jimenez, marc - o que é estética

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MARC JIMENEZ que é estética? 'rJIfJ EDITORA UNISINOS Filósofo e germanista, Marc Jimenez é professor da Universidade Paris I (Panthéon- Sorbonne). Ensina estética na Unité de Formation et de Recherche d'Arts Plastiques et Sciences de /'Art, onde é responsável pela formação de doutores e dirige o Centre de Recherches en Esthétique. Membro da Société Française d'Esthétique e da comissão de redação da Revue d'Esthétique, é iguafmente diretor da ~ "Collection d'Esthétique" das Editions Klincksieck. Participa de numerosõs colóquios na França e no exterior e colabora regularmente em revistas de arte. Veio ao Brasil em 1998, nos quadros do Acordo CAPES/COFECUB, para lecionar Estética no Curso de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRGS. Empenhou-se então, pessoalmente, na escolha da EDITORA UNISINOS para a publicação da tradução brasileira da presente obra.

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MARC JIMENEZ

que é estética?

'rJIfJ EDITORA UNISINOS

Filósofo e germanista, Marc Jimenez éprofessor da Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne).

Ensina estética na Unité de Formation et deRecherche d'Arts Plastiques et Sciences de/'Art, onde é responsável pela formação dedoutores e dirige o Centre de Recherches enEsthétique.

Membro da Société Française d'Esthétiquee da comissão de redação da Revued'Esthétique, é iguafmente diretor da

~ "Collection d'Esthétique" das EditionsKlincksieck.

Participa de numerosõs colóquios na Françae no exterior e colabora regularmente emrevistas de arte.

Veio ao Brasil em 1998, nos quadros doAcordo CAPES/COFECUB, para lecionarEstética no Curso de Pós-graduação emArtes Visuais da UFRGS.

Empenhou-se então, pessoalmente, naescolha da EDITORA UNISINOS para apublicação da tradução brasileira dapresente obra.

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IA Coleção Focus da EDITORA UNISINOS, composta por

obras ensaísticas contemporâneas sobre Filosofia 'ouCiências Humanas, coloca a serviço dos estudiosos um.acervo bibliográfico reconhecido pela sua atualidade e

;J .' padrão científico. ' .q

Sob a direção de Marcelo Fernandes de Aquino\

Próximos la~çamentos'. \ \ ~

Ensaios de \filosofia políticaOrg. Oenis ·Kambouchner

Trad. Fulvia Moretto

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Filosofia dos direitos humanosHeiner Bielefeldt -,

~ Trad. Dankwart Bemsmull~r

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ReitorPe. Aloysio Bohnen, SJ

MARC JIMENEZUNIVE~IDADE DO VALE DO RIO DOS SINOSPró-Reitoria Comunitária e de Extensão

o QUE É ESTÉTICA?

Vice-ReitorPe. Pedro Gilberto Gomes, SJ

Tradução deFulvia M. L. Moretto

Pró-Reitor Comunitário e de ExtensãoVicente de Paulo Oliveira Sant'Anna

DiretorCarlos Alberto Gianotti Revisão técnica de

Alvaro L. M. Valls

lflIJ EDITORA UNISINOS

Conselho EditorialAttico Inacio Chassot (Presidente)

Carlos Alberto GianottiIone Maria Ghislene BentzPe. José Ivo Follmann, SJ

Nestor Torelly Martins

t.,I

EDITORA UNISINOSCOLEÇÃO Focus

3

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© Edictions Gallimard 1997Título original: Qu'est-ce que l'esthétique?1998 Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa, no Brasil, para Editorada Universidade do Vale do Ris>dos Sinos - Editora UNISINOS.

J61Q ]imenez, Marc

O que é estetica? / Marc Jimenez; tradução Fulvia M. L. Moretto.

- São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 1999

413p. (Focus, 3)

ISBN 85-7431-029-8

CDU 7.01

1. Estética. 2. Arte-estética. 3. Estética-filosofia. 4. Arte-filosofia.5. Sociologia-estética. I. Moretto, Fulvia. 11.Título. m. Série.

Editoração eletrônica: Paulo Furasté Campos/Ponto-e- Vírgula Asses. Edit.Revisão: Marcos Bohn

Capa: AEXPP da UNISINOSImpressão: Gráfica da UNISINOS, novembro de 1999

* Foi feito o depósito legal.

Editora da Universidade do Vale do Rio dos SinosAv. Unisinos, 950 - 93022-000 - São Leopoldo, RS, BrasilTe!.: 51.5908239 - Fax: 51.5908238E-mail: [email protected]

sUMÁRIo

Prefácio 9

Primeira ParteA AurONOMIA ESTÉTICA

I Em direção à emancipação 31A idéia de uma criação autônoma 33Do artesão ao artista 39Razão e sensibilidade .44

11 A gênese da autonomia estética 51A influência do cartesianismo 51A razão clássica 58A emergência de uma razão estética 61A questão da cor 64Dos Antigos aos Modernos 69Empiristas e racionalistas 76

III Desligamentos e autonomia 83Ambigüidades da autonomia estética 83Sentimento e gênio 89Das belas-artes à "arte" 94Do ut pictura poesis ao Laocoon de Lessing 96Diderot e a crítica de arte 104Baumgarten e as "belas ciências" 112

IV Do criticismo ao romantismo 117

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6o que é estética?

A autonomia do juízo de gosto segundo Kant 117Particularmente do juízo de gosto 119Beleza artística e beleza natural 126O sublime 135

Autonomia estética e heteronomia da arte 145De Kant a Hegel 145A educação estética segundo Schiller 155A iniciação à estética segundo jean-Paul 162

Hegel e a filosofia da arte 166O belo: um "gênio amigável" 167A idéia do belo e o Espírito absoluto ; 169O sistema das artes 171As dificuldades do sistema 175O fim da arte 178O nascimento da estética moderna 182

Segunda ParteA HETERONOMIA DA ARTE

A heteronomia e suas ambigüidades 191Platão: a arte na Cidade 196

Malogro de uma definição de belo 198A crítica da imitação 203

A tradição aristotélica 210A defesa da imitação 213A "purgação das paixões" 220O "modelo grego" 226

II Entre nostalgia e modernidade 231Marx ou a infância da arte 233Nietzsche e o espelho grego 240

A influência de Schopenhauer 246O papel de Richard Wagner 249Tragédia e niilismo 252

O classicismo de Freud 257"Gradiva" 263

Marc jimenez 7Sublimação, forma, conteúdo 265Resistência à modernidade 268

Terceira ParteAs RUPTIJRAS

O declínio da tradição 275Baudelaire e a modernidade 275O interesse da rupturas 280

II Modernidade e Vanguarda 285A teoria estética e as vanguardas 292Prelúdios às guinadas do século XX 298

Quarta ParteAs GUINADAS DO SÉCULO XX

A guinada olíti da t~·P ca es etíca 305Georg Lukács e a questão do realismo 308Heidegger e o retorno às origens 318Walter Benjamin e a experiência estética 326Herbert Marcuse: eros e cultura 336T. W. Adorno: uma estética da modernidade 348

II A guinada cultural da estética 361A estética da recepção: Hans Robert Jauss 363Estética e comunicação: Jürgen Habermas 364Nelson Goodman e a linguagem da arte 367Arthur Danto e a "transfiguração do banal" 370A crítica da modernidade: o pós-moderno 374A arte e a crise 379A questão dos critérios estéticos 383O desafio da estética 388

Bibliografia seletiva 393Índice dos nomes próprios 399Índice das noções, escolas e movimentos 411

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Prefácio

Há vinte anos apenas, a palavra "estética", usada paradesignar a reflexão filosófica sobre a arte, apresentava-seprematuramente envelhecida. Embora seu sentido modernodate apenas do século XVIII, parecia antiquada e prestes adesaparecer. Certos filósofos chegavam ao ponto de decla-rar, de forma humorística, que "em sua história bicentenária,da metade do século XVIII até a metade do século XX, aestética revelou-se como um insucesso brilhante e repletode resultados".

De onde provém esse paradoxo? Certamente dos diver-sos significados da palavra estética; falaremos mais tardedeste problema. Mas ele provém também do próprio objetoda estética, isto é, da arte. E as contradições levantadas poresta última são numerosas. Nós as vivemos no dia-a-dia.Como compreender, por exemplo, que a sociedade moder-na, colocada sob o signo da civilização da imagem, concedatão pouco espaço ao ensino das artes plásticas? Evidente-mente, nestes últimos anos foram realizados grandes pro-gressos graças à criação de cursos e de concursos, mas osprofessores das disciplinas artísticas sabem muito bem quese beneficiam de um status particular, incapaz de rivalizarcom o de seus colegas da matemática, das letras ou da lin-güística. Um outro exemplo: a música - seria preciso dizer

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10 o que é estética?

todas as músicas - cria um universo sonoro no qual estamospermanentemente imersos; este universo tornou-se denso eaperfeiçoou-se graças aos progressos e à flexibilidade deutilização das novas tecnologias. Pensemos no walkman enos CD players de carro. Porém, excetuando certos filõesespecíficos, que lugar ocupa o ensino musical na escolasecundária? Quantos candidatos ao baccalauréar podempelo menos ler uma partitura? E, enfim, que dizer do ensinoda estética, disciplina que consta do programa de filosofiado último ano do segundo grau, mas cujo estudo éfreqüentemente relegado para o final do ano escolar, "casohouver tempo"!

A arte, portanto, é de fato um campo à parte e, alémdisso, ambíguo. Ligada a uma prática, ela cria objetos pal-páveis ou produz manifestações concretas que ocupam umlugar dentro da realidade: presta-se a exposições, em todosos sentidos da palavra. Para retomar uma expressão do gran-de historiador e sociólogo da arte Pierre Francastel, "a artenão é veleidade, mas realização".

Contudo, a arte não se contenta em estar presente,pois ela significa também uma maneira de representar omundo, de figurar um universo simbólico ligado à nossasensibilidade, à nossa intuição, ao nosso imaginário, aosnossos fantasmas. É este seu lado abstrato. Em suma, a arteancora-se na realidade sem ser plenamente real, desfraldandoum mundo ilusório no qual, freqüentemente - mas não sem-pre - julgamos que seria melhor viver do que viver na vidacotidiana.

'N. de T. Exame final do curso secundário após o qual o aluno está apto paraingressar no curso superior.

Marc jimenez 11Compreender e explicar esta ambigüidade da arte cons-

tituem, por assim dizer, um desafio que o esteta'" se obstinaem aceitar, sejam quais forem os riscos de insucesso. Pode-se facilmente calcular a dificuldade desta tarefa, pois a esté-tica herda a ambigüidade da arte, atividade ao mesmo tem-po racional, que supõe materiais, instrumentos, um projeto,e irracional, na medida em que permanece afastada das ta-refas cotidianas que ocupam a maior parte de nossa existên-cia. Da ciência esperam-se descobertas que influam direta-mente sobre nosso meio ambiente; da técnica prevêem-seprogressos que facilitem nossa ação sobre o mundo; da éti-ca esperam-se regras de conduta que guiem nossos pensa-mentos e nosso comportamento; porém, poderemos extrairda arte um ensinamento tão útil, sério, rentável quanto aqueledispensado por essas outras disciplinas sensatas?

Evidentemente não, e é talvez por esta razão queFriedrich Nietzsche, ao final do século passado, deploravaque a arte se mostre com demasiada freqüência como um"enfeite" da existência, como um pequeno ornamento en-carregado de trazer um pouco de fantasia a uma vida escra-vizada ao funcional.

O descrédito que sofreu a estética foi também devido aoutros motivos.

Embora a reflexão sobre a arte seja, por definição, pos-terior às obras, os estetas tentaram algumas vezes imporregras aos artistas, seja fixando normas que permitissem jul-gar o belo ou o feio, o harmonioso ou o desgracioso emesmo o conveniente ou o inconveniente, seja estabele-

··N. T. A palavra francesa "estbéticien", não tem correspondência exata emportuguês. Traduzimo-Ia por "esteta" que, apesar da conotação fim de séculoXIX de "atitude exclusiva e requintada com relação à arte e à vida", significatambém "pessoa versada em estética", que é o sentido que nos interessa aqui.(cf, Aurélio).

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12o que é estética?

cendo critérios adaptados aos cânones promulgados anteri-ormente. Esta é a tentação de qualquer academismo, atémesmo do estetismo, que não pertencem aos séculos XVIIIou XIX, mas que reaparecem de tempos em tempos, sobre-tudo quando as correntes ou as grandes tendências artísti-cas não são mais nitidamente notadas, como é o caso nestefinal do século XX. Hoje, contudo, estes são fenômenosmenores, pois os teóricos da arte evitam prudentemente pro-por uma codificação incompatível com o espírito decriatividade e de inovação que caracteriza a prática da arte.

Enfim, não se pode negar que a estética permaneceufreqüentemente discreta diante da arte no momento de suarealização, temerosa diante das obras novas, mais facílmen-e inclinada a debruçar-se sobre as criações reconhecidas,

santificadas pela posteridade do que a pronunciar-se sobreo valor das coisas novas, justamente por serem por demaisnovas. Esta prudência, que remonta de fato às origens da

etica'filosófica - Kant e Hegel abstiveram-se sensatamen-te de citar os grandes artistas de seu tempo -, pouco favore-ceu o reconhecimento da estética como discurso inovadorsobre as artes.

Seja qual for o peso desse passivo, parece ultrapassadaa época em que se podia deplorar a hostilidade, até mesmoo desprezo, para com a estética. 1 E os tempos atuais, sejulgarmos pelo número de publicações ao longo destes últi-mos anos, mostra uma intensificação do interesse pela refle-xão teórica sobre a arte.

Várias razões explicam tal renascimento.A arte moderna do início do século XX, a viva reação

de seus adeptos contra a tradição, a virulência dos manifes-tos vanguardistas,a princípio desconcertam os teóricos da

'Cf. a rubrica "Esthétique" na Encyclopedia Universalis, publicada em 1970.

Marc jimenez 13arte. Raros são os estetas que, por exemplo entre 1910 e aSegunda Guerra Mundial se arriscam a interpretar teórica efilosoficamente os primeiros ready-made de MarcelDuchamp, as provocações do movimento Dada, os quadroscubistas de Picasso, as peças atonais de Arnold Schônberg,ou então, alguns anos mais tarde, o programa surrealista deAndré Breton. As principais teorias da arte moderna sãoelaboradas, de maneira coerente e sistemática, somente apartir dos anos 60.

Tal prudência é compreensível. Se as obras modernassão conhecidas com bastante rapidez, exatamente em razãodo choque que provocam na sensibilidade, em compensa-ção seu reconhecimento, sobretudo pelas instituições, é tar-dio e esporádico. As diversas correntes e tendências - os"ismos" - sucedem-se a um ritmo rápido; oferecem elas aaparência de modas mais ou menos passageiras que com-plicam a tarefa do filósofo esteta. Este último, de fato, preo-cupa-se mais em pôr em evidência as constantes do que eminterpretar obras isoladas que considera, às vezes, com ousem razão, simples experiências perturbadoras e provocantes.

Além disso, a maioria das vanguardas contêm, à suamaneira, sua própria interpretação estética, filosófica, e àsvezes política. Numerosos escritos expõem as origens dosmovimentos, definem seus objetivos, fixam o programa dasobras a serem realizadas. Esta é a tarefa dos manifestos,futurista, dadaísta, surrealista, construtivista, para citar ape-nas estes, cuja intenção comum - além das diferenças demeios - é a de transformar os antigos valores e definir asnovas relações que os artistas mantêm com a natureza, como mundo e com a sociedade.

Em suma, a arte moderna, tomada globalmente, extraíade seu próprio dinamismo sua força de legitimação. As an-tigas convenções caíam uma a uma sob o golpe das revolu-ções formais arrastando em sua queda as normas e os crité-

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14o que é estética?

rios aos quais se conformava a arte do passado, porém so-bre essa tabula rasa - para retomar uma expressão dadaísta- erigiam-se novas regras. Sem dúvida, eram elas efêmeras,rapidamente substituídas, mas os pontos de referência sub-sistiam, como outros tantos faróis apontados para o hori-zonte da nova arte.

Acontece hoje algo totalmente diferente. A arte con-temporânea atravessa uma crise de legitimização. Todospodemos constatá-lo. Os artistas atuais são acusados de ce-der à displicência, de produzir qualquer coisa, de privilegiarsua própria reputação mediática em detrimento da criação.A arte moderna e sua concepção quimérica de um mundoque se tornou melhor graças à arte são freqüentementeconsideradas responsáveis por essa deliquescência. Ao rom-per com a tradição, com qualquer classicismo, o modernis-mo teria acelerado a dissolução das certezas e favorecido odesaparecimento dos valores ligados à beleza, à harmonia,ao equilíbrio, à ordem. Teria ele assim legado uma pesadaherança aos artistas de nossa época, herança tanto mais fu-nesta por levar diretamente à morte da arte, muitas vezesproclamada no passado, mas que alguns consideram senãocomo efetiva, pelo menos como inelutável.

Esta crise de legitimação afeta a própria arte em sua es-sência, e a impossibilidade de dizer o que ela é ou o que nãoé nem mesmo permite mais responder a esta pergunta, que,contudo, é primordial: quando existe ou não existe arte?

Conta-se que um funcionário da alfândega americana,nada sensível à arte moderna ou pouco informado sobre astendências vanguardistas, teria recusado isentar o Oiseaudans I'espace, obra do escultor Brancusi, dos direitos deimportação normalmente reduzidos, aplicáveis às obras dearte. O objeto foi taxado em 40% de seu valor, como qual-quer objeto utilitário. Aconteceu em 1922. O tribunal aca-bou por dar razão ao artista somente seis anos mais tarde.

Marcjimenez 15o fato é real e extremamente significativo quanto à

desorientação dos critérios estéticos consecutiva à moder-nidade artística. Mas a perplexidade do funcionário da al-fândega diante de algo não identificável aparece como mí-nima diante da estupefação matizada de incredulidade queespreita às vezes o público dos museus ou das galerias dearte contemporânea. Quando a faxineira do salão de expo-sição varre conscienciosamente os resíduos "artisticamente"e conscientemente colocados por )oseph Beuys num cantodo local e os mistura ao resto de poeira e de detritos, não émais somente uma questão de alternativa entre escultura ounão escultura. O problema tem como objeto a razão de serda própria arte e o critério que permite decidir se se trata ounão de arte.

Evidentemente, trata-se aqui de um exemplo limite, masele é suficiente para mostrar por que a arte contemporânea,grosso modo, de 1960 aos nossos dias, solicita a atenção dosprofissionais da estética. Neste sentido, não é abusivo afir-mar que a crise de legitimação da arte estimula a reflexãosobre a arte.

Esta situação é paradoxal apenas na aparência. O desa-parecimento dos referenciais tradicionais conduz à procurade regras, de convenções, de critérios que permitam o exer-cício do julgamento do gosto ou então a avaliação das obras:será necessário, como sugerem alguns, efetuar uma volta aopassado e restaurar os valores antigos? Ou então aceitar após-rnodernidade que preconiza o ecletismo das formas, dosmateriais e dos estilos, e proclama a morte das vanguardas?Deve-se mergulhar no tout cu/turel e abandonar-se sem re-ticências aos múltiplos prazeres estéticos oferecidos pelasnovas tecnologias: colocar um CD no toca-disco laser e ou-vir até à saciedade todas as músicas, do cantochão ao hardrock, inclusive aquelas que os próprios compositores, osMozart, Beethoven ou Schubert ouviram executar apenas

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16o que é estética?

uma vez, ou então revisrtar à vontade no computadormultimídia a exposição consagrada às maquetes concebidaspor Leonardo da Vinci?

Mas um tal clima ledonista será realmente a última pa-lavra da reflexão estética? Alguns deploram hoje a ausênciade uma verdadeira crítica de arte ou então sua impossibili-dade, devido, exatamente, ao desaparecimento de toda nor-ma e de todo critério. Porém, que significa "criticar" umaobra de arte? A crítica será compatível com o prazer e ogozo estéticos?

Essas perguntas não são todas originais, mas se colo-cam hoje de maneira particularmente aguda. De fato, o statussocial de uma arte doravante acessível, em princípio, a to-dos, a democratização da cultura e o apoio financeiro que oEstado concede às iniciativas, aos projetos e às realizações,sobretudo no domínio da arte contemporânea, modificamem profundidade a maneira pela qual o público, outrora,percebia a arte. A multiplicação dos centros culturais, dosmuseus, das exposições, dos festivais corresponde, incon-testavelmente, a uma vontade política da parte dos dirigen-tes, mas responde também a uma demanda crescente daparte do público. Todavia, não é certo que a arte, semprepreocupada em marcar sua diferença em relação à realida-de, e o público que, com ou sem razão, vê na arte umamaneira de romper com a vida cotidiana, encontrem vanta-gem nessa "promoção" cultural. Se as práticas artísticas sebaseiam na quantidade de banalidades cotidianizadas - douuma volta ao museu antes de ir para o escritório - a relaçãoentre a arte e a realidade não correrá o risco, por conseqü-ência, de ser vivida como um divertimento, uma distraçãopura e simples, uma "recreação dominical" como já o la-mentava Ionesco?

Se me dou ao trabalho de me deslocar para ir a umespetáculo, evidencio contudo uma motivação honrosa em

Marc Iimenez 17favor de um contato físico com a arte. Porém, há um fenô-meno que adquire a cada dia uma importância maior: a arte,as obras, os artistas, as exposições são cada vez maismediatizadas. Isto significa que são cada vez mais numero-sos os que conhecem as obras pelo texto, escrito ou falado,ou pela imagem, catálogo, televisão ou CD-Rom, e não porserem postos em contato direto com a própria obra. Ora, sea informação é importante, este saber modifica considera-velmente a experiência estética tradicional.

Será isso um bem ou um mal? A questão não é essa.Mas o discurso sobre a arte não pode eludir tais interroga-ções. Os estetas compreenderam perfeitamente estas preo-cupações do tempo presente. Sua tarefa consiste tambémem analisar estas novas situações, mesmo se superestima-mos às vezes sua capacidade de dar sempre respostas ple-namente satisfatórias.

Porém, acontece com a estética o mesmo que acontececom a filosofia, em que a arte de colocar os problemas émuitas vezes mais importante do que a solução. E a estéticacontemporânea, seja qual for sua preocupação de respon-der às urgências do tempo presente, pode apenas rememorarpermanentemente sua origem filosófica.

Sobre isso, temos algumas palavras a dizer."Naquilo que chamamos filosofia da arte, habitualmen-

te falta uma ou outra: ou a filosofia, ou então a arte". Estareflexão do filósofo alemão Friedrich von Schegel, em 1797,parece de muito mau agouro para uma disciplina batizadapouco antes como estética.

A alternativa, de fato, faz pesar sobre quem quer quereflita sobre a arte e sobre suas obras o risco do fracasso.Ou o filósofo se entrega à especulação abstrata, caso emque a arte enquanto prática concreta lhe é inacessível, ouentão aplica à arte o resultado de suas meditações, mas ces-sa desde logo de ser filósofo e, se pretende continuar a sê-

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18o que é estética?

10, de qualquer maneira a arte lhe escapa. Em resumo, ofilósofo e o artista estão condenados ao mal-entendido, e aestética, entendida como filosofia da arte, torna-se impossí-vel.

Todavia, em alguns decênios, e a partir de 1750, datada publicação da obra de Baumgarten, Aestbetica, o termoestética conhece um sucesso considerável. Os contemporâ-neos de Schlegel não hesitam em empregá-Io. Kant utiliza-opara precisar, no subtítulo, a primeira parte da Crítica dafaculdade de julgar (1790): "Crítica da faculdade de julgarestética"; Schiller em 1795 redige Cartas sobre a educaçãoestética do bomem.ieesv Paul (Friedrich Richter) compõe umCurso preparatório de estética (1804), enquanto Hegel pre-para-se para dar a seus estudantes "Lições de estética".

Mas o termo estética será tomado a cada vez na mesmaacepção? Certamente não. Schlegel entende claramente como"filosofia da arte" a nova disciplina criada por Baumgarten,isto é, o estudo científico e filsófico da arte e do belo. Po-rém, ao estabelecer uma relação de exclusão entre o discur-so filsófico e a arte, entre o pensador e o artista, ou o con-ceito ou a obra, mas não os dois simultaneamente, sua re-flexão põe o dedo no eqüívoco fundamental que se encon-tra no centro do próprio pensamento estético.

Será possível traduzir em palavras o que toca nossasensibilidade, é da alçada do afeto, suscita nosso entusias-mo ou nossa reprovação, comove-nos ou nos deixa indife-rente? É uma pergunta que levanta outras: a que necessida-de ou a que exigências responde esse desejo de transcreverem conceitos o que é da categoria da intuição, do imaginá-rio ou da fantasia? Será preciso admitir a existência de umapulsão linguageira que nos impeliria, de algum modo, adizer o que é sentido, de maneira, por exemplo, a transmitirtal experiência a outra pessoa? O reconhecimento do quequalificamos de belo, tanto na natureza quanto na arte, inci-

Marcjimenez 19tar-nos-ia a solicitar a aprovação alheia ou então sua desa-provação?

Mede-se facilmente a complexidade do problema quan-do se pensa em certas expressões da linguagem corrente, àsvezes familiares: "É belo a ponto de tirar o fôlego!" ou en-tão: "Faltam-me as palavras para dizer o que sinto."

Significa isso que os sentimentos, as emoções, o queestá ligado à sensibilidade, sobretudo o que resulta dacontemplação da arte, não estão ligados ao conhecimento,visto que, ao contrário do intelecto, da razão, dos fatos dainteligência, não podem adquirir o status de um conheci-mento transmissível, à semelhança do saber científico?

Se penso dessa maneira, permaneço no estágio primá-rio da sensação e da percepção; e torna-se perfeitamentecompreensível que a contemplação de uma paisagem es-plêndida ou de uma obra de arte mergulhe-me num estadode mutismo. Em compensação, se me represento o que vejoe tomo consciência do que sinto, acedo ao estágio da expe-riência artística. Em outras palavras, esta última não se esgo-ta na sensação nem na percepção.

Tal é o procedimento de Baumgarten quando conside-ra que a faculdade estética é da ordem do conhecimento.Decerto, trata-se de uma faculdade de conhecimento inferi-or. Baumgarten chama-a de logica facultatis cognoscitivaeinferioris. Filosofia das Graças e das Musas, ela não poderiarivalizar com a razão, mas fornece um saber análogo ao darazão. É esta ciência do conhecimento e da representaçãosensíveis que toma doravante o nome de estética.

Contrariamente ao que Schlegel enunciará de formapolêmica, não se trata para a estética - que, em razão desuas origens filosóficas, é definida também nessa época comofilosofia da arte - de substituir-se nem à arte nem às obrasde arte. A arte é uma prática que opera com procedimentosespecíficos aplicados a materiais determinados que dão ori-

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20 o que é estética?

gem a obras. Quanto à estética, enquanto disciplina em simesma, tem a autoridade de refletir sobre a arte e sobre asobras, forjando um universo conceptual constitutivo de umsaber.

A fundação de uma nova disciplina constitui, no séculoXVIII, um acontecimento maior na história do pensamentoocidental. ão somente contribui ela para a unificação dosaber à qual aspirava Descartes no século precedente, maspermite distinguir entre diversos domínios até então indis-tintos e que às vezes são confundidos ainda hoje. O quesignifica, para dizê-lo com simplicidade, que todas as disci-plinas que se interessam pela arte, pelas obras, pelos artistasou pelas belas-artes não dependem da estética no sentidodoravante aceito, mesmo se tais domínios lhe sejam aparen-tados. Assim a história da arte, ela também nascida no sécu-lo XVIII, graças especialmente à obra do arqueólogo johannjoachim Winckelmann História da arte antiga (1763), dis-põe de um método e de um objeto de acordo com seusdesígnios: compreender as obras, as escolas e os estilos naépoca e no lugar em que aparecem. Quanto à teoria da arte- se entendermos por isso a reflexão que certos artistas apli-caram seja à sua própria prática, seja às artes de sua época,quer se trate da Poética de Aristóteles, do Tratado da pintu-ra de Leonardo da Vinci ou da Arte Poética de Boileau, elanão poderia ser confundida com o empreendimento deconceitualização tentada pela estética.

Da mesma forma, a estética, em seu sentido atual, eseja qual for a específicação ou a diversificação de que elafoi objeto a partir de Baumgarten, não poderia ser reduzidaa nenhuma das ciências particulares às quais recorreu algu-mas vezes, como a psicologia, a psicanálise, a sociologia, aantropologia, a semiologia ou a lingüística.

