovem alterações da autocompreensão ética da espécie, uma

autocompreensão que não pode mais ser harmonizada com aquela autocompreensão normativa, pertencente a pessoas que determinam sua própria

vida e agem com responsabilidade‖. (HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 59).

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104

4.2.1 – Terapia gênica

A terapia gênica condiciona-se à obtenção do perfil genético por meio da realização dos

testes preditivos e surge como uma opção oferecida ao casal no caso do resultado acusar a

presença de alguma anomalia. Sua aceitação entre as novidades genéticas encontra-se cercada de

incertezas. José Ramón Ara Callizo (2002, p. 84) vislumbra na técnica ―o objetivo de modificar

ou suprir uma disfunção cuja causa é um defeito genético‖.

As referidas anomalias genéticas apresentam diversificadas fontes, podendo ser herdadas

dos genes dos pais, oriundas de erros na formação das células sexuais ou decorrentes de

mutações genéticas no decorrer do desenvolvimento embrionário. (URANGA, 2002, p. 86).

Subdivide-se em duas modalidades, a partir do seu nível de inserção: efetuada sobre as

células somáticas, já diferenciadas e cujo conteúdo não será herdado pelos descendentes,

corresponde à terapia gênica somática. Noutro giro, se aplicada às células totipotentes, há

transmissão à descendência e então se trata da terapia gênica germinal ou germinativa, que atua

sobre a linhagem reprodutiva. Pertinente a análise apartada das duas vertentes, à qual se passará

de pronto.

4.2.1.1 – Terapia gênica somática

Há maior aceitação desta técnica em virtude de ser comparada a uma forma de tratamento

análoga às demais existentes. Apesar de se encontrar em fase experimental, tende a ser validada

pela comunidade científica e disseminada entre a população, diante de certo consenso sobre a

utilização por pessoas capazes de manifestar consentimento e que buscam o caráter terapêutico

da técnica. CALLIZO (2002, p. 85) assevera que enquanto a terapia gênica somática se encontrar

em fase experimental, ―estará reservada para quadros graves, para os quais não há outros

meios e com a garantia de cumprir as normas da experimentação em seres humanos‖.

A obtenção do consentimento surge como um fator condicionante da intervenção e passa

pelo fornecimento claro, completo e imparcial das informações relativas à operacionalização da

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técnica, a fim de que o indivíduo possa decidir, de maneira esclarecida, se deseja a ela submeter-

se ou não. Consoante se infere da lição de Guido Gerin59

:

O mapeamento do genoma implica a realização da pesquisa em cada pessoa e, a este

respeito, é fundamental aplicar o princípio geral do consentimento informado, ou seja,

cada pessoa deve ser informada quando a pesquisa for realizada nele ou nela. Com

relação a isto, destacou-se que o direito do homem deve ser resguardado, e portanto

mesmo a intervenção nas seus células somáticas não é possível sem o seu

consentimento, não somente porque seu genoma se tornará conhecido, mas também em

razão da sua possível utilização com propósitos científicos ou outros. (GERIN, 1995,

p. 21/22)

A aprovação desse tipo de terapia possivelmente não padecerá de fortes objeções. Amelia

Martín Uranga (2002, p. 88) corrobora tal afirmativa a partir do exame da doutrina espanhola: ―A

esse respeito, o professor J. Gafo estabelece que (a terapia gênica somática) „pode considerar-

se em princípio aceitável do ponto de vista ético‟. Nesse mesmo sentido, o também professor J.

F. Higuera Guimerá assinala que „a terapia gênica nas células somáticas não deve ter relevância

alguma de caráter jurídico, já que se trataria de mais um caso de terapia médica curativa‟.

Os países que já enfrentaram a questão opinaram pela sua pertinência. Conforme informa

Paulo Leivas (2002, p. 557), a Resolução de 1989 do Parlamento Europeu impõe algumas regras

como condições de aplicação da técnica; dentre elas encontra-se a eficácia comprovada dos

tratamentos e a sua utilização exclusivamente para fins terapêuticos. Interessante destacar que,

alinhado ao pensamento apresentado no trabalho em desenvolvimento, a referida Resolução

demanda a atualização dos conceitos de enfermidade e doença genética, a fim de coibir a

ampliação dos mesmos, o que autorizaria a intervenção genética desmedida.

________________

59 – No texto original: ―The mapping of the genome implies the carrying out of research on every person and, in this respect, it is fundamental to

apply the general principle of informed consent, i.e. every person must be informed when research has been carried out on him or her. With

regard to this, it was underlined that man‘s rights are to be safeguarded, and therefore even an intervention in his somatic cells cannot be possible

without his consent, not only because his genome becomes known, but also because of its possible use for scientific purposes or other. (GERIN,

Guido. The lessons of the Bilbao Symposium. In:: PULLMAN, Bernard; CASABONA, Carlos Maria Romeo. The legal and ethical aspects

related to the Project of the Human Genome. Vaticano: Pontificia Academia Scientiarum: Fundacion BBV, 1995, p. 18-34).

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106

Ressalte-se a importância dessa técnica, já que se persegue o tratamento de doenças

graves de pessoas nascidas, assim como do embrião implantado no ventre materno. No entanto,

deve-se ter em mente a necessária submissão da técnica à análise dos riscos que comporta e dos

benefícios que dela advêm, somente autorizando-se sua aplicação em caso de preponderância dos

segundos.

4.2.1.2 – Terapia gênica germinativa

Propõe a intervenção sobre as células germinativas – indiferenciadas – o que acarreta a

alteração de todo o genoma do indivíduo, em caráter definitivo. Sua aplicação vem sendo

reprovada pela comunidade científica e proibida pelas legislações que já se debruçaram sobre o

tema. Habermas (2004, p. 34) informa que a Alemanha, por exemplo, vetou não somente a

terapia sobre as células germinativas como também o diagnóstico genético pré—implantação.

A despeito de a técnica utilizada ser a mesma nos dois tipos de terapia gênica, a que

atinge as células reprodutivas recebe críticas infinitamente mais ferrenhas. Esse fato justifica-se

em razão do desconhecimento dos efeitos gerados para o patrimônio genético da humanidade

diante da inserção de uma modificação definitiva em algum gene. Há que se falar ainda no

respeito ao direito das gerações futuras à não manipulação do genoma herdado, além da

salvaguarda da diversidade humana genética como impedimento à intervenção sobre a linha

germinal.

Amelia Martín Uranga explica:

O problema que encontramos aqui é o da herança, no sentido dos direitos das gerações

futuras (direito à vida e à preservação da espécie humana, direito a conhecer suas

origens e sua identidade – Art 3º e 4º, respectivamente, da Proposta de Declaração

Universal dos Direitos Humanos das Gerações Futuras). Tampouco deve-se entender

como um absoluto não-intervencionismo de nossa parte, mas como a necessidade de

um amplo consenso na sociedade ante qualquer ingerência que se vá praticar.

(URANGA, 2002, p. 88)

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Roberto Andorno (1998, p. 139) alega que esta técnica ―daria aos homens o poder

exorbitante de predeterminar as características que querem melhorar nos filhos do futuro. O que

se está em jogo é nada menos do que a identidade e a integridade da espécie humana‖60

.

Ademais, mesmo se realizada não sobre as células reprodutivas, mas sobre o embrião em

um estágio muito inicial de seu desenvolvimento, assume-se o risco da alteração de todas as

células do zigoto, motivo pelo qual Casabona (2002, p. 60) recomenda a consecução da terapia

gênica no embrião apenas em momento posterior ao desenvolvimento dos órgãos, em razão da

extensão de seus efeitos às células germinativas se propalada antes deste limite. Observe-se que,

ao seguir tal aconselhamento, o que se efetua não é, portanto, terapia gênica germinativa, mas

somática embrionária.

O receio oriundo da adoção de uma técnica cujos efeitos ainda não estão elucidados tem

levado alguns países da União Européia – como é o caso da Áustria - a proibirem, por meio de

suas legislações, qualquer tipo de intervenção nas células reprodutivas humanas. Há, ainda,

aqueles que recomendam um adiamento na tomada de decisões, uma vez que não há dados

suficientes a embasar uma decisão jurídica61

. Essa última orientação reveste-se de maior

prudência e, precisamente por esse motivo, afigura-se mais adequada. O conhecimento dos

efeitos da terapia gênica germinal revela-se imprescindível para que decisão seja consciente e

racional, e não discricionária.

O Brasil regulamenta a questão por meio da Lei de Biossegurança, n. 11.105/05 que, a

despeito de não mencionar de modo expresso a técnica da terapia gênica, proíbe62

e criminaliza63

a prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano.

________________

60 – No original : ―daría a los hombres el poder exorbitante de predeterminar los caracteres que quiren mejorar em los niños del futuro. Lo que se

está em jeugo es nada menos que la identidad y la integridad de la especie humana‖. (ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona.

Madrid: Tecnos, 1998, p. 139).

61- URANGA, Amelia Martín. O quadro legal da terapia gênica na Espanha In: Casabona, Carlos Maria Romeo (Org.). Biotecnologia, direito e

bioética. Belo Horizonte: Del Rey/PUC Minas, 2002, p.88.

62 – Art. 6 da Lei 11.1.05/05: Fica proibido:

(...)

III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano;

(...)

63 – Art. 25 da Lei 11.1.05/05: Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

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Deduz-se de todo o exposto que a terapia gênica na linha reprodutiva deve ser vedada por

ora, sob a condição de se recolherem informações sobre os reais riscos e efeitos sobre o

patrimônio genético da humanidade, em respeito à integridade física e à identidade genética do

ser humano. Entretanto, atente-se para a reversibilidade de tal entendimento caso ocorra a

superação do limite aqui apontado, qual seja, a superação dos benefícios sobre os riscos.

Do apresentado, infere-se que qualquer tipo de intervenção realizada sobre o indivíduo –

adulto, infantil ou embrionário – só poderá ser reputada legítima se visar a finalidade terapêutica,

nunca o aperfeiçoamento genético. No entanto, mesmo as intervenções terapêuticas encontram

barreiras, já que não se recomenda a sua atuação sobre as células reprodutivas. Contudo, apontar

como fator legitimante apenas a persecução da finalidade terapêutica é insuficiente porque,

conforme exposto, a indeterminação conceitual permite a ocorrência de desvios de finalidade, o

que acabaria por ferir os princípios informadores do sistema civil-constitucional. Exige-se,

portanto, a definição jurídica de conceitos como defeitos e anomalias genéticas, com o escopo de

salvaguardar a pessoa humana. A participação ativa do Direito na construção dos limites da

atividade científica faz-se imperativa.

O presente trabalho debruçar-se-á, a seguir, sobre a busca dos fatores que autorizariam a

intervenção terapêutica, enfatizando a situação do embrião. Apesar de ainda não haver

regulamentação jurídica de qualquer ordem, entende-se pela flagrante posição de fragilidade do

embrião em virtude da impossibilidade de manifestar anuência, o que pode provocar sua

instrumentalização – se a questão for tratada apenas a partir da perspectiva do interesse dos

futuros pais.

4.3 - Limites à intervenção efetuada sobre o embrião

Conforme aduzido, impõe-se, de antemão, alguns limites à realização de qualquer

atividade interventiva sobre o embrião, em especial à persecução do diagnóstico genético ou à

solução terapêutica; atentando-se, de modo inescapável, para a tutela de tais seres humanos.