O objeto da presente obra não é o de entrar nos deta-lhes das diferentes definições e aplicações da estética, tais

Marcjimenez 21como podem ser encontradas, precisadas e comentadas numaenciclopédia, num tratado, num manual escolar ou num di-cionário. Também, não se trata de fazer um histórico rigoro-so dos diversos sistemas filosófico-estéticos que se sucede-ram de Platão a Adorno, nem de organizar o inventário dasdoutrinas relativas à arte durante vinte e quatro séculos.

Por quê?Por três razões. A primeira decorre do sentido muito

diversificado da palavra estética, exceto o que recebe justa-mente depois de Baumgarten, na época do idealismo ale-mão, particularmente em Kant e Hegel. Essa diversificaçãotorna pouco pertinente uma cronologia que apresentasse aevolução da estética sob a forma mais ou menos linear deuma sucessão de teorias, de sistemas ou de descobertas,como pode ser feita no domínio da história das ciências edas técnicas. A doutrina do belo, em Platão, por exemplo,está estreitamente ligada à sua filosofia e à teoria das Idéias.Portanto, ela determina seguramente uma estética. E pode-mos, sem receio de anacronismo, falar de "estética platôni-ca"; com uma condição, contudo: é preciso ter presente noespírito não um domínio delimitado, uma disciplina consti-tuída, mas o conjunto das considerações que Platão consa-gra tanto à determinação da essência do Belo, à definiçãoda imitação quanto ao papel da arte na Cidade.*** Ora, estassão preocupações comuns a teorias bem ulteriores, por exem-plo, às de Kant ou de Nietzsche, que tomam posição, deforma positiva ou negativa, em relação ao platonismo e àsua influência sobre o pensamento ocidental. Mas, visto queestamos falando de Kant, precisemos desde já o seguinte: obelo na natureza ou o belo na arte ocupam seguramente um

···N. de T. Em francês, cité. Na falta de uma palavra correspondente em português,que traga a conotação de "cidade - estado". traduziremos cité por Cidade com Cmaiúsculo.

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lugar importante em sua reflexão. Todavia, todo seu empre-endimento visa, de preferência, a determinar sob quais con-dições se exprime o julgamento de gosto, seja ele em rela-ção ao agradável, ao sublime, ao belo, e não a definir, noabsoluto, estas mesmas noções.

A segunda razão decorre do próprio objeto da estética,isto é, da arte. Ora, diz-se freqüentemente que não há pro-gresso em arte. Com razão: uma estátua de Praxiteles possuitanto valor artístico quanto um busto esculpido por Rodin,independentemente da apreciação totalmente objetiva decada um. Não houve progresso quantificável, nem mesmoqualificável de Bach a Stockhavsen, de Corneille a VictorHugo, de Poussin a Cézanne, de Safo, a poetisa de Lesbos aRené Char. Evidentemente, as ciências humanas, às quais aestética recorre às vezes, permitem análises mais profundasda obra de arte; elas contribuem para uma melhor compre-ensão, mas sem nunca elucidar seja o que for da experiên-cia estética nem fazê-Ia progredir. A melhor resposta aosargumentos que quisessem advogar em favor de um pro-gresso estético foi dada por Sigmund Freud. Preocupadoem não superestimar os poderes da interpretação psicanalí-tica da arte, da qual contudo foi o iniciador, teve ele o cui-dado de precisar, pelo final da vida: "O gozo que extraímosdas obras de arte não foi perturbado pela compreensão ana-lítica [ ... ] devemos confessar aos profanos, que talvez espe-rem aqui demasiado da análise, que ela não projeta nenhu-ma luz sobre dois problemas que mais os interessam. Defato, a análise nada pode dizer-nos com referência àelucidação do dom artístico, e a revelação dos meios de quese serve o artista para trabalhar, a explicação da técnica ar-tística, também não é de sua alçada".

A idéia de um progresso estético que pudesse ser reve-lado com a ajuda do que poderia ser uma histórica da esté-tica da Antiguidade aos nossos dias, portanto, não é aceitá-

MaTCjimenez 23vel. Concepções antigas podem perfeitamente subsistir ain-da hoje, no próprio seio de uma teoria moderna da arte, eàs vezes sem o nosso conhecimento. Assim, torna-se evi-dente que a idéia de um Belo ideal, absoluto, transcenden-te, tal como o concebe Platão, não preocupa a estética con-temporânea. A antropologia da arte ensina-nos que o belo,assim como o feio, são valores relativos não somente a umacultura, a uma civilização, mas também a um tipo de socie-dade, a seus costumes, à sua visão do mundo, em um dadomomento de sua história. O relativismo em matéria de cate-gorias estéticas há muito tempo já tomou o lugar do idealis-mo. E contudo, emocionados por um espetáculo, uma obraprima ou uma paisagem qualificados como esplêndidos, nãonos acontece invocar a beleza como se se tratasse de umdado imutável, aistórico ou transistórico exigindo a unani-midade e a universalidade dos julgamentos de gosto?

Enfim, a última razão que explica o abandono de umacronologia das teorias e das doutrinas estéticas tem a vercom a perspectiva adotada nesta obra.

No século XVIII a estética, disciplina nova, define-se, jáo precisamos, como ciência e como filosofia da arte. Trata-se de um acontecimento de alcance considerável na históriadas idéias no Ocidente. Isso significa que, doravante, nãosomente os filósofos, mas também os artistas, os amadoresde arte, os árbitros das artes - na época era o nome dadoaos críticos de arte -, o público esclarecido dos primeirossalões de pintura e de escultura, todos dispõem de um siste-ma de noções, de conceitos, de categorias ao qual é possí-vel referir-se. Tal sistema circunscreve um espaço teórico,um verdadeiro espaço epistemológico no qual podem sefalar e se compreender, mas também se afrontarem e secontradizerem, os que querem tratar de estética.

Todavia esta assunção teórica, filosófica e científica éambígua. De fato, a fundação da estética como disciplina

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autônoma significa que o domínio da sensibilidade torna-seobjeto de reflexão. Obtém ele assim direito de cidadania nafilosofia ocidental. Reconhece-se que a intuição, a imagina-ção, a sensualidade, até mesmo a paixão podem dar acessoa um conhecimento. Não são mais consideradas "mestras deerro e de falsidade" - era a censura que lhes fazia Pascal -,mas como faculdades cognitivas.

Esta reabilitação da sensibilidade deve, contudo, sernuançada. Esta última é liberada, mas permanece sob o con-trole da razão, única faculdade que dá acesso a um conhe-cimento puro. Não é concebível, na época, que ela possainsurgir-se, através de suas modalidades - desejo não domi-nado, paixão selvagem, procura desenfreada de gozo - contrao ideal da Razão, que escrevemos aqui com um R maiúsculopara designar o princípio ao qual obedece o conhecimentoracional e não mais a faculdade própria do homem. Trata-sesobretudo de procurar a harmonia entre a sensibilidade, apaixão e a razão, de conciliar o dualismo fundamental dohomem constituído de natureza e de cultura. O programade educação ao qual é submetido Emílio, no "romance" deJean-Jacques Rousseau, responde a este ideal. Esta finalida-de é igualmente procurada por Friedrich von Schiller emsuas Cartas sobre a educação estética do homem.

Dizemos, de fato, que se trata de um ideal, de um ob-jetivo para o qual é desejável tender sem nenhuma certezade atingi-lo um dia. Esta tendência, que se prolonga aindaem nossos dias em qualquer projeto de formação e de apren-dizagem artística, resulta, em parte, da autonomia adquiridapela estética. Porém a contra partida dessa autonomia, sem amenor dúvida, é o fato de liberar o caminho seguido pelarazão sob o aspecto do progresso científico e técnico. Emtermos claros, a "invenção" da estética na segunda metadedo século XVIII absolutamente não se opõe ao avanço doracionalismo. A tarefa conferida ao homem por Descartes, a

-

Marcjimenez 25de tornar-se dono e senhor da natureza graças à ciênciafísico-matemática, continua de maneira, poderíamos dizer,irresistível. O século XIX que, graças à explosão romântica,concretiza a recente insurreição contra as Luzes e a Razão, étambém o século de uma revolução industrial que inicia odesenvolvimento das sociedades modernas baseadas noprogresso tecnológico.

Uma história da estética é concebível com a condiçãode dar a este termo um sentido largo: ela seria, por conse-qüência, não a história das teorias e das doutrinas sobre aarte, sobre o belo ou sobre as obras, mas a história da sen-sibilidade, do imaginário e dos discursos que procuraramvalorizar o conhecimento sensível, dito inferior, comocontraponto ao privilégio concedido, na civilização ociden-tal, ao conhecimento racional.

Evidentemente, esta história parece desenrolar-se para-lelamente à história da racionalidade. Todavia, ela não éescrita no mesmo sentido, nem com a mesma continuidade:assim como a história da razão descreve um movimentolinear que assimilamos, talvez erroneamente, ao progresso,da mesma forma a história da estética revela-se através dasrupturas sucessivas que a sensibilidade não cessa de opor àordem dominante da razão.

Portanto, não partiremos de um ponto alfa, querendodesignar uma pretensa origem do pensamento estético. Nossa"história" começa na primeira ruptura marcante na evoluçãoda reflexão sobre a arte, isto é, na Renascença. Este "vastomovimento de renovação intelectual", como dizem os dicio-nários, é baseado parcialmente na imitação dos antigos; eledá aceso também à emancipação religiosa da Reforma e daContra-Reforma. Ao mesmo tempo, ele é acompanhado poruma tomada de consciência do poder do indivíduo, de suacapacidade de emancipação em relação às concepções daIdade Média. Este processo desemboca, no século XVIII e

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início do século XIX, no reconhecimento da autonomia es-tética em seu sentido moderno.

Uma vez que a autonomia é adquirida como um princí-pio, ela não é mais realmente um problema. Sem dúvida,ela permanece frágil e ambígua; às vezes, ela é reposta emcausa, porém o discurso estético existe e se constitui demaneira específica. Graças a ele, é possível lançar um olharcrítico sobre o passado. Os filósofos e os artistas do séculoXIX examinam à distância a Antiguidade. Mas, sobretudo,avaliam o peso da tradição secular nascida do respeito,freqüentemente abusivo, pelos Antigos.

E quando se lança um olhar crítico sobre a Antiguida-de, sobre Platão e Aristóteles, vê-se que a arte, excetuandosuas interpretações metafísicas, coloca problemas idênticos:a novidade, o inédito, o fora da norma, a modernidade in-comodam. A criação, numa palavra, provoca as mesmasdesconfianças, as mesmas exclusões.

Uma incursão no passado, na Grécia dos séculos V e IVantes da nossa era, permitirá avaliar melhor o poder dasrupturas que se produziram no final do século XIX. A Re-nascença é uma ruptura com a Idade Média; a modernidadeé uma ruptura com a Renascença e com uma tradição milenarherdada da Antiguidade. Os movimentos de vanguarda que-rem, de fato, abandonar o espaço renascentista, um espaçovisual e sonoro que se tornou por demais acanhado emrelação às transformações da época. Todavia, romper comuma tradição significa, num certo sentido, querer desemba-raçar-se de um hábito: bom ou mau, este último representaum certo conforto. Duas soluções: o compromisso ou o atode violência. Confessemo-Io, os estetas escolhem sempre aprimeira e os artistas a segunda. No século XIX, apesar dasresistências, da nostalgia, das lembranças, os artistas moder-nos e vanguardistas valorizam o inédito, a novidade, o cho-que das inovações sucessivas.

-

Marc Iimenez 27A época das rupturas começa, trazendo como conse-

qüência o risco de uma ruptura entre a arte e o público. Umnovo desafio espera a estética: o de reconciliar, tanto quan-to possível, as provocações dos artistas e o gosto de seuscontemporâneos. Este desafio é sempre atual.

Portanto, o atraso da estética não é uma desvantagem;chegar depois das obras significa que ela não se apressa,para refletir sobre sua história passada e presente. No mo-mento em que a arte perde hoje, dizem, todos os seusreferenciais e os seus critérios, um tal atraso torna-se atémesmo um privilégio.

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Primeira Parte

A AuroNOMIA EsrtnCA

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I

EM DIREÇÃO À EMANCIPAÇÃO

A fundação da estética como disciplina autônoma cons-tituiu um acontecimento de um alcance considerável. Esteacontecimento é tanto mais importante por não se tratarunicamente de acrescentar um novo ramo à árvore da ciên-cia.

o que é criado não é apenas um vocábulo, uma pala-vra cômoda capaz de reunir e designar um saber até entãodifuso. A novidade reside no olhar que os contemporâneospousam doravante não somente sobre a arte do passado,mas também sobre os artistas e sobre as obras de sua época.

Mas que significa exatamente esta autonomia estética?Por que apareceu ela somente no século XVIII, já que aexistência dos artistas data aparentemente das mais afasta-das épocas? A arte, de fato, parece ter existido em todos ostempos e em todos os lugares. Sem remontar ao paleolítico,todos os séculos, desde a Antiguidade greco-latina até osnossos dias, não se distinguiram, em diferentes graus, porperíodos de floração artística? Como explicar então a emer-gência tão tardia de uma reflexão específica, autônoma,particularmente consagrada à criação artística?

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32o que é estética?

Para responder a tais perguntas, convém precisar aquio sentido da palavra autonomia.

"Autonomia da estética" não tem o mesmo sentido de"autonomia da arte", mas um certo número de correlaçõesexistem entre uma e outra. A reflexão específica, que acaba-mos de evocar, supõe que o objeto ao qual se aplica seja elemesmo definido de forma precisa; ora, a palavra arte, her-deira desde o século XI, de sua origem latina ars = ativida-de, habilidade, designa até o século XV, no Ocidente, ape-nas um conjunto de atividades ligadas à técnica, ao ofício, àperícia, isto é, a tarefas essencialmente manuais. A própriaidéia de estética, no sentido moderno, aparece somente nomomento em que a arte é reconhecida e se reconhece, atra-vés de seu conceito, como atividade intelectual, irredutívela qualquer outra tarefa puramente técnica.

Assim, a estética, que inaugura sua fase moderna a par-tir de 1750, não se declarou autônoma de um dia para ooutro unicamente pela graça do filósofo alemào Baumgarten.Sua fundação, enquanto ciência, é o resultado de um longoprocesso de emancipação que, pelo menos no Ocidente,concerne ao conjunto da atividade espiritual, intelectual, fi-losófica e artística, sobretudo a partir da Renascença.

A idéia de que a criação não é mais somente divina,mas depende de uma ação humana impõe-se após muitosdebates teológicos e filosóficos; na origem ela não concernedireta nem imediatamente ao domínio da arte. Da mesmaforma, numerosas concepções a priori devem ser combati-das para que a relação entre a razão e a sensibilidade nâoseja percebida apenas como conflituosa. Será preciso espe-rar também o século XVII para que o belo se liberte dosvalores do bem e do verdadeiro e o final do século XVIIIpara que a imitação da natureza não seja mais consideradacomo a única finalidade do artista.

O movimento das idéias que se afirma no século XVIII

•...

Marcjimenez 33e que conduz às libertações que acabamos de evocar não seimpôs, portanto, por si mesmo. Traduz ele as profundasmodificações que sofrem, desde a Idade Média, as condi-ções sociais, econômicas e políticas. São estas transforma-ções que permitem que as novas concepções se concreti-zem na realidade. Um único exemplo: o reconhecimentosocial do artista, que abandona pouco a pouco seu status deartesão - às vezes com algumas reticências - deve ser postaem correlação com a libertação progressiva dos artistas dastutelas religiosas, monárquicas e aristocráticas. Do artesão,ligado pelo mecenato, escravizado à boa vontade de umpríncipe, passou-se ao artista humanista, dotado de um ver-dadeiro saber e não mais somente de perícia, depois aoartista que negocia as próprias obras no mercado e assegurasuas promoções junto ao público.

Trata-se aqui de um esquema simplificado, mas sufici-ente para mostrar que a declaração de autonomia da estéti-ca foi de algum modo preparada de longa data. Ela só inter-vém ao termo de uma lenta evolução intelectual e materialda sociedade ocidental que visa a emancipar o homem emrelação às tutelas antigas, teológica, metafísica, moral, mastambém social e política.

Precisemos algumas etapas deste caminho em direçãoà autonomia.

A idéia de uma criação autônoma

Deve-se ao dominicano Alberto o Grande (I 193-1280),filósofo e teólogo, a seguinte definição. "Criar é produzir al-guma coisa a partir de nada". Tal afirmativa do mestre deSanto Tomás de Aquino, enunciada por volta de 1230, nãosuscitaria, em nossos dias, nenhuma contestação especial.Algumas pessoas poderiam mesmo censurar-lhe uma certa

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34o que é estética?

banalidade. Contudo, ela prova o fato essencial de que nesseperíodo da Idade Média a criação era pensada. Ao contrárioda Antiguidade greco-latina, em que o conceito de criaçãonão era concebível, os filósofos e os teólogos do século XIIIrefletem sobre a noção de origem, de começo, de princípioprimeiro de todas as coisas. Mas seria impossível, sob o pon-to de vista teológico, atribuir ao homem um verdadeiro po-der criador, menos ainda reconhecer nele um poder de cria-ção artística. A própria idéia de criação artística é recusadavisto que criar é o privilégio de Deus. Ao produzir uma obra,o homem, prisioneiro de sua finitude, revela apenas o poderinfinito do Todo-Poderoso. O tema edênico da Gênese, queorigina durante séculos múltiplas interpretações teogônicasassim como numerosas disputas teológicas, exprime clara-mente a idéia de que a criação permanece o monopólio deDeus; o homem, mesmo detentor de uma liberdade que lhe éprópria, não criou o Paraíso terrestre. Ele foi colocado noJardim de Éden, tendo como única tarefa cultivá-Ia.

A herança de Santo Agostinho (354-430), um dos Pa-dres da Igreja latina, exerce sua inf1uência durante váriosséculos. Em nenhum caso o artista poderia ser o rival deDeus, Criador de todas as coisas: "Mas como criastes o céue a terra, e que máquina usastes para vosso grandioso traba-lho? Vós não operáveis como o artista, o qual forma umcorpo com um outro corpo, ao sabor de seu espírito quetem o poder de exteriorizar a forma que percebe em si mes-mo por meio da visão interior. Este poder, de onde viria aoespírito se não tivésseis criado o espírito l...1. Fostes vós quecriastes o corpo do artista, o alma que comanda seus mem-bros, a matéria com que faz alguma coisa, o gênio que con-cebe e vê dentro de si o que irá executar fora". I

'Saint Auguxtin , Les confcssions. Livro XI, cup. 5, Paris: Gnrruer-Fl.unrnarin 1964,r·2';6.

Marcji menez 35Em sua preocupação em distinguir tão nitidamente a

criação do artista, Santo Agostinho põe o dedo no essencial.egar que a arte possa resultar de uma criação humana

significa reconhecer indiretamente que, de todos os homens,só o artista pode com legitimidade reivindicar um status decriador. O que, evidentemente seria impossível para os "dou-tores da graça".

Será preciso esperar a Renascença, no Ocidente, paraque o conceito de criação artística seja ao mesmo tempopensado e aceito. É este um fenômeno à primeira vista sur-preendente, pois a reflexão sobre a idéia de criação artísti-ca e a aceitação de um agir humano, criador de obras e devalores, revela-se em contradição com a filosofia religiosa.Até os tempos modernos, no despontar do século XIX, an-tes que se imponham as concepções de Kant e de Hegel,essa filosofia continua a negar ao homem o poder de criar.Quando ela reconhece nele um poder criador qualquer, épara valorizar melhor a onisciência e a onipotência divinas.O homem permanece criatu ra, Deus permanece criador,incriado.

De fato, esta anterioridade da idéia de criação autôno-ma, que se impõe no domínio da arte no século XV, portan-to muito antes de ser admitida pela teologia e pensada pelafilosofia - não é ela ainda hoje apenas tolerada pelo pensa-mento religioso? -, só é aparentemente surpreendente.

A arte constitui de fato o espaço no qual se enfrentame se enlaçam, de maneira privilegiada, todos os aspectoscontraditórios, até mesmo antagonistas, da atividade huma-na, ao mesmo tempo intelectual e material. Um exemplo: ateologia como a filosofia têm toda a liberdade de definir aliberdade do homem, assim como as condições nas quaísesta autonomia deve ou pode se exercer. Porém, tal defini-ção permanece abstrata mesmo se tomar a forma de precei-tos filosóficos ou de regras morais. Podemos dizer,

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36o que é estética"

esquematicamente, sem grande risco de erro, que encontra-ríamos na história da filosofia tantas doutrinas que afirmama servidão do homem diante de um ou de vários deuses ousua sujeição à fatalidade, ou sua submissão a seu própriodestino, quantas forem as teorias que declaram sua liberda-de plena, inteira, essencial. Na realidade, a única liberdadedo homem reside na escolha que pode fazer entre uma ououtra dessas duas concepções em função da atração queexercem sobre ele. Em todos os casos, esta distinção perrna-nece, segundo nossa expressão, abstrata. Em outras pala-vras, e para falar como os lingüistas contemporâneos, a pres-crição da liberdade ou da não-liberdade do homem não éperformatiua: ela não engendra a ação somente pelo fatode seu enunciado.

Em arte, a situação é, não mais complexa, mas maisespecífica porque está ligada à produção de objetos. Criaruma obra de arte significa realizar um ato ao mesmo tempoabstrato e concreto. Abstrato, pois usa mecanismos psíqui-cos e mentais que decorrem da invenção, e concreto namedida em que uma coisa deve resultar desse processo,que se oferece à percepção. Os filósofos dizem, com toda arazão, que criar designa ao mesmo tempo um ato e um ser.A obra de arte evidencia-se, portanto, como uma concre-tização efetiva do poder demiúrgico do artista, capaz deengendrar objetos inéditos que não se reduzem à simplesimitação de coisas já existentes.

Na época da Renascença, numerosos são os que reivin-dicam com vigor um tal poder. Não desejam com isso riva-lizar com a onipotência divina, nem espoliar Deus do privi-légio da criação. Aliás, eles não produzem "a partir de nada",mas a partir de um saber adquirido em numerosas discipli-nas de caráter científico. Leon Battista Alberti (1404-1472),pintor e escultor, é também músico e arquiteto. Devemos-lhe a definição das normas da perspectiva que se impõem

Marcjimenez 37rapidamente como o credo dos pintores da Renascença. Empleno acordo com um outro pintor italiano do Quattrocento,Piero della Francesca (1410/1420-1492), Alberti insiste naimportância do estudo da matemática para quem quiserdedicar-se à pintura e à escultura: "O melhor criador serásomente aquele que tiver aprendido a reconhecer as bordasda superfície e toda a sua qualidade [...l, portanto, afirmoque o pintor deve aprender geometria".

Pintar e esculpir não são, portanto, apenas práticas querepousam sobre uma perícia, sobre um ofício, sobre umahabilidade de artesão. Elas tornam-se atividades intelectuaisque usam uma pluralidade de faculdades e de aptidões quepermitem ao artista superar seu status de simples artesãopara adequar-se à imagem do hurnanista. Este idealhumanista leva seguramente a evocar a imponente figura deLeonardo da Vinci (1452-1519), ao mesmo tempo filósofo,arquiteto, engenheiro, matemático, sábio, pintor e escultor.Se o hóspede de François I anota, com amargura, pensandoem seu próprio destino, que "ordenar é obra do senhor"enquanto "obrar é apenas um ato servil", isso não o impedede instalar-se no castelo de Cloux (hoje o Clos-Lucé, pertode Amboise) com todas as honras que a época se esforçadoravante por dar ao "gênio". Quando o pincel escapa -por descuido? - das mãos de Tiziano (1490-1576), é o impe-rador Carlos V que se abaixa para juntá-lo. A reputação dopintor já ultrapassou os Pirineus, os Alpes e o Rena.

Essas anedotas esclarecem um fenômeno que data doinício do Quattrocento e toma uma amplitude crescente: oda tomada de consciência do poder criador do artista "genial".O gênio, evidentemente, permanece um dom de Deus - econtinuará a sê-Ia até a época romântica - mas a força cria-dora é individual. A personalidade do artista torna-se, nosentido próprio, excepcional. Já Filareti (1400-1465) o arqui-teto da torre central do Castello Sforzesco em Milão, exigia

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que as obras dos pintores e dos escultores fossem assinadase, de fato, a maioria das assinaturas dos artistas doQuattrocento nos é conhecida. Suprema redundância quan-do a rubrica assina um auto-retrato, gênero que os pintoresda época estimavam ao ponto de instalar-se como tradição!O fato de os pintores não hesitarem mais em expor-se, atémesmo em exibirem-se tomando-se como objeto - ou sujei-to - de sua arte, revela o deslocamento que se opera, nessaépoca, da obra à personalidade de seu autor.

A consciência que possuem os artistas de poderem criarlivremente, de não obedecerem à outras leis a não ser àsditadas por seu próprio gênio, torna-se aguda num Miche-langelo. Enquanto Leonardo da Vinci aceita ainda ser o pri-meiro engenheiro militar de Cesar Borgia, Michelangelo, al-guns decênios mais tarde, num gosto de orgulhosa modés-tia, pode permitir-se desdenhar qualquer honra e qualquerdistinção. O título de Michelangelo, o "divino", basta aoartista, que declara pintar com seu espírito e não com suasmãos.

Alguns de seus contemporâneos, em compensação,durante o Cinquecento, aceitam sem pestanejar transpor osdegraus da promoção social. Os príncipes governantes tra-tam os artistas como senhores que residem em seu própriopalácio, como Raffaello, ou gozam de privilégios e de títu-los importantes como Tiziano, já citado, conde do palácioLaterano e membro da corte imperial.

É claro que durante a Renascença, a noção de subjeti-vidade própria ao artista ainda não é analisada nemtematizada pela reflexão filosófica e estética, como ela oserá mais tarde, no século XVIII, por Immanuel Kant. Mas asidéias de criação autônoma e de poder do gênio criador,que se impõem a partir dessa época e marcam uma clararuptura com o autoritarismo da Idade Média, não resultamde especulações abstratas. Os acontecimentos que acaba-

Marc]imenez 39mos de citar o provam. Estas noções, que fundam a estéticamoderna, traduzem, na verdade, as profundas transforma-ções que sofre a sociedade no plano econômico e político.

No domínio que nos concerne, a mudança de status doartesão que é progressivamente reconhecido enquanto ar-tista é o aspecto mais evidente dessas transformações.

Do artesão ao artista

A época da Renascença, sobretudo na Itália e na Fran-ça, é vista como uma época de ouro aos nossos olhos mo-dernos. Os historiadores do século XIX, preocupados eminsistir na renovação que ela representa em todos os domí-nios, tanto artísticos quanto científicos, às vezes idealizaramesse período. É bem verdade que a idéia de um sujeito cri-ador autônomo aparece pelo final do século XV. Ela contri-bui para o reconhecimento do artista que goza doravantede um status social mais elevado do que o do artesão daIdade Média. Mas é preciso saber que não se passa, comopor milagre, de um pretenso inferno a uma espécie de para-íso. Se o artesão da Idade Média é submetido a coerçõesmúltiplas e a numerosas sujeições, se sofre o peso da reli-gião, da autoridade, do senhor e do mecenas, beneficia-seele, todavia, de algumas vantagens. Reunidos emcorporações, os artesãos detêm os meios de produção, go-zam de uma certa garantia de liberdade de trabalho, produ-zem objetos com finalidade social. Este último ponto é im-portante. Ele significa que o artesão estabelece um elo entresua obra e sua utilidade. Em outras palavras, ele tem consciên-cia de seu valor de uso, percebe a relação existente entre oproduto e sua significação real.

Uma primeira mudança de status manifesta-se na Re-nascença, desde o início do Quattrocento. O pintor ou o

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40 o que é estética?escultor cessam de produzir obras úteis, para uso coletivo.Tendo sido outrora membros de uma corporação, transfor-mam-se agora em assalariados pagos pela clientela. O clien-te que faz uma encomenda, mecenas, membro do clero ouda aristocracia, às vezes o soberano, desempenha o pape!de empregador. Ele contrata para tarefas precisas e esperaque o mestre e seus companheiros realizem o quadro, res-peitando as ordens previstas no contrato. Estas prescriçõesdizem respeito tanto ao prazo de entrega, os materiais -cores e pigmentos - quanto ao desenho e ao tema.

Será preciso esperar o final do século XV para que apassagem de um modo de produção artesanal a um modode produção capitalista influa de maneira decisiva no statusdo artista. A libertação progressiva dos pintores e dos escul-tores em relação às corporações e seu funcionamento feu-dal constitui, neste sentido, uma etapa importante. Váriosfatores dão o testemunho dessa libertação. Os contratos entreo comanditário e o artista personalizam-se ao ponto de dei-xar a este último uma margem de iniciativa, inconcebívelantes. Isso acontece, por exemplo, na escolha do tema oudas cores, e até mais: sabe-se que, por volta de 1530, coubea Michelangelo decidir sozinho se honraria sua encomendaexecutando uma escultura ou um quadro. O preço das obrasaumenta consideravelmente. Fixado outrora em função dosmateriais utilizados, este preço freqüentemente nada maistem a ver com o custo real da produção, ele se torna livre,em função do renome e do talento de mestres que os prín-cipes, as cidades - como Roma, Florença, Paris - ou o Papadisputam. Esta tendência, iniciada já no princípio da Renas-cença, é consideravelmente reforçada à medida que a de-manda cresce no mercado. Um exemplo: Filippo Lippi (FraFilippo, 1406-1469), segundo Vasari, vive na indigência, aoponto de não poder comprar um par de meias. Alguns de-cênios mais tarde, Filippino Lippi, seu filho (1457-1505), no

~'I

I

Ili

Marc jimenez 41início do Cinquecento, acumula uma fortuna recebendo milducados de ouro, soma considerável para a época, por seusafrescos na igreja da Minerva em Roma. De uma geração aoutra, as condições mudaram, independentemente da noto-riedade, comparável aqui, dos dois pintores. E tal transfor-mação, que diz respeito tanto ao status do trabalho artístico ,à progressiva perda de influência das corporações quantoàs novas relações comerciais entre produtores e negocian-tes, traduz perfeitamente a autonomização efetiva do domí-nio artístico e cultural.

Mas outros sinais dessa autonomia se multiplicam emrelação, sobretudo, com a extensão do mercado da arte. NaIdade Média e no início da Renascença, o objeto artísticodeve responder às exigências do comanditário. A obra, temassim a possibilidade de satisfazer várias finalidades utilitá-rias ou simbólicas: ornar, ernbelezar, decorar igrejas ou pa-lácios ou celebrar, ao mesmo tempo, a glória do príncipe, ade Deus ou o poder em geral, eclesiástico ou aristocrático.Um rico mercador de Florença, Giovani Rucellai, generosocliente de pintores de renome, Filippo Lippi, Verrocchio eUccello, exprime sua satisfação declarando que suas obraslhe obtêm "a maior aprovação e o maior prazer, pois elasfavorecem a glória de Deus, a honra da cidade e [sua] pró-pria memória't.?

O preço dos quadros, como já o dissemos, é estabele-cido o mais das vezes de forma contratual, segundo critéri-os precisos. Leva ele em consideração, sobretudo, o núme-ro de figuras a serem pintadas, as cores e pigmentos a seremusados: prata, ouro, azul ultramar, etc. assim como o tempode execução. Essas obras têm, portanto, um valor determi-

'Citado por Michail Baxandall, L'ocil du Qu attrocento. Paris: Gallimard Bibliothe-que Illustrée des Histoires, 1985, p. 1 J. • '

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42o que é estética?

nado, resultado de uma negociação entre o comanditário eo artista. Esse valor pode ser chamado valor de uso, vistoque repousa sobre a capacidade que tem a obra de respon-der às diversas necessidades e exigências do cliente.

Essa situação, todavia, evoluiu a partir da metade daRenascença. A importância dos materiais na fixação do pre-ço das obras diminui em proveito da perícia, da habilidadeou do talento evidenciados pelo artista. Leva-se em consi-deração, sobretudo, o poder criador deste último e muitomenos a riqueza das cores, muito caras, que exibem umluxo julgado por demais ostensivo. Em outras palavras, otalento ou o gênio, qualidades intrínsecas à personalidadedo autor, estão acima de tudo. Definir o artista como autorsignifica também reconhecê-lo como proprietário exclusi-vo, ao mesmo tempo, de sua obra e de seu talento, tornan-do-se ambos negociáveis no mercado de arte em expansão.O valor de troca começa a prevalecer sobre o valor de uso.O tempo de trabalho efetivo consagrado à fabricação doobjeto de arte não é mais um critério suficiente para fixarseu preço. Conta somente o tempo de criação e não mais otempo de trabalho. Passou-se do quantitativo ao qualitativo.O tempo da criação não é mais mensurável. Trata-se, antesde mais nada, de uma duração investi da por um sujeito au-tônomo, celebrado, adulado, cuja reputação se faz ouviralém das fronteiras. Pode-se, decentemente, fixar o preçoda notoriedade ou do gênio?

O gênio assina sua obra. Inscreve sua marca, verdadei-ro sinete que atesta a mais-valia atribuída doravante à obra.Ora, uma obra de arte assinada não vale mais para ummecenas qualquer, para um indivíduo concreto. Ela vale parao mercado, para uma coletividade de compradores, paraum burguês rico ou amador esclarecido.

Este fenômeno do mercado, que se amplifica nos sécu-los XVII e XVIII, tem assim, como conseqüência, a constitui-

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i

Marc jimenez 43ção de uma clientela, ao mesmo tempo ávida de investir nasobras de arte, mas preocupada igualmente com sua qualida-de. A escolha de uma obra de arte não pode depender uni-camente de motivações econômicas. É fácil imaginá-Io.Idealmente, esta escolha supõe o contato com o objeto e,portanto, a entrada em jogo da percepção, da sensação, daemoção, todos afetos que determinam o sentimento de pra-zer ou de desprazer sentido diante da obra de arte. Inter-vém então o julgamento de gosto que decide sobre a con-formidade da obra ao que se espera dela. Mais precisamen-te, a instauração de uma esfera estética autônoma libera aquestão crucial de saber se uma obra é bela em si, se elacorresponde a um ideal de beleza ou então à idéia necessa-riamente subjetiva, que cada um tem do belo. O alargamen-to do público no século XVII e sobretudo no século XVIII,provoca, portanto, uma "desmultiplícação" das questões pró-prias da arte. Estas últimas dizem respeito à avaliação daobra em relação a regras, a normas ou a convenções - estatarefa será da competência das academias. Mas convém tam-bém formar, educar o gosto e legitimar o julgamento com oauxílio de critérios: será esta a tarefa dos "juizes", chama-dos a princípio, com muita graça, "árbitros das artes" e maistarde, "críticos".

Mas é melhor não antecipar. Com a Renascença des-ponta a noção de criação autônoma. Pouco a pouco, oartista liberta-se das coerções religiosas, políticas e sociaisda Idade Média e afasta-se da teologia e da filosofia esco-lásticas. Todavia, apesar dessa libertação e apesar da dig-nidade que evolui para seu status social, decorrem doisséculos antes que a estética se imponha como disciplinaespecífica e que a arte constitua uma esfera totalmenteautônoma, independente não apenas em relação à Igreja eao poder, mas também em relação à ciência e à moral. Esteatraso é explicável.

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44o que é estética?

No século XVI, O artista afirma-se como criador, dotadode talento e suscetível de ser reconhecido como um gênio.A religião, é verdade, pode considerar que ele é apenas oexecutante de um poder divino, simples instrumento ani-mado por uma inspiração que não comanda. Mas tal restri-ção, objeto de disputas teológicas, em nada transforma oproblema. São de fato o pintor, o escultor, o arquiteto, auto-res temporais, simples mortais, que são venerados por seuscontemporâneos e que serão celebrados pela posteridade.

A questão "quem cria?"parece resolvida: é o artista.Todavia, uma interrogação subsiste: que forças o impelempara a criação, o incitam para a inovação? Será a razão ouentão a sensibilidade, o sentimento? Objeto de ásperas con-trovérsias e de especulações complexas durante o classicismoe o século XVIII, antes que a estética de Kant proponha suasolução, este problema reaparece, sob suas diversas formas,em certos teóricos do século XX.

Razão e sensibilidade

Durante a Renascença, pelo menos em seu início, umatal alternativa, razão ou sensibilidade, não tem sentido. Aimitação constitui o princípio estético dominante. A arte tempor objeto a Natureza, o Homem ou Deus. A matemática, ageometria, a aritmética constituem para o Quattrocento omeio de aplicar esse princípio. Já foi dito com que intensi-dade, em Leonardo da Vinci e em Alberti, a reivindicação deum saber científico trabalhava em favor do reconhecimentodo status artístico. Pintores e escultores entregam-se às "ar-tes liberais", exercem eles uma atividade intelectual, maisnobre do que a do artesão, acantonado nas tarefas manuais,prisioneiro das "artes mecânicas". Mas imitar a realidadeexterior não é apenas copiá-Ia nem reproduzi-Ia mais ou

Marcjimenez 45menos fielmente. Trata-se de contrafazer a natureza, e ométodo matemático constitui o meio desta contrafação, des-ta mimesis. O princípio de imitação, que se impõe na Re-nascença e permanece em vigor até as primeiras vanguar-das do século XIX, não é um ato servil em relação a umpoder transcendente e coercitivo, que seria o de Deus, nemum testemunho de pura e simples submissão do artista ànatureza. O artista é dependente da natureza para melhorglorificar aquele que a criou, isto é, Deus. Idéia expressacom muita exatidão por Giorgio Vasa ri 0511-1574) com re-ferência a Giotto: "Os pintores estão sempre na dependên-cia da natureza: ela Ihes serve constantemente de modelo;eles tiram partido de seus melhores elementos e os maisbelos para se esforçarem a copiá-Ia ou a imitá-la".'

Em outras palavras, render homenagem a Deus, imi-tando sua obra, a natureza ou o homem, permite aceder àbeleza. Esta idéia, que resume, sozinha, a estética da Re-nascença, encontra-se perfeitamente expressa no retratoque traça Vasa ri de Leonardo da Vinci: "As influências ce-lestes podem fazer chover dons extraordinários sobre al-guns seres humanos; é um efeito da natureza, mas há algu-ma coisa de sobrenatural no acúmulo transbordante, nummesmo homem, da beleza, da graça e da força: onde querque ele se manifeste, cada um de seus gestos é tão divinoque todos são eclipsados e compreende-se claramente quese trata de um dom divino que nada deve ao esforço hu-mano"."

'Giargia Vasari, Lcs uies dos mcilleurs peintrcs, sculpteurs ct arcbitectés, éditiancrítíque sous Ia direction d'André Chastel, Paris Berger-Levrault, 1981, vol. 2.'Ibid. vol. 5.

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46o que é estética?o modo de representação perspectivista que Alberti

elabora de forma matemática, tendo por base trabalhos deBrunelleschi, é uma homenagem à sabedoria divina. É tam-bém um meio de conhecer e de reconhecer a verdade sob aexpressão que lhe dá o artista na tela ou no mármore.

Portanto, não é excessivo falar de uma "matematizaçãoda arte" nessa época do Quattrocento. No século VI a.c.,Pitágoras tentava compreender o universo inteiro com a ajudados números. A "ordem das coisas", o cosmos, é redutível aleis aritméticas e geométricas. O número, portanto, é sobe-rano: ao dar acesso ao saber, ele só pode ser sábio, pordefinição. Mas se ele é saber e sabedoria, também não podeser senão harmonia e beleza. Os artistas da Renascença apren-dem as lições de Pitágoras, cujo nome aparece com fre-qüência nos documentos da época; sentem eles um idênti-co fascínio por essa cosmologia do número.

Mas a predominância da razão, do intelecto e da abs-tração, atestada pela observância estrita das regras aritméti-cas e geométricas e pela submissão à "ciência da perspecti-va", excluirá a sensibilidade, por exemplo, a sensualidadeque o artista investe em sua obra e que se esforça por trans-mitir ao público? Evidentemente não. E os contemporâneosconcordam em valorizar numerosas qualidades criadoras quenada devem a uma razão austera. Assim, Cristoforo Landino,pintor florentino, filósofo e amigo de Alberti, faz o retratodos artistas de seu tempo em termos ainda usuais hoje:"Masaccio era um excelente imitador da natureza, com umsentido muito completo de relevo, de composição correta ede pureza, sem ornamentos. ['..J. Fra Filippo Lippi pintavacom graça e ornamento; era excessivamente hábil e foi ex-celente [...1 igualmente para os ornamentos tanto ao imitá-los quanto ao inventá-Ios. Andrea deI Castagno foi um gran-de mestre do desenho e do relevo; gostava particularmentedas dificuldades de sua arte e dos efeitos de perspectiva; era

Marc jimenez 47cheio de vida e muito rápido, tinha uma grande facilidadede trabalho. l...l Fra Angelico era alegre, devoto, muito ilus-trado e dotado da maior facilidade".'

Podemos ver nessas passagens um resumo das con-cepções estéticas da Renascença. Trata-se de fato do indiví-duo criador, de sua habilidade, de sua capacidade de in-venção, de sua facilidade, até mesmo de seu temperamentoC'alegre"). Mas todas essas qualidades devem responder auma tripla exigência: imitar a natureza, respeitar as leis daperspectiva e celebrar Deus C'devoto'').

A relação entre a razão e a sensibilidade evidencia-seassim em toda a sua ambigüidade. A Renascença vê o triunfodo humanismo: é o homem que avalia o ato criador, ao mes-mo tempo como artista, "intérprete entre a natureza e a arte",segundo a fórmula de Leonardo da Vinci, e como objeto, talqual aparece representado na pintura ou na escultura. Estaposição privilegiada do homem é importante visto que tende,com rápida progressão, a substituir-se à de Deus. Mas, quan-do dizemos "homem", ainda não falamos de "subjetividade"nem, se preferirmos, de homem enquanto sujeito.

Além disso, o belo, definido como "conveniência sen-sata", está ligado à harmonia (concinnitas). Implica ele co-nhecimentos científicos e um saber racional. Em outras pa-lavras, é ainda longo o trajeto que leva a admitir que a ima-ginação, a intuição, a emoção, a paixão e outros afetos pos-sam ser igualmente faculdades criadoras ou fatoresglobalizantes de criação capazes de engendrar a beleza. Damesma forma, será preciso esperar vários decênios antesque tais faculdades e tais fatores desempenhem um papelessencial no julgamento do gosto e em sua formulação.

A idéia de sujeito criador que opera numa esfera de

'Citado por Michael Raxandall, op. eil., p. 178.

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48o que é estética?

expressão artística autônoma somente se impõe, de fato,com a tomada de consciência do caráter complementar darazão e da sensibilidade. Na verdade, vê-se muito bem ondese encontra o problema. Tomemos o exemplo do indivíduo:enquanto a razão e a sensibilidade forem rivais ou enquan-to uma predominar em detrimento da outra, o homem podeser considerado fragilizado, desequilibrado. Não consegui-ria ser nem livre nem autônomo. Um homem por demaisracional, que somente obedece às injunções de seu intelec-to, precisa de uma moral, de uma religião ou de uma ordemtranscendente. Em compensação, um indivíduo por demaissensível, vítima de um excesso de sentimentalidade, precisade uma ciência, de algumas regras bem ordenadas capazesde inculcar-lhe alguma razão.

O ideal humanista forjado na Renascença constitui umaetapa importante em direção a uma síntese entre a razão e asensibilidade. Aquele que as possui em quantidades iguaisé senhor de si mesmo, isto é, autônomo, tão livre quanto oquis ser Leonardo da Vinci. Esta síntese, todavia, aparececomo um equilíbrio frágil. Ela alimentará abundantemente,sob diferentes formas, as controvérsias e as disputas dasépocas ulteriores, sobretudo no século XVII, século da ra-zão clássica, e no século XVIII, século dos filósofos ra-cionalistas. Até lá, para confirmar sua plena autonomia, aesfera estética deverá libertar-se ainda das tutelas da ciên-cia, da religião e da moral. Na época da Renascença, estaindependência está longe de ter sido adquirida, as condi-ções que permitem aceder a ela estão colocadas: reconheci-mento do artista enquanto tal, afirmação da idéia de criaçãoartística, reivindicação em favor da autonomia da arte e docriador, harmonia entre a razão e a sensibilidade.

Se cada época traz sua própria solução para cada umadessas questões, é evidente que nenhum dos problemasencontra - e sem dúvida nunca encontrará - resposta defi-

Marcjimcnez 49rutrva. A reflexão estética contemporânea recoloca, à suamaneira, a questão das interações entre a esfera estética, aesfera científica e a esfera ética. Ela se interroga tambémsobre a existência de uma racionalidade especificamenteestética e sobre a necessidade de critérios em arte. Porém,tais problemáticas podem ser tanto mais bem formuladaspor se colocarem de maneira coerente dentro de uma disci-plina constituída.

A Renascença traça o caminho que conduz a tal consti-tuição. Nela assistimos à regulamentação parcial das ques-tões, já evocadas, relativas ao status do artista e á idéia decriação. Mas ela lega às épocas ulteriores novos motivos depreocupação cujo tratamento condiciona a emergência, nametade do século XVIII, da estética como reflexão científicae filosófica.

De fato, numerosas questões permanecem não resolvi-das e os teóricos, filósofos, artistas e poetas não cessarão,durante todo o classicismo, de debater problemas que havi-am permanecido em suspenso, por exemplo, sobre aespecificidade das artes, sobre a definição do belo, naturalou artístico, sobre o papel do sentimento e da imaginação,ou sobre a importância do gosto individual na apreciaçãodas obras.

Este último ponto é essencial, pois as primeiras formu-lações teóricas e filosóficas em estética, sobretudo em Kant,tentam justamente elucidar as condições do julgamento dogosto. Ora, o reconhecimento do artista como criador nãobasta para atribuir-lhe uma subjetividade capaz de promul-gar suas próprias leis; da mesma forma, o público não estápor isso habilitado a julgar, visto que ignora a que regrasdevem ajustar-se as obras. Concebe-se facilmente que aobrigação de dobrar-se diante de regras supra-individuais,sejam elas de natureza religiosa, metafísica ou moral, nãopermite que a liberdade do homem se exprima plenamente.

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50 o que é estética?

o debate filosófico aberto por Descartes no início doséculo XVII e que trata da afirmação de um sujeito autôno-mo, suscetível de pensar o mundo e de pensar-se a si mes-mo enquanto sujeito pensante, constitui um dos momentosdecisivos na gênese da estética moderna.

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A GÊNESE DA AUTONOMIA ESTÉTICA

Influência do cartesianismo

Costuma-se definir o século XVII, a Época clássica, comoa da razão triunfante e o século XVIII, o século das Luzes edos filósofos, como o da razão esclarecida. As concepçõesracionalistas, sobretudo sob a influência de Descartes, do-minam o conjunto da atividade humana nos domínios dafilosofia, da ciência, da moral e das artes.

A primeira certeza sobre a qual se baseia Descartes:"penso, logo existo" constitui o ponto írredutível para aquémdo qual a dúvida não pode se manifestar: quando duvido,não posso deixar de pensar que existe um "eu" que duvida.Assim: eu duvido = eu penso = eu existo. Não se trata emDescartes de um raciocínio dedutivo, mas de uma intuiçãoque apreende a identidade entre estes três momentos. Ime-diatamente presente no espírito, esta intuição desencadeiauma verdadeira busca de certezas baseadas na elaboraçãode noções claras e distintas. A função destes conceitos ela-

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52o que é estética?

ros e distintos é a de chegar à verdade de todas as coisas, deforma que esta verdade apareça no espírito com a evidênciado pensamento matemático.

Não é aqui o lugar de expor mais detalhadamente afilosofia cartesiana. Interessa-nos tão somente a influênciaque o cartesianismo, enquanto exigência de clareza, de or-dem, de estabilidade e de autoridade, tenha podido exercerno domínio da reflexão sobre a arte. Mais precisamente,trata-se de responder à questão de saber por que a esferaestética somente pôde ser concebida como domínio autô-nomo no final do século XVIII. Uma tal interrogação podeparecer ingênua. É tentador replicar que a história não serefaz e que é vão querer reescrever a evolução do pensa-mento intelectual, por exemplo, da Renascença até a Revo-lução Francesa. Se, todavia, um tal problema se coloca, éexatamente porque temos a tendência de superestimar opapel que a razão pôde desempenhar no século XVII e noinício do século XVIII na procura da verdade. O projeto deDescartes, afirmado com veemência nas últimas linhas doDiscours de Ia metbode, não determina o homem a tornar-se"senhor e dono da natureza"? Devemos entender com isso"toda natureza", tanto os fenômenos chamados naturais es-tudados pela astronomia, a física e a química quanto a natu-reza biológica do homem e o ser moral submetido às pai-xões e aos afetos. Esta vontade de aplicar de forma sistemá-tica um método científico que se supunha traduzir todas ascoisas em certezas matemáticas não afirma um dogmatismofrio e calculista? Uma tal submissão à onipotência doracionalismo não se realiza em detrimento das faculdadessensíveis que se opõem tradicionalmente à razão: a imagi-nação, a fantasia, o sentimento, o gosto?

Uma interpretação acanhada, mas largamente dissemi-nada, da filosofia cartesiana inteiramente assimilada ao es-pírito clássico do século XVII, desenvolve-se nesse sentido.

Marcjimenez 53O sistema de Descartes, baseado na análise, na classifica-ção, na ordem e na organização pode parecer assim umareação ao espírito profuso e confuso que marca o final daRenascença. Um tal sistema exclui, por princípio, a consti-tuição de uma filosofia da arte. De fato, Descartes, que so-nhava com um saber unificado, regido pelo método mate-mático, nunca redigiu um tratado de estética. Seu Abrégé demusique (1618), obra de juventude - ele tem vinte e doisanos - , define as condições do prazer sensível e do belocom a ajuda de proporções matemáticas. Se reconhece quecada sentido é susceptível de algum prazer, tal prazer deveobedecer a uma certa proporção entre o objeto e o sentidoque o percebe. Da mesma forma, um objeto é tanto maisfacilmente percebido quanto menor for a diferença entresuas partes. A proporção entre as partes deve ser aritméticae não geométrica e, entre os objetos dos sentidos, aqueleque é mais facilmente percebido não é o mais agradável àalma, nem mesmo aquele que o é mais dificilmente; mas,diz Descartes, é aquele que não é percebido nem tão facil-mente a ponto de satisfazer por completo este desejo natu-ral pelo qual os sentidos são impelidos para o objeto nemcom tanta dificuldade a ponto de fatigar o sentido.

É uma estética intelectualista perfeita e de uma extremaprudência, que prega a harmonia e a ausência de excessosem todas as coisas. A razão do belo escapa à razão .... eDescartes o confessa ao padre Mersenne: "Quanto à vossapergunta, a saber, se podemos restabelecer a razão do beloL..J o belo e o agradável significam apenas uma relação entrenosso julgamento e o objeto, e pelo fato de os julgamentosdos homens serem tão diferentes, não se pode dizer que obelo ou o agradável tenham alguma medida determinada".'

IDuures, de Descartes, Paris: Vrin, C. Adum et P.Tannary, " vol. t. X p. 132.

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Descartes atem-se a este relativismo do gosto, sempreindividual, dependendo da fantasia de cada um, ligado àsua memória, à sua experiência passada, variável segundo omomento. Portanto, não seria possível medir o belo; elenão pode ser submetido a um cálculo científico nem a umaquantificação qualquer, pois a ciência visa ao universal en-quanto o belo pertence à ordem do sentimento individual.

A reflexão de Descartes sobre o julgamento do gostotermina onde começará, quase um século e meio mais tar-de, a de Kant. Não há nisso nada de surpreendente. A refle-xão estética começa logo que é possível estabelecer umarelação entre o que é agradável aos sentidos e o que agradaà "alma", entre o prazer sensível e o prazer inteligível, emoutras palavras, entre a percepção e o julgamento, ou en-tão, para permanecermos no universo cartesiano, entre ocorpo e a alma. Ora, Descartes sabia que a questão do eloentre a alma e o corpo, entre ares cogitans e a res extensa,constituía a dificuldade de seu sistema. Sem dúvida, o pro-blema de união entre os dois podia ser em sua opinião, deordem científica, fisiológica (hipótese da glândula pineal);mais provavelmente era de ordem moral (les passions del'âme, 16492. mas com toda a certeza não era de ordemfilosófica.

Um dos sistemas mais ambiciosos dos tempos moder-nos não pode explicar o comportamento do homem dianteda arte. Não existe, neste sentido, uma estética cartesiana.Porém, se insistimos sobre o lugar do sistema cartesianonuma discussão consagrada à estética, não o fazemos paraconcluir por uma negação. Pelo contrário. De fato, a filoso-fia de Descartes não cessa de desempenhar um papel maiornas numerosas controvérsias artísticas do século clássico,sobretudo quando se trata das noções de sentimento, degosto ou de gênio. Além disso, ela impregna a tomada deposição dos artistas e dos teóricos da arte, quer se trate, por

Marcjimenez 55exemplo, de Nicolas Poussin 0594-1665), de Félibien 0619-1695) ou de Roger de Piles 0635-1709),

Todavia, o mais importante reside na novidade dosconceitos cartesíanos a respeito dos séculos anteriores, so-bretudo no que concerne ao status do sujeito pensante. Amaioria dos comentadores mostram frequentemente o cará-ter radical das críticas dirigidas por Descartes à tradição aris-totélica. Da mesma forma, insiste-se, com razão mas às ve-zes sem nuanças, no fato de que o autor do Discours de taméthode a obra é escrita em francês e não em latim - teriaabolido o princípio de autoridade em vigor na escolásticamedieval. Em compensação, aponta-se de maneira por de-mais discreta a profundidade das transformações filosóficase teológicas ocasionadas por seu sistema em relação aosconceitos da Renascença.

Segundo Descartes, Deus, responsável pelas verdadesmatemáticas, é também o responsável pelo nosso pensa-mento; assegura ele, ao mesmo tempo, a possibilidade doconhecimento. Significa isto que o homem pode chegar aosaber se quiser exercitar sua vontade em conformidade comas regras da razão. Deus, portanto, lhe concedeu um livrearbítrio, de um lado na ordem do conhecimento: uma idéiainsuficientemente clara e distinta chegará ao seu espírito?Ele pode recusá-Ia, duvidar de sua veracidade ou suspenderseu julgamento; de outro lado, na ordem das paixões: "Ob-servo em nós uma única coisa que possa dar-nos uma razãocorreta para nos estimarmos, isto é, o uso de nosso livrearbítrio e o domínio que temos sobre nossas vontades" de-clara Descartes em les passions de l'âme, chegando ao pon-to de afirmar que este livre arbítrio nos torna "de algummodo semelhantes a Deus, fazendo-nos senhores de nósmesmos".

Assim, é considerável a diferença em relação aos temasteológicos e filosóficos que dominam na Renascença, so-

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56o que é estética?

bretudo durante o Quattrocento, tais como são formulados,por exemplo, por Marsilio Ficino 0433-1499). Autor de umaTeologia platônica e de um Comentário sobre o Banquetede Platão, Ficino, humanista italiano, tradutor das obras dePlatão e Plotino, esforçou-se por conciliar o platonismo e ateologia cristã. Deve ele sua reputação de teórico eminenteda Renascença às relações que estabeleceu entre Deus, cri-ador de todas as coisas, o homem, criatura perfeita, e oamor, ciência divina, que permite aspirar ao infinito, aoAbsoluto. Toda ação do homem, seus desejos e sobretudo odesejo de beleza que anima suas obras, devem aspirar àcelebração de Deus, Criador onisciente e ele mesmo Amor.

A essa filosofia do Amor, presente em tudo, Descartesopõe o método racional que permite aceder à Verdade. Nocentro deste racionalismo há, evidentemente, o sujeito, afir-mando sua autonomia tanto através da dúvida quanto atravésda certeza de seu próprio pensamento. Portanto, trata-se defato de uma revolução. Somos tentados a dizer: uma primeirarevolução em relação à teologia e à metafísica da Idade Mé-dia. Esta ruptura decisiva constitui um prelúdio à revoluçãoKantiana, ainda mais radical na medida em que conclui pelaimpossibilidade de qualquer conhecimento metafísico. É cla-ro que não é habitual atribuir a Descartes o lugar que lhedamos na filosofia da arte. Mas a estética não teria podidonascer sem a afirmação do sujeito como dono, até mesmocriador, de suas representações. O sujeito cartesiano não é osujeito estético. O belo, para Descartes, não é, como foi dito,mensurável, pois depende demais dos caprichos do indiví-duo. Mas, ao reconhecer o papel da subjetividade para deter-minar o que é belo ou agradável para a alma, o cartesianismoinsiste na inconsistência de qualquer pesquisa que vise a definiras condições pretensamente objetivas da beleza ideal, do beloem si. Embora, o termo "subjetividade" não pertença a seuvocabulário, assim como também não pertence a ele a ex-

Marc [imenez 57pressão "julgamento de gosto", pode-se considerar, sem an-tecipar demais, que Descartes pressente a contradição queKant se esforçará por resolver a respeito do julgamento sobreo belo, isto é, sobre o fato de um tal julgamento ser ao mes-mo tempo pessoal e universal, em outras palavras, de suauniversalidade ser subjetiva.