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Esta parece ser a orientação seguida não somente no Brasil, já que Encarna Roca Trias64

traz idêntico raciocínio, ao apresentar a percepção espanhola da questão65

:

A manipulação de um embrião vivo somente pode ter duas finalidades: a de

diagnóstico de determinadas enfermidades e a terapêutica (arts. 12.1 e 13.1 da Lei

35/1988). Em qualquer caso, todo tratamento realizado sobre embriões e sobre

nascituros deve perseguir sempre o seu bem-estar. (TRIAS, 1998, p. 180)

Justifica-se, em virtude da proteção do embrião, a imposição de tais limites. Caso

contrário, os pais poderiam alegar estarem agindo no exercício dos seus direitos reprodutivos,

utilizando-se do avanço científico para concretizarem seu projeto parental. No entanto, tal

alegação encontra-se na contramão dos moldes hodiernos da relação parental, que, conforme

explicitado, confere primazia ao interesse do menor, por meio do princípio do melhor interesse

da criança. Nesse sentido, a intervenção embrionária deve buscar atender aos interesses não dos

pais, mas do futuro filho.

Há se resguardar, ademais, a autonomia da pessoa por nascer, motivo pelo qual os pais

devem agir no estrito interesse da primeira. Há que se analisar em quais hipóteses é possível se

falar em antecipação do consentimento, de forma a se autorizar a intervenção, e, noutro giro, em

quais a intromissão é excesiva, a ponto do indivíduo não se compreender como autor da própria

história. Habermas, de modo contundente, corrobora a asertiva:

__________________

64 – O texto original assim dispõe: ―La manipulación de un embrión vivo solo puede tener dos finalidades: las diagnostico de determinadas

enfermedades y las terapêuticas (arts. 12.1 y 13.1 ley 35/1988). En cualquier caso, todo tratamiento realizado sobre embriones y sobre nascituri

debe perseguir siempre su bienestar.‖ (TRIAS, Encarna Roca. La función Del Derecho para la protección de la persona ante la biomedicina y la

biotecnologia. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo (Coord.). Derecho biomédico y bioética. Granada: Comares,1998

65 – Amelia Uranga expõe o mesmo ponto de vista, ao relatar que a Lei 35/1998 (que trata das Técnicas de Reprodução Assistida na Espanha)

permite a intervenção em embriões pré-implantados (in vitro ou no útero) e em embriões e fetos no útero, desde que a doença a ser tratada esteja

incluída dentre as permitidas, já que ― o Governo, mediante um Decreto Real, estabelecerá uma lista de enfermidades nas quais a terapia é

possível com critérios estritamente científicos (art. 13.3)‖. URANGA, Amelia Martín. O quadro geral da terapia gênica na Espanha. In: ROMEO

CASABONA, Carlos María (Org.). Biotecnologia, direito e bioética. Belo Horizonte: Del Rey/PUC Minas, 2002. p. 89).

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110

A mim interessa especialmente a questão que trata do modo como a neutralização

biotécnica da distinção habitual entre ‗o que cresceu naturalmente‘ e ‗o que foi

fabricado‘, entre o subjetivo e o objetivo, muda autocompreensão ética da espécie que

tínhamos até agora e afeta a autocopreensão de uma pessoa geneticamente programada.

Não podemos excluir o fato de que o conhecimento de uma programação eugênica do

próprio patrimônio hereditário limita a configuração autônoma da vida do indivíduo e

mina as relações fundamentalmente simétricas entre pessoas livres e iguais.

(HABERMAS, 2004, p. 32-33).

Logo, não há que se invocar a liberdade do planejamento familiar, o desejo de se

concretizar o projeto parental ou a mínima intervenção estatal no que tange aos direitos

reprodutivos com o fito de se embasar a utilização arbitrária das técnicas inovadora da

genética66

. O interesse da pessoa por nascer deve ocupar posição primordial na discussão sobre

os limites dos direitos reprodutivos.

A dinâmica entre o interesse dos pretensos pais e o do futuro filho é bem retratada por

Carolina Carvalho:

O interesse do casal em ter um filho biológico é também limitado pelo

interesse do filho a ser gerado. Não podem os pais realizar tudo o que

pretendem, como se alardeia na chamada indústria do bebê ‗perfeito‘,

mas somente aquilo que respeita a dignidade humana e o melhor

interesse do filho, segundo o que informa o conceito de paternidade

responsável. (CARVALHO, 2007, p. 84-85)

A imposição de tais limites faz-se imprescindível num momento em que se

disponibilizam técnicas que prometem concretizar o projeto parental de modo inteiramente

programado, fazendo ode aos caprichos deliberados e irresponsáveis dos futuros pais. Ao agirem

assim, o filho torna-se não mais do que mero instrumento para satisfação do casal, o que

demonstra um profundo descaso com a pessoa por nascer.

_______________

66 – Carolina Queiroz de Carvalho bem expõe a relação entre direitos e deveres subjacentes aos membros da família atual: ―O Direito de Família

contemporâneo se desenvolveu para ampliar os direitos dos membros da família, por um lado, mas que impôs, também uma série de deveres para

a garantia desses mesmos direitos, numa simbiose complexa. Para se examinar os limites dos poderes conferidos aos genitores sobre os embriões

resultantes de um projeto parental, a discussão necessariamente deve se dar dentro desse contexto de Direito de Família. (CARVALHO, Carolina

Queiroz. O Domínio da Vida do Embrião: limites do poder de decisão dos genitores. Dissertação UFMG, 2007, p. 62)

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111

A correlação entre os limites invocados e as possibilidades de intervenção embrionária

resulta na interpretação de que somente aquelas que se direcionarem à consecução do melhor

interesse da pessoa por nascer reputar-se-ão legítimas. Tal assertiva conforma-se com a

recomendação de que, para que seja levada a termo, a intervenção deve embasar-se em motivos

relevantes – leia-se: terapêuticos - já que somente se obterá o livre consentimento dos pais, e não

o da futura criança. O ponto nevrálgico da questão reside em apontar o que estaria abarcado

neste conceito de intervenção terapêutica.

Não há como se prescindir da análise da situação jurídica do embrião para se continuar

este debate, motivo pelo qual a ela se procede a seguir.

4.3.1 – Situação jurídica do embrião

Há diversas correntes doutrinárias que tratam da determinação do momento em que o

embrião passa a ser tutelado pelo ordenamento jurídico. Não há como se pretender apartar a

discussão inerente aos limites da engenharia genética da análise da proteção conferida ao

embrião humano, na medida em que o segundo é causa do primeiro. Caso contrário, não causaria

indignação a possibilidade de instrumentalização do ser humano.

4.3.1.1 – O início da vida

A discussão sobre o início da vida foi fomentada com a aprovação da Lei 11.105/05, que

previu, em seu artigo 5º, a possibilidade de se utilizar células-tronco embrionárias excedentes das

técnicas de fertilização in vitro como objeto de pesquisa e terapia67

.

_______________

67 – artigo 5º, Lei 11.105/05: É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões

humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

(...)

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112

Conferiu-se ainda mais destaque à questão quando o ex-Procurador Geral da República,

Cláudio Lemos Fonteles, ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510-0/DF68

contra o

disposto no referido artigo, sob o argumento de que há afronta ao direito da inviolabilidade da

vida humana, previsto no art. 5, caput, da Constituição Federal69

.

O Ministro Carlos Ayres Britto, relator da ADIn em tela, alegou, em síntese, que a tutela

constitucional do direito à vida não abrange o embrião humano fertilizado in vitro, em razão

tanto da CR/88 ser silente sobre o início da vida humana70

quanto da disposição contida no artigo

2º do Código Civil, segundo a qual ―a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com

vida‖. A interpretação do ministro foi no sentido de que o embrião configura-se, em verdade,

como expectativa de pessoa, mas não pessoa de fato. Possui expectativa de direitos, mas não

direitos propriamente ditos. Nesta toada, a inviolabilidade do direito à vida restaria garantida a

partir do nascimento com vida, pois somente neste momento se poderia falar em pessoa, capaz

de contrair direitos e deveres na ordem jurídica.

Urge ressaltar, no entanto, que o artigo 2º põe a salvo os direitos do nascituro, o que

ocorre, na acepção do ministro, em razão da possibilidade dele vir a se tornar pessoa, caso ocorra

o implemento da condição – o nascimento com vida. Com relação ao embrião excedentário

fertilizado in vitro, o ministro manifesta-se no sentido de não existir nem mera potencialidade de

se tornar pessoa, já que não possui cérebro. Tal conclusão é obtida a partir da extensão do

disposto no artigo 3º da Lei 9.434/97, que permite a retirada de órgãos ou tecidos do corpo

humano após a constatação da morte encefálica. As considerações do ministro o levaram a

autorizar a utilização das células-tronco embrionárias que visem à pesquisa científica, já que o

embrião in vitro encontra-se despojado de personalidade e proteção jurídica.

______________

68 – Disponível no site www.stf.gov.br

69 – art. 5º, CR/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes

no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (...)

70 – Nas palavras do Ministro Carlos Ayres Britto ―Numa primeira síntese, então, é de se concluir que a Constituição Federal não faz de todo e

qualquer estágio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva e, nessa

condição, dotada de compostura física ou natural. É como dizer: a inviolabilidade de que trata o artigo 5º é exclusivamente reportante a um já

personalizado indivíduo (o inviolável é, para o Direito, o que o sagrado é para a religião). E como se trata de uma Constituição que sobre o início

da vida humana é de um silêncio de morte (permito-me o trocadilho), a questão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo

sapiens, mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo Direito infraconstitucional e em que medida‖.

Disponível em www.stf.gov.br

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A posição adotada pelo ministro segue a orientação presente no Código Civil: o

nascimento é condição da aquisição de personalidade jurídica, o que garante ao nascituro a

expectativa de direitos em razão da potencialidade de vida que carrega.

O embrião humano não é visto, segundo a opinião do Relator da ADIn 3510/DF, como

detentor da mesma tutela jurídica que goza um ser humano adulto, afirmando que não há

contradição em se conferir alguns estágios da biologia humana como passíveis de maior

proteção do que outros. Prossegue Carlos Ayres Britto:

É o caso, por exemplo, de um cadáver humano, protegido por nosso ordenamento. No

entanto, não há como comparar as proteções jurídicas e éticas oferecidas a uma

pessoa adulta com as de um cadáver. Portanto, considerar o marco da fecundação

como suficiente para o reconhecimento do embrião como detentor de todas as

proteções jurídicas e éticas disponíveis a alguém, após o nascimento, implica assumir

que: primeiro, a fecundação expressaria não apenas um marco simbólico na

reprodução humana, mas a resumiria euristicamente; uma tese de cunho

essencialmente metafísico. (site do STF)

O escalonamento da proteção jurídica vinculado à progressão do desenvolvimento da

vida humana constitui teoria apoiada por Ronald Dworkin:

Como afirmei, acreditamos que uma vida humana bem-sucedida segue um certo curso

natural. Começa com o simples desenvolvimento biológico – a concepção, o

desenvolvimento do feto e a primeira infância – e depois prossegue pela educação e

pelas escolhas sociais e individuais e culminando na capacidade de estabelecer

relações e alcançar os mais variados objetivos. Depois de um período de vida normal,

termina com a morte natural. O desperdício dos investimentos criativos naturais e

humanos que constituem a história de uma vida normal ocorre quando essa

progressão normal se vê frustrada pela morte, prematura ou não. Quanto lamentável

isso é, porém – o tamanho da frustração -, depende da fase da vida em que ocorre,

pois a frustração é maior se a morte ocorrer depois que a pessoa tiver feito um

investimento pessoal significativo em sua própria vida, e menor se ocorrer depois que

algum investimento tiver sido substancialmente concretizado, ou tão substancialmente

concretizado quanto poderia ter sido. (DWORKIN, 2003, p.122).

Na esteira do pensamento apresentado, a fusão dos materiais genéticos contidos nos

gametas feminino e masculino marca o início da vida de um ser humano possuidor de identidade

própria, inegavelmente.

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114

Não se pretende afirmar que o embrião não constitui vida humana. No entanto, esse fato

não é suficiente para caracterizá-lo com o atributo de pessoa humana71

. Insta salientar que o

embrião humano, na linha do raciocínio desenvolvido, é merecedor de tutela jurídica, apesar de

não o ser na mesma proporção conferida aos seres humanos nascidos.

Há, no entanto, outras orientações, como a que reitera a proteção integral à vida em

qualquer estágio de desenvolvimento72

. Conforme expõe Maria Celeste Cordeiro Santos:

O ser humano, independente do estágio de evolução científica que eventualmente nos

encontremos, continua sendo ser humano, na sua mais integral e perfeita constituição.

Assim, os atos tecnocientíficos praticados sobre o ser humano, quer embrionário, quer

adulto, não podem ser considerados em níveis distintos, como pretendem certos

segmentos científicos. (...) Isto porque um ser humano embrionário, fetal ou adulto é

sempre um ser humano e nunca uma coisa; um embrião ou feto humano tem a

dignidade de ser humano (ou pessoa em potencial) eticamente mais valioso que

qualquer outra espécie vivente. (SANTOS, 2001, p. 105)

Há que se analisar ainda a tutela conferida ao embrião in vitro antes de sua implantação.

A divergência é enorme, existindo opiniões que vão desde sua integral proteção até a autorização

para se proceder à sua destruição. Segundo Elimar Szaniawsky (2001, p. 102), não há diferenças

entre o embrião que se desenvolve no útero materno ou in vitro, não podendo a lei garantir “a

um embrião a vida plena, punindo penalmente àquele que interromper seu desenvolvimento e, de

outro lado, autorizar legalmente a faculdade de matar o outro embrião. Ambos possuem o

mesmo grau de personalidade, são sujeitos de direito e possuem idêntico direito à vida”.

____________________

71 – A geneticista Mayana Zatz afirma que logo após a concepção há apenas a existência de algumas células que, apesar de humanas, não podem

ser consideradas pessoa humana. Um simples conjunto delas não é suficiente para se falar que há pessoa em sua integralidade. Caso contrário,

todos nós, ao cortarmos nossas unhas, estaríamos cometendo um assassinato, porque estamos destruindo várias células. Disponível no blog da

geneticista hospedado no site da Revista Veja.

72 – Neste mesmo sentido, Francisco Amaral: ―Qual a natureza jurídica do embrião? É pessoa ou coisa? Considerando que a vida é um processo

contínuo de desenvolvimento protegido pelo Direito (CF, art. 5, caput), iniciando-se com a fecundação do óvulo, e que o embrião humano é o

início desse processo, deve-se considerá-lo ser humano em potência e, como tal, revestido da dignidade própria da pessoa humana. Não é simples

conjunto de células, é o começo de uma vida, o início de uma pessoa, um sujeito de direito. Considerar-se o embrião como ser humano, implica

reconhecer-se-lhe subjetividade jurídica e, como tal, titularidade de direitos, como o direito à vida (...)‖ (AMARAL, Francisco. Direito Civil:

introdução. 5 ed. rev., aum. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 262).

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115

A despeito da controvérsia que acompanha a discussão, há que se atentar para o fato de

que, apesar de existir relutância em se atribuir personalidade jurídica ao embrião in vitro, há

consenso com relação à obrigatoriedade em protegê-lo de manipulações genéticas

exclusivamente voluntaristas. Quaisquer intervenções que se pretendam efetuar devem ser

justificadas e autorizadas somente em certos casos – e sempre no interesse do embrião. Assim,

apesar de se reconhecer os problemas práticos que podem advir da atribuição de personalidade

jurídica neste fase de desenvolvimento do ser humano – principalmente no campo do direito

sucessório – impossível não conferir tutela ao embrião diante das possibilidades de sua

instrumentalização advindas do progresso científico.

Jussara Maria Leal de Meirelles expõe a questão sob o seu ponto de vista:

É preciso lembrar que os embriões de laboratório podem representar as gerações

futuras; e, sob a ótica oposta, os seres humanos já nascidos foram, também, embriões,

na sua etapa inicial de desenvolvimento (e muitos deles foram embriões de

laboratório). Logo, considerados os embriões humanos concebidos e mantidos in vitro

como pertencentes à mesma natureza das pessoas humanas nascidas, pela via da

similitude, a eles são perfeitamente aplicáveis o princípio fundamental relativo à

dignidade humana e à proteção do direito à vida. Inadmissível dissociá-los desses que

são os fundamentos basilares de amparo aos indivíduos nascidos, seus semelhantes.

(MEIRELLES, 2000, p. 451)

A decisão sobre o início da vida – ou do início da proteção jurídica sobre a vida – é dos

mais complexos na atualidade envolve concepções éticas, religiosas, filosóficas, morais e

políticas. Umberto Eco sintetizou o mistério que ronda a questão:

Não me sinto em condições de fazer qualquer afirmação sensata sobre este limiar, se é

que, de fato, existe um. Não há uma teoria matemática das catástrofes capaz de nos

dizer se existe um ponto de guinada, de explosão súbita: talvez estejamos condenados a

saber apenas que existe um processo, que seu resultado final é o milagre do recém-

nascido e que o momento em que se teria o direito de intervir nesse processo e em que

não seria mais lícito fazê-lo não pode ser esclarecido, nem discutido. (ECO, 2002, p.

33).

No entanto, é premente a necessidade de se tratar a questão do ponto de vista jurídico;

caso contrário se desrespeitarão os princípios mais caros do Estado Democrático de Direito.

Nesse ínterim, várias teorias jurídicas vêm sendo elaboradas, na tentativa de pacificar o tema.

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116

4.3.2 – Personalidade jurídica

A personalidade jurídica atribui ao homem a capacidade jurídica negocial, cujo conceito

nem sempre coincidiu com o atual. Historicamente, a capacidade encontrava-se vinculada à

noção de propriedade, na medida em que esta era o pressuposto para o reconhecimento e o

exercício da personalidade jurídica73

.

A capacidade imputada àquele que possuía bens constituía instrumento de defesa da

propriedade. O detentor de terras podia praticar os atos necessários para afastar as ameaças à sua

propriedade, uma vez que tais atos produziam efeitos jurídicos. Essa possibilidade encontrava-se,

no entanto, limitada, posto que somente poderia ser exercida dentro das relações que alcançavam

sua propriedade.

Somente ao pater familias foi atribuída, no Direito Romano, a personalidade jurídica,

pois este era o proprietário de todos os bens da família. Dizer que somente o homem proprietário

de terras possuía capacidade jurídica significava dizer que apenas ele poderia assumir direitos,

contrair obrigações e tutelar seus interesses privados. Os filhos, a mulher, os servos e os escravos

não estavam abarcados pela personalidade jurídica e, em virtude disso, não eram sujeitos de

direito.

O advento do capitalismo impôs a necessidade de atribuição de capacidade negocial

àqueles que não os proprietários de terras. Ampliou-se o conceito de propriedade, abarcando-se a

noção de força de trabalho, a fim de que pudesse se estabelecer um acordo de vontades. Os

meios de produção dependiam dos trabalhadores para serem operados; destarte, declarou-se livre

o trabalhador com o escopo de viabilizar o sistema capitalista.

A todos se atribuiu, portanto, personalidade jurídica, capacidade negocial e, por fim,

autonomia. Na medida em que todos eram proprietários – ou dos meios de produção, ou da força

de trabalho – todos passaram a ser sujeitos de direitos.

_________________

73 – Para mais informações, ver ―NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; REZENDE, Danúbia Ferreira Coelho de. A autonomia privada do

paciente em estado terminal. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.) Direito Civil:

Atualidades II. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 89-110)‖.

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117

Houve a generalização destes conceitos, e o contrário não poderia acontecer, uma vez que

o acordo de vontades entre os trabalhadores e os empregadores era essencial ao desenvolvimento

do capitalismo, a nova ordem que se impunha.

Conforme nos ensina Ana Prata:

A implantação do modo de produção capitalista acarretou assim a

necessidade de universalização destes conceitos: todos passam

necessariamente a ser proprietários, ou de bens que lhes permitam

subsistir, ou de força de trabalho que vendam. Por isso todos passam a

ser sujeitos jurídicos, todos passam a ter capacidade negocial. (PRATA,

1982. p.09).

A mudança na ótica da capacidade era urgente. Caso ela não ocorresse, estaria fadado ao

fracasso o sistema capitalista, que pressupõe o acordo de interesses opostos para sua realização.

É neste momento que o conceito de autonomia privada ganha um conteúdo autônomo e

operativo: e é esse conteúdo que vai investir a própria noção de negócio jurídico. Este

deixa de ser visto na perspectiva de instrumento de troca de bens – na perspectiva da

sua função – para ser acentuado o seu caráter de realização da liberdade econômica. O

negócio é a afirmação da liberdade da pessoa, o negócio é o efeito jurídico da vontade

livre. (PRATA,1982, p.09).

A burguesia foi, portanto, o mote da extensão a todos das noções de capacidade e

personalidade jurídicas. Restringia-se, no entanto, ao aspecto patrimonial que cercava a vida

humana, na medida em que o movimento burguês e o desenvolvimento econômico vinculavam-

se. O jusnaturalismo despontou como a escola interpretativa à época, e atestava a existência de

direitos anteriores ao Estado, cujo papel estaria restrito ao seu reconhecimento. Na esteira deste

pensamento inseria-se a noção de personalidade: era um direito natural.

No entanto, o jusnaturalismo gerou toda sorte de exclusões, já que pregava a suficiência

das leis para regulamentar as relações sociais. A ausência de interpretação das normas

estabeleceu a desigualdade entre os indivíduos. Neste sentido, Bruno Torquato e Maria de

Fátima Sá elucidam:

O código era a fonte perfeita do Direito, desnecessária, pois, qualquer

interpretação. A verdade científica fora pretensamente incorporada ao

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118

cotidiano jurídico. O Direito aproximara-se das ciências naturais e seu

método deveria ser descrito em fórmulas simples, garantidoras de

segurança jurídica. As categorias positivas conteriam definições reais,

ou seja, a realidade seria traduzida por conceitos fechados, capazes de

atingir a própria essência do objeto descrito. (NAVES; SÁ, 2006, p. 25)

A concepção jusnaturalista de direitos inatos e imutáveis é equivocada na perspectiva

hermenêutica contemporânea. Conforme Bruno Torquato e Maria de Fátima Sá expõem (2006,

p. 26) ―afirmações de que a personalidade é inerente, natural ou consentânea à própria

realidade humana reduzem o Direito à esfera moral.‖ A atribuição de personalidade jurídica não

segue hoje os parâmetros jusnaturalistas. Caso contrário, impensável seria a discussão com

relação aos embriões e nascituros.