Um outro ensinamento do cartesianismo é rico de con-seqüências: concerne ele mais diretamente à influência dadoutrina da razão nas controvérsias, às vezes vivas, sobrenoções de gosto, de sentimento e de imaginação que ali-mentam a maioria das querelas artísticas até o século se-guinte.

Em seu ponto de partida, a questão transmitida inci-dentemente por Descartes é simples: se o belo não é men-surável e se a razão, que é, contudo, particularmente eficazna pesquisa da verdade, nada nos pode ensinar sobre oassunto, com que faculdade podemos contar? Existirá umaúnica ou existirão várias capazes de auxiliar ou de subs-tituírem-se plenamente a ela? Mais precisamente: a belezaobedece a regras exatas ou é ela assunto de sentimento?Deveremos acreditar que a verdadeira beleza está acima detoda regra, inacessível a qualquer razão? Depende ela dogênio ou da técnica? Porém, o problema concerne igual-mente ao amador: esperamos que ele manifeste uma violen-ta emoção diante da obra de arte ou que a contemple sere-namente? Furor ou serenidade? Julgamento ou entusiasmo?

Não seria possível aqui mergulhar no labirinto quaseinextricável das disputas que se sucedem durante mais deum século após a morte de Descartes. Podemos, no máxi-mo, dar o panorama de um debate que procura considerar aépoca clássica, sobretudo o século de Louis XIV, como olaboratório de idéias, de categorias, de conceitos que per-mitem a emergência, na metade do século XVIII, de umdiscurso estético coerente.

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58o que é estética?

A razão clássica

Se o classicismo se define em todos os domínios, polí-tico, institucional, moral e artístico, pela procura do sensato,da moderação, do correto, do conveniente, do verossímil edo "alto gosto", evidencia-se também que o edifício grandi-oso construído por Descartes ao redor da razão longe estáde ser monolítico. Evidentemente, tudo parece ser calcula-do pela medida de uma razão considerada como garantiado critério do julgamento verdadeiro. Poder explicar de acor-do com as regras da razão, significa prevenir-se contra aimaginação e preservar-se da falsidade e dos erros dessa"louca da casa", imprevisível e caprichosa. Porém os con-temporâneos de Descartes e seus sucessores, comoMalebranche, sabem perfeitamente que as coisas não sãotão simples: em Rêgles pour Ia direction de I 'esprit o próprioDescartes não admitiu que, em certos casos, a imaginaçãopoderia ser a auxiliar da razão? O que vale para as verdadesmatemáticas, em que a razão se mostra como o "raio de luzdivina que ilumina todos os homens", aplicar-se-á à nature-za, onde a regularidade não é de uso comum, natureza queparece apelar mais para o imprevisto, o sentimento, a sensi-bilidade? Além disso, que aconteceria com o sentimento,com a sensibilidade, na ausência de qualquer traço de razãocapaz de assumi-Ias, e sem dúvida, de manter esta razão, afim de não perder-se justamente nas quimeras e no desati-no?

O século clássico, considerado o "século da razão", étambém o de seus limites. Sem dúvida porque esta famosarazão não é assimilável ao nosso conceito moderno deracionalidade positivista, instrumental, dominadora e fria,escravizada a outras finalidades que não a Razão, diferentesdas que visam à verdade. A partir da metade do século XVII,surge a suspeita de que a razão não é una, absoluta, e de

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Marc jimenez 59que não constitui a única fonte de conhecimento. No senti-do inverso, suspeita-se que o sentimento não seja totalmen-te engano ou desregramento dos sentidos, mesmo se forconfundido com a sensibilidade.

Outros motivos levam a modular o exercício da razão.O cartesianismo em vigor logo após a morte de Descartes,ao qual se vinculam os "modernos", construtores políticos einstitucionais do Grande Século, não deve mais grande coi-sa às suas origens filosóficas. É um cartesianismo de refe-rência, um cartesianismo dogmático, aplicado à organiza-ção do Tout-État criado por Louis XlV.

Como explicar esse fato?Seja qual for o gênio pessoal de René Descartes, sua

filosofia é também o produto das condições sociopolíticas eideológicas da França de seu tempo. Ela exprime igualmen-te as preocupações dominantes da primeira metade do sé-culo XVII e sobretudo as aspirações de uma geração queparticipa, querendo ou não, da instauração progressiva deuma monarquia absoluta, de direito divino, poderosamentecentralizadora e preocupada com a ordem e a estabilidade.Acabou o ceticismo de Montaigne, que duvidava da capaci-dade do espírito humano de chegar a qualquer verdade. Arazão dá acesso a um conhecimento verdadeiro. A vontade,o livre arbítrio previnem os desregramentos que nascem daspaixões da alma. A razão cartesiana é altiva, empreendedo-ra, conquistadora. Pierre Corneille pode, com toda razão,inspirar-se nela, pintando o retrato de indivíduos fora docomum, donos de seus sentimentos, isto é, livres, pela úni-ca razão de desejar sê-Io, independentemente das coerçõesexteriores: "Quero que sejamos livres quando acorrentadosl... l. Não se deve alimentar um amor que não se entregue anós", declara Alidor, namorado da bela Angelique, em IaPlace Royale. Esta razão contribui para produzir a ética dosheróis, a dos príncipes descontentes que sonham, durante

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60 o que é estética?

algum tempo, em vão, fazer frente ao absolutismo em mar-cha ou que desejam pelo menos a partilha do poder real. Naverdade, preparam o triunfo da monarquia.

Coincidência de datas: Descartes morre em 1650. Em1653, a Fronda é domada. Louis XIV é sagrado em Reims em1654, ano da conversão de Pascal ao jansenismo. Gassendi,"libertino erudito", leitor crítico de Descartes, mas da mes-ma forma apaixonado por matemática e por progresso cien-tífico, morre em 1655. Em 1661, Colbert substitui Fouquet,que caiu em desgraça, e abre as portas a Le Brun. Outroreino, outro mecenas; um único é suficiente: "alimentar asmusas e todas as ciências" é tarefa do rei. Os servidores doEstado são cartesianos, todos ou quase todos: Le Brun "pri-meiro pintor" e André Félibien, historiógrafo das Constru-ções sobretudo. A razão triunfa e extrai de Descartes umalegitimidade filosófica para justificar sua extensão ao domí-nio político, institucional e artístico. Razão alibi, muito dife-rente da precedente, que autoriza uma nova ambição: a detornar-se "dono e possuidor" das belas-artes, doravante es-cravizadas ao dogma do "grande gosto". Normalização,uniformização, unificação e hierarquização tornam-se aspalavras de ordem do absolutismo.

Se, de acordo com Élie Faure, "a educação da vontade,dada lentamente por Descartes e Corneille a espíritos cheiosde saber, a energias cheias de ordem, imprime mesmo assimao conjunto do edifício um carácter imponente'? o preço aser pago é exorbitante: é a liberdade de criação e a autono-mia da arte. O historiador da arte não é brando para com a"monarquia francesa": "[Colbert] administra as Belas-Artescom o mesmo método com que administra as Vias Públicas,

'Elie Faure, Histoire de l'art, L 'ar! moderne, t 1, Paris, Gallimarc!, Folia, essais, p.229.

Marcjimenez 61as Finanças ou a Marinha. Estende seu protetorado à litera-tura, às artes plásticas, institui pensões para os artistas queconsentem em obedecer, organiza e centraliza as Academi-as, cria, para os arqueólogos, os músicos, os arquitetos, al-gumas que ainda não existiam. Faz da viagem a Roma umainstituição de Estado, fundando naquela cidade uma Escolaem que haverá anualmente um concurso doutrinário e queserá um convento estético com missa obrigatória, horas fi-xas para acordar e deitar, uma vigilância inflexível sobre ospensionistas escolhidos. Isso não é suficiente, é preciso re-montar a Bisâncio para encontrar um precedente. Proíbe aabertura de ateliês livres na França, reserva para a Academiade pintura e de escultura o monopólio do ensino Ll. Umdia, fará com que seja condenado a cinco anos de exílio ummembro dessa Academia por um panfleto que se supõe terele escrito contra Le Brun"."

A emergência de uma razão estética

Sem dúvida, essa golilha política, filosófica e, comodiríamos hoje, "cultural" tem pelo menos um mérito: o dedefinir a doutrina clássica e de assegurar a manutenção doedifício até os anos 1680, que anunciam um final de reina-do. Paradoxalmente, o debate estético, que comparamos aum labirinto sem saída, está no auge, sobretudo com refe-rência às noções de beleza e de graça. Se a Academia é um"convento", se Le Brun celebra como padre superior, inteli-gente e autoritário, a "missa obrigatória" é dita por AndréFélibien. Seus Entretiens sur les uies et les ouvrages des plus

'Ibic!. p. 228.

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62 o que é estética?excellents peintres anciens et modernes, redigidos entre 1659e 1685, são um monumento à glória do classicismo em quefiguram como referências obrigatórias Nicolas pouss~n eRafaello. Mas Félibien não é dogmático e seus Entretiens,permeados de finura, revelam um espírito sutil, atento àsnuanças na apreciação das obras de arte de seu tempo esuficientemente perspicaz para sentir as fissuras que des-pontam no edifício racionalista. É evidente que Félibien nãonega o ideal de beleza objetiva, nem a existência d: u~belo imutável que só pode ser alcançado pela observânciade regras e de normas controladas pelas luzes da razão. Masas "regras da arte" tais como são sentidas pelo gêniocorresponderão sempre às regras racionais? E mesmo quan-do o respeito pelas regras engendra a beleza, poderemos tercerteza de que se trata, no caso, de uma condição suficientepara que esta beleza nos agrade? Em outras palavras, nãohaverá outra coisa que venha acrescentar-se à beleza ouentão que a acompanhe e que nenhum raciocínio possaexplicar?

Há aqui um paradoxo que podemos simplificar da se-guinte maneira: a beleza nasce da razão, mas a razão nã?pode ser inteiramente criadora de beleza. A esta "outra C~l-

sa" Félibien dá um nome: trata-se da graça. Ora, a graça naodepende da razão, mas sim da alma. Ela não obedece aregras racionais, mas somente ao gênio do artista: "A belezanasce das proporções e da simetria que se encontra entre aspartes corporais e materiais. A graça é engendrada pela uni-formidade dos movimentos interiores causados pelos afetose pelos sentimentos da alma".

Para melhor fazer-se entender, Félibien escolhe umexemplo facilmente compreensível para todos: "para bemdemonstrar que a graça é um movimento da alma, é que aovermos uma bela mulher, julgamos, em primeiro lugar, suabeleza pela justa relação que há entre todas as partes de seu

,Marcjimenez 63

corpo; porém não é possível julgar sua graça se ela nãofalar, se não rir, ou se não fizer algum movimento."

E da aliança da beleza e da graça resulta um "esplendortotalmente divino" um "não sei quê" diz Félibien, usando aexpressão do padre Bouhours. Notável impressão! Este "nãosei quê" - formulação extremamente moderna - é um indi-zível, um inefável que não se pode "expressar com corre-ção", confessa Félibien, exatamente o contrário de uma re-gra da razão e de uma idéia clara e distinta. Este "não seiquê" seria como o "nó secreto que reúne estas duas partesdo corpo e do espírito". É ele que provoca em nós a admi-ração sem que nem mesmo possamos explicar nem por quenem como. Trecho surpreendente: pensamos, certamenteem Descartes, não no teórico do dualismo entre o corpo e oespírito, mas no professor de moral junto à rainha Cristinada Suécia, naquele que "inventa" um "ainda não sei o quê"uma glândula pineal encarregada de regular as paixões daalma, de fazer a junção entre o corpo e o espírito. Insinua-se aqui algo de barroco que não provém da razão clássica.Exceto que ambos, Descartes e Félibien, permanecem con-vencidos de que a ciência conseguirá um dia elucidar racio-nalmente este mistério. Descartes antecipa um progresso damedicina capaz de explicar o funcionamento da epífise.Félibien antecipa o nascimento de uma "ciência" que reveleo segredo que mascara a relação entre o entendimento e asensibilidade: espera de uma estética que não tardará a afas-tar-se dessa questão ao mesmo tempo insolúvel e semprepreocu pante.

Isso não impede que o "não sei quê", por mais vagoque seja, constitua uma séria objeção aos obstinados parti-

"André Félihien, Entreticns SI/r lcs oies et lcs oucrages eles pius excellents peintresancicns et modernos, Premier entretien, 1. I, Paris: Renê Démoris, Belles Lettres,1987.

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64o que é estética?

dários de uma beleza imutável e universal, uma beleza, emsuma, eterna ou, como a chamava a Academia, "positiva".Uma brecha no ideal de uma beleza perfeita e única, agra-dável a todos, sob a égíde de uma Razão, ela mesma imutá-vel. Nesta brecha, ainda estreita, introduz-se Roger de Piles.Tudo acontece como se a requisição da razão pela ordempolítica e institucional, ou seja, pelo absolutismo monárquicoe pela Academia, provocasse, por seus excessos, uma espé-cie de "humanização" da razão. Esta palavra deve ser toma-da em seu sentido primordial: volta ao homem, à sua sensi-bilidade, a seus afetos. Interesse pelo sujeito em detrimentodo objeto. A importância que adquire a noção de gosto, istoé, dos movimentos secretos da alma, significa que o indiví-duo assume, ainda timidamente, sua experiência estética.

A questão da cor

o debate sobre o colorido, que se agrava a partir de1660, revela esta tendência. A questão de privilégio conce-dido, seja ao desenho, seja à cor, não é nova na história dapintura. Teve ele sua versão "renascença", sobretudo naItália, onde os admiradores do disegno de Rafaello opuse-ram-se aos apaixonados pelo colore de Tiziano. Porém, nes-ses últimos decênios do século XVII, o conflito adquire vi-rulência, pois cristaliza interesses que ultrapassam a pintura.

Charles Le Brun, um cartesiano rigoroso, prega o dese-nho; não apenas não aceita a expressão "claro-escuro", re-centemente forjada por de Piles, mas recusa a importânciaque este último concede à cor. Fervoroso admirador deNicolas Poussin, encontra em Philippe de Champaigne umoutro "poussiniano" convencido de que, como ele, afirma aprimazia do desenho. O "belo método de pintura" ensinadopela Academia passa pelo creiom. É ele que "dá forma", é

,I

Marcjimenez 65dele que depende a cor e não o inverso. A cor, concede LeBrun, pode trazer sua contribuição, mas ela não faz nem opintor nem o quadro. Do outro lado, Roger de Piles, parti-dário de Rubens, vê em Gabriel Blanchard um "rubenista"fervoroso. "Um pintor somente é pintor porque usa corescapazes de seduzir os olhos e de imitar a natureza", declaraBlanchard sem rodeios diante dos acadêmicos em 1671.Observemos, incidentemente, a ordem das prioridades: emprimeiro lugar "seduzir os olhos", em seguida, "imitar a na-tureza". Acaso retórico ou sutil audácia diante dos guardiãesda Doutrina?

Porém, no momento, o importante reside na distinçãoentre cores e coloridos que de Piles estabelece pela primei-ra vez em 1672 (Dialogue sur les coloris) e renova em 1708(Cours de peinture par principes). Le Brun respondera aBlanchard com argumentos supostamente decisivos e defi-nitivos: o desenho constitui o elemento essencial da pintu-ra; a cor representa apenas um acidente. O desenho dá for-ma e proporção, sozinha, a cor não significa nada. O dese-nho está ligado ao mesmo tempo ao espírito, à imaginaçãoe à mão. Ele pode portanto expressar até mesmo as paixõesda alma sem ter necessidade da cor.

E a estocada em Blanchard não tarda: "Todo o apanágioda cor consiste em satisfazer os olhos, enquanto o desenhosatisfaz o espírito". Essa réplica, aparentemente anódina, écontundente. Le Brun afirma, com ela, uma outra prioridadealém da de Blanchard: a da inteligência e da razão. Habil-mente, ele encerra com a palavra espírito, palavra final, evi-dentemente. Subentende-se: a cor não pode produzir nemtom nem colorido. Ela é somente matéria bruta, válida ape-nas para ser misturada por mãos de artesãos e que não po-deria, de maneira nenhuma, aspirar à nobreza do espírito.

O desenho nos salva do mergulho no seio do "oceanoda cor" e, na verdade, segundo Le Brun, tudo é desenho.

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66o que é estética?

Invocando Vitruvio e Vasari, lembrando-se de Alexandre, oGrande, e portanto de Aristóteles, concedendo Bernini aobarroco, coloca ele, sob o signo do desenho, todas as ou-tras artes "maiores": arquitetura e escultura ... e, paradoxal-mente, este último argumento dará o golpe de misericórdiana causa dos "poussinianos", assegurando ao mesmo tem-po a vitória dos coloristas.

Quando Roger de Piles redige seu Cours de peinturepar príncipes, Le Brun está morto há quase vinte anos. Po-rém seu triunfo - e o dos "rubenistas" - nada deve ao desa-parecimento do primeiro pintor do rei. Ele repousa sobretu-do na pertinência dos argumentos. É preciso lembrar: LeBrun afirmava que a cor não podia engendrar nem o tomnem o colorido. A distinção é hábil. Ela permite minimizar acor e considerar que seu manejo é trabalho de moedores detintas, de tintureiros. Mas esta mesma distinção é útil a dePiles que, todavia, precisa: "O colorido é uma das partesessenciais da pintura através da qual o pintor imita as apa-rências das cores de todos os objetos naturais e distribui aosobjetos artificiais a cor que lhes é mais vantajosa para enga-nar a vista". Em outras palavras, o colorido constitui a "dife-rença da pintura e o desenho como seu gênero"; reconhe-cemos as categorias aristotélicas. O colorido constitui a dife-rença específica da pintura, diríamos hoje sua especificidade.Evidentemente, o desenho é comum à pintura, à arquitetu-ra, à escultura, à gravura. Mas sem a ajuda do colorido "nadahá no desenho que o escultor não possa fazer"; e isso valetambém para as outras artes.

Contrariamente à afirmação de Le Brun, não é, portan-to, legítimo considerar que a cor se contente em satisfazeros olhos, que ela somente diga respeito aos sentidos, aocorpo, enquanto o desenho satisfaz o espírito, está ligado àalma. É, portanto, como cartesiano que de Piles responde aesse outro cartesiano, Le Brun: assim como "não há homem

Marcfimenez 67se a alma não estiver unida ao corpo, da mesma forma nãohá pintura se o colorido não estiver unido ao desenho".

A partir do início do século XVIII, o futuro da cor, aomesmo tempo na prática pictórica e na reflexão estética,está assegurado. Evidentemente, no século XIX e no séculoXX, algumas correntes artísticas manifestarão por vezes umrenovado interesse pelo desenho em detrimento da cor.Porém, estas tendências, perceptíveis na arte moderna e emcertas vanguardas contemporâneas, nunca reanimarão que-relas desse tipo.

Era importante evocar os principais momentos dessedebate para precisar o estado da reflexão estética no iníciodo século XVIII. Insistimos no interesse artístico, assinalan-do que ele podia esconder outros. Quais são eles?

Por mais intransigente que ela seja, a posição de LeBrun apresenta pelo menos dois aspectos legítimos: no pla-no institucional, ele garante o dogma acadêmico e uma tra-dição, a do desenho, atestada, confirmada pelos mestres dopassado. Atitude necessariamente "conservadora", mas quese inscreve na evolução do status dos artistas preocupadosem promover uma arte liberal que se apoiasse no saber e nainteligência. Dizer que o desenho está ligado ao espírito, aoprojeto concebido e elaborado abstratamente pelo artistasignifica lançar a matéria, a cor, para a atividade manual,apanágio dos artesãos prisioneiros das corporações, operá-rios limitados a tarefas "inferiores": moedores de tintas,tintureiros, "mamarrachos". Vem daí o privilégio de espíritoque se liga ao desenho-desígnio. A homonímia aqui favore-ce os interesses de Le Brun: trata-se da nobreza de umaprofissão livre que não poderia ser confundida com um ofí-cio.

Um segundo aspecto, mais diretamente político, revelaem que medida os conflitos estéticos estão ligados aos inte-resses ideológicos de uma época. Le Brun, primeiro pintor,

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68o que é estética?

depende de Colbert, superintendente* das Construções, in-teiramente devotado ao monarca. A pintura é uma arte dacorte, o "primeiro" filho preferido do desenho encarregadode representar os grandes atos do rei, a poesia só está pre-sente para cantá-Ios. "Ut pictura poesis": a pintura é como apoesia. Já invertido na época da Renascença, o adágio deHorácio ("a poesia é como a pintura") toma um novo senti-do: um quadro não é somente como um poema, ele é maisdo que um poema. Pois o rei, cujos altos feitos são celebra-dos pela pintura de história, ora Apoio, ora Hércules, é dequalquer modo, de "direito divino". Ele participa do misté-rio da Criação, sendo ele mesmo uma criatura privilegiada amesmo título que a Natureza. O que, além do desenho,pode fazer "tomar parte na composição dessa famosa or-dem francesa, que deve carregar tantas figuras alegóricasquantos forem seus ornamentos, para registrar o estado glo-rioso em que se encontra hoje a França sob o reinado deLouis XIV, o maior e o mais triunfante monarca que ela jáviu"? Certamente não a "bela maquiagem", essa cor queengana os olhos e trai a realidade.

O debate sobre o colorido, portanto, não é unicamenteum problema de pintura, mesmo se tomar o aspecto de umcírculo fechado no qual se enfrentam uma casta de inicia-dos e de privilegiados, longe de qualquer instância pública.Ele é a expressão, sobretudo a partir de 1680, de uma crisemultiforme que diz respeito, ao mesmo tempo, ao absolutis-mo monárquico, ao enfraquecimento dos modelos antigose ao questionamento de uma Razão pretensamente cartesiana,que com demasiada freqüência serve de alibi ao autorita-rismo.

'N. de T. Surintendant, no século XVII oficial encarregado de uma administraçàopública. .

Marcjimenez 69Dos Antigos aos Modernos

A querela dos Antigos e dos Modernos, desencadeadapor Charles Perrault em 1687 também já revela contradiçõessubjacentes à época clássica e que se manifestam doravanteabertamente. Sua origem "literária": francês ou latim, Homeroou os autores contemporâneos, desaparece com bastanterapidez sob os interesses políticos e filosóficos desse finalde século caracterizado por uma profunda mudança dementalidade. Claramente identificáveis no início, os prota-gonistas e seus chefes - Boileau e La Bruyere para os Anti-gos, Charles Perrault e Fontenelle para os Modernos - con-cluem, conscientemente ou contra a vontade, alianças queperturbam o jogo. A tendência conservadora, encarnada pelosjesuítas e pelos clérigos da Universidade, defende os Anti-gos, enquanto o clã modernista encontra apoio em Colberte na Academia Francesa. Reação de um lado, progresso dooutro, os antagonismos subsistem apesar do mediadorAntoine Arnauld, chamado o Grande Arnauld, teólogo, dou-tor da Sorbonne, dedicado à causa jansenista, interlocutorcrítico de Leibniz e de Malebranche, totalmente seduzidopelas teses cartesianas.

Quando a querela se reacende, em 1713, entre o"geômetra" Houdar de Ia Motte e a Sra. Dacier, a causa jáestava adiantada. O mediador, desta vez, é Fénelon, autorem 1714, de uma Lettre à l'Académic, na qual tenta conciliaro gosto dos escritores antigos e o interesse pelos autoresmodernos. Mas a conciliação pouco mascara a vitória dosModernos e dos "geômetras". Uma nova geração de filóso-fos, entre os quais Fontenelle, Pierre Bayle e Saint-Évremond,herda a tradição dos libertinos eruditos: La Motte Le Vayer,Naudé, Gassendi, reduzidos ao silêncio após a Fronda. Ali-mentados por Descartes, leitores críticos de Malebranche,de Spinoza, de Locke, de Leibniz, atribuem à razão uma

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70o que é estética?

função resolutamente crítica, inconcebível na tradição clás-sica. Esta razão crítica anuncia esta tendência para uma críti-ca da razão exercida pelos filósofos do século XVIII. "Críticada razão" não significa aqui desqualificação da razão nemabandono da pretensão de aceder à verdade por caminhosracionais, mas exatamente o contrário. A crítica da razão nãoprega um irracionalismo qualquer. Simplesmente, em lugarde atribuir à razão a tarefa de chegar à Verdade, ao Absolu-to, dá-se-Ihe a função de determinar as condições científicasque autorizam o conhecimento. E é este conhecimento quedá acesso a uma verdade, aquela que o homem está apto areconhecer, a afirmar e a defender, levando em considera-ção o caráter limitado de sua razão. Esta aparente modéstia,que toma às vezes a forma de ceticismo, absolutamente nãoprejudica o radicalismo do vasto movimento crítico - destavez no sentido mais agressivo de questionamento - contraas antigas e tradicionais tutelas: quer se trate da autoridadepolítica, teológica, moral ou artística.

O termo crítica invade as conversas e os títulos dasobras: Réflexions sur Ia critique (Houdar de La Motte) , Dis-sertation critique sur I'Iliade (abade Terrasson), Dictionnairebtstorique et critique (Pierre Bayle) e naturalmente: Réflexionscritiques sur Iapoésie et Iapeinture, publicado em 1719 peloabade Du Bos, texto "pré-estético" ao qual voltaremos maistarde.

Esta freqüência do termo "crítico" é reveladora da novapostura intelectual e moral dos pensadores do início do sé-culo XVIII: anuncia ela os grandes cortes, isto é, a rupturado elo com o princípio de autoridade que reina em todos osdomínios desde a Idade Média. Corte teológico e metafísico:Pensée diverses sur Ia comete (Pierre Bayle, 1682), Historiedes oracles (Fontenelle, 1687); corte ético: Saint-Évremonddeclara-se adepto de Epicuro, considerando que o prazernão é incompatível com a moral; corte progressivo em rela-

Marc Iimenez 71ção à ordem sociopolítica: certos filósofos militam pela tole-rância, como Bayle, outros, como Montesquieu, já pensam,nesse primeiro terço do século, numa crítica da monarquiaabsoluta.

Que se passa na estética?Apenas três decênios antes que o termo estética venha

designar uma disciplina autônoma, nada permite prever aemergência de um discurso específico, coerente, com umaterminologia segura. Numerosos são os equívocos que ain-da planam sobre os conceitos de gosto, de sentimento, deimaginação, de intuição, de emoção, de paixão, de sensibi-lidade ou de gênio. Todas essas noções remetem a um "nãosei quê" - para retomar a expressão do padre Bouhours -que somente deve sua relativa precisão às conveniências domomento e ao código em vigor neste ou naquele autor. Aprópria palavra "arte" não está definida. Não é usada nosingular, nem com minúscula nem com maiúscula. O usodo plural é obrigatório, acompanhado por um adjetivo: asartes mecânicas, as artes liberais. Estas últimas, catalogadaspela Academia: eloqüência, poesia, música, pintura, escul-tura, arquitetura e gravura, são chamadas "belas-artes", des-de o final do século XVII. La Fontaine teria sido o primeiro,dizem, a usá-Ia neste sentido. Mas a Escola de Belas-Artessó é assim chamada em 1793. Quanto à Academia de Belas-Artes, deverá esperar até 1816.

As condições para a elaboração de uma filosofia daarte sob a forma de uma disciplina positiva e autônoma,portanto, ainda não estão reunidas. Se um discurso estéticoé possível, ele deve ser constituído sobre uma base de con-ceitos, de noções e de categorias relativamente confiáveis eestáveis sem que suas significações sofram variações pordemais profundas de um conceito a outro. No início doséculo XVIII está-se ainda muito longe disso. É preciso com-preender bem: uma estética - ciência ou filosofia - somente

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72o que é estética?

pode ser definida na distância que separa a razão ... do quenão é a razão. Ora, se sabemos, ou julgamos saber, sobretu-do graças ao cartesianismo, em que consiste a razão, seidentificamos suas finalidades, o mesmo não acontece comaquilo que parece ser seu oposto.

Para simplificar, digamos que dois obstáculos se opõemà elaboração do discurso estético. Primeiro obstáculo: con-sideremos que, desde a Idade Média até o despontar dostempos modernos, a distância entre a razão e o que lhe écontrário é infinita. Que será possível colocar num espaçoinfinito e indeterminado? De um lado, uma razão onipresenteapresentada como medida de todas as coisas; do outro lado,uma multiplicidade de noções incertas, evanescentes, queevita definições vagamente associadas aos movimentos ouàs paixões da alma. Uma dá acesso ao saber, ela contribuipara o progresso do conhecimento; as outras, prisioneirasda natureza humana, parecem destinadas apenas a descre-ver, de forma turva e indistinta, o pretenso mistério inson-dável do homem. O outro obstáculo reside na demasiadaproximidade entre a razão e seu contrário indeterminado.Há aqui, aparentemente, uma contradição, ou pelo menosuma tensão característica da época clássica. Deve-se ela àtentação de avaliar o vasto domínio do sensível com a me-dida da razão: poder atribuir um conceito, dar um nome aoque escapa ao entendimento, por exemplo o sentimento, aimaginação. A solução clássica, pelo menos a tentativaracionalista, consiste em desejar precisamente racionalizar oque escapa entre as malhas da razão, por exemplo, o gostoou a graça. O ideal é chegar a uma coincidência perfeitaentre a razão e o que não é razão, em outras palavras, éreduzir, até mesmo suprimir a distância que evocávamosmais acima. Mas então, coloca-se igualmente a questão: ondecolocar a estética se o espaço em que ela procura penetrarnão existe mais?

t'.~

Marc jimenez 73Evidentemente, é preciso encontrar a distância correta

entre uma razão que não avance no terreno da sensibilida-de e uma esfera do sensível que não afunde no irracional.Há uma solução possível, mas ela exige duas condições: deum lado, que a razão, tão eficaz nas ciências, renuncie à suaambição totalizadora e universalizante; que ela, de qual-quer forma, se abrande; de outro lado, que seja possívelresponder, racional e conceptualmente, pela imaginação epela sensibilidade, e admitir que elas também constituemfaculdades cognitivas e são assim geradoras de um conheci-mento. O que prova, por exemplo, que a escolha das cores,que um Le Brun atribui ao arbitrário e do espíritodesorientado' do pintor, não obedeça a uma lógica particu-lar, que ele não seja, segundo a expressão de Roger de Pi-les, "baseado na razão"? Por que, se podemos pastichar areflexão de Pascal, a estética não teria sua própria razão quea Razão ignora?

Em suma, o ponto de concordância estaria em umaoutra razão, diferente da razão matemática e lógica, umarazão adaptada ao seu novo objeto. Seria chamada razãoestética ou razão poética. Ela poderia ser um intermediárioentre a razão e a imaginação, entre o entendimento e asensibilidade. E finalmente, é o indivíduo, o sujeito que rea-lizaria de alguma maneira a harmonia entre as faculdades,de um lado, porque é o autor da experiência estética e deoutro lado, porque cabe a ele, a ele e a ninguém mais,pronunciar-se sobre o que sente: cabe a ele emitir um julga-mento de gosto. Esta maneira de expor o problema já anun-

'É pelo menos o que sugere a frase de Le Brun em sua resposta a Gabriel Blanchard,em 1672:"", É preciso estudar com cuidado e com aplicação, mas de maneira que o desenhoseja sempre o pólo e a bússola que nos paute neste estudo ..."

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740 que é estética?

cia as soluções que serão propostas por Baumgarten e, numsentido totalmente diferente, por Kant.

Porém, devemos ater-nos à gênese da autonomia esté-tica. Ora, já precisamos que as condições para o apareci-mento de uma esfera estética autônoma ainda não estavamreunidas no início do século XVIII. Isto não significa que operíodo clássico, sob seus adornos e ouros, não tenha fun-cionado como esse laboratório experimental que já assina-lamos. Quantas teorias, quantas controvérsias e quantasquerelas não conheceu esse século, na França e no exterior,verdadeiras testemunhas de contradições latentes, indíciosde uma profunda transformação de perspectiva em relaçãoaos séculos precedentes!

Voltemos rapidamente a alguns elementos relativos aosdebates evocados anteriormente. Estamos lembrados de queFélibien, com o padre Bouhours, maravilhava-se com o po-der dinâmico do "não sei quê", desse inexprimível que não énem a beleza nem a graça, mas as duas juntas. Dessa união,de fato, resulta o "esplendor"; este esplendor, todavia, não éde ordem humana, mas de ordem divina. Félibien usa a ex-pressão "esplendor divino". Poder-se-ia pensar que se trataaqui de uma espécie de revelação sobre a qual o homem nãotem poder. E, de fato, este esplendor ultrapassa seus doiscomponentes; ele os transcende em algo que se aparenta aosublime. Encontramos novamente a idéia de Longino segun-do a qual o sublime é esta "força que eleva a alma"."

Na época, esta categoria, o sublime, conhece um con-siderável sucesso graças à tradução da obra de Longino,

('LeTraité du sublime et du mervoiltuex dans le discours é publicado (em francês)em 1674, traduzindo e comentado por Boileau. É de atribuído a l.ongino, retorgrego do século 111(213-273). Mas o texto, conhecido desde a Renascença emsua versão latina, seria obra de um humanista romano do século I. I

II

: Ijl

Marc fimenez 75Traité du sublime. Mas o importante, na explicação deFélibien, é a idéia de que o "não sei quê" é ele tambémmovimento (da alma) isto é, força, energia que agita o sujei-to, que concerne à sua própria experiência, afeta as paixõesde sua alma. Em outras palavras, não são mais as regrasconsideradas ideais de beleza que servem aqui como refe-rência, mas o que sente o indivíduo em seu confronto dinâ-mico com o objeto.

Este mesmo pressentimento do papel desempenhadopela experiência sensível, em detrimento da razão é encon-trado em Roger de Piles. Tomar partido em favor do colori-do, da "bela maquiagern" - que ele celebra nos quadros deRubens - contra o desenho, contra a obediência às regrascanônicas que o regem, significa promover uma forma deprazer específico ligado, ao mesmo tempo, à autonomia doartista, convidado a sugerir formas libertas da ordem gráficae à liberdade do espectador, levado a fruir sem restrição dos"encantos da cor".?

Este reconhecimento do papel da experiência e dassensações e o lugar que a reflexão estética tende a concederao sentimento e à imaginação correspondem, no final doséculo XVII e no início do século XVIII, a uma profundatransformação de mentalidade, sobretudo em relação àsambições filsóficas e científicas tradicionalmente ligadas àrazão. Poder-se-ia quase falar de uma mutação dos espíritosse este termo não sugerisse uma ruptura clara e brutal naqual convém especialmente ver um lento amadurecimentodas idéias. O fato de esse amadurecimento chegar a umverdadeiro corte epistemológico, isto é, a uma transforma-ção radical nos paradigmas ou nos modelos do conheci-

7Expressão de Gahriel Blanchard em sua conferência na Academia. cf. acima.

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76o que é estética?

mento, é um outro problema, mais tardio. Falaremos nissoao tratarmos de Kant.

Poderíamos esquematizar a transformação de mentali-dade que nos interessa aqui, reduzindo-a a um deslocamen-to do objeto para o sujeito. É exatamente o que significa, nateoria das artes, a atitude de um Felibien ou de um Roger dePiles: comecemos por nos interessar pelo que sente o es-pectador que contempla um quadro e tentemos determinaratravés de que meios pode o artista chegar a ernocioná-lo.

Porém, tal deslocamento não é totalmente cartesiano?Para Descartes também, a origem de qualquer idéia se en-contra no próprio pensamento, isto é, na razão, neste bomsenso que o indivíduo partilha com os outros homens. Naorigem do cogito nada mais há além do "eu", sujeito-pensante,com a exclusão - pelo menos provisória - do mundo. Nadade exterior consegue convencer-me de minha existência,nem os sentidos, nem os objetos, nenhuma sensação oupercepção.

Empiristas e racionalistas

Todavia, a diferença é considerável para os pensadorese os filósofos empiristas que, como o termo o indica, dãoprioridade à experiência sensível em detrimento da razão.Contudo, a oposição tradicional entre empiristas e racio-nalistas não se justifica. Os ernpiristas, de fato, não negam opapel da razão mas pensam que toda idéia é a representa-ção a posteriori do que age sobre os sentidos. Em outraspalavras, tudo o que eu concebo ou imagino supõe umasensação e uma percepção, um contato primordial com oobjeto exterior, graças aos órgãos dos sentidos. Estes setornam, de algum modo, o intermediário obrigatório entre oobjeto e o espírito, uma mediação sem a qual nenhuma

Marc [imenez 77representação, nenhuma concepção, nenhuma imaginaçãoseriam possíveis.

Esta definição do ernpirismo, resumida aqui de formasucinta, é, naturalmente, minimal. Ela sofre importantes di-ferenciações através de todos aqueles que declaram suaposição filosófica empirista antes que o empirismo designeuma teoria coerente em si mesma, no final do século XVIII.

Se não é possível, aqui, expor em detalhes as concep-ções ernpiristas, não se poderia, contudo, omiti-Ias. O quechamamos "desligamento da razão" do que não é ela mes-ma - sensação, sensibilidade, sentimento, intuição, imagi-nação, sensualidade, coração, desejo, entusiasmo, ilusão,invenção, prazer, paixão, ete. - obedece a um processo lon-go, complexo e às vezes contraditório. A contradição en-contra-se mesmo no coração da separação, pois, para defi-nir o que não é a razão, é necessário um conceito, inclusonuma linguagem estruturada de forma ... racional. É perfei-tamente claro, por exemplo, que não podemos ater-nos,cada vez, a um "não sei quê". Portanto, não há nesta opera-ção uma ruptura com a razão e foi por este motivo queadotamos o termo desligamento, vocábulo utilizado na ma-rinha para designar a folga que se cria entre as diferentespartes de um navio. Ora, o clima filosófico, mas tambémpolítico e ideológico, do início do século XVIII, é também odo jogo que abala as partes rígidas do edifício racionalista,clássico e absolutista. Os empiristas contribuem em largaescala para esta operação. Prolongando a metáfora, poderí-amos dizer que eles exploram as falhas, penetram nosinterstícios, minam as bases da construção. Sobretudo, e écertamente o mais importante, chegam eles a conferir umestatuto teórico e filosófico a este "outro da razão".

Além disso, é preciso compreender o que significa esteclima. Muitas vezes, a história da filosofia e mais geralmentea história das idéias dedicam-se a expor a coerência interna

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78o que é estética?

das teorias e das doutrinas no interior de um encadeamentoque privilegia a justaposição cronológica em detrimento desuas inter-relações: Kant sucede assim a Leibniz que, porsua vez, sucede a Spinoza, o qual continua Descartes quevem ele mesmo após a escolástica. O encadeamento é su-postamente feito por si próprio visto que esta diacronia,sozinha, sugere a superação de uma teoria pela outra, fa-zendo com que seja considerada como um progresso doespírito. Significa isto esquecer que as idéias têm geralmen-te uma vida mais longa do que a de seus autores e não écerto que uma tal agenda convenha a uma história da esté-tica.

Quanto ao caso que nos interessa, isto é, as teoriasempiristas, a cavalo entre os séculos XVII e XVIII, uma ex-posição sistemática seria particularmente inadequada. É pre-ciso poder imaginar a densidade das trocas intelectuais quemarcam essa época: pensadores e escritores, racionalistasou empiristas, lêem-se mutuamente, comentam-se, dispu-tam, objetam, injuriam-se, tornam-se amigos e às vezes tam-bém se traem. Thomas Hobbes 0588-1679), autor doLéviathan(651), exilado na França de 1640 a 1651, refugia-se junto ao padre Mersenne, o mais fiel amigo de Descartese de Gassendi. Os três partilham uma mesma admiraçãopelas teses de Galileu. Hobbes corresponde-se com Descar-tes, e nos melhores termos, sobre a Dioptrique, mas desen-cadeia uma viva controvérsia a propósito das Méditationsmétaphysiques. Recusa as idéias inatas, persuadido de quetodo conhecimento vem dos sentidos, e é como empiristaque critica severamente o cogito: o "penso, logo existo" deveser entendido, é evidente, como a apreensão da existênciaatravés do próprio pensamento. Mas pensar é um ato reali-zado pelo sujeito e eu posso, da mesma forma, deduzir des-te fato que a coisa pensante é algo de corporal.

Hobbes, como muitos empiristas, considera a filosofia

Marc jimenez 79sob o ângulo do conhecimento e de seus limites, mas preo-cupa-se igualmente com os problemas sociais e políticos desua época. Seu pensamento não concerne diretamente àteoria da arte; o de John Locke 0637-1704) também não e,contudo, indiretamente, os conceitos de Locke influem namaneira de encarar as relações entre o conhecimento racio-nal e o conhecimento sensível. Persuadido de que nossoentendimento é limitado e de que ele não permite acederao conhecimento de Deus, critica Malebranche e sua teoriada "visão em Deus". Como Thomas Hobbes, cujas teoriasaprofunda, sofre ele a influência de Gassendi, alimenta-sede Descartes, mas ao contrário deste último, pensa comoempirista convicto, que a experiência sensível condiciona oconhecimento racional.

John Locke torna-se preceptor em casa de Lord Ashley,conde de Shaftesbury. É encarregado de instruir seu filho,Anthony Ashley Cooper Shaftesbury. Autor de uma Cartasobre o entusiasmo, Shaftesbury publicará os Princípios daFilosofia Moral ou Ensaio sobre a virtude que será traduzidomais tarde por ... Diderot. Estes escritos suscitarão a admira-ção de Hume, de Leibniz, de Voltaire, de Kant e, natural-mente, do tradutor. A originalidade de Shaftesbury residemenos em sua adesão a uma filosofia otimista de tipoleibniziano do que em sua maneira de conciliar o neopla-tonismo: a Verdade, o Belo e o Bem se confundem; o em-pirismo: o entusiasmo permite aceder a tais valores trans-cendentes, o homem percebe imediatamente a beleza e aharmonia do universo; e o racionalismo do tipo metafísico.as criações do artista são uma homenagem à ordem domundo.

Seduzido pelas teses de Locke, Francis Hutcheson 0694-1747) expõe os elementos de uma estética decididamentesubjetivista baseada na existência de um "sentimento interior".Este sentimento é atestado pelo prazer que as obras de arte

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80 o que é estética?

ou a natureza são capazes de causar imediatamente em nós.A questão dos critérios do belo importa pouco, o importan-te é definir o que sentimos.

Les recherches sur l'origine des idées que nous avons deIa beauté et de Ia uertu, de Francis Hutcheson, são traduzidaspara o francês em 1749. Entre os tradutores: Étienne Bonnotde Condillac (1714-1780). A obra exerce uma inf1uênciadeterminante em David Hume e em Kant, sensíveis à idéiade que a razão, sozinha, não pode desembocar na ação senão for guiada seja pelo sentimento interior, seja pelo ins-tinto, posição contrária à do racionalismo.

Graças a Hutcheson, David Hume interessa-se profun-damente pelas teses de Locke. Entre os outros pensadoresque contribuem para sua formação figuram Descartes,Malebranche, Shaftesbury. Provavelmente não é por acasoque Hume, residindo na França, se detém em La Fleche,exatamente no lugar em que Descartes fez seus estudos.Acusado de heresia e de ateísmo após a publicação do Tra-balho da natureza humana (1731) e, mais tarde, dos Ensai-os filosóficos sobre o entendimento humano (1758) Humeapaixona os Enciclopedistas, faz amizade com Jean-JacquesRousseau, o qual suporta com muita dificuldade o interessede d'Alernbert por seu hospedeiro. Empirista, Hume criticaigualmente as idéias inatas e privilegia a experiência, consi-derando todavia que a experiência imediata, sozinha, nãopoderia ser a origem de nossos conhecimentos. A experiên-cia precisa da imaginação, a única que é capaz de transfor-mar em idéias as impressões que resultam dos sentidos. Oraciocínio intervém posteriormente depois que um "instintonatural", uma espécie de intuição baseada na associaçãodas idéias, o hábito e a memória, nos tiverem acostumado aapreender a relação entre os objetos ou os acontecimentos.

As teses de Hume exercem uma inf1uência direta emCondillac, o representante francês mais marcante do

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Marcjimenez 81empirismo. Condillac, amigo de Diderot, de Rousseau e de... d' Alembert, inspira-se em Locke para redigir o Essai surl'origine des connaissances bumaines (1746) e o Traité dessystêmes (1749). Afirma ele o caráter imediato da percepção,isto é, da impressão ocasionada pelos sentidos. Nossos co-nhecimentos somente se acumularam na proporção do queas sensações nos transmitiram e o sentimento resulta dasmodificações sofridas pela alma quando dessa transferênciados sentidos para o espírito.

Este apanhado das tendências empiristas não tem a fi-nalidade nem a ambição de expor em detalhes cada umadas teorias existentes, mas, simplesmente, a de esboçar osinteresses filosóficos e estéticos durante os decênios queprecedem a intervenção determinante das teses "críticas" deImmanuel Kant em sua obra A dissertação de 1770.

Entrementes, os interesses da confrontação entreracionalismo e empirismo tornaram-se precisos. O debateentre protagonistas que se conhecem, se comentam e secriticam, às vezes vigorosamente, permitiu nuançar as res-pectivas posições, ao ponto de o problema herdado porKant poder ser esquematizado pela alternativa: sentimentoou julgamento? A resposta, seguramente, é mais complexado que a pergunta. Ela concerne, antes de mais nada, àteoria do conhecimento, mas suas implicações em filosofiada arte são determinantes. É a estas últimas que nos ative-mos prioritariamente aqui.

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DESliGAMENTOS E AUTONOMIA

Ambigüidades da autonomia estética

Empregamos o termo desligamento para designar oprocesso que permite à ciência, à razão, à filosofia e aoindivíduo libertarem-se progressivamente das antigas tute-las teológica, metafísica, moral, mas também sociais e ideo-lógicas.

Esta conquista da autonomia concerne igualmente àreflexão sobre a arte. Evidentemente, em qualquer época osfilósofos se interessaram pelo problema do belo, pelas re-gras que supostamente o produzem. Procuraram eles deter-minar o lugar e a função das artes na sociedade e tentaramtambém compreender os sentimentos que as obras de artesuscitam nos homens. A teoria do belo ocupa um lugar im-portante nas obras de Platão: Aristóteles é o autor de umTratado do belo que, infelizmente, não chegou até nós. Plínio,o Antigo, vítima da erupção do Vesúvio em 79 d. c., autorde uma imponente História da natureza, estabelece umpanorama da história das artes na Antigüidade. DíonCrisóstomo, retor grego do século I d. C., é sem dúvida, um

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S4o que é estética?

dos primeiros críticos de arte a consagrar um estudo à com-paração de méritos entre a escultura e a pintura. É bomlembrar, na mesma época, o Tratado do sublime do pseudoLongino e as páginas que Santo Agostinho (354-430) dedi-ca, em suas Confissões ao problema da criação.'

Todos esses trabalhos sobre as artes do passado apre-sentam um interesse inegável. Eles revelam que, em todasas épocas, os pensadores, filósofos e teóricos meditaramsobre as relações entre a arte e a vida social e sobre a ma-neira pela qual os homens se comportavam diante das obrassubmetidas a seus julgamentos. Mas, a constituição de umaautonomia estética no século XVIII possui, todavia, um sig-nificado muito diferente.

De fato, várias condições são necessárias para que aestética se imponha como um domínio de reflexão específi-ca. Nenhuma "estética filosófica" poderia ter nascido sem aconstituição das idéias de criação autônoma e de sujeitocriador. Era preciso também definir as relações entre a razãoe a sensibilidade, meditar sobre o gosto, sobre a experiên-cia individual e esforçar-se por determinar o papel da razãono domínio específico da arte, distinto da ciência e da mo-ral. No interior desta esfera estética autônoma, o julgamentodo gosto, individual, subjetivo, pode ser exercido livremen-te, sem ter de justificar-se junto a instâncias "superiores",como a teologia, a metafísica, a ciência ou a ética. Pelomenos, em princípio.

Porém, percebem-se duas tendências, duas maneirasde conceber a autonomia estética: ou se fala da autonomiado sujeito, de sua faculdade de apreciar e de julgar livre-mente a beleza da natureza ou da arte, ou então entende-sepor autonomia o isolamento de uma esfera artística capaz,

ler. acima p. 35 do livro.

Marcjimenez 85ela também, de dar acesso à Idéia, à Verdade, ao Sentido, aoAbsoluto, e susceptível de rivalizar com a ciência e a filoso-fia. Há aqui uma ambigüidade que se prolonga na acepçãoatual do termo estética, segundo nos referimos à faculdadede julgar Kantiana ou à filosofia da arte tal qual a definemos primeiros românticos e Hegel. Mas uma outra ambigüi-dade afeta a própria idéia de autonomia estética.

A autonomia aparece como a resultante de vários fato-res que podem, todos, participar da emancipação da arteem relação à ciência, à religião, à moral e à instituição polí-tica. Podemos facilmente reconhecer que, se a Renascençarepresenta uma etapa decisiva em relação a esta libertação ea estes desligamentos progressivos, esta emancipação estálonge de estar de fato realizada. E no século XVII, e nãoapenas sob o absolutismo monárquico de tipo francês, mui-tas coerções ainda pesam sobre a atividade artística. Pode-mos então supor que a fundação da estética no século dasluzes venha dissipar, como por encanto, todas as coerçõesanteriores? Será preciso crer, por exemplo, que nem a mito-logia antiga nem a religião sirvam doravante de modelo aosartistas, que o Belo esteja irremediavelmente separado doBem, que a política não mais intervenha nas belas artes,que a imitação da natureza cesse de ser o princípio domi-nante ao qual devam dobrar-se os criadores?

Certamente não e há muita diferença - justamente -entre os princípios e a realidade. A conquista da autonomiaestética inscreve-se no movimento mais geral de libertaçãoem relação à ordem antiga. Esta tendência parece, aos nos-sos olhos, tão irresistível quanto aquela que conduz ao ca-pitalismo burguês, ao liberalismo e à constituição de umespaço público aberto à crítica.

Quando falamos de autonomia estética, grandementefavorecida pelo aparecimento do termo estética aplicado auma disciplina particular, fazemos referência, finalmente,

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86o que é estética?

apenas a um momento dessa evolução e, portanto, igual-mente a uma simples tendência. A autonomia real, plena ecompleta, nunca se realizou e, sem dúvida, nunca existirá,nem hoje nem amanhã. Se ela fosse possível - o que nãoacreditamos - sem dúvida ela não seria desejável.

De fato, a simples tendência à autonomia comporta umrisco maior, o da constituição de uma esfera estética total-mente separada da vida cotidiana. Por ter reinvindicadodemais sua independência, o artesão transformou-se em ar-tista, colocado num pedestal, celebrado como gênio, dota-do de um talento sobre-humano. Mas ver nele um ser deexceção, a mil léguas das preocupações do comum dosmortais, significa também considerá-Io como um ser à parte.Exclusão benéfica para aqueles cuja obra é reconhecida ecelebrada, porém nefasta para os artistas que não acedem ànotoriedade. A imagem do artista fracassado é a outra facedo mito do artista genial, daquele que se pode ora incensar,ora vilipendiar ou então simplesmente ignorar, porque seustatus particular o separa da vida cotidiana.

Essa ambigüidade é idêntica àquela que afeta a esferaestética em seu conjunto. Reconhecer a estética como umadisciplina em si mesma atesta de fato a existência de umdomínio particular, ligado à sensibilidade, que obtém, en-fim um direito de cidadania oficial a mesmo título que as,diferentes ciências. Como estas últimas, ela participa do sa-ber e do aumento dos conhecimentos. Mas, ao mesmo tem-po, este novo status traduz uma vontade de "cientificarouniverso do sensível, em outras palavras, uma tentativa deracionalizar, de teorizar e de conceitualizar um mundo deafetos, de intuição, de imaginação, de paixão, rebelde aqualquer forma de controle ou de coerção. Como se impor-tasse canalizar na ordem da razão forças que, de outro modo,correriam o risco de prejudicar esta mesma ordem! É estauma ambigüidade que, desde então, sobrevive na consciên-

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Marc jimenez 87cia contemporânea, sobretudo quando se evoca a finalida-de da estética: para que serve ela?

A autonomia da arte e a autonomia da estética - evi-dentemente nunca realizadas e sempre em projeto - podemperfeitamente, mesmo em seu estado precário, voltar-se con-tra os interesses de ambas. A palavra esfera, que serve àsvezes para designá-Ias, é ela própria equívoca: a esfera édelimitação, território, mas também refúgio. Este refúgio asprotege da realidade exterior, preservando ao mesmo tem-po essa mesma realidade dos ataques que as obras poderi-am dirigir contra ela. Um artista pode fazer tudo, uma obrapode expressar tudo, mesmo coisas consideradas subversi-vas e perigosas para a sociedade, desde que seu status par-ticular Ihes garanta a impunidade. Isoladas da realidade,inofensivas, podem ser toleradas pela ordem social e políti-ca sem perigo para seu equilíbrio.

Nos decênios que precedem a instauração da estéticafilosófica, o problema da autonomia não se coloca de formatão explícita. Todavia, tais ambigüidades existem em estadolatente. São elas contemporâneas do nascimento da estéticae criam tensões que se prolongam ainda em nossos dias. Éimportante evocá-Ias desde já.

Se, no início do século XVIII, é um fato aceito que osentimento deve desempenhar um papel na reflexão sobreas artes, seu status teórico ainda não está definido com pre-cisão: deve-se conceder-lhe a primazia em relação ao julga-mento? Mais ainda: pode ele, sozinho, caracterizar de formaimediata o que sentimos diante de uma obra?

Um outro conceito adquire, nessa época, um lugarpreponderante: o de gênio. Noção chave da reflexão estéti-ca moderna, o gênio não é específico de uma arte particu-lar. Ele se aplica a todas as artes, tanto ao pintor, quanto aopoeta ou ao músico. Aparece ele então como uma noçãotransversal que correspnde à emergência de um conceito de

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88 o que é estética?

Arte - no singular e com maiúscula - que engloba doravantesob um mesmo nome todas as atividades que entram nacategoria belas-artes.

Estas diferentes noções.sentímento/julgamento, gênio,Arte, que entram na reflexão filosófica, não determinamsomente centros de interesses que se poderiam estudar demaneira neutra como outras tantas etapas que balizam ahistória da estética. Elas escondem, pelo contrário, interes-ses ideológicos, até mesmo políticos, essenciais.

A oposição sentimento/julgamento, tendo sido resolvi-da por Kant, marca a guinada "subjetiva" da estética. Sejaqual for nossa opinião sobre as teses expostas na Crítica dafaculdade de julgar - Hegel já recusa aderir a elas -, a im-portância do sujeito e da recepção na apreciação das obrasde arte nunca mais será reposta em causa. O indivíduo édotado de uma faculdade de distinguir, de julgar, em outraspalavras, de "criticar", e esta faculdade crítica é o sinal desua autonomia recém-adquirida.

Da mesma forma, a discussão sobre os diversos senti-dos da palavra gênio torna-se, para alguns pensadores, so-bretudo para Diderot, a ocasião para denunciar o ensinoacadêmico e o lugar que este último concede à formação dotalento em detrimento de um reconhecimento dos dons na-turais.

Quanto à singularização da Arte, ela permite pensarmelhor as relações com a natureza e argumentar sobre anta-gonismos específicos: belo natural/belo artístico, o sublimena arte/o sublime na natureza, gênio inato ou gênio inspirado.

A categoria do sublime, que Kant tenta definir depoisde Edmund Burke? cristaliza talvez, sozinha, as ambigüida-

'Edmund Burke (1729-1797). Sua obra Pesquisafilosofica sobre a origem de nossasidéias sobre o sublime e sobre o belo (757) terá profunda influência sobre a teoriado sublime de Kant. 1

Mare jimenez 89des da autonomia estética em seu esforço para racionalizare conceitualizar o domínio do sensível. Não está ela conde-nada a permanecer este "não sei quê", o qual, diferente-mente do belo, penetra para sempre entre as malhas dalinguagem racional?

Sentimento e gênio

A obra de jean-Baptiste Ou Bos (1670-1742) Réflexionscritiques sur Iapoésie et Iapeinture (1719) é freqüentementecolocada entre os textos fundadores da ref1exão estéticamoderna, pré-kantíana, O fato pode parecer paradoxal: OuBos é ainda um dos representantes da doutrina clássica,acadêmico e, além disso, secretário perpétuo da nobre ins-tituição. Mas se o abade Ou Bos é o herdeiro da tradiçãoclássica e um dos últimos teóricos a ainda interrogar-se so-bre as relações entre a pintura e a poesia, suas idéias são"modernas". Ou Bos é "geômetra"e, assim como a Acade-mia, tomou partido contra os antigos. Mantém relações comNicolas Boileau, mas também com Pierre Bayle; encontraMalebranche e inicia-se nas teses empiristas com John Locke.