Na atualidade há três grandes subdivisões teóricas que versam sobre a situação jurídica

do ser humano antes de atingir o nascimento. A discussão reside no fato de que a Constituição da

República, apesar de garantir a inviolabilidade da vida humana, não definiu o momento em que

ela se inicia. O desenvolvimento científico criou situações antes impensáveis, como a fecundação

extracorpórea, motivo pelo qual é pertinente – e necessária – a análise da questão, sob pena de se

admitir situações que invalidem o paradigma personalista assumido pela Constituição e irradiado

para todo o ordenamento jurídico.

As correntes que tratam da tutela jurídica do nascituro subdividem-se em natalista,

personalidade condicionada e concepcionista.

A primeira condiciona a aquisição da personalidade ao nascimento com vida. Portanto, o

nascituro não recebe o status de pessoa para o ordenamento jurídico, apesar de receber alguma

tutela. Não se pode falar em detenção dos direitos fundamentais ou de personalidade na fase

embrionária – porque, não sendo reputado pessoa jurídica, não possui direitos - motivo pelo qual

não estaria resguardado das intervenções genéticas, não sendo necessário apor limites à ela.

A teoria natalista deriva da interpretação literal do disposto no artigo 2º do Código Civil

de 2002, in verbis: ―A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei

põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro‖. Consoante seu entendimento, há a

expectativa de aquisição de direitos quando da ocorrência do nascimento – o que significa a

imposição de condição resolutiva. Caio Mário da Silva Pereira expõe:

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119

O nascituro não é ainda pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os

direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire

personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica;

mas, se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em

reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento

já ele é sujeito de direito. (PEREIRA, 2001, p. 79)

Há, no entanto, controvérsia no que toca à expectativa de direitos que o nascituro gozaria.

Segundo a tese advogada pela teoria natalista, a aquisição da personalidade encontra-se atrelada

à ocorrência do nascimento com vida, o que autoriza a conclusão de que o mesmo possui simples

expectativa de direito. No entanto, esta tese é questionada por Silmara Chinelato e Almeida:

Juridicamente, entram em perplexidade total aqueles que tentam afirmar a

impossibilidade de atribuir capacidade ao nascituro ‗por este não ser pessoa‘. A

legislação de todos os povos civilizados é a primeira a desmenti-lo. Não há nação que

se preze (até a China) onde não se reconheça a necessidade de proteger os direitos do

nascituro (Código chinês, art. 1.). Ora, quem diz direitos, afirma capacidade. Quem

afirma capacidade, reconhece personalidade. (ALMEIDA, 2000, p. 160)

Em verdade, falar que o nascituro possui mera expectativa de direito ou que o nascimento

é condição para aquisição da personalidade contradiz a idéia de que ele não seria pessoa jurídica,

porque a mera expectativa o qualifica como titular de direitos em formação. E se há titularidade,

há, por conseguinte, personalidade jurídica74

.

A despeito da existência desta controvérsia, a teoria natalista é adotada pela maioria

absoluta das legislações. Os diplomas civis de Portugal, Espanha, Itália e Alemanha entendem

que a personalidade jurídica encontra-se condicionada ao evento do nascimento com vida.

Quanto ao ordenamento privatístico brasileiro, o entendimento majoritário – tanto doutrinário

quanto jurisprudencial - é o de que há encampação da teoria natalista, e na mesma direção

sinalizam os códigos civis mexicano, chileno e uruguaio (SEMIÃO, 1998).

______________

74 – Conforme elucida Francisco Amaral: ―Ora, expectativa de direito é direito subjetivo com eficácia suspensa ou em formação. Nesse sentido,

o disposto no par. 2 do art. 6 da LIC. Falar-se em condição ou expectativa de direito é reconhecer-se o nascituro como titular de direitos em

formação, o que pressupõe titularidade obviamente, personalidade. (...)só pode ser titular de direitos quem tiver personalidade , donde concluir-se

que, formalmente, o nascituro tem personalidade jurídica. Não se pode, assim, de modo lógico, negar-se ao nascituro a titularidade jurídica. O

nascimento não é condição para que a personalidade exista, mas para que se consolide‖ (AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5 ed.

rev., aum. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 223).

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Além da teoria natalista, a teoria da personalidade condicionada também busca

explicações sobre a personalidade jurídica do nascituro. Há a defesa da personalidade a partir da

concepção, e por decorrência, o nascituro tem direito à personalidade, que fica, porém,

condicionada ao nascimento com vida. Caso este não ocorra, não há aquisição de direitos.

Entretanto, se houver o implemento da condição resolutiva, os direitos retroagirão à data da

concepção. Arnold Wald filia-se à essa corrente doutrinária:

O nascituro não é sujeito de direito, embora mereça a proteção legal, tanto no plano

civil como no plano criminal. A proteção do nascituro explica-se, pois nele há uma

personalidade condicional que surge, na sua plenitude, com o nascimento com vida e se

extingue no caso de não chegar o feto a viver. (WALD, 2002, p. 118)

As críticas a esta teoria direcionam-se à impropriedade de se falar em condição

resolutiva, segundo Bruno Torquato de Oliveira Naves e Maria de Fátima Freire de Sá:

Se condição é evento futuro e incerto ao qual se subordinam os efeitos de um ato

jurídico, sendo resolutiva a condição que, implementada, faz cessar esses mesmos

efeitos, como trabalhar essa teoria frente ao nascituro? A condição resolutiva estaria

supostamente no fato de se nascer com vida. Ora, ocorrendo o nascimento com vida,

não há cessação, mas manutenção desses efeitos, já que a personalidade não cessa, mas

tem continuidade. Há, pois, nessa doutrina, uma impropriedade terminológica, que

acaba por aproximá-la à teoria concepcionista. (NAVES; SÁ, 2006, p. 27).

A terceira teoria desenvolvida acerca da natureza jurídica do nascituro é a concepcionista,

segundo a qual a vida humana se inicia no momento da união dos gametas e, a partir de então,

recebe proteção jurídica, porque o embrião é sujeito de direitos. Segundo esta linha teórica, não

há que se discutir sobre a titularidade dos direitos do nascituro – ela é inegável. Somente cabe

analisar os efeitos destes direitos – em especial os patrimoniais – que dependem do nascimento

com vida do indivíduo. Neste sentido, expõe Silmara Chinelato e Almeida (2000, p. 81): ―a

personalidade do nascituro não é condicional; apenas certos efeitos de certos direitos dependem

do nascimento com vida, notadamente os direitos patrimoniais materiais, como a doação e a

herança‖.

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121

Consoante a doutrina concepcionista, não há como negar que o ordenamento jurídico

considera o nascituro pessoa, na medida em que tutela os seus direitos, uma vez que isto depende

da atribuição de personalidade jurídica. Maria Helena Diniz filia-se a tal corrente doutrinária:

Embora a vida se inicie com a fecundação e a viável vida com a gravidez, que se dá

com a nidação, o início legal da personalidade jurídica é o momento da penetração do

espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher, pois os direitos de

personalidade como o direito à vida, à integridade física e à saúde, independem do

nascimento com vida, apenas os efeitos de direitos patrimoniais como o de receber

doação ou herança dependem do nascimento com vida. (DINIZ, 1997, p. 122).

Paulo Otero (1999, p. 46) afirma que ―o embrião humano não é um órgão, uma coisa ou

simplesmente parte do corpo da mulher, antes se afirma como um ser vivente humano, dotado de

uma forma específica de vida humana que integra em si a completa potencialidade da pessoa‖,

donde decorre que a tutela da inviolabilidade da vida humana e da dignidade se projetam para

um momento anterior ao nascimento, motivo pelo qual o autor defende a existência de ―direitos

fundamentais do embrião humano‖, o que faz coincidir o início da personalidade jurídica com o

momento inicial da vida. (OTERO, 1999, p. 61-62).

A teoria concepcionista argumenta que desde a concepção há um ser humano dotado de

patrimônio genético completo e autônomo daqueles que dispõem seus genitores, e que a partir

dela há uma sucessão de eventos biológicos naturais que vão desencadear o desenvolvimento do

embrião, culminando com seu nascimento. Portanto, não há como aferir em que momento o

embrião passa a ter a qualidade de ser humano. Impossível atestar que em um determinado ponto

o embrião deixa de ser um produto, um bem, uma coisa e passa a ser pessoa75

.

____________________

75 - É o que observa Stela Marcos de Almeida Neves Barbas: ―Desde a concepção até a velhice é sempre o mesmo ser vivo que se desenvolve,

amadurece e morre. As suas particularidades tornam-o único e insubstituível. (...) O nascimento é somente o início de uma nova fase. Outras se

seguirão a esta como a puberdade, a idade adulta, a velhice. (...) Assim como ninguém põe em causa que o recém-nascido, o bebe de três meses ,

a criança de cinco anos, a mulher de trinta ou o idoso de oitenta anos é uma pessoa, também o zigoto, o embrião e o feto constituem etapas do

desenvolvimento de um ser humano que deve ser desde logo respeitado.‖ (BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao Património

Genético. Coimbra: Almedina, 1998, p. 75).

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122

A legislação argentina admite a doutrina concepcionista, conforme preleciona Ricardo

Lorenzetti (1998), ao prever nos artigos 63 e 70 do Código Civil que a pessoa recebe proteção

desde a sua concepção. O autor argentino discorre sobre os problemas que envolvem a pessoa

antes do nascimento, em virtude dos avanços genéticos, chegando a afirmar a necessidade de se

definir ―uma terceira categoria de coisas com uma dignidade especial” porque, apesar do

nascituro não ser simplesmente uma coisa, sua qualificação como pessoa poderia ser excessiva.

No entanto, ao versar sobre a intervenção genética sobre o nascituro, admite sua possibilidade,

desde que se prove a necessidade, com base na preservação de sua memória genética. Assim,

proíbe-se a realização de procedimentos experimentais que utilizem embriões, salvo os que

visem o benefício deles próprios. (LORENZETTI, 1998, p. 469-470).

Em que pese a divergência doutrinária, o que não se pode negar é que o nascituro recebe

proteção do ordenamento jurídico, seja de maneira plena – conforme dispõe a teoria

concepcionista, seja sob a forma condicional – segundo escola da personalidade condicional, ou,

ainda, somente a título de mera expectativa de direito, consoante preleciona o pensamento

natalista.

Correlacionando-se as teorias jurídicas sobre a personalidade jurídica do embrião com o

tema do presente trabalho, conclui-se pela adoção da teoria concepcionista, por entendê-la como

a única a guardar coerência com o eixo personalista que orienta o ordenamento jurídico. Caso

não se considere o embrião como detentor de personalidade jurídica, não há como resguardá-lo

de intervenções abusivas – a tutela do embrião passa necessariamente pela titularidade dos

direitos à vida, à integridade psicofísica e à dignidade. Ressalve-se, contudo, que se assume uma

vertente abrandada da corrente doutrinária aludida, porque não se pretende equipará-lo

integralmente à pessoa nascida. No entanto, diante da obrigatoriedade em se proteger o embrião

dos riscos que a engenharia genética oferece, não há alternativa senão conferir a ele a condição

de sujeito de direitos da personalidade. Logo, há a garantia da tutela da vida embrionária,

legitimando-se a intervenção genética quando visar o interesse do ser humano em

desenvolvimento, limitadas pelo respeito aos direitos da personalidade.