É preciso insistir aqui na inf1uência de Malebranche.Perfeito conhecedor das obras de Descartes, Malebranchededicara-se a resolver a questão das relações entre a alma eo corpo que Descartes relegara ao plano moral. O problemanão fora eludido, mas, por razões já evocadas, não era pos-sível ao filósofo transportá-lo para o terreno da estética.Reduzida à sua mais simples expressão, a interrogação deMalebranche é formulada da seguinte maneira: pode e devea razão compreender tudo no terreno do sentimento? Essaquestão supõe uma distinção entre sentimento e sensibili-dade, entre o que é percebido pelos sentidos - matéria bas-tante bruta e imediata - e o que é sentido pela alma. É

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90 o que é estética?

possível perceber uma solução se admitirmos a existênciade um "sentimento natural". É esse sentimento que, atravésdas paixões e das emoções, nos permite perceber a belezaespiritual da Ordem na qual Deus dispôs os homens e anatureza. Reconhece-se o tema da "visão em Deus". Parausar um termo do vocabulário freudiano, perfeitamente ana-crônico aqui, este "sentimento natural" resulta numa espé-cie de "sublimação" dos afetos imediatos. Se os sentidosnos permitem perceber as relações, as proporções, a har-monia nas coisas, isso prova que elas não são contrárias àrazão. Elas obedecem a uma disposição, a uma ordem racio-nal, desejada por Deus. A razão e o sentimento não poderiam,portanto, ser incompatíveis.

Du Bos aplica esta teoria às artes: a pintura e a poesiaobedecem a regras, a cânones, a convenções. Isto é evidente,mas que acontece ao amador, ao contemplador, ao ouvintequando estão diante das obras? Para compreendê-Ias e justifi-car o que sentem, devem discutir a observância das regras?Serão obrigados a ler as críticas para "calcular (suas) percep-ções e (seus) defeitos"? Respota de Du Bos: o sentimentonos ensina com maior segurança sobre tudo isso do que arazão. A predileção que sentimos pelos quadros e os versosdepende unicamente de nosso gosto e não da razão: "Há emnós um sentido feito para saber se o cozinheiro operou se-gundo as regras de sua arte. Apreciamos o ragu e, mesmosem conhecer as regras, sabemos se ele é bom. De um certomodo, o mesmo acontece com as obras do espírito e com osquadros feitos para nos agradar, emocionando-nos".

E "emocionar-nos", para Du Bos, é tanto ocasionar pra-zer como afligir-nos: "Sentimos todos os dias que os versose os quadros causam um prazer sensível; mas não é menosdifícil explicar em que consiste este prazer que se asseme-lha, freqüentemente, à aflição e cujos sintomas são às vezesos mesmos do que aqueles de maior dor. A arte e a poesia

Marc [imenez 91nunca são mais aplaudidas do que quando conseguiramnos afligir". Observemos, incidentemente, o uso da palavraarte como sinônimo de pintura.

Na origem da reflexão de Kant sobre o julgamento dogosto, há também esta interrogação sobre o "sentimento deprazer e de dor". A razão, todavia, não perde todos os seusdireitos, mas intervém aposteriori. O raciocínio participa dojulgamento, mas unicamente para explicar a decisão do sen-timento. Em otras palavras, ulteriormente.

É curioso constatar a semelhança entre as posições deDu Bos e certas teorias estéticas contemporâneas que dão aprimazia ao prazer sensível em detrimento da "discussão". Éum fato singular que os partidários atuais do prazer ou dodesprazer imediatos, dois sentimentos erigídos ambos emjulgamentos sobre a obra de arte, julgam voltar ao conceitoKantiano de julgamento do gosto. De fato, afirmar a prima-zia do prazer sobre o raciocínio e sobre o estudo das moti-vações racionais que ligam a obra ao espectador, significanegar a existência, de uma razão estética específica, acessí-vel à análise.

A comparação audaciosa, arriscada por Du Bos entre aatitude do gastrônomo (ou do gulosol) diante do ragu docozinheiro e a do leitor ou do espectador diante das "obrasdo espírito" ou diante dos quadros é mais um elogio dirigi-do ao talento do auxiliar de cozinha do que uma homena-gem ao pintor e ao poeta. Quanto à hipótese de Du Bossobre a um "sexto sentido" que julgaria em nós, de formapretensamente infalível, ela reforça o mistério em lugar deesclarecê-Io.

Isso não impede que o que é compreensível para umautor pré-kantiano, leitor de Locke e de Malebranche, o sejamuito menos dois séculos após a publicação da Crítica dafaculdade de julgar. A não ser que se reconheça que a refe-rência concerne ao período pré-estético e não a Kant.

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92o que é estética?

Ainda voltaremos a este ponto.Esteta do sentimento, Du Bos, em suas Réjlexions

crítiques sur Ia poésie et Ia peinture, confere um lugar im-portante à noção de gênio. Suas considerações revelam, deforma particularmente convincente, a guinada que se reali-za nessa época em relação ao racionalismo. Como bom her-deiro de Descartes, Du Bos tenta uma explicação fisiológicado gênio, "disposicão feliz dos órgãos do cérebro, na boaconformação de cada um dos órgãos como na qualidade dosangue Pensamos, evidentemente, no seguinte trecho doDiscours de Ia méthode: "O espírito depende tanto do tem-peramento e da disposição dos órgãos do corpo que, se épossível encontrar algum meio de tornar os homens geral-mente mais sensatos e mais hábeis do que foram até agora,penso que é na medicina que devemos procurá-lo",

Porém, para Du Bos é evidente que o gênio não é daalçada da medicina, tanto mais que ele "não tem confiançanas explicações físicas, dada a imperfeição dessa ciência naqual é preciso quase sempre adivinhar". A qualidade dosangue e a feliz disposição dos órgãos, portanto, apenasdesempenhariam um papel secundário se não houvesse ofuror que anima aquele que "nasceu com o gênio". "O gê-nio é este fogo que eleva os pintores acima deles mesmos,que Ihes faz pôr alma em suas figuras e movimento em suascomposições. É o entusiasmo que domina os poetas, quan-do vêem as Graças dançarem num prado, onde os homenscomuns percebem apenas rebanhos".

Se Du Bos não repõe em causa os benefícios da educa-ção artística nem o valor dos preceitos acadêmicos, insiste,todavia, na vaidade de todo ensino dispensado na ausênciade um "solo propício": o do dom natural, de resto,inexplicável. Somente o gênio assim entendido permitiu aRafaele, "instruído por um pintor medíocre", elevar-se "mui-to acima de seu mestre após alguns anos de trabalho".

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Marc jimenez 93Porém, a definição do gênio como poder criador, ca-

paz a qualquer momento e em qualquer circunstância depromover a novidade, é dada por Charles Batteux 0713-1780), em sua obra Les beaux-arts réduits à un même principe(1746). O gênio é aquele que sabe perceber a natureza atra-vés de novas relações. Se ele se refere à natureza e a imita,tal imitação não é uma cópia servil, mas sim uma ocasiãopara criar, com essa natureza, uma relação inédita, fonte deprazeres novos. À força de imitar a natureza em sua simpli-cidade, o artista genial corre o risco do tédio. Para evitar auniformidade, recorreu ele a uma forma de razão que, asso-ciada ao entusiasmo, ao sentimento e à imaginação, explorao objeto ou a natureza a fim de engendrar emoções desco-nhecidas. Este conceito de gênio fora do comum e do artistagenial como sendo o único capaz de sair dos caminhos ba-tidos seduziu Diderot e os pré-românticos alemães, sobretu-do Goethe, Schiller, Novalis e os irmãos Schlegel.

O conceito de gênio que Diderot 0713-1784) expõena Encyclopédie marca mais um passo na ruptura com oracionalismo clássico ainda presente em Du Bos e Batteux.O gênio, "puro dom da natureza" é definido em relação aogosto e ao belo. O gosto engendra apenas belezas de con-venção. O gênio cria o sublime. Em outras palavras, as re-gras e os preceitos acadêmicos são incompatíveis com aemergência do gênio e, portanto, do sublime: "As regras eas leis do gosto trariam entraves ao gênio; ele os quebrapara voar ao sublime, ao patético, ao grande."

O gênio, para Diderot, não visa à perfeição, aquela queprocuram tão inutilmente os artistas que respeitam regrasde escola. Nas artes, o caráter do gênio reside na força, naabundância, na rudeza, na irregularidade, no sublime, nopatético, e é assim que "ele surpreende ainda por seus er-ros".

Podemos medir sem dificuldade a importância das crí-

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94o que é estética?

ticas de Diderot. A definição da palavra gênio aparece comopretexto para uma denúncia bastante direta da instituiçãooficial, a Academia e os Salões, colocados sob sua égide,aqueles mesmos que Diderot freqüentará assiduamente paraexercer suas funções de crítico de arte. Através dessa crítica"artística" é o próprio poder que é visado, não somente o daAcademia real de pintura e de escultura ou então o da Aca-demia de Roma, mas o poder institucional e político queperpetua o ensino tradicional. Tomar partido pelo gênio,por esse dom natural inexplicável, mas atestado pelas obras,que impele os homens para o grande e para o sublime signi-fica pronunciar-se em favor do indivíduo, criador de suaspróprias leis e cuja liberdade recém-adquirida encontra seulugar na autonomia estética nascente.

Das belas-artes à arte

A constituição da estética como disciplina autônomasupõe que um conjunto de teorias e de conceitos possamaplicar-se igualmente a todas as artes, quer se trate de pintu-ra, de escultura, de música ou de poesia. Evidentemente,isto não significa que tais artes devam ser assimiladas umasàs outras; isto seria um contra-senso, visto que sabemosperfeitamente que cada uma delas solicita os sentidos deuma forma particular. Em compensação, convém que a umateoria coerente corresponda um objeto coerente, designadopor um conceito ao mesmto tempo unitário e que respeiteas diferenças. Ora, há pelo menos duas maneiras de conce-ber esta coerência e esta unidade das artes: ou as compara-mos entre si, por exemplo, pintura e música, pintura e es-cultura, escultura e arquitetura, etc. Podemos então falar de"belas-artes", excluindo as artes mecânicas. Ou então consi-deramos que tais comparações não têm nenhum sentido e I

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Marc [imenez 95insistimos em sua especificidade irredutível. Mas, se as artesforem separadas, é preciso poder ligar sua diversidade auma noção mais geral, isto é, subsumi-las sob um conceitouniversal. O que chamamos a singularização da artecorresponde à idéia de que a atividade artística, desde ofinal do século XVIII, engloba as diferentes práticas artísti-cas - a multiplicidade das belas-artes, - sob um mesmo subs-tantivo singular, "arte".

Não se trata simplesmente de uma questão de vocabu-lário. Esta nova terminologia, que se impõe a partir do pré-romantismo e em Hegel, traduz uma profunda transforma-ção das orientações filosóficas que tenham como objeto obelo, seja natural, seja artístico. O caminho aberto por CharlesBatteux, reduzir todas as belas-artes ao princípio de imita-ção, e por Lessing, pregar a separação radical das artes, nãoleva diretamente à ciência da sensibilidade de Baumgarten,nem à estética do gosto de Kant, mas à filosofia da arte deHegel. É importante ter, desde já, presente no espírito estasdiferenças se quisermos compreender o interesse subjacentedos debates que, da Renascença aos nossos dias, preocu-pam os teóricos da arte.

Já na introdução de sua Estética, Hegel exprimiu-se cla-ramente sobre o problema colocado pela elaboração doconceito de arte. Num capítulo, intitulado criteriosamente."O ponto de partida da estética", escreve: "Houve um tem-po em que somente se falava destas sensações agradáveis ede seus nascimentos e desenvolvimentos, tempo em quesurgiram muitas teorias da arte L ..l. Foi Baumgarten que deuo nome de estética à ciência dessas sensações, a esta teoriado belo. Este termo nos é familiar a nós, alemães; os outrospovos o ignoram. Os franceses dizem teoria das artes oudas belas-letras; os ingleses a colocam na crítica (critic) L ..l.Na verdade, o termo estética não é absolutamente o maisconveniente. Foram ainda propostas outras denominações:

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96o que é estética?

"teoria das belas ciências", "das belas-artes", mas elas não semantiveram, e com justa razão. Foi igualmente usado o ter-mo "calística", mas trata-se aqui, não do belo em geral, efim do belo enquanto criação da arte. Vamos, portanto, nosate r ao termo estética, não porque o nome nos importe pou-co, mas porque este termo recebeu direito de cidadania nalinguagem corrente, o que já é um argumento sério em fa-vor de sua manutenção"."

Tais reservas a respeito do uso do termo estética po-dem parecer paradoxais em um dos fundadores da discipli-na que traz seu nome. Mas elas mostram perfeitamente queo problema essencial não concerne à palavra, e sim ao queela designa, ao seu conteúdo. É, "no ponto de partida" emque Hegel se situa, o importante é o próprio conceito dearte. Continua ele: "Esta forma de raciocínio não vai alémdestes resultados totalmente superficiais na questão que nosinteressa: a do conceito de arte"."

Como se chegou a esta noção unitária, a esta palavraarte, tão evidente em sua acepção corrente que nos faz es-quecer suas origens?

Temos de partir novamente da Renascença.

Do ut pictura poesis ao Laocoon de Lessing

Deverá a pintura ser como uma poesia muda e umpoema como um quadro falante?

Estas duas questões, unidas, resumem a longa contro-vérsia do ut pictura poesis, verdadeira doutrina em vigor

'G.W.F. Hegel, Estbétique, Paris, Aubier, éditions Montaigne, 1944, trad. S.jankélévitch, p. 17-18.

'Ibid.

Marc jimenez 97desde a Renascença até Lessing, pelo menos sob esta forma.Em suá origem há uma frase do poeta latino do século Ia.c., Horácio, amigo de Virgílio e protegido de Mecenas:"Utpictura poesis erü", a poesia é como a pintura. Ou seja,a criação poética possui um poder de descrição, de suges-tão, de representação imagética tão poderosa quanto o dapintura. E compreendemos que Horácio, autor das Epístolase das Sátiras podia legitimamente desejar, assim como seuamigo Virgilio, o autor do grande poema épico A Eneida,tornar-se igual aos pintores de seu tempo.

A homologia poesia/pintura, pintura/poesia, portanto,não é perfeita visto que cabe à poesia imitar a pintura e nãoo inverso. Todavia, os pintores da Renascença invertem osentido da comparação: a pintura é como a poesia. Vejamosnovamente o que está em jogo: numa época em que osartistas pintores abandonam o status de artesãos e em quea pintura acede à categoria de atividade liberal, intelectual,até mesmo científica, é essencial conferir-lhe títulos de no-breza. Não esqueçamos que, na época, a eloqüência e apoesia estão à frente das artes liberais, assim como, na Ida-de Média, o estavam a gramática, a retórica, a dialética, artesda linguagem. Falseando a comparação, Leonardo da Vinci,em seu Tratado da pinturas chega ao ponto de estabeleceruma hierarquia em favor da representação pictorica, insis-tindo na superioridade absoluta da pintura sobre a música ea escultura: "Como concluímos que a poesia se dirige, emprincípio, à inteligência dos cegos e a pintura à dos surdos,daremos tanto maior valor à pintura em relação à poesia porestar esta última a serviço de um sentido melhor e maisnobre do que ela. Esta nobreza é também três vezes maior

'Leonardo da Vinci, Traité de Ia peinture, Paris, Berger-Levrault, 1987, tradução eapresentação de A. Chastel,

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98o que é estética?

do que a dos outros sentidos, visto que a perda do sentidoda audição, do olfato ou do tato foi escolhida de preferên-cia à da vista. L ..], A música pode apenas ser chamada irmãda pintura por estar submetida à audição, sentido inferior àvista L..l. Não encontro entre pintura e escultura outra dife-rença além desta: O escultor faz suas obras com maior es-forço físico do que o pintor; e o pintor faz as suas commaior esforço intelectual." E Leonardo da Vinci está em con-dições de valorizar suas múltiplas competências em todas asartes como penhor de sua imparcialidade!

A época clássica não conserva a idéia de uma hierar-quia das artes, embora seja verdade que Colbert mostra, emqualquer ocasião, sua predileção pela pintura de história, a"mais nobre das Artes". Evidentemente, parece natural, porexemplo, que na expressão "a arte e a poesia" na pena deDu Bos arte designe, é claro, unicamente a pintura e nadamais. Em compensação, no célebre verso de Boileau, a artecapaz de imitar as serpentes e os monstros odiosos designacom toda a evidência a poesia. Este uso da palavra arte émuito específico na época. Na verdade, a pintura é ligeira-mente privilegiada. Por ser hegemônica, dado seu statuspolítico e institucional, ela não precisa temer o que querque seja ou quem quer que seja. É por esta razão que oséculo XVII prefere ater-se ao prudente paralelo entre asartes da linguagem. Afinal de contas, cantar os louvores dogrande monarca ou pintar suas virtudes pode ser feito comigual felicidade, sobretudo quando o poeta se chama Boileau,o pintor, Le Brun, o escultor Coysevox e o músico Lully.Submetidas de forma explícita ao mesmo princípio de imitara natureza, as artes souberam encontrar um sinônimo: "be-Ias-artes", e uma instituição para acolhê-Ias, a Academia deBelas-Artes, ainda que esta última ainda não tenha este nome.

A obra de Charles Batteux, Les beaux-arts réduits à unmême principe, não trata diretamente do ut pictura poesis.

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I.!

Marc [imenez 99O mais das vezes, Batteux usa indiferentemente a expressãoas "artes"ou as "belas-artes", isto é, a música, a poesia, apintura, a escultura e a dança. O mais importante é que eleconfere a todas uma mesma finalidade: imitar a natureza, oumais precisamente, a "bela natureza". Esta evocação das re-gras clássicas nada traz de novo. Na aparência pelo menos,pois esta imitação é ela mesma submetida a um imperativo:agradar, comover, tocar. E o meio deste prazer é o gosto:amor de si mesmo, o gosto, para Batteux, é "feito unica-mente para gozar" e é "ávido de tudo o que pode trazer-lhealgum sentimento agradável". É preciso lembrar que, paraBatteux, o gênio é aquele que sabe criar e representar rela-ções novas com a natureza. A "bela natureza" é, portanto, anatureza transfigurada pelo gênio e a que satisfaz nossogosto. Ela deve estar presente em todas as artes, precisaBatteux, sem que seja necessário comparar ou hierarquizaros méritos de cada uma. Não há, de um lado, o corpo, ossentimentos, a imagem e do outro, o espírito, as idéias, alinguagem. A cada uma destas partes, a "arte é obrigada adar um nível requintado de força e de elegância que astorne singular e as faça parecer novas". "Arte" escreve-se nosingular. A palavra volta várias vezes em Batteux, sem dúvi-da para mostrar que a arte pertence a todos os tempos e atodos os lugares, mas que somente existe pelo que a dife-rencia da natureza.

A obra de Batteux teve um sucesso imediato e durável,sobretudo junto a Diderot, aos irmãos Schlegel, a Kant e aHegel. O que os interessou foi essencialmente seu conceitode gênio e a crítica indireta do racionalismo clássico. Po-rém, todos esses comentadores, contemporâneos deBaumgarten, foram sem dúvida sensíveis igualmente a essamaneira de encerrar - pelo menos provisoriamente - as dis-putas sobre o ut pictura poesis.

Todavia, é à obra de G. E. Lessing 0729-1781) Laocoonte,

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100 o que é estética"

nas fronteiras da pintura e da poesia (1766),6 que a posteri-dade atribui o mérito de ter posto termo ao debate sobre oparalelo entre as artes. O grupo de escultura antiga Laocoonte,obra-prima da arte antiga (século I a.c.) exposto no Vaticano,"conta" um episódio da história de Laocoonte, filho de Príamoe Hécuba, sufocado com seus filhos por duas serpentesmonstruosas. Obra, segundo Plínio, de Agessandro,Atenodoro e Polidoro, foi ela descoberta em 1506 e ofereci-da ao papa Júlio lI. O termo "conta" não é tomado ao acaso.O que conta esta escultura? Um homem gritando de dor,vítima de animais selvagens? Ora, Laocoonte tem a bocaapenas entreaberta. Lessing não se surpreende: "ImaginaiLaocoonte de boca aberta e julgai. Fazei-o gritar e vereis."Sua interpretação é a seguinte: uma boca aberta, numaescultura,é uma cavidade e produz um efeito chocante, re-pulsivo. Numa pintura, esta cavidade torna-se uma mancharepugnante. "A pintura, como meio de imitação, pode ex-primir a feiúra: a pintura como arte não a expressará". OLaocoonte exprime portanto a dor, não à maneira de umpoeta ao narrar o episódio de monstros hediondos, mas simao dobrar-se às leis específicas de sua arte, sendo a primeiradelas a da beleza.

Lessing insiste assim no cara ter específico de cada for-ma de expressão. É claro que concede à pintura o privilégioexorbitante de ser a única a chegar à beleza absoluta, contraseu contemporâneo Winckelmann, persuadido, pelo con-trário, de que só a escultura e sobretudo a estatuária grega,atinge a beleza universal. Mas o essencial não reside nessahierarquia. A separação radical das artes, na época do nas-cimento da estética, abre um campo de investigações fecha-do até então: a ruptura com a ut pictura poesis, a fronteira

"Gotthold Ephrairn Lessing, Laocoon, Herrnan, trad. J.-F.Groulier, 1990.

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Marc fimenez 101traçada de forma estrita entre as artes plásticas e a literaturasignificam a autonomia de cada arte, livre de prestar-se ainovações formais, de criar suas próprias regras, de trans-gredir a imitação, sem que uma arte vizinha venha chamá-Iaà ordem. A pintura é mais do que imitação, ela é "arte", dizLessing, e o que vale para ela aplica-se igualmente às outrasartes. Se a pintura se liberta da obrigação de descrever e denarrar, isto significa também que a linguagem não está maisdominada pelos modelos pictóricos.

Aqui também há desligamento! O mais decisivo, semdúvida, em que a arte vê a possibilidade de distender, atémesmo de romper, o elo que a escraviza a seu modelo, ànatureza.

No século XlX e no século XX, a idéia de uma relaçãoentre as artes aparecerá outra vez. Evidentemente não se tra-tará de repor em vigor o ut pictura poesis. Em compensação,chegar-se-à, por exemplo, a descobrir correspondências en-tre os sons e as cores, isto é, semelhanças estruturais entre asobras de diferentes artes. Pensamos, é claro, no poema deRimbaud e nos fenômenos de audição colorida, mas tambémnas analogias entre as artes que Bandelaire julga compatíveiscom a especificidade de cada uma. O sonho de uma obra dearte total (Gesamtkunstwerk), caro a Wagner, solicitará, noinício do século XX, a atenção cio compositor AlexandreScriabine. Étienne Souriau esforçar-se-a para pôr em evidên-cia "elementos de estética comparada"; tal é o subtítulo daobra publicada em 1947, La correspondance des arts em quea comparação não recai sobre as próprias obras, mas sobre assemelhanças entre os procedimentos criativos ou "instau-rativos", segundo o termo de Souriau.

Quanto ao debate suscitado pelas teses de Lessing,

'Étienne Souriau, La correspondance des arts, Paris: Flammarion 1947.

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encontrou ele recentemente um prolongamento na idéia decertos partidários do modernismo artístico. Afirmar que to-das as artes, sobretudo a pintura, a escultura e a arquitetura,somente podem evoluir permanecendo circunscritas no in-terior de seu meio específico é para Clement Greenberg 0909-1994) a condição sine qua non de sua autonomia.

O filósofo e esteta alemão T. W. Adorno pensa que aconvergência das artes - por exemplo, entre a música e apintura - constitui a característica fundamental da arte "mo-derna", do início do século XX aos anos 50. Ela permitedefinir o sentido da modernidade artística. Todavia, estaunidade somente é possível se cada uma evolui de acordocom seu material e sua lógica próprios. Falar de uma "músi-ca pictórica" ou de uma "pintura musical", portanto, nãotem nenhum sentido: "A partir do momento em que umaarte imita outra, ela dela se afasta,na medida em que nega acoerção de seu material específico. Não há nisso nenhumacontradição. A unidade da arte moderna repousa num de-nominador comum a todas as artes: uma linguagem particu-lar que associa a expressão e a construção, mas que nadatem a ver com a linguagem corrente. Esta linguagem retiraelementos da realidade e os recompõe para melhor mostrarem que grau a arte moderna adota uma distância crítica emrelação a essa realidade. Adorno cita o exemplo do quadroGuernica de Picasso, que reconstrói, para melhor denunciá-Ia, a realidade de um fato histórico justapondo os "fragmen-tos-choques" de rostos humanos ou de animais. É o caso,igualmente, do compositor Arnold Schonberg que descontróia harmonia tradicional dos sons para aumentar-Ihes aexpressividade graças a uma disposição não habitual de umaescala de doze tons. Ao escutar sua obra, Um sobreviventede Varsóvia (947), o público ouve perfeitamente asdissonâncias: elas exprimem de fato as discordâncias de ummundo mutilado pela barbárie nazista.

~

IIII

Marc [imenez 103Este princípio de montagem-desmontagem, construção-

desconstrução da forma artística tradicional para aumentarsua expressividade pode ser encontrado nas outras artes,quer se trate de escultura, de literatura, de cinema ou defotografia. Ele se encontra na base de uma nova estéticaque afirma a autonomia radical de uma arte moderna reso-lutamente oposta à realidade.

Hoje, duas tendências se enfrentam: as artes especia-lizaram-se a um ponto extremo. Sua prática usa técnicas eprocedimentos extremamente especializados, e constatamosque os artistas das diversas disciplinas não se correpondementre si. Porém, paradoxalmente, assistimos a aproximações,a conjunções, a intercâmbios que tendem a abolir divisórias.Tudo acontece como se a vontade de criar elos entre asdiferentes práticas artísticas, de associar materiais heterogê-neos, de conjugar as práticas artísticas, fosse mais forte doque a preocupação de classificar, de ordenar, de "adminis-trar" o domínio do imaginário e do sensível. Não se estariasonhando com uma "polissensorialidade" que reatasse, deforma nostálgica, com a "obra de arte total" e se esforçassepor unificar a esfera estética?

Todavia, o aparecimento da multimídia, as simbiosesinéditas entre o som, a imagem e o texto num universovirtual de três dimensões deslocam o problema clássico dacorrespondência das artes bem além da controvérsia sobreo paralelo ou sobre a especificidade das artes. Mas não semriscos. De fato, a doutrina do ut pictura poesis como asteses do Laocoonte de Lessing aparecem, com o recuo, comomomentos que, de forma contraditória, contribuíram, con-tudo, para a autonomia da estética, seja favorecendo o reco-nhecimento das belas-artes, seja ajudando a emergência deum conceito moderno de arte. Poderia a mesma coisa serdita da multimídia que, como seu nome indica, inclui a artee a estética no mundo da comunicação e do sistema cultu-

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ral, dois domínios estreitamente submetidos aos imperati-vos da economia e da política?

No final do século XVIII, tais preocupações ainda nãoestão na ordem do dia. Era, contudo, necessário evocá-Iaspara esboçar o interesse que acompanha o nascimento daestética e a determinação de seu objeto, isto é, a arte em suarelação conflituosa com a natureza.

Exatamente no momento em que se afirma a subjetivi-dade da experiência estética, o reconhecimento de artes es-pecíficas e autônomas mostra com clareza que o importan-te, doravante, é a arte e não os princípios, as regras dog-máticas, nem as convenções de origem metafísica, religiosaou moral. Em compensação, a estética permanece ligada àfilosofia. Ela se torna mesmo um dos domínios privilegiadosdo conhecimento filosófico, até mesmo uma parte integran-te, como em Kant et Hegel, de um sistema especulativo.

Diderot e a crítica de arte

Os desligamentos em relação às tutelas antigas e àsdoutrinas tradicionais fazem parte de um vasto empreendi-mento de emancipação em relação ao princípio de autori-dade que reinava em todos os domínios. Esta libertaçãoparticipa da instauração da autonomia estética e da autono-mia da arte. É possível também inverter esta proposição edizer que a estética e a arte tornam-se, no final do séculoXVII, vastos campos de investigação abertos ao exercício dacrítica.

É preciso lembrar: segundo Hegel, os ingleses coloca-vam a estética e a teoria das artes na crítica (critic). Poderiaele ter lembrado o sucesso da palavra crítica na França, naobra de Boileau, Réjlexions critiques sur quelques passagesdu rhéteur Longin, na de Du Bos, Réjlexions critiques sur Ia

Marc jimenez 105poésie et Ia peinture e em muitas outras que ja evocamosprecedentemente. Mas como definir a crítica, esta grandepalavra da atividade intelectual cujo sucesso é tão claro nes-sa época?

O fato de a teoria das artes e a estética - já filosófica -poderem ser sinônimos de crítica já é uma indicação inte-ressante. Mas a crítica é também um gênero literário cujasregras não vão tardar a se precisarem. É também um estadode espírito ou, se preferirmos, uma "postura" que irá se ge-neralizar e ultrapassar largamente o domínio das artes. En-fim, mais do que uma atitude, é um método de reflexãofilosófica que submete ao exame da razão as condições deelaboração do conhecimento. Este último sentido é encon-trado sobretudo em Kant. Haverá um elo entre estas diver-sas acepções, além da simples identidade da palavra crítica?Certamente. Mas é preciso pó-lo em evidência.

"Um quadro exposto é um livro no dia de sua impres-são. É uma peça representada no teatro: todos têm o direitode julgá-Io". Esta observação de La Font de Saint Yenne"revela o novo estado de espírito que domina a vida artísticana segunda metade do século XVIII. À comercialização daarte e à expansão do mercado, acrescenta-se o aparecimen-to de um público que ultrapassa o quadro dos amadoresesclarecidos. Os museus, os concertos e os teatros abremsuas portas, enquanto os salões atraem, além de um públicomaior, críticos de arte profissionais que desempenham opapel de mediadores indispensáveis entre os amadoresocasionais e os entendidos. Edmund Burke em 1757 obser-

"Ignora-se quase tudo sobre a vida de La Font de Saint Yenne, exceto sua obrapublicada em 1746 em Haia: Réflexions sur que/quer causes de l'etat présent de tapeinture en France, avee un examen des principaux ourages exposés au Louvre temóis d'aoút 1746. Exceto,igualmente a hostilidade que lhe dedicon a Academiaapós a publicação de seu livro.

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va: "A arte nunca pode dar as regras que constituem umaarte". Em outras palavras, as regras devem ser procuradasfora da esfera artística, junto a profanos anônimos que evi-denciam seu gosto pela coisa artística e não hesitam maisem julgar em seu nome pessoal. La Font de Saint Yenne éum desses "profanos" esclarecidos cujo gosto se exprime nodesdém pelos cânones acadêmicos. Doravante, o debate nãoopõe mais os defensores da razão e os partidários do senti-mento. Essa querela está ultrapassada. O verdadeiro interes-se opõe os artistas àqueles que os julgam, isto é, de um ladoos críticos profissionais e, de outro lado, esse público queevidencia seu gosto; um gosto que os críticos justamentequerem educar. Está longe o tempo em que Colbert abria oprimeiro Salão da Academia para a exclusiva celebração doRei Sol!

Reconhecer a todos a aptidão para julgar e o direito deexpressar o próprio julgamento não é apenas uma reaçãoanti-acadêmica. Numerosos são os pensadores que, comoDiderot, após La Font de Saint Yenne, entendem a palavracrítica com o sentido que o termo possuía na Grécia antiga:o exercício da crítica como direito do povo, direito que ti-nha a "democracia" de se expressar livremente. Na época dePlatão e de Aristóteles, todo homem possuidor de um míni-mo de saber - nós diríamos hoje de uma cultura geral - éreconhecido como apto a formar um julgamento crítico so-bre todas as coisas, a distinguir entre o bom e o ruim, o beme o mal, o belo e o feio. Sabemos o lugar que dá Platão àeducação: o indivíduo educado está em condições de julgarde maneira legítima. Em suma, tal conhecimento serve-lhede critério. Em grego, uma mesma raiz dá origem à palavrajulgar, distinguir, e à palavra critério (krinein). A crítica,portanto, não é o apanágio dos peritos e dos eruditos, mastarefa de todos aqueles que aspiram à verdade e à sabedo-ria. Ora, este poder de julgar aplica-se a todos os domínios:

Marc [imenez 107ao bem, ao justo, ao verdadeiro, ao amor, à arte, mas tam-bém aos assuntos da cidade. Sócrates, encarregado por Platãode conduzir o diálogo com seus interlocutores, trata de tudoo que deve saber um "homem de bem"* na Grécia do séculoV a.c. No início, esses interlocutores - Platão pinta-osfreqüentemente sob os traços de sofistas obtusos - tomamconsciência de sua ignorância e a partir de então começama aprender, tanto em arte, como em moral, em política e emfilosofia. Somente se torna filósofo, amigo da sabedoria,aquele que usa um processo de julgamento crítico, seja qualfor a disciplina. A crítica é, portanto, unitária e sinônimo defilosofia. La Font de Saint Yenne tem, portanto, razão quan-do faz referência ao papel desempenhado pela crítica naAntiguidade. O público esclarecido do século XVIII é o queassimila de forma crítica o que lhe ensinam os filósofos, osartistas e os escritores.

Quarenta anos após as Réflexions critiques SUl' Ia poésieet Ia peinture do abade Du Bos, doze anos após as Réflexionsda La Font de Saint Yenne, Diderot redige seu primeiro Salon(1759). Será ele seguido de outros oito, até 1781, quecorrespondem às exposições bianuais que a Academia dedi-ca aos pintores e escultores contemporâneos. Com justa ra-zão, a posteridade vê em Diderot o fundador de um gêneroliterário novo, a crítica de arte em sua forma moderna. Narealidade, é fácil mostrar que a ação de Diderot vai muitoalém do exercício literário. Dissemos que o árbitro das artes,o amador esclarecido que se permite julgar as obras alheiasse institucionaliza e tem seu status aumentado: o crítico dearte é um profissional. Mas se julga seus contemporâneos,

'N. de T. Em francês, bonnête bomme, que no século XVII será definido como"homem da sociedade, agradável e distinto, por suas maneiras e seu espírito" (cf,Dicionário Robert).

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este crítico não é um juiz. Sua função é pedagógica. Consisteela em instruir o profano, a dar a cada um uma parte doprivilégio reservado anteriormente aos letrados, aos aristocra-tas, aos ricos burgueses e aos próprios artistas. O que é cria-do é mais do que um gênero literário, é um espaço públicocorrespondente a uma ampliação da audiência. A crítica dearte ultrapassa o quadro estritamente artístico; ela não oscilamais entre a expressão do gosto subjetivo e a procura decritérios que exigem fidelidade à natureza. Os critérios deDiderot são suficientemente pessoais e firmes para não selimitarem à descrição. O julgamento e a avaliação definem ascondições da experiência estética: devem eles provocar, sus-citar reações no leitor, assim como a pintura deve tocar, sur-preender, indignar, fazer estremecer, chorar, fremir, precisaDiderot. Além disso, essa crítica não é mais escrita em verso,mas em prosa, numa linguagem acessível a todos. É evidente,contudo, que esta crítica deve ser levada a sério e apresentar-se ao público como obra literária. Só é criticado o que mere-ce sê-lo, é claro, mas se certas obras são julgadas medíocres,a crítica que lhe é feita deve ser de qualidade.

O que é importante neste papel do crítico de arte enesta função da crítica é finalmente o espaço de liberdadeque ela cria ao instaurar um ponto de discussão. Estamosaqui muito perto do sentido corrente de crítica, até mesmocom o aspecto pejorativo que ela reveste às vezes. Quandome arrogo o direito de criticar, posso fazê-Io negativamente,para denunciar ou condenar e pode acontecer que eu estejaerrado. Mas o essencial é que eu reconheça implicitamentea outrem o direito de fazer a mesma coisa, não importa seele estiver ou não de acordo comigo. Diderot, segundo seuspróprios termos, diz o que sente, porém, ao mesmo tempo,deixa a cada um o cuidado de formular um julgamento dife-rente do seu e eventualmente de criticá-Io enquanto crítico.

Além disso, Diderot, enquanto filósofo "esclarecido",

Marc jimenez 109sabe que o interesse da crítica de arte ultrapassa a esferaartística. Este interesse diz respeito à "educação estética dohomem" - é o título que Friedrich von Schiller, amigo deGoethe, dará mais tarde a uma de suas obras - e à maneirapela qual o indivíduo se insere intelectual e culturalmentena sociedade. Os Salons de Diderot não são, portanto, umjogo literário nem um simples capricho de filósofo, nem umsucedâneo de um artista fracassado. Constituem eles umespaço em que, através da arte, é experimentada a autono-mia de uma reflexão crítica, seja qual for seu objeto: arte,sociedade, política.

Recentemente, o alcance dos Salons de Diderot foi per-feitamente definido pelo escritor e filósofo Jean Starobinski:"Se fosse verdade que a crítica de arte se afirmou pela pri-meira vez nos Salons de Diderot, seria preciso admitir queela deve seu advento, mais do que à sua submissão às obrasexaminadas e julgadas, à sua aptidão a desfraldar um mun-do de palavras e de pensamentos para além das coleções deobjetos pintados e esculpidos que devia apreciar."

Diderot foi criticado por ter-se contentado com um con-ceito ainda por demais acadêmico da pintura e por manifes-tar demasiada importância à beleza ideal ou por comportar-se como moralista. Isto significaria censurá-Io erradamentepor ser o modelo das contradições de sua época. Ora, asmesmas contradições são encontradas igualmente em seuscontemporâneos, tanto em Winckelmann como em Lessing.Winckelmann, fundador da história da arte, em sua formamoderna, não legitimou no plano teórico a volta ao antigo?Lessing não estava impregnado de classicismo pictórico?

Nada permite descobrir em Diderot os traços de qual-

"Jean Starobinski, Didcrot dans l'cspace des peintres, suivi ele Le sacrifice en rêue,Paris, Réunion eles musées nationaux, 1991, p. 62.

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110 o que é estética?

quer platonismo. Quando a beleza ideal é apreendida pelogênio, ela se torna algo de "enorme, de bárbaro e de selva-gem", diz ele a respeito da poesia; observemos que ele em-prega adjetivos utilizados mais para caracterizar o sublime àmaneira de Burke ou de Kant, do que para definir o ideal dobelo. Teria pressentido a existência, para além do reinodoravante ameaçado, de uma beleza ideal e "objetiva",conferida a um objeto determinado, de regiões infinitas dosublime que transgridem toda vontade de representação?

Quanto ao modelo ideal, longe de remeter a um abso-luto, ele é sobretudo relativo: "Modelo ideal, linha verda-deira não tradicional que se desvanece quase com o ho-mem de gênio, que forma, durante um certo tempo, o espí-rito, o caráter, o gosto das obras de um povo, de um século,de uma escola; linha verdadeira da qual o homem de gênioterá a noção mais correta segundo o clima, o governo, asleis, as circunstâncias que o tiverem visto nascer", precisaDiderot no Salon de 1767.

Diderot dá um conteúdo concreto ao julgamento degosto, preferindo, às definições abstratas, privilegiar a ima-ginação, o entusiasmo, a paixão. Às vezes se engana. Quan-do da querela dos bouffons, depois da guerra entregluckianos e piccinianos, ele toma o partido dos italianos,prefere a virtuosidade frivola do bel canto à música de Gluck(1714-1787). Essa predileção pode surpreender: Diderot es-colhe de fato Niccolo Piccinni 0728-1800) e as convençõesda ópera buffa, contra as invenções e as inovações do com-positor de Orfeu. Pensa reagir ao rigor de Rameau esco-lhendo o natural, enquanto a simplicidade, a emoção e apaixão se encontram no lado alemão.'? Opção discutível.

IOÉ preciso algo mais de que uma querela para emocionar Voltaire que, no ll1eiodas hostilidades, conserva uma serenidade totalmente de acordo com a esteticasubjetivista em germe: "ouço gritar: Lulli, Campra, Rameau, Bouffons/Preferis aFrança ou a Itália?/ - Prefiro meu próprio prazer".

Marc jimenez 111Em compensação, sua homenagem a]. Vernet, a La Tour, aChardin, a Fragonard não é contestável. Às vezes, ao preçode alguma injustiça: Greuze é "seu" homem, igualado aTéniers, que ele prefere a Watteau. Servir-se dos própriosolhos para ver melhor a natureza e perceber a verdade, suaprópria verdade - se podemos usar este pleonasmo - é seucredo estético e ainda mais do que o colorido à maneira deRoger de Piles, estima a cor da paixão: "Uma mulher con-serva o mesmo colorido na espera do prazer, nos braços doprazer, ao sair de seus braços? Oh! meu amigo, que arte a dapintura!"

"Cabeça enciclopédica", segundo Grimm, "cabeçauniversal"segundo Rousseau, Diderot encarna o filósofo dasLuzes, persuadido como Kant de que somente elas podemtornar o homem maior e conduzi-Io pela estrada da emanci-pação. Mas este racionalista esclarecido anuncia a emergên-cia de uma razão dissonante e rebelde. Os pré-românticosalemães não se enganam: Goethe 0749-1832) sobretudo,que traduz e anota em 1799 dois capítulos dos Essais sur Iapeinture" e que em 1804, convidado por Schiller, decidetraduzir Le Neveu de Rameau, uma verdadeira bomba, diz.Hegel inspira-se nesta "bomba" na Fenomenologia do espíri-to, como mais tarde o romântico Friedrich von Schlegel 0772-1829) que se entusiasma por jacques le Fataliste, uma ver-dadeira "obra de arte".

É verdade que esta imaginação totalmente germânica éacompanhada de reservas: Diderot, partidário do naturalis-mo, hostil ao academismo como ao maneirismo, não teráconcedido demasiadamente à imitação da natureza? pergun-tará Goethe. A única imitação à qual a arte deve dobrar-senão é a da própria arte e não a da natureza? E a obra de arte

"Denis Diderot, Essais sur Ia peinture. Salons, Paris: Hermann, 1984.

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112o que é estética?

não se basta a si mesma? Será necessária uma teoria estéticapara encarregar-se dela? Porém, tais censuras póstumas -Diderot morreu em 1784 - intervêm muito tarde: a reflexãoestética já se beneficia com o autor dos Sa10ns.

Estas poucas linhas consagradas a Diderot não desejamfazer dele o único representante das tendências artísticas eestéticas que despontam na segunda metade do século XVIII.Mas podemos dizer, sem exagero, que sua obra pessoal eesta monumental obra coletiva que defendeu toda a suavida, a Encyclopédie, são testemunhas da guinada monu-mental dessa época no domínio que nos interessa.

Baumgarten e as "belas ciências"

Este período é o do nascimento não somente da estéti-ca como disciplina autônoma, mas dos primeiros sistemasfilosóficos que integram a estética em seus desenvolvimen-tos. Tudo acontece como se a delimitação de um territórioconsagrado à arte e à teoria da arte permitisse ao mesmotempo perceber melhor os limites doravante dedicados aosoutros setores, quer se trate da metafísica, do conhecimentoou da ação.

Porém, há uma questão que se coloca: logo ao nascer,a estética já não estará morta? Não teria ela deixado à poste-ridade apenas seu nome de batismo? Esta pergunta, em for-ma de paradoxo, pode parecer provocante, sobretudo apóstão longos desdobramentos consagrados à autonomia. To-davia, vamos tentar justificar e explicar por que podemosresponder afirmativamente.

Ao termo do processo de desligamento e deautonomização progressiva do discurso sobre a arte e sobreo belo, o vocábulo estética impõe-se para designar umadisciplina particular. Embora suscite reservas - o próprio

Marc jimenez 113Hegel se mostra reticente - a palavra é adotada pelos pensa-dores, e a estética se inscreve na ordem das disciplinas filo-sóficas, a mesmo título, por exemplo, que a lógica, ametafísica ou a moral.

Pelo menos, é deste modo que Baumgarten, na ori-gem, concebe a "ciência do belo"CKunstwissenschft). Falatambém das "scbône Wissenschaften, literalmente "belas ci-ências". Ele sabe que essas "belas ciências" ainda não estãoelaboradas em sua época. Deseja. portanto, a constituiçãode uma "estética" capaz de encarregar-se do domínio dasubjetividade ou, em suas próprias palavras, o "belo pensa-mento" Csch6nes Denken). Ora, a esfera do subjetivo é mui-to vasta e mal definida. Ela compreende a sensação, a ima-ginação, o sentimento, o entusiasmo, o gosto, o sublime, aspaixões, a memória, etc., em outras palavras, tudo o que ospoetas, os filósofos, os artistas se esforçaram por definir coma ajuda de conceitos, sem nunca chegar realmente a noçõesclaras e distintas, gerais, válidas para todos e aplicáveis atodas as possibilidades.

A própria noção de belo possui vários sentidos. Ou, noespírito platônico, considera-se que o belo remeta a umaIdéia, a uma essência, por exemplo a um belo ideal e abso-luto que transcenda todas as formas sob as quais este beloaparece: o sublime, o grandioso, o gracioso, o pitoresco,etc., ou então o belo designa um valor comum a todas estascategorias.

Baumgarten não apresenta o problema de tais distin-ções. Influenciado pelo sistema da harmonia pré-estabelecidade Leibniz e pela psicologia de Christian Wolff,12pensa que

"Christian Wolff 0674-1754) aluno e discípulo de Leibniz, exerceu uma influênciaconsiderável sobre os pensadores de seu tempo, sobretudo sobre osEnciclopedtstas, d'Alernbert, Diderot e sobre Kant. Filósofo das Luzes, é ele oiniciador da psicologia, no sentido moderno do termo, isto é, de um estudo do

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114 o que é estética?

o belo é o que comove. A estética é definida então pelopensamento que reflete sobre a emoção. O "pensamentobelo" nasce da contemplação das belas artes; ele permiteentrever a harmonia que reina no mundo e na natureza e,portanto, permite perceber a perfeição divina que presideessa harmonia.

O conceito e a abstração tornam-se assim indispensá-veis ao conhecimento, porque ultrapassam o objeto particu-lar e desembocam no universal. É o que acontece em lógicae em matemática, mas não, pelo menos até então, no domí-nio flutuante da estética. O mérito de Baumgarten consistejustamente nesta vontade de fazer balançar a estética para olado da filosofia e da subjectividade. Mas será legítimo fazerdela ao mesmo tempo uma espécie de conhecimento inferior,complementar da lógica?

O próprio projeto de uma "ciência do belo", supondoque ele seja realizável - o que é bem incerto - não serácontraditório? Não significará isto querer "cientificar" umdomínio que, por natureza, é rebelde a qualquer racionali-zação? Estamos lembrados de que Descartes renunciara aoprojeto de medir e de calcular o belo. Em suma, a "ciênciado belo" não expressará a nostalgia de um belo ideal decaráter metafísico ao qual os filósofos e os teóricos da artedo início do século XIX não dão mais importância?

Podemos então responder à questão colocada no iní-cio: se o termo estética é adotado, nenhuma das teorias daarte posteriores a Baumgarten fará referência ao conteúdode suas teses. A estética desenvolve-se independentementedo que a define, em sua origem como ciência do belo. Kantinteressa-se não pelo belo em si, mas pelo gosto ou, mais

homem, de suas necessidades e de seus direitos. Seus trabalhos contribuíramlargamente para elaborar a doutrina dos direitos do homem e do cidadão.

Marc jimenez 115exatamente, pelo julgamento de apreciação aplicado ao belonatural e ao belo artístico. Hegel renuncia a qualquermetafísica da arte em proveito de uma filosofia da artecentrada na obra e na arte como expressão da verdade, daIdéia, que se manifesta concretamente, sob uma forma sen-sível, na história. Sua concepção de estética, ligada à evolu-ção da arte desde a Antigüidade até a época romântica, nadamais tem a ver com a de Baumgarten nem com a de Kant.

Dedicaremos o último capítulo desta parte, intitulada"A autonomia estética", à exposição das teses de Kant e deHegel. Mostraremos sua importância no debate estético con-temporâneo. De fato, Kant e Hegel são quase onipresentes,implícita ou explicitamente, na reflexão atual sobre a artemoderna e pós-moderna. Tais referências não são simples-mente livrescas, não exprimem apenas uma nostalgia deuma pretensa idade de ouro da estética filosófica. O fato devoltar - ou de recorrer - a Kant e a Hegel, após dois séculosde aventuras artísticas movimentadas, aparece muitas vezescomo a maneira de formular adequadamente a questão dasobrevivência da arte na sociedade contemporânea. Ques-tão tanto mais obsessiva por colocar em jogo não somente otema da morte da arte, muitas vezes anunciada, mas tam-bém o do fim da estética, até mesmo da própria filosofia.

Concluiremos com o paradoxo hegeliano, isto é, deque a estética é construída não em 1750, mas sobre os des-pojos de uma arte que, por volta de 1830, teria definitiva-mente perdido "sua verdade e sua vida". A estética de Hegelvive da lembrança da arte grega, erigida como modeloinimitável, exatamente no momento em que o neoclas-sicismo, após Winckelmann, Goethe e sobretudo Louis David0748-1825) abandona as belas-artes, expulso pelo roman-tismo e pelo entusiasmo pela Idade Média. Na época emque a reflexão estética torna-se capaz de antecipar as revo-luções formais da vanguarda e da modernidade, a idéia de

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116o que é estética?

que a Grécia tenha podido aceder à perfeição assedia oespírito dos poetas e dos pensadores, sobretudo Holderlin,Hegel, Marx, Nietzsche e Freud. Porém este fantasma, quecada um vive à sua maneira, corresponderá à realidade?

No século XIX, época da revolução industrial, a estéti-ca é autônoma. Igualmente a arte; ela não é mais submetidaa regras transcendentes; a obra de arte obedece aos seuspróprios critérios e a arte só se submete a suas própriasfinalides, fora da religião, da metafísica e da moral. A imita-ção da natureza não exerce mais sua tirania e as conven-ções acadêmicas constituem outros tantos desafios a inces-santes transgressões.

Mas, neste ponto, esta autonomia também é ambígua:a arte e a estética a reinvindicam e a recusam ao mesmotempo. Elas a reinvindicam a fim de poder fixar elas própriasas regras do jogo, sem coerção exterior, ao abrigo da agita-ção da realidade. Elas a recusam também, pois uma esferaestética plenamente liberta da realidade torna a arte inútil,puramente decorativa, consagrada apenas a uma função re-creativa.

Tal ambigüidade será própria do século XIX? Certamentenão. A história da criação artística e da estética é também ahistória de suas heteronomias ou, melhor, a de suas lutaspermanentes para escapar de qualquer racionalidade e istona Grécia do século V a. C. Este tema será o objeto dasegunda parte desta obra: "A heteronomia da arte".

.1

IV

DO CRITICISMO AO ROMANTISMO

A autonomia do juízo de gosto segundo Kant

Excetuando a notícia do início da Revolução Francesa- ela teria, dizem, levado Kant a inverter o sentido de seupasseio matinal - poucas coisas parecem ter sido de nature-za a perturbar a serenidade do eremita de Konigsberg. Pelomenos em filosofia. A posteridade transmitiu-nos sobretudoa imagem de um pensador "esclarecido" por uma razão ina-balável que enfrentava sem pestanejar as contradições e asmais irredutíveis antinomias alojadas no seio do espíritohumano. Contudo, a Crítica da faculdade de julgar, sobre-tudo a primeira parte, "Crítica da faculdade de julgar estéti-ca" está construída ao redor de uma coisa filosófica tãoestranha que o próprio Kant a declara "surpreendente": ojulgamento sobre o belo, próprio de cada um, subjetivo eparticular, é ao mesmo tempo um julgamento universal eobjetivo.

Esta descoberta não foi feita espontaneamente. Kant

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118o que é estética?

procurou por muito tempo, recusando em primeiro lugarreconhecer este fato, doravante tão evidente. Ele não o es-perava: não corre ele o risco de introduzir uma contradiçãoem seu sistema? Contudo, dois anos antes da publicação daCrítica da faculdade de julgar (1790), escreve a um amigo:"L..J dedico-me atualmente a uma Crítica do gosto e a pro-pósito desta última descobre-se uma nova espécie de prin-cípio a priori. De fato, as faculdades da alma são em núme-ro de três: a faculdade de conhecer, o sentimento de prazere de dor e a faculdade de desejar'": Um pouco depois, pre-cisa que a filosofia se divide em três partes, cada uma comseus princípios apriori, isto é, a filosofia teórica, a teleologia,a filosofia prática. Kant demonstrara claramente na Críticada razão pura (1787) que a filosofia teórica, domínio doconhecimento e da razão pura, possui seus princípios apriori.Se a ciência é possível, se Newton pôde equacionar a lei dagravitação universal é porque tudo o que vem dos sentidosproduz sensação ou intuição, consegue alojar-se em formase categorias preestabelecidas que, quanto a elas, são total-mente independentes da experiência sensível: elas são apriori. A sensibilidade nos dá objetos, ela nos fornece intui-çôes, mas somente o entendimento engendra os conceitos.

A Crítica da razão prática possui igualmente seus prin-cípios a priori em relação à faculdade de desejar. Somentea vontade, agindo sob o controle da razão, pode determinaro desejo de obedecer à lei moral. Assim como as leis danatureza são necessárias e universais, a lei moral é necessá-ria, não dependente das circunstâncias da vida empírica eaplicável a todos os homens, isto é universal. Kant não negaa diversidade dos hábitos tradicionais no tempo e no espa-

'Citado em Immanuel Kant, Critique de Ia [aculté de juger, Paris: Vrin, 1974, trad.de A. Philonenko, lntroductíon, p. 7.

Marcfimenez 119ço. O problema ainda não é este. É o princípio de obediên-cia à lei moral em si mesma que é universal. Constitui ele oimperativo categórico. ão se trata de obedecer à lei moral,contando com um benefício qualquer: satisfação do devercumprido, obtenção de uma "boa consciência", interesseligado à gratidão alheia, mas unicamente por respeito poresta lei.

Mas onde ficou o sentimento de prazer e de dor, nossojulgamento sobre o que diz respeito aos nossos sentidos?Que significa, por exemplo, decidir sobre o gosto e especi-almente sobre o belo? Onde está o a priori neste caso, jáque, diferentemente do conhecimento e da moral, o quechega em primeiro lugar ao espírito provém de fato da ex-periência, por intermédio dos sentidos? É, esta, aliás, a ra-zão pela qual este tipo de julgamento é chamado "estético".

Particularidade do juizo de gosto

De fato, a Crítica da faculdade de julgar interroga-sesobre dois pontos essenciais que ela trata em relação entresi: o primeiro concerne à natureza do julgamento em geralou, se preferirmos, ao mecanismo da faculdade de julgar,seu como. O segundo concerne ao seu porquê, em outraspalavras, à sua finalidade. A crítica da faculdade estética dejulgar está portanto ligada à crítica da faculdade de julgarteleológica, isto é, a uma interrogação sobre o objetivo, so-bre a finalidade (telos, em grego) sobre a significação últi-ma de nossos julgamentos.

Ora, os julgamentos são de tipo diferente: há os que secontentam em descrever o que existe na realidade empírica.Por exemplo: eu enuncio que todos os corpos são extensos.Minha contribuição para o conhecimento é mínima, pois anoção de extensão já está contida na noção de corpo. Eu

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120 o que é estética/

teria podido deduzi-Ia, por análise, do próprio conceito decorpo. Em compensação, se enuncio que certos corpos sãopesados, a análise do conceito "corpo" não permite chegarà idéia de peso. Devo, portanto, ligar, sintetizar, duas no-ções, "corpo" e "peso" e contribuo assim para o conheci-mento. É claro que tais julgamentos provêm da experiência,eles são empíricos, a posteriori.

Mas existem também julgamentos sintéticos a priori.São aqueles que, em matemática e em física, permitem che-gar a julgamentos necessários e universais: que 7 + 5 = 12,ou que todo efeito tem uma causa, não depende, felizmen-te, da experiência. Naturalmente, posso verificar que é defato assim empiricamente, mas esta verificação irá apenasconfirmar a existência de um princípio a priori, universal enecessário. Esta primeira distinção entre julgamentos analí-ticos e julgamentos sintéticos apriori é essencial para com-preender a natureza do juízo de gosto.

Mas existe uma segunda distinção. Retomemos nossosexemplos: quando digo que 7 + 5 = 12 ou que todo efeitopossui uma causa, coloco estes casos particulares sob regrasuniversais. São exemplificações de leis e de princípios uni-versalmente válidos em lógica matemática ou em física (aquiregra aritmética e princípio de causalidade). Segundo Kant,estes são juízos deterrninantes. "Determinar" significa sub-sumir, colocar sob uma regra universal.