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123

4.3.3 – Direitos da personalidade

A importância do estudo dos direitos da personalidade reside no fato da salvaguarda

oferecida por eles à pessoa humana, atuando como limite de aplicação – aliado aos demais já

apresentados – das tecnologias interventivas no ser humano.

4.3.3.1 – Construção jurídica

A noção da proteção da pessoa encontrou seus primeiros esboços no direito grego, no

qual existia a noção da hybris - que significa injustiça – a justificar a punição penal. A filosofia

grega em muito contribuiu para a formação da teoria dos direitos da personalidade, na medida

em que apresentou a existência de duas fontes jurídicas – uma de direito natural, cujas leis

emanavam da natureza, e outra de direito positivo, que apresentava o Estado como criador das

normas. O direito natural expressava os valores morais superiores e ideais da ordem vigente, cuja

justificação residia na natureza. (AMARAL, 2003, p. 253).

Deriva desta época a noção jusnaturalista dos direitos inatos, absolutos, intrínsecos ao

homem e anteriores ao Estado, ao qual cabia a função de reconhecê-los. Esta escola do

pensamento é apontada como a primeira manifestação jurídica da existência de uma categoria de

direitos que prezava a tutela individual e os assumia como dotados de conteúdo pré-determinado,

rígido, imutável e igualmente aplicável a todas as pessoas.

A noção de direitos inerentes ao homem foi ampliada por força do Cristianismo, que

apresentou a idéia de dignidade humana ao buscar estabelecer um vínculo direto entre o homem

e Deus. Depois disso, a Magna Carta, datada de 1215, previa certas garantias legais contra a

violação dos direitos, dando continuação à construção da noção de tutela da pessoa. Mas o

grande impulso foi dado com o Humanismo, no século XVI e com o Iluminismo, nos séculos

XVII e XVIII, quando ―se reconhece o indivíduo como valor central do direito e se desenvolve a

teoria dos direitos subjetivos como tutela dos interesses e dos valores fundamentais da pessoa,

admitindo-se, como objeto desses direitos, a própria pessoa humana‖ (AMARAL, 2003, p. 254).

Seguiram-se diversos documentos que previam direitos naturais em seus textos, destacando-se a

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Declaração de Direitos de 1793 – que expressamente reconhecia os direitos de igualdade,

liberdade, segurança e propriedade - e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948.

4.3.3.2 – Conceito e sistematização jurídica brasileira

Gustavo Tepedino (2001, p. 24) conceitua os direitos da personalidade como ―direitos

atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade‖.

Francisco Amaral (2003, p. 247), por sua vez, os preleciona como ―direitos subjetivos,

quais sejam, direito à vida, ao próprio corpo, à honra, à liberdade, entre outros, que têm por

objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual‖.

Carlos Alberto Bittar, por sua vez, entende por direitos da personalidade

os direitos inatos, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou

outro plano do direito positivo – a nível constitucional ou a nível de legislação

ordinária – e dotando-os de proteção própria, conforme o tipo de relacionamento a que

se volte, a saber: contra o arbítrio do poder público ou às incursões de particulares.

São, assim, direitos próprios da pessoa em si, existentes por sua natureza, como ente

humano, com o nascimento, mas são também direitos referentes às projeções do

homem para o mundo exterior (BITTAR, 1989, p. 07)

E, por fim, reporta-se a contribuição de Brunello Stancioli:

Direitos da personalidade são direitos subjetivos que põem em vigor, através de normas

cogentes, valores constitutivos da pessoa natural e que permitem a vivência de escolhas

pessoas (autonomia), segundo a orientação do que significa vida boa, para cada pessoa,

em um dado contexto histórico-cultural e geográfico. (STANCIOLI, 2007, p. 107-108)

O Código Civil brasileiro de 2002 incluiu em seu corpo um capítulo dedicado aos direitos

de personalidade, inspirando-se em algumas legislações estrangeiras, com destaque para os

direitos alemão e português.

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Já em 1871 se falava em Portugal sobre a existência de elementos essenciais da

personalidade, entre eles a dignidade, liberdade, veracidade e boa reputação, e entendia-se que a

falta de algum deles reduzia o homem à condição de coisa. Paulo Mota Pinto expõe:

O direito da personalidade é complexo; abrange as condições necessárias ao seu

desenvolvimento. Comprehende – os direitos de dignidade, de liberdade, de

veracidade, de boa reputação, de propriedade e de associação. Estes direitos são

elementos essenciais da personalidade; o desenvolvimento prático de um requer o

desenvolvimento dos outros; se faltar algum, o homem terá descido de pessoa a cousa.

(PINTO, 2003, p.08).

Uma diferença que chama a atenção de imediato entre as disciplinas de ambos os

Códigos reside no fato do Código brasileiro não ter consagrado expressamente uma cláusula de

proteção ou tutela geral da personalidade, ao contrário do constante do artigo 70 do Código Civil

Português, onde se lê que existe proteção dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça

de ofensa à personalidade física ou moral. Conforme esclarece Pinto (2003), de acordo com o

sistema português, não cabe definir o que é personalidade humana – definição que seria, aliás,

desde logo, de certa forma uma limitação – porque o que está em causa não é a tutela de um

aspecto apenas, mas a tutela da personalidade humana globalmente considerada. A cláusula geral

de personalidade tem como objeto a personalidade humana em todas as suas manifestações,

atuais e futuras, previsíveis e imprevisíveis, e tutela a sua livre realização e desenvolvimento,

sendo o princípio superior de constituição dos direitos que se referem a particulares modos de ser

da personalidade.

Sobre as vantagens desse sistema aberto e não taxativo de proteção dos direitos de

personalidade, Paulo Mota Pinto esclarece:

O direito geral de personalidade pode, assim, como previsão ou ―norma de recolha‖, vir

a abranger novas zonas de relevância da personalidade e proteger contra novas ofensas

(pense-se apenas, por exemplo, nos complexos problemas hoje levantados pelas

possibilidades de manipulação de material genético humano), não protegidas pelos

direitos especiais. É, neste sentido, ―aberto‖ sincrônica e diacronicamente, permitindo a

tutela de novos bens, e face a renovadas ameaças, sempre tendo como referente o

respeito pela personalidade, quer numa perspectiva estática, quer na sua dinâmica de

realização e desenvolvimento. (PINTO, 2003, p.17).

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126

Já a percepção alemã dos direitos de personalidade é fragmentada, pois durante o regime

nacional-socialista houve seu desaparecimento, instaurando-se uma nova ordem com o final da

Segunda Guerra Mundial. Assumiu-se uma perspectiva axiológica e humanista do Direito,

baseada na dignidade da pessoa. Em 1949 foi aprovada a Lei Fundamental alemã, que atribuiu

especial relevo aos direitos fundamentais, compreendidos como imanentes a todo e qualquer ser

humano. E exatamente em virtude dos acontecimentos vivenciados pelos alemães com o

nazismo, hoje a busca pela proteção e valorização integral do ser humano é tão forte e incessante,

abrindo largo campo de incidência para os Direitos de Personalidade.

Marcos de Campos Ludwig nos mostra que a noção de um direito próximo ao que hoje

conhecemos por Direito de Personalidade já era presente no século XIX:

Otto von Gierke desenvolveu, em 1895, a noção de direito geral de personalidade ao

assim atestar: Direitos de personalidade chamamos aqueles que garantem ao sujeito o

domínio sobre um setor da própria esfera de personalidade. Os direitos da

personalidade diferenciam-se, como direitos especiais, do direito geral de

personalidade, que consiste numa reivindicação geral, garantida pelo ordenamento

jurídico, de contar como pessoa. O Direito da personalidade é um direito subjetivo e

deve ser observado por todos. (LUDWIG, 2002, p. 278).

Apesar dos ensinamentos de Gierke, o Código Civil alemão (BGB) de 1896 não se

inspirou em seu pensamento, adotando a doutrina tradicional do século XIX que ligava a noção

de personalidade à de capacidade. Noutro giro, o Código Civil Suíço, elaborado em 1907,

recepcionou tais idéias, adotando a teoria do direito geral de personalidade.

À semelhança da doutrina vigente em Portugal, encontra-se expressamente consagrado na

Alemanha, pelo artigo 2º, I, da Lei Fundamental, o direito ao livre desenvolvimento da

personalidade, o que reflete consideravelmente sobre as relações jusprivadas, graças à

perspectiva constitucional adotada e trabalhada pelos tribunais maiores daquele país. A teoria do

direito geral de personalidade derivou da recepção pela ciência do Direito da noção ética de

personalidade, que teve força especialmente no pós-guerra e se opôs à doutrina tradicional, que

afirma que os direitos fundamentais originários devem apenas se tornar pretensões de defesa

contra ataques às pessoas oriundos do Estado.

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127

No diploma constitucional alemão, o artigo 2º, I da Lei Fundamental estatui que todos

têm direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de

outrem e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral. O direito ao livre

desenvolvimento da personalidade advém do reconhecimento de dois princípios fundamentais

que coexistem: liberdade e igualdade. O artigo 2º, I, ao mesmo tempo em que consagra o

primeiro, limita-o de acordo com o segundo. De fato, o ordenamento jurídico admite liberdades

iguais, ou seja, liberdades individuais que não restrinjam indevidamente liberdades alheias, sob

pena de se tornarem atos de não liberdade (LUDWIG, 2002, 284).

Ludwig nos mostra como esse princípio é aplicado na Alemanha:

O direito ao livre desenvolvimento da personalidade pode e deve ser aplicado, como

princípio fundamental que é, observando-se os critérios pautados pela doutrina e pela

jurisprudência. (...) Na Alemanha, talvez sob o impulso de uma certa vontade coletiva

de superar os males da ruptura totalitária, verificamos que o BVerG vem utilizando

esse recurso hermenêutico oferecido pelo sistema jurídico, visando a uma maior justeza

nas decisões judiciais. (LUDWIG, 2002, p.295).

A moderna doutrina alemã sustenta que a proteção da personalidade humana se encontra,

em primeira mão, no âmbito civil-constitucional. Apesar de não se negar a existência da vertente

penal da sua tutela, entende-se pela sua insuficiência, na medida em que se afigura inadequada

para promover, amplamente e de maneira eficaz, a dignidade e o livre desenvolvimento da

personalidade humana, em razão da sua atuação ocorrer pro meio da tipificação delituosa, idéia

com a qual se coaduna.

No ordenamento jurídico brasileiro inexiste um dispositivo expresso que reconheça o

direito ao livre desenvolvimento da personalidade. No entanto, é possível, por meio de esforço

hermenêutico, encontrar no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, previsto no

artigo 1º, III da CR/88, orientação similar.

O Código Civil brasileiro versa sobre os direitos da personalidade entre os seus artigos 11

e 21, tutelando direitos como a integridade física, moral e intelectual. O respeito à integridade

física revela-se de crucial importância para o presente trabalho por oferecer proteção ao ser

humano, conforme aduzido, desde o início de seu desenvolvimento.

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4.3.3.3 – A visão jusnaturalizante dos direitos da personalidade

O jusnaturalismo trata da fundamentação do ordenamento jurídico a partir da existência

de leis superiores e anteriores ao homem, além de universais, porque aplicáveis da mesma forma

em todos os lugares. Tais leis possuem caráter incontestável, na medida em que estabelecem, de

modo objetivo, as noções de bem e mal, justiça e injustiça.

Segundo preleciona Bobbio, a primeira manifestação desta concepção teórica ocorreu

com Aristóteles, que estabeleceu dois parâmetros de identificação das espécies existentes de

Direito.

a)o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia (o

filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer parte), enquanto o direito

positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto;

b) o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas

tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas a alguns ou

más a outros ou más para alguns. Prescreve pois ações cuja bondade é objetiva [...]O

direito positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem

reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas uma

vez reguladas pela lei, importa [...] que sejam desempenhadas do modo prescrito pela

lei (BOBBIO, 1995, p. 17).

Depreende-se do exposto a existência de dois tipos de ordenamento jurídico: um

decorrente da estrutura natural do mundo, cujas concepções seriam definidas de modo

apriorístico, e outro positivo, cuja apreensão dos conceitos estava condicionada à definição legal.

Tais pensamentos foram resgatados na Idade Média, quando a concepção de direitos

anteriores ao homem aglutinou-se à religiosidade característica de época, dando origem ao

direito natural cristão. Conforme informa Oliveira (2008, p. 24) o estoicismo foi a ponte de

ligação entre o pensamento desenvolvido na Antiguidade e o direito natural cristão. Prossegue o

mesmo autor:

Quando dos estudos realizados pela escola estóica, os questionamentos acerca da

filosofia ultrapassaram os limites geográficos das Cidades-Estado gregas. Com isso,

ocorreu o encontro dessas reflexões com o império romano, tal como Cícero, que

mantinha a idéia de existência de uma lei natural intrínseca e reguladora homem desde

o seu nascimento. Conhecedores da escrita, os romanos faziam seu uso como uma

forma de tornar mais segura e justa a aplicação do Direito, em detrimento da mera

utilização de costumes que, paulatinamente, foi cedendo espaço para as normas

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positivadas. Em decorrência disto, a compilação sistematizada de regras positivadas

realizada pelos romanos e corporificada no Corpus Juris Civiles representou um

embrião da codificação que mais tarde invadiria os ordenamentos jurídicos ocidentais

na modernidade. Com a derrocada do império romano, os povos bárbaros invadiram a

região antes ocupada pela complexa estrutura jurídica, política e social decorrentes da

dominação romana. Os conhecimentos dos predecessores eram infinitamente à frente

da realidade esperada pelos bárbaros, incapazes de realizar a imposição de seu aparato

ideológico, jurídico e técnico. (OLIVEIRA, 2008, p.24).

O direito canônico ganhou expressão, passando a exercer forte influência nos

assuntos jurídicos, o que alçou a força divina à posição de legitimadora das leis. Como a vontade

divina era reputada superior, universal e imutável, estas passaram a ser as características legais

do período.

Em virtude da eclosão de movimentos humanistas e racionalistas, o direito canônico

foi criticado veementemente, numa manifestação da insatisfação popular à submissão das leis

impostas pela Igreja. Houve a irrupção do jusnaturalismo, que mantém a crença na existência de

duas ordens jurídicas – um direito natural perfeito, absoluto e prévio, e outro preparado pelos

homens, mas subordinado ao primeiro. Contudo, a diferença residia no fundamento em que

apresentavam: enquanto do direito cristão alcançava-se pela revelação da fé, o jusnaturalismo

embasou-se na razão humana. (CAMARGO, 2003, p. 62).

Essa ordem jurídica imutável, superior e perfeita ainda representa a base

interpretativa de alguns institutos do Direito Civil, dentre os quais se situa a categoria dos

direitos de personalidade. Observe-se:

Os direitos da personalidade são, em síntese, aqueles comuns da existência, porque

simples permissões dadas pela norma jurídica a cada pessoa de defender seus bens

pessoais, emanações e prolongamentos, que a natureza lhe concedeu, destacando-se da

personalidade em si mesma. São, assim, inerentes ao homem, são-lhe fundamentais eis

que recaem sobre uma parte da própria esfera da personalidade.

A opção por esse conceito dos direitos da personalidade torna-nos adeptos da Escola do

Direito Natural, mais precisamente do Jusnaturalismo clássico ou Jusnaturalismo dos

escolásticos, que concebe o direito natural como um conjunto de normas ou de

primeiros princípios morais, que são imutáveis, consagrados ou não na legislação da

sociedade, visto que resultam da natureza das coisas e do homem, sendo por isso

apreendidos imediatamente pela inteligência humana como verdadeiros. Para os

escolásticos a lei natural é imutável em seus primeiros princípios. O direito natural,

imanente à natureza humana, independe do legislador humano. Assim, por exemplo, do

princípio de direito natural de que ―o homem deve conservar a si próprio‖ decorre que

―não é permitido matar‖, ―é proibida a eutanásia‖ etc.‖ (DINIZ, 1989, p. 34-35).

(grifou-se).

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Do pensamento exposto infere-se a forte presença dos argumentos jusnaturalistas nos

direitos da personalidade. Ressalte-se que a autora não é voz isolada, uma vez que é pacífica a

utilização de conceitos como ―inerentes‖, ―inatos‖ e ―intrínsecos‖ ao se buscar a conceituação

dos direitos em tela. Gustavo Tepedino (2001, p.37) corrobora esta assertiva ao afirmar que a

doutrina brasileira em larga maioria ―nega a primazia do direito positivo, buscando em fontes

supralegislativas a legitimação dos direitos da pessoa humana‖.

No entanto, tal escola do pensamento não se afigura adequada à hermenêutica atual,

que entende a vinculação dos conceitos jurídicos ao contexto histórico-cultural aos quais se

aplicam. Com efeito, não há como se pretender fazer incidir o Direito dissociado dos valores que

informam a sociedade com a qual se relaciona. Há uma necessária correlação entre os costumes

sociais e os valores jurídicos e, se assim não fosse, a lei seria considerada letra morta. Tome-se o

exemplo dos povos do Extremo Oriente, entre eles japoneses e chineses, que não confiam no

direito para assegurar a ordem social e a justiça. A codificação segue os modelos ocidentais, mas

não apresenta eficácia social. As leis não possuem um caráter imperativo: são vistas como

modelos de conduta, dos quais os cidadãos devem buscar se aproximar. O Direito não é visto

como um sistema de punição. Busca-se o consenso, o acordo, a conciliação. Corrobora essas

idéias a lição de Norbert Rouland:

Os homens devem, acima de tudo, buscar o consenso, evitar tanto quanto possível a

idéia de punição, que a tradição clássica no Ocidente faz (erradamente) ser o critério

decisivo do direito. Enfim, o mundo encontra sua coerência na conjunção dos

contrários: não se pode pensar a matéria sem o espírito, o racional sem o sensível, a

ordem sem a desordem, o bem sem o mal, o yin sem o yang. (ROULAND, 2003,p. 80).

Conforme exposto, houve a construção da norma jurídica nos países do Extremo Oriente.

Porém, não foram observados os valores, os costumes e as tradições sociais, numa simples

transposição do modelo ocidental, o que resultou na ineficácia da norma.

O jusnaturalismo incide no mesmo equívoco, ao pretender estipular um código único para

todos os lugares. Diante da pluralidade inerente à sociedade contemporânea, não pode subsistir a

idéia de conceitos jurídicos prontos, estanques, perenes e imutáveis. Não há como se falar em

direitos onipotentes, aptos a informarem todos os ordenamentos jurídicos. Há que se valorizar a

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liberdade argumentativa, a fim de se alcançarem os conceitos jurídicos apropriados que variarão,

no tempo e no espaço, ao sabor das tradições culturais.

Recorde-se que a idéia de direitos inatos se sustentava diante das ameaças dos Estados

totalitários, justificando-se a partir da necessária proteção humana diante da arbitrariedade do

poder público (TEPEDINO, 2001, p. 38). Tal realidade não encontra espaço na maioria das

sociedades atuais – entre as quais, a brasileira – motivo pelo qual deveria ser descartada.

Brunello Stancioli expõe o equívoco de se correlacionar o jusracionalismo aos direitos da

personalidade:

O jusracionalismo apresenta, assim, as mesmas pretensões de seus precursores estóicos

e cristãos: ter validade universal e ser atemporal. Pode-se afirmar que os direitos

naturais da Revolução Francesa tinham um grande teor de ‗criptosacralidade‘. Dessa

forma, deu-se azo às características dos direitos humanos e direitos da personalidade

que são repetidos de forma renitente e tautofônica: naturais, inatos, inalienáveis,

irrenunciáveis quanto ao exercício. Hoje não há mais sentido em fundamentar os

direitos da personalidade em qualquer instância de direito natural. De fato, são vários

os argumentos, já há muito desenvolvidos, contra o jusracionalismo, como por

exemplo:

a) a idéia de Villela, segundo a qual o jusracionalismo trabalhou com a idéia de homem

intangível e espiritual, desvinculado, assim, de necessidades decorrentes do Mundo da

Vida. (...)

b) a descoberta da historicidade do Direito. Toda construção jurídica está

inexoravelmente presa a um determinado contexto histórico. (STANCIOLI, 2007, p.

85/86)

Em oposição ao viés jusnaturalista, há quem advogue a tese da elevação do positivismo

como garantia dos direitos de personalidade. Gustavo Tepedino, Pietro Perlingieri e Adriano de

Cupis são expoentes deste movimento. O primeiro traz a opinião de Perlingieri76

, para quem ―os

direitos do homem, para ter uma efetiva tutela jurídica, devem encontrar o seu fundamento na

norma positiva. O direito positivo é o único fundamento jurídico da tutela da personalidade‖

(TEPEDINO, 2001, p. 39).

_______________

76 – PERLINGIERI, Pietro. La personalitá umana nell‘ordinamento giuridoc. Napoli: Esi, 1972, p.131.

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Gustavo Tepedino expõe a adequabilidade do positivismo:

Superado o autoritarismo e admitindo-se, como premissa, a consolidaçao de um estado

social de direito, o positivismo pode se constituir em uma sólida garantia da promoção

da pessoa humana, contra costumes muitas vezes retrógrados que tendem a reproduzir

as desigualdades constituídas ao longo do tempo, a partir de hegemonias econômica e

social que, não fosse a norma jurídica, imposta através do Estado democrático e

interventor, jamais se alteraria. (TEPEDINO, 2001, p. 41).

Não há como coadunar com a proposta apresentada. A corrente positivista não reconhece

a existência de direitos anteriores ao homem, conforme preconiza o jusnaturalismo. No entanto,

os condicionam ao crivo das forças estatais, aduzindo a inexistência de quaisquer direitos que

não os previstos na lei.

A proposta positivista peca em dois momentos: primeiro ao atribuir poderes em demasia

ao legislador. Corre-se o risco de voltar à época dos estados totalitários, nos quais, por ironia,

não existia proteção da pessoa humana. O segundo equívoco incide na legalidade excessiva, ao

se atestar que somente os direitos previstos em lei são reconhecidos e tutelados. Como é cediço,

o Direito reage com lentidão aos avanços sociais. Em especial no momento vivenciado, em que a

biotecnologia avança a passos largos, adotar um pensamento tão legalista implica em permitir

afrontas à dignidade humana. A regulação casuística, fechada e hermética não aponta como a

melhor solução porque provoca a rápida desatualização do direito.

Apontadas as deficiências do jusnaturalismo e do positivismo na consecução da tutela dos

direitos da personalidade, há que se indicar uma alternativa que se afigure adequada. É o que se

passará a expor.

4.3.4 – Por uma reconstrução discursiva dos direitos de personalidade

A proposta a ser desenvolvida afigura-se subjacente à existência da íntima relação entre

os conceitos de autonomia privada, dignidade humana e liberdade. Parte-se desta premissa para

se discutir a reconstrução e a interpretação dos direitos da personalidade sob um novo viés.

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Em virtude da contestação das escolas jusnaturalista e positivista, propõe-se a análise de

uma nova hermenêutica por meio do discurso, e com tal propósito, abordam-se as idéias da teoria

discursiva habermasiana.

Pode-se afirmar a presença de um ponto inegociável dentro da contemporânea

perspectiva constitucionalizada do direito civil – qual seja, o princípio da dignidade humana -

traduzido na posição de supremacia ocupada pelo ser humano, considerado fundamento do

Estado e limite de atuação tanto nas relações verticais quanto nas horizontais. No entanto, tal

conceito é dotado de uma carga subjetiva que, por vezes, abre espaço para justificações

voluntaristas que acabam por atingir o seu próprio objetivo (a proteção do ser humano), razão

pela qual se entende a necessidade de atribuir-lhe um conteúdo jurídico. O objetivo não é

aprisionar o princípio em definições estanques. Uma de suas virtudes está justamente na

capacidade de se moldar às mais diversas situações jurídicas, conferindo-lhes proteção. Busca-se

somente apontar parâmetros para que essa elasticidade não configure a sua própria armadilha.

Conforme expõe Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 213), a dignidade recebe o tratamento de

qualidade inerente a todo ser humano, a ponto de ser considerada sinônimo do próprio valor que

o identifica. No entanto, as pretensões de dignidade assumidas por cada indivíduo podem não ser

coincidentes. Explica-se: todos os componentes que o cercam – culturais, econômicos,

familiares, históricos – influenciam o projeto de vida individual. Pessoas com antecedentes

diferentes entre si dificilmente apresentarão as mesmas aspirações. Há um componente subjetivo

correspondente à realização pessoal. Por isso, a assunção de um conceito de dignidade universal

e a sua conseqüente imposição a todos os cidadãos repercutiria de modo divergente em cada um

deles. Há aqueles que ficariam satisfeitos e os que se frustrariam. Os últimos, por certo, não

afirmariam ter dignidade neste momento. Tal pensamento leva à irremediável conclusão de que

somente o próprio indivíduo pode determinar qual a forma de vida que lhe afigura digna77

.

Entram em cena os princípios da liberdade e da autonomia, numa relação de perfeita simbiose.

________________

77 – Conforme exemplifica Brunello Stancioli: ―Se é negado a um católico fervoroso, o direito de rezar, estar-se-á mutilando a sua forma de se

sentir pessoa humana, dotado de vida que vale a pena ser vivida – sempre vinculada a uma dada cultura que lhe é essencial para a construção da

identidade. Por oposição, obrigar um ateu convicto a se confessar com um padre, pode ofender-lhe a personalidade de forma patente. Assim, há

ações que são necessárias para que o indivíduo humano tenha sua personalidade afirmada, em sua cultura, naquele dado momento histórico, e

outras ações que devam ser evitadas para que sua personalidade não seja desconstruída. Negar isso pode ser, no mínimo, degradante ou, mais

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Deve-se ter em mente que não se defende a definição abstrata do princípio. Não há como

assim se proceder, devendo-se buscar a sua construção no caso concreto, de acordo com as

convicções pessoais. Por isso, aduz-se a necessidade de ser autônomo, no sentido de se garantir a

autodeterminação livre de pressões externas.

A autonomia surge, portanto, como componente integrante – e condicionante – da

dignidade. Neste sentido manifesta-se Brunello Stancioli:

Note-se: a dignidade do homem deve ser perseguida por ele mesmo! Ele pode ser

aquilo que bem entender, pois não está sujeito nem ao determinismo natural, nem ao

arbítrio alheio. Razão, Liberdade e Ser conjugam-se, dando forma e sentido ao homem.

(STANCIOLI, 2007, p. 56).

Se há a garantia instrumental da autonomia privada para o indivíduo concretizar seu

projeto pessoal, há que se disponibilizarem também os meios – ou o procedimento - para tanto.

Neste ponto, surge a teoria discursiva de Habermas, que, em linhas gerais78

, aduz ser a

participação dos indivíduos na produção das normas jurídicas que atribui legitimidade a estas.

Elucidativas as palavras de Felipe Oliveira: ―o que garante a legitimidade das normas jurídicas é

o conjunto de argumentos racionais discursivamente produzidos pelos cidadãos. É o amplo

procedimento discursivo que irá legitimar o texto legal.” (OLIVEIRA, 2006, p. 164).

A capacidade comunicativa do ser humano é percebida por Habermas como o

instrumento apto a proporcionar um espaço de diálogo que será o lastro legitimador do sistema

normativo de cada comunidade. A atitude crítica é inerente a essa orientação comunicativa:

No uso da linguagem orientada pelo entendimento, ao qual o agir comunicativo está

referido, os participantes unem-se em torno da pretensa validade de suas ações de fala,

ou constatam dissensos, os quais eles, de comum acordo, levarão em conta no decorrer

da ação. Em qualquer ação de fala, são levantadas pretensões de validade criticáveis,

que apontam para o reconhecimento intersubjetivo. (HABERMAS, 2003, p.36-37).

_____________

além, atentório à pessoa natural‖. (STANCIOLI, Brunello Souza. Renúncia ao exercício de Direitos da Personalidade ou Como alguém se torna o

que quiser. 2007. 165f. Tese de doutorado . Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 103.)

78 – Deve –se ressaltar que foge ao objetivo do presente trabalho a análise profunda da teoria discursiva de Habermas. Apenas alguns pontos

básicos serão abordados, na medida necessária para se justificar sua aplicação como limite da intervenção terapêutica.

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O Estado que se pretende democrático deve necessariamente - segundo a teoria discursiva

de Habermas - permitir a participação de seus cidadãos na construção do conteúdo das normas às

quais se submeterão. Para tanto, os indivíduos devem se situar em posição de igualdade,

conferindo-se a todos o acesso ao debate. Não há que se falar em legitimidade normativa ou

mesmo em democracia se as normas jurídicas não tiverem sido submetidas ao crivo popular, pois

só as normas que são submetidas – e subsistem - à ação crítico-discursiva têm validade.

O Direito não se apóia em argumentos de origem natural, divina ou positiva. São os

próprios cidadãos, no uso da sua habilidade comunicativa, que apresentam a fundamentação

normativa jurídica - tanto no momento da elaboração quanto no da aplicação das mesmas.

A legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo:

enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder

examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de

todos os possíveis atingidos. (HABERMAS, 1997, 138).

Segundo a teoria discursiva, não é a forma que legitima o direito, mas sim o conteúdo

anuído pelos envolvidos em um procedimento discursivo. Conforme Habermas elucida (2003, p.

172) ―o direito não consegue seu sentido normativo pleno per se através de sua forma, ou

através de um conteúdo moral dado a priori, mas através de um procedimento que instaura o

direito, gerando legitimidade‖.

Depreende-se a importância da autonomia privada no processo de construção normativa

que pressupõe a participação cidadã, traduzida pela autonomia pública. Há total

complementaridade entre estas duas noções, consoante expõe Sérgio Gibson:

O que Habermas percebe é que somente tem legitimidade o direito que surge da

formação discursiva da opinião e da vontade dos cidadãos que têm os mesmos direitos

assegurados. Partindo dessa premissa, temos que os cidadãos somente poderão se

reconhecer em sua autonomia pública – compreendida dentro dos direitos de

participação política democrática - se também lhes for assegurada a sua própria

autonomia privada, que possui, em seu bojo, os direitos individuais que vêm garantir as

liberdades subjetivas dos cidadãos. Fecha-se assim o círculo de complementaridade ou

co-originariedade entre a autonomia pública e privada, pois se os direitos subjetivos

institucionalizam as condições de comunicação para a formação da vontade política,

eles perdem o seu caráter meramente particular e individual, dissociado da

coletividade. (GIBSON, 2008, p. 139).

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Brunello Stancioli também trabalha a necessária correlação entre as autonomias pública e

privada ao afirmar que a última é constitutiva da primeira, enquanto a autonomia pública

condicionaria a legitimidade normativa ao caráter cogente dos direitos fundamentais.

Em suma, a autonomia privada é a garantia de pessoas que atuam, com repercussões na

esfera pública, inclusive legitimando, materializando e vivenciando direitos

fundamentais. A autonomia pública, por sua vez, através de direitos subjetivos

(fundamentais e da personalidade) cria condições de possibilidade para o exercício da

autonomia privada. (STANCIOLI, 2007, p. 16).

A teoria discursiva refuta, portanto, a idéia da existência de direitos anteriores ao

discurso, pois todos os direitos somente adquirem validade jurídica após - e por meio - a

realização do debate. Confirma-se, ademais, a inadequação de se continuar buscando

fundamentos jusnaturalistas para os direitos da personalidade79

, que exprimem conceitos

revestidos de conteúdo sagrado, universal e acrítico – na contramão da hermenêutica

contemporânea.

De todo o exposto, conclui-se que a construção dos direitos de personalidade é realizada

por seus próprios destinatários, que dispõem de ampla liberdade argumentativa para, por meio do

discurso, definirem o seu conteúdo normativo, em claro respeito ao exercício da sua dignidade –

em razão do reconhecimento da autonomia e da liberdade do sujeito. Oferta-se, portanto, a

possibilidade dos cidadãos promoverem a construção dos conteúdos normativos – a partir de

seus valores individuais – edificantes da pessoa humana, em um dado contexto.

_________________

79 - Consoante Oliveira expõe: ― Habermas parte de um princípio do discurso deontologicamente neutro, sem uma noção de obrigatoriedade

anterior a qual o Direito deveria se filiar – como, por exemplo, a moral. Nesse sentido, os mandamentos normativos serão criados apenas após o

discurso, e nunca a priori. É tal neutralidade deontológica que emancipa Habermas de sua tradição kantiana, que pressupunha uma vinculação do

Direito à moral. Essa determinação traz conseqüências ímpares, pois se abandona a idéia de existência de um núcleo de direitos materiais que

antecedem o discurso e dispensam fundamentação – direitos naturais. Toda e qualquer determinação normativa deverá passar pelo crivo da

argumentação racional, dando democraticidade às norma jurídicas.

Para que se perceba a concretização da faceta democrática, deve haver um processo de institucionalização desta produção legislativa de origem

democrática, observando dois pontos.

O primeiro é a ampla liberdade comunicativa, em simetria de posições entre os participantes. Isso significa, no âmbito da discursividade, a ampla

possibilidade de participação argumentativa dos membros na formulação das normas jurídicas a serem institucionalizadas.

A segunda questão a ser observada encontra-se ligada à correição procedimental, que deve dar ares de institucionalização às vontades

democraticamente formuladas‖ (OLIVEIRA, Felipe Faria de. Democracia e a legitimidade do direito na contemporaneidade. Revista Asa-

Palavra. Faculdade ASA de Brumadinho, v.01, n. 6, ago-dez/2006. Brumadinho: Faculdade ASA, p. 166).

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O5 LIMITES JURÍDICOS DAS INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS EMBRIONÁRIAS

Trouxeram-se à baila os princípios éticos e jurídicos invocados recorrentemente para

limitar a utilização das técnicas de reprodução assistida e a aplicação dos avanços genéticos, e –

objetivo maior - tutelar o ser humano, dentre os quais se destacam os princípios da paternidade

responsável, do melhor interesse da criança, da autonomia, da liberdade reprodutiva e da

dignidade.

As possibilidades de manipulação genética do ser humano confrontam a sociedade na

medida em que não há regulamentação jurídica sobre o assunto, ou mesmo sobre a natureza

jurídica do embrião. Urge definir o momento em que se inicia a tutela jurídica sobre o ser

humano, já que o vazio jurídico legitima a sua instrumentalização. Taísa Maria Macena de Lima

(2007, p. 165 e ss.) trabalha a questão da tutela embrionária a partir das seguintes vertentes: a

diferenciação total entre o concebido e o homem pessoa, em que o primeiro é equiparado a um

mero objeto, autorizando-se seu uso para quaisquer fins; a equiparação total entre o concebido e

o homem-pessoa, segundo a qual o embrião goza da mesma proteção conferida ao ser humano

nascido, cuja inspiração reside claramente no personalismo; e, por fim, a diferenciação parcial

entre o concebido e o homem-pessoa, que aduz existir proteção ao embrião, embora em menor

escala do que a conferida ao homem-pessoa.

Seguindo a orientação personalista que perpassa o ordenamento jurídico brasileiro, e a

despeito da posição natalista adotada pelo Código Civil, entende-se pela necessária tutela do ser

humano em todas as suas fases de desenvolvimento, sob pena de se autorizar a sua reificação.

A proteção jurídica suscitada não impede, contudo, a intervenção genética operada no

interesse do próprio embrião. A recomendação majoritária direciona-se a autorizar a intervenção

terapêutica, para corrigir defeitos genéticos graves. Conforme Pietro Perlingieri informa (1999,

p. 178) ―é preferível legitimar apenas aquelas intervenções que servem a remover grandes

impedimentos físicos ou psíquicos. (...) A manipulação não pode chegar à reprodução de seres

otimais, nem a novas concepções de raça”. A despeito do consenso sobre a legitimidade das

intervenções terapêuticas, os juristas não se ocuparam, ainda, em definir quais seriam estes

graves impedimentos de ordem física ou psíquica identificáveis no embrião a autorizar a terapia.

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A necessidade de fazê-lo, contudo, é patente, principalmente porque a definição de gravidade de

―impedimentos físicos ou psíquicos‖ é por demais subjetiva.

Insuficiente relegar a questão à definição estritamente biológica, conforme é a proposta

espanhola, na qual que as doenças genéticas incluídas no Decreto Real seriam autorizativas da

terapia gênica80

. O equívoco aqui consiste na rápida desatualização que tal prática carrega, pois a

cada nova proposta terapêutica, há que se promover um adendo na legislação de forma a

autorizá-la, o que impõe uma moratória desnecessária.

A relevância da questão justifica o debate jurídico e a aferição de limites estritos; caso

contrário, estar-se-ia relegando o assunto às concepções particulares que, apesar de respeitadas,

não bastam para embasar a questão, sob o ponto de vista jurídico.

As mais propaladas soluções aventadas versam sobre o obrigatório respeito à dignidade

da pessoa humana. No entanto, este princípio apresenta elasticidade tal que, sob ele, a maioria

das intervenções poderia legitimar-se, mesmo as não terapêuticas, se analisadas, por exemplo, a

partir da perspectiva dos futuros pais.

A impossibilidade de se obter o consentimento do paciente configura delicada questão, já

que este requisito se faz presente em qualquer tratamento de saúde, segundo os preceitos

bioéticos. A intervenção deve buscar atender ao interesse do futuro filho – e não o dos pais, em

uma tentativa de se antecipar o consentimento. Na esteira deste argumento, expõe Habermas:

A sensação de que não podemos instrumentalizar o embrião como uma coisa para

qualquer outro objetivo encontra uma expressão ao se exigir que ele seja tratado

antecipadamente como uma pessoa, que, se nascesse, poderia ter sua própria atitude

com relação a esse tratamento. (HABERMAS, 2004, p. 97).

Contudo, se não se pode atestar a suficiência do principio da dignidade humana para limitar

juridicamente a intervenção terapêutica – porque dele não se inferem em que consistiram os

defeitos graves - é possível adotá-lo como ponto de partida. Ao estabelecer a estreita relação

entre ele e a autonomia privada, constrói-se a noção de pessoa livre para se autodeterminar, que

busca compreender-se conforme a sua concepção de vida digna, ou que vale a pena ser vivida.

_____________

80 – Conforme informa URANGA, Amelia Martín. O quadro geral da terapia gênica na Espanha. In: ROMEO CASABONA, Carlos María

(Org.). Biotecnologia, direito e bioética. Belo Horizonte: Del Rey/PUC Minas, 2002. p. 86-91.

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A dignidade surge como um dos componentes da personalidade humana:

O primeiro eixo de proteção da personalidade é o respeito pela autonomia da vontade,

pois respeitá-la é respeitar a própria personalidade. A pessoa humana, dotada de

liberdade, deve buscar construir, para si mesma, suas normas, de acordo com sua

concepção de bem e de justo. O segundo eixo, indissociável do primeiro, é o

reconhecimento e a afirmação do outro (alteridade). A personalidade e a pessoa só

ganham sentido perante o outro. Mais que isso, a personalidade é fruto de um constante

erigir da consciência de si em face da alteridade (consciência crítica e dialógica do

outro). A pessoa constrói-se na interação social e na interação comunicativa em

sociedade. O terceiro eixo é a dignidade. No entanto, esse eixo não pode ser visto como

alheio aos dois anteriores. A dignidade é fruto de autoconstrução (autonomia) e a

realização em sociedade (alteridade). Portanto, a dignidade não é algo ‗dado‘ (pelo

Estado, pela ciência, etc); ao contrário, é uma busca de auto-realização. Não se devem

buscar normas que imponha, aos indivíduos, uma dignidade pré-estatuída.

(STANCIOLI, 2007, p. 94-95).

A idéia de que o indivíduo pode construir a sua própria noção de dignidade – ou de vida

digna - encontra respaldo na teoria discursiva do direito, que prelaciona a utilização da

capacidade comunicativa do ser humano como meio indispensável de obtenção de legitimidade

normativa. Ou, dito de outra forma, o indivíduo reconhece sua dignidade na medida em que pode

participar do processo de construção das normas às quais se submeterá. Não há imposição de

conteúdos prontos, sagrados, imutáveis. Nesse sentido, a vida e a integridade psicofísica são

direitos a serem tutelados sim, mas não porque emanam de uma ordem superior e natural, mas

porque garantem a participação do indivíduo no discurso, e, consequentemente, atribuem-lhe

autonomia.

Conclui-se, portanto, que somente por meio do discurso é possível obter-se a resposta do

que é vida digna. Se já se apontou que o conceito de dignidade é particular, porque fruto das

experiências pessoais, deve-se garantir o acesso da pessoa ao discurso para que ela possa

construí-lo. Ato contínuo, legitimam-se as intervenções terapêuticas embrionárias que visam

garantir a futura participação do indivíduo no discurso. Assim, um casal que deseja manipular o

genoma embrionário com o fito de retirar o gene do estrabismo, por exemplo, não deve receber

autorização, na medida em que esta condição não inabilita o indivíduo à participação (futura) no

discurso. No entanto, em um embrião portador do mal de Hungtinton, noutro giro, não há

perspectiva de sobrevida longa e saudável, o que impediria, portanto, a futura autodeterminação

discursiva, motivo pelo qual se justifica a intervenção.

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Por meio da utilização deste critério preenchem-se de modo objetivo – porém ainda

flexível e aberto – os princípios do melhor interesse da (futura) criança e da dignidade humana,

no sentido de promoção da sua autonomia.

Não é excessivo recordar: só é digno aquele que se autogoverna; e só se autogoverna

aquele que participa livre e discursivamente da construção dessa dignidade.

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06 – CONCLUSÃO

O termo final do trabalho desenvolvido não corresponde, certamente, ao fim do debate

suscitado pelos instigantes conflitos genéticos. Ao contrário: almeja-se que os argumentos

trazidos inflamem a discussão, com o fito de que se promova o seu amadurecimento crítico,

imprescindível à regulamentação justa, coerente, clara e eficaz.

O alcance da solução normativa passa pela decisão sobre o momento a partir do qual a

tutela jurídica faz-se necessária, já que pessoa humana e ser humano não são conceitos idênticos.

Desta feita, não se nega que a vida biológica encontra seu início quando da fusão gamelar. A

controvérsia reside em saber se a partir de então há também uma pessoa no sentido jurídico do

termo, o que implica na titularidade de direitos e deveres.

A relutância em se considerar o embrião como pessoa jurídica decorre, em grande parte,

da insegurança jurídica que esta decisão acarretaria. Tome-se como exemplo os milhares de

embriões crioconservados que, se considerados titulares de direitos, exigiriam o resguardo de

seus quinhões hereditários. Tal imposição revela-se questionável, na medida em que imporia

excessiva dificuldade aos herdeiros já nascidos, diante da possibilidade que os embriões nunca

sejam implantados.

A velocidade com que a ciência se desenvolve, no entanto, traz um outro espectro da

questão: caso não se garantam direitos aos embriões, autoriza-se, por via indireta, a

instrumentalização do ser humano. A inquestionável reprovação a esta possibilidade impõe,

portanto, a titularidade do embrião a certos direitos, tais como os da personalidade.

O que se defende não é o caráter sagrado da vida, anterior ao direito e universalmente

válido. A concepção de vida aqui sustentada passa pelo respeito à autonomia privada enquanto

fator integrante, legitimante e condicionante da consecução do princípio da dignidade humana.

Conforme aludido alhures, o substrato material da dignidade varia individualmente, e guarda

relação com as experiências vividas pelo indivíduo – exatamente o motivo pelo qual deve ser

respeitado o direito do sujeito à sua autodeterminação.

Ato contínuo, aponta-se a teoria discursiva o direito como proposta hábil à consecução de

tal objetivo. Ao correlacionar as autonomias pública e privada, defende o direito do indivíduo

expressar-se no discurso e, no mesmo passo, legitimar, por meio dele, a aplicação das normas

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jurídicas. A visão jusnaturalista dos direitos da personalidade não encontra espaço em uma

sociedade plural como é a contemporânea. As diversidades cultural, ideológica, econômica e

política implicam em diferentes concepções de mundo, de vida, de dignidade. É esta diversidade

que enriquece a humanidade, e a assunção de um direito válido para todas as pessoas, em todos

os lugares, e a todo tempo não permite o seu desenvolvimento.

Se a autonomia é fator de edificação (do direito) da personalidade que, por sua vez, é

construída por meio do discurso, há se garantir aos indivíduos que dele façam parte. Por

decorrência, as intervenções embrionárias que se legitimam são somente aquelas que visam

garantir a futura participação do indivíduo por nascer no discurso. Qualquer condição – física ou

psíquica – que configure obstáculo à sua presença no debate aludido autoriza a intervenção

(terapêutica) no embrião. A terapia, neste sentido, significa garantir a expressão da autonomia,

da liberdade e da dignidade do indivíduo no porvir.

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