Imaginemos agora que eu queira, ao contrário, trans-formar um julgamento particular, numa regra ou numa leiuniversal, por uma espécie de extrapolação. Eu parto, por-tanto, de um caso específico para chegar a um conceitouniversal. Evidentemente, se eu disser: "Esta rosa é bela paramim", não chegarei a fazê-lo, pois confesso o caráter plena-mente subjetivo de minha escolha. Não é um juízo, mas aconfissão imediata de uma preferência que só interessa amim. Não desejo de forma alguma que meu vizinho tenha

Marcjimenez 121de partilhar minha opinião. Mas se declaro: "Vejo esta rosa ejulgo que é bela", o caso é diferente. Implicitamente, apre-sento a hipótese de que outros, até mesmo todo o mundo,possam concordar em reconhecer esta beleza. Este juízo -ao qual voltaremos - é chamado reflexionante, pois ele dizrespeito, prioritariamente, ao funcionamento do espírito, dosujeito. Sou eu quem julga a rosa bela: a beleza não estácontida no objeto, eu lha atribuo: "Esta rosa é bela", ouentão eu a qualifico: "É uma bela rosa".

O juízo teleológico, o que tem como objeto a finalida-de, é igualmente um juízo reflexionante: a finalidade, defato, não é uma propriedade nem uma qualidade do objeto.Sou realmente eu, enquanto sujeito, quem procura determi-nar o fim de todas as coisas. O domínio do conhecimento,regido pela causalidade e pelo determinismo, não coloca oproblema da finalidade. Simplesmente porque num encade-amento causal - qualifiquerno-Io como automático ou me-cânico - a finalidade não existe. Naturalmente, posso inter-rogar-me sobre a finalidade do próprio mecanismo - paraque servem a ciência, a física, a matemática? - mas este éum problema metafísico que me ultrapassa, e que meu en-tendimento não pode resolver. Além disso, a causalidade éuma categoria a priori do entendimento, não a finalidade.No domínio moral o problema da finalidade encontra-seresolvido; a lei moral, de fato, contém ela mesma sua pró-pria finalidade: a finalidade do dever é a de obedecer à leimoral porque ela é exatamente a lei moral.

O problema é muito diferente no caso da natureza, daarte e da liberdade. Voltaire declarava que quanto mais pen-sava, menos podia pensar "que este relógio gire e não te-nha relojoeiro". Existe em Kant - como em cada um de nós,sem dúvida! - uma preocupação idêntica: assim como ocorpo humano e a natureza exterior parecem obedecer aum princípio de organização orientado para um fim, eu não

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122 o que é estética?

posso deixar de pensar que o conhecimento, a moral, aarte, a natureza possuem um sentido último.mesmo que essasignificação não seja conhecível.

Podem-se desde já perceber as razões da "surpresa" deKant diante do juízo estético. Esquematizernos:

q ou o juízo é sintético, a priori, determinante e, neste caso,é universal e necessário;

q ou é analítico, a posteriori, reflexionante, então é parti-cular e contingente.

Em boa lógica, um juízo reflexionante não poderia sernem a priori nem universal.

Ora, o paradoxo encontra-se justamente aqui: o juízode gosto é exatamente um juízo ao mesmo tempo refle-xionante e universal. É claro que não se trata do simplesgosto ligado aos sentidos, em que cada um é livre de conce-ber se o que sente lhe causa prazer ou dor, se isso é agradá-velou não. Esse juízo permanece sempre subjetivo. Kantfala do gosto ligado à reflexão, aquele que determina, porexemplo, o juízo do belo. Este juízo é subjetivo, sem con-ceito - se houvesse um conceito de belo ele se aplicariaimediatamente a todo mundo - e, contudo, ele é universal:"Se se julgarem e apreciarem os objetos apenas através deconceitos, perder-se-á toda representação da beleza." Nãopode, portanto, existir uma regra através de cujos termosalguém possa ser obrigado a reconhecer algo como belo".

E Kant mostra-se surpreso: "Ora, há aqui algo de muitoestranho: enquanto de um lado, quanto ao gosto dos senti-

'Immanuel Kant, Critique de Ia faculté de jugcr, Paris, Gallimard, 1985, Folioessais, trad. AI. J. - I.. Delamarre, J. - R. Ladmiral, M. B. de J.aunay, J. - M. Vaysse,I.. Ferry. e H. Wismann, § 8.

Marcjimenez 123dos, não somente a expenencia mostra que seu juízo L ..lnão tem valor universal e que, pelo contrário, cada um épessoalmente bastante modesto para não atribuir aos outrosum tal assentimento universal a seus próprios juízos L ..l, deoutro lado o gosto pela reflexão L..] pode, todavia, julgarpossível L ..] representar a si mesmo os juízos susceptíveisde exigir tal assntimento universaJ.3

Observemos sua prudência: o gosto "pode julgar possí-vel" formar juízos "susceptíveis" de etc. No início de suaargumentação, todas as condições de possibilidades dos juízosde gosto ainda não estão estabelecidas. Kant contenta-se empostular a universalidade das vozes em relação à satisfaçãosem necessidade de conceitos. Pode-"se"* postular tambéma possibilidade de um julgamento estético poder ser "válidopara todos". Tal assentimento universal é, portanto, uma sim-ples Idéia cujo fundamento não é procurado logo.

Aparentemente, as coisas seriam mais simples se exis-tisse um conceito de belo, ligado a uma regra ou a uma leiuniversais. Para convencer os outros a partilhar meu senti-mento, bastar-me-ia dernonstrar-lhes racionalmente, porexemplo, que este poema ou este edifício são belos. Casoem que, aliás, não teríamos mais, nem eles nem eu, necessi-dade de julgar; bastaria curvar-se diante de razões objetivas.Mas justamente, não existe nenhuma prova a priori capazde impor a alguém os juízos de gosto: "Quando alguém melê um poema de sua composição ou me leva a um espetácu-lo que, finalmente, não satisfaz meu gosto, apelará em vãopara Batteux ou para Lessing ou invocará em vão outroscríticos do gosto ainda mais célebres e mais antigos L ..l: eufecharia os ouvidos, não quereria ouvir razões nem argu-

;Ibid.

·N. de T. Em francês "ori" (entre aspas), indicando impersonalídade.

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124 o que é estética?

mentações ete., preferirira julgar falsas todas as regras doscríticos ['..l a deixar que argumentos convincentes a priorideterminassem meu juízo, visto que se tratará de um juízode gosto e não do entendimento ou da razão"." De fato, seexistisse um conceito de belo, teríamos de nos haver comuma lógica, mas não com uma estética. Sem um conceito debelo uma ciência do belo é impossível, mas, em compensa-ção, pode-se elaborar uma estética do juízo de gosto.

Admitamos, pois, que o belo não tenha conceito e que,portanto, não seja universal, que seja subjetivo - sou euque acho belas estas tulipas -, que é que me autoriza apensar que ele possa, ao mesmo tempo e apesar de tudo,pretender a universalidade? É evidente que tais juízos nadacontribuem, parece, para o conhecimento, mas desejam tera adesão de todos, como os juízos sintéticos. O juízo degosto não se baseia aparentemente num a priori vindo daexperiência alheia ou de razões demonstrativas e, contudo,tal juízo pressupõe a possibilidade de uma concordânciauniversal, como se esta universalidade desempenhasse opapel de um a priori.

Em suma, este juízo subjetivo, particular, tem todas asaparências de um juízo sintético a priori. Para que seja defato um juízo basta-me definir um a priori. Ora, este a prioriexiste: reside ele exatamente na hipótese de que todos oshomens possuem um "senso comum" estético. Podereidemonstrá-Io? Certamente não, mas nada também me per-mite pensar que todos os outros homens dele não sejamprovidos. Este senso comum, "simples norma ideal", explicaKant, "não diz que cada um admitirá nosso juízo, mas quecada um deve admiti-lo." Esta necessidade: o belo é umdever, é naturalmente teórica. Ele não tem o valor do impe-

"Ibrd. § 33.

Marc fimenez 125rativo categórico em moral. Mas tudo me permite presumirem cada um a existência de um senso comum estético. Eucrio uma probabilidade de poder transmitir a outrem a mi-nha representação do sentimento de prazer resultante dobelo.

É preciso que fique claro: eu não comunico meu gosto- meus sentidos pertencem-me como coisa particular. Isto éverdadeiro para o que é agradável: posso julgar bom o vi-nho das Canárias (exemplo de Kantl) meu vizinho podeperfeitamente achá-lo intragável. Isto vale também para obelo: eu não comunico a outrem meu gosto pelas tulipasconsideradas belas. Também não transmito o conceito debelo visto que não existe conceito de belo que possa origi-nar uma demonstração da beleza. Quando digo: "Este poe-ma, este edifício são belos" dirijo-me simplesmente ao sen-so comum, supondo em cada um a mesma aptidão pararepresentar a si mesmo o que eu sinto: "É exatamente esta arazão pela qual aquele que julga com gosto [' ..l está autori-zado a esperar que cada um sinta a finalidade subjetiva, istoé, a mesma satisfação diante do objeto, e a considerar queseu sentimento é universalmente comunicável e que o sejasem a mediação dos conceitos".'

E Kant chega à definição explícita do tão procurado apriori, isto é, ao fundamento do assentimento universal queno início não quisera revelar: "O gosto é, portanto, a facul-dade de julgar a priori a comunicabilidade dos sentimentosligados a uma dada representação (sem mediação de umconceítoj.? Portanto, contrariamente às aparências, o juízode gosto, juízo reflexionante, subjetivo, particular, individual,é também um juízo estético, sintético, a priori. É sintético

'Ihid. § 39.

"Ibid § 40.

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126o que é estética?

porque do conceito de rosa não posso deduzir sua beleza: éde fato meu juízo de gosto que faz a síntese entre o sujeito(rosa) e o predicado (bela). Ele existe a priori, porque estábaseado na hipótese de um senso comum, não demonstrávelempiricamente.

Beleza artística e beleza natural

Julgamos indispensável situar o juízo de gosto em rela-ção aos outros tipos de juízos. Por demais freqüentemente,as definições kantianas do belo surgem tais quais dei exmachina e se impõem com uma tranqüila evidência comopalavras capazes de resumir a situação: o belo é um "uni-versal sem conceito", uma "satisfação desinteressada", umafinalidade sem fim". Ora, tais definições são enganadoras:elas nem sempre distinguem entre o que está ligado ao beloe o que se aplica ao juízo do gosto em geral. Esquecem elasa gênese dos raciocínios de Kant. Correm assim o risco demascarar as implicações da crítica da faculdade de julgarestética, não somente em relação à própria obra mas igual-mente diante do conjunto do sistema kantiano.

O juízo de gosto é um juízo sintético a priori; o belo éuma universalidade não conceitual: desde que estas propo-sições estejam compreendidas, os outros temas maiores daestética kantiana, finalidade sem fim, satisfação desinteres-sada, tornam-se facilmente claras.

O belo traz uma satisfação. Qual é sua finalidade? Sus-citar prazer, gozo, alimentar um interesse qualquer? Isto se-ria ligar o belo a fins subjetivos e não seria, portanto, espe-cífico da beleza. O belo concerne ao objeto? Por exemplo:acho bela esta tulipa, porque descubro na organização daspétalas uma finalidade destinada a me agradar. Isto serialigar a finalidade a um fim específico. Seria mesmo associar

Marcjimenez 127·a beleza a um conceito determinado de belo: é belo o que éorganizado tendo em vista agradar-me. Ora, isto é impossí-vel, visto que o belo não tem conceito. Quando declarobela uma tulipa, concebo perfeitamente que tudo isso res-ponde a uma finalidade, mas ignoro qual. Em todos os ca-sos, é-me impossível percebê-Ia. A única finalidade da satis-fação através do belo, portanto, não está ligada nem ao meuinteresse nem ao objeto. Assim, quando declaro uma coisa,uma obra "bela", o único sentimento que conta é o fervor, esomente uma finalidade importa: aquela que autoriza osoutros a sentir uma satisfação idêntica. Há, portanto, umaespécie de simultaneidade: o belo me satisfaz e, ao mesmotempo, represento-me que essa satisfação é susceptível deser comunicada a outrem, talvez mesmo de chegar a umsentimento universal. Em suma, uma única finalidade: a even-tual partilha do fervor sentido, com a exclusão de qualqueroutro fim, isto é, de qualquer outro interesse.

Compreende-se melhor, então, porque Kant pode afir-mar que "todo interesse corrompe o juízo de gosto" e porque a atração, a emoção ou uma sensação qualquer acres-centadas ao belo o prejudicam. O belo basta-se a si mesmo.Não preciso desejar embelezá-Io.

Kant cita o exemplo da pintura, da escultura, da arqui-tetura e da arte dos jardins. O que tem a primazia, nestasbelas artes, é o desenho, a forma e não a cor acrescentada,que deleita minhas sensações. Se tolero a atração que elasexercem sobre mim, é porque são limitadas pela forma que,dixit Kant, as "enobrece".

O mesmo acontece, diz-nos ele, com os ornamentos:as molduras dos quadros, as roupas das estátuas, as colunatasdos palácios destinados a aumentar minha satisfação: se taisornamentos Cparergci) têm em si mesmos uma "bela forma",contribuem para a beleza do obejto, eles são de mesmanatureza. Se, pelo contrário, são apenas pretextos decorati-

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128 o que é estética?

vos para nos forçar a julgar belo o objeto, tornam-se simplesenfeites, agradáveis, sem dúvida, aos olhos, mas perturbama beleza autêntica.'

Excetuando o domínio do conhecimento, onde procu-ramos o verdadeiro que deseja o homem? Sobretudo, o agra-dável, o belo, o bom. O homem chama agradável o que lhetraz prazer, bom o que estima ou aprova, belo o que lheagrada. Ora, de todos os tipos de satisfação, somente a dogosto pelo belo é desinteressado e livre: nenhum interesse,nem dos sentidos, nem da razão coage o assentimento.

Admitamos, portanto, todos os parâmetros que, segun-do Kant, condicionam o belo: universal sem conceito, satis-fação desinteressada, finalidade sem fim. Surge uma ques-tão: existe apenas uma espécie de beleza? Dado o rigor quepreside a pureza do juízo de gosto, espera-se uma respostaafirmativa. Contudo, Kant distingue duas espécies de bele-za: a beleza livre e a beleza aderente.

Exemplos (kantianos) de belezas livres: as flores, "mui-tos" pássaros: o papagaio, o colibri, a ave do paraíso, uma"multidão" de crustáceos, os desenhos à grega, ornatos defolhagem para enquadramento ou papéis pintados e a mú-sica improvisada em geral.

Exemplos de belezas aderentes: o homem, a mulher, acriança, o cavalo, uma igreja, um palácio, um arsenal, umacasa de campo.

É claro que esta distinção procede das condições dobelo: as belezas livres nada significam, não representam nada,não se referem a nenhum objeto, a nenhum conceito, pelomenos segundo Kant. Não me pergunto se são perfeitos ounão, quando os aprecio, meu juízo de gosto é "puro"e nãoestá maculado por nenhuma idéia de "fim".

"Ibid. § 14.

Marcjimenez 129Em compensação, quando aprecio uma criança, um

cavalo ou um palácio, faço intervir um conceito de fim, aidéia de que poderiam ser melhores em relação a um mo-delo ideal, uma idéia de perfeição. Por exempo, esta mu-lher, este homem, são belos, mas seria ainda melhor paraeles se fossem maiores. Meu juízo de gosto está condicio-nado pela idéia do que deveriam ou devem ser. São bele-zas aderentes, isto é, ligadas a um fim, a um conceito deperfeição. Este juízo é portanto impuro. Vemos aqui que aperfeição desempenha o papel de um fim, de um concei-to, incompatíveis, em teoria, com a beleza: "a beleza nadaacrescenta à perfeição", "a perfeição nada acrescenta àbeleza"."

Kant não extrai conclusões espetaculares desta distin-ção. No máximo, permite ela saber do que se fala e separarjuizo de gosto puro, que concerne à beleza livre, e o juizode gosto aplicado, que tem por objeto a beleza aderente.Todavia, a mencionamos porque suas conseqüências sobreos outros aspectos da estética kantiana são importantes, so-bretudo no que concerne a uma outra distinção - estafundamental - entre a beleza natural e a beleza artística.Seus efeitos agem também sobre o conceito de sublime e degênio.

Os exemplos citados por Kant não trazem nenhumareferência a obras precisas da alçada das belas-artes, antigasou contemporâneas. Além disso, os conjuntos que ele nospropõe parecem pelo menos disparatados: um colibri, umcrustáceo, um ornamento de papel pintado, uma músicaimprovisada, ou então uma mulher, um cavalo, um arsenal.Por pouco não faltaria mais a este bricabraque bastanteestrambólico e surrealista do que o guarda-chuva e a má-

"Ibid. § 16.

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130 o que é estética'

quina de costura colocados fortuitamente sobre a mesa dedissecação!"

Já foi observada sua curiosa predileção pelas flores,sobretudo pelas tulipas e as rosas. Porém as restrições sãoigualmente estranhas: a escolha dos pássaros, ou dos crus-táceos ("muitos", mas não todos'). Kant dispõe de outroscritérios particulares que orientam o juízo de gosto alémdos que eram julgados adquiridos? Ele nada diz. O essencialreside, contudo, no caráter heterogêneo dos conjuntos pro-postos. Kant de fato justapõe, indistintamente, seres vivos(beleza natural) e realizações humanas (beleza artística).Deveríamos supor que o juízo de gosto se aplica nos doiscasos ao idêntico? Pode-se crer que o belo natural e o beloartístico se confundem entre si? Seguramente não, mais épreciso esperar a "Analítica do sublime" para percebê-lo cla-ramente.

Na primeira parte da Crítica, Kant se pergunta essenci-almente como o juízo sobre o belo é possível. Pouco impor-ta o objeto: belas-artes, arte, criação humana. O juízo degosto não é um juízo sobre um objeto belo, mas sobre o eloentre a representação deste objeto e nossas faculdades,entendimento e imaginação. Ele não obedece a uma regraformulável objetivamente, visto que, seu ponto de partidaestá baseado num sentimento subjetivo. Ele só é possívelpela hipótese de uma comunicação universal, que se esten-da a todos os sujeitos detentores do senso comum estético.O que eu comunico é um sentimento desinteressado, resul-tante de uma finalidade sem fim específico.

'Alusão à famosa definição de beleza dada por Lautréamont em Les cbants deMaldoror. que tanto agradara a André Breton. "Belo .... como o encontro fortuitosobre uma mesa de dissecação de uma máquina de escrever e de um guarda-chuva."

Marcjimenez 131Em outros termos, ele se interroga sobre a forma do

juízo e não sobre seu conteúdo. É por esta razão que seusexemplos não fazem distinção entre as belezas naturais e asbelezas artísticas. Mas, quando compara o sentimento dobelo e o sentimento do sublime e procura diferençá-lo, é defato obrigado a levar em consideração seus pontos de diver-gências, aos quais ambos se submetem. Caso contrário, se-riam confundidos.

A distinção explícita entre a natureza e a arte intervém,portanto, graças a uma reflexão sobre o sublime e tem efe-tivamente como objeto, de um lado o belo e o sublimerelativos à natureza, de outro lado o belo e o sublime artís-tícos." A superioridade do belo natural sobre o belo artísti-co em Kant não nos surpreende. A beleza na natureza nãoresponderá melhor aos critérios de juízo de gosto, expres-são de uma finalidade sem fim, objeto de uma satisfaçãodesinteressada, imediatamente susceptível de um assenti-mento universal? Pelo contrário, numa obra de arte possosempre suspeitar uma finalidade ou um interesse qualquer:não é ela feita para me agradar, para deleitar minhas sensa-ções, para me ser agradável? O artista que cria não procuraesta finalidade? Sua própria obra, em sua composição, nãovisa sempre mais ou menos à perfeição?

O status das belas-artes depende diretamente destasuperioridade do belo natural. A expressão belas-artes jácoloca um problema em si mesmo, e Kant dedica-se a dissi-par qualquer mal-entendido: "Não há ciência do belo, masexiste apenas uma crítica e não há bela ciência, mas somen-te belas-artes" .11 O balanço, bastante categórico, visa segu-

"'Ver sobretudo o § 23: "Passagem da faculdade de julgar o belo :1 faculdade dejulgar o sublime".

"Ibíd. § 44. "Das belas-artes".

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132 o que é estética.'

ramente a Baumgarten e aos que persistem em seu cami-nho, sobretudo J. F. Riedel (1742-1785), autor de uma Teo-ria das belas-artes e das belas ciências (1767), que quasenão deixou traços na história da estética.

Mas há algo mais importante: as belas-artes somentesão arte se tiverem a aparência da natureza: "Diante de umaprodução das belas-artes, devemos tomar consciência de quese trata de arte e não de um produto da natureza; mas, naforma desta produção, a finalidade deve mostrar-se tão livrede qualquer coerção imposta por arbitrariedades, quanto seria,caso se tratasse de um simples produto da natureza". 12

Em palavras simples, uma bela obra de arte deve pare-cer ter saído da natureza. Ela deve dissimular tudo o que seaproxima de uma finalidade ou de um interesse e responderàs condições do belo natural de que falamos acima. Elapode satisfazer, causar prazer, mostrar que resulta do livrejogo da imaginação e do entendimento, que seu único fim éa harmonia das faculdades (sem, contudo, destacar esta fi-nalidade), e suscitar um assentimento comunicável e uni-versal, sem todavia basear-se em conceitos. E é quase lirica-mente que Kant resume esta idéia: "A natureza era bela quan-do tinha, ao primeiro olhar, a aparência da arte; e a artesomente pode ser dita bela, quando temos consciência deque realmente se trata de arte, mas que toma, para nós, aaparência da natureza". 13

Todavia, cuidado com o contra-senso! Quer isso dizerque, de fato, o artista deve imitar a natureza e que uma obrabela é aquela que imita mais perfeitamente a natureza? Cer-tamente não. De fato, se a imitação se tornasse uma regra

'<lbid. § 45.1.\lbicl. § 45.

J!iI

I;;-;.~

MarcIimenez 133do belo, ela se imporia ao mesmo tempo como conceito ecomo finalidade. Como conceito, eu poderia demonstrar aoutrem que um certo quadro em trompe l'oeil," cópia per-feita da natureza, é necessariamente belo. Ora, não existeconceito de belo. Como finalidade, bastaria que os artistasatribuíssem a si mesmos como finalidade a imitação da na-tureza para fazerem um belo quadro. O que entraria emcontradição com a definição de belo.

Na realidade, se houvesse uma regra - mas sabemosque não pode existir - que pudesse presidir a realização dobelo artístico, seria aquela que respeitasse o livre jogo daimaginação e do entendimento e deixasse pressentir que aharmonia entre eles corresponde à imagem da harmonia danatureza. É preciso, portanto, distinguir claramente o princí-pio de imitação da natureza, como podia concebê-Io aindaum Charles Batteux, por exemplo, e a aparência da naturezaque deve ser revesti da pela arte, levando em consideração amaneira pela qual eu me represento o livre jogo das faculda-des. Mas quem é então que pode conseguir a façanha defazer arte dando a aparência da natureza sem imitá-Ia?

Somente pode ser um artista que responda ele mesmoa todos os parâmetros do belo: ele deve ter um dom inato(natural), um talento que não obedeça a nenhuma regradeterminada e não resulte de nenhuma aprendizagem. Suaobra deve ser original (não imitada) e todavia servir de refe-rência às outras (para evitar que o absurdo, capaz ele tam-bém de ser original, passe por uma autêntica originalidade).Este criador não deve poder explicar nem descrever comocria (aliás, ele não pode transmitir o que não teve de apren-der). Um tal homem tem um nome: o gênio. "As belas-artes

"N ele T Perspectiva enganosa, pintura que dá a ilusão ela realidade.

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134o que é estética?

são as artes do gênio", declara Kant." O que significa: atra-vés do gênio - inteiramente "natural" - a natureza prescrevesuas regras à arte, e somente a ela.

Isto não é válido para a ciência: Newton é um sábionotável, porém aprendeu e, em princípio, todo mundo podeadquirir seu próprio saber. Ele podia transmitir seus conhe-cimentos, explicá-Ios a si mesmo e aos outros: Newton nãoera um gênio. Em compensação, Homero era um gênio por-que ninguém, começando por ele mesmo, está em condi-ções de explicar a riqueza de sua criação poética.

Percebe-se melhor o papel do gênio na estética kantiana.Tudo, no gênio, procede da natureza; portanto ele concen-tra todas as faculdades da alma: imaginação, entendimento,espírito e alma, em uma harmonia ideal. Quando sua imagi-nação, por demais poderosa, tende a transbordar, o gostointervém e o concilia com o entendimento: "O gosto é adisciplina do gênio." Além disso, ele salva as belas-artes doopróbrio que poderia pesar sobre a arte em geral dada sualigação imediata com a sensibilidade. O gênio permite ele-var o belo artístico à dignidade do belo natural.

Enfim, por encarnar a harmonia de todas as faculda-des, inclusive a alma, o gênio apresenta Idéias estéticas semnunca nomeá-Ias, nem conceptualizá-las: pressentimento deuma harmonia supra-sensível que não posso definir, em quese unem a natureza e a liberdade, a beleza e a moralidade.Nesse sentido, graças ao gênio, as Idéias estéticas juntam-seàs Idéias da razão, a arte assimila-se à liberdade, e o belo,inicialmente distinto do bom, torna-se o símbolo da mora li-dade." A interpretação do sublime permite igualmente aKant conceber um elo possível entre a arte e a liberdade.

"lbid. § 46.I'É claro que o belo não é uma condição do bom, nem o inverso. Nã,? possodizer: "é belo porque é bom" nem "é bom visto que é belo". O belo e o queagrada absolutamente, o bom é o que satisfaz puramente a lei moral. A relação

Marc fimenez 135Não entraremos aqui nos detalhes das diferentes defi-

nições do sublime. É preferível mostrar, neste capítulo con-sagrado à autonomia, os elementos que concernem ao sen-tido do empreendimento Kantiano sobre este ponto, e insis-tir em sua significação atual.

o sublime

Em 1764, Kant publica Observações sobre o belo e o su-blime. Trata-se, portanto, de uma obra anterior ao seu períodocrítico. Sem renegar seu texto, ele admite mais tarde que eraconveniente passar da observação a considerações mais fi-losóficas. Sua classificação, é verdade, pode parecer discutí-vel. Que objetos suscitam o sentimento de belo? Prados sal-picados de flores - nada de surpreendente' - os meandrosde um riacho num vale onde pastam numerosos (O reba-nhos, o cinto de Vênus descrito por Homero. Para o senti-mento de sublime: montanhas de cume nevado projetando-se sobre as nuvens, a pintura do inferno pelo poeta inglêsjohn Milton." Kant precisa: carvalhos elevados e sombrassolitárias num bosque sagrado são sublimes; leitos de flores(é evidente'), pequenas moitas são belas. Seguem algunslugares comuns: a noite é sublime, o dia é belo. O sublimecomove, belo encanta.'? No mesmo espírito, a mulher é bela,o homem é sublime! Estremecemos."

entre o belo e o bom, entre a arte e a moral, entre o julgameno estético e ojulgamento ético, portanto, somente pode ser simbólica.

"Observar-se-á a ausência de flores. Contudo, Kant teria certamente julgadosublimes certas plantas e flores carnívoras.

17A frase exata enriquece este pequeno florilégio: "Os espíritos que possuem osentimento do sublime são levados insensivelmente para os sentimentos elevadosda amizade, do desprezo pelo mundo, da eternidade. pela calma e pelo silênciode uma noite de verão.enquanto a luz trêmula das estrelas atravessa as sombrasda noite e a lua solitária aparece no horiznte. O dia brilhante inspira o ardor dotrabalho e o sentimento de alegria".

"Pode-se ser um grande filósofo e partilhar os preconceitos de seu tempo! A

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136o que é estética?

Quando é publicada a Crítica da faculdade de julgar,em 1790, Kant já leu e assimilou a obra de Edmund Burke:Pesquisa filosófica sobre a origem de nossas idéias do subli-me e do belo (1757). Acabaram as descrições e inicia-se acrítica das condições que tornam possível o juízo de gosto.Para Burke, o sublime distingue-se do belo pelo fato deprovocar perturbações fisiológicas ligadas a uma mistura deprazer e de dor. A satisfação causada pelo sublime resultade fato da associação entre a imaginação e o entendimento,mas este sentimento é semelhante à sensação de perigo, dealgo de terrível e de horrível. Pelo menos, é assim que Kantinterpreta Burke."

A crítica do juízo de gosto prova facilmente, contraBurke, que o sentimento do sublime não pode ser associa-do a sensações empíricas tão particulares, individuais. Kantqualifica-as como "egoístas". Como o belo, o sublime devepoder ser objeto de um assentimento universal. Ora, o beloe o sublime têm em comum o fato de "agradarem por simesmos". Cada um deles pressupõe um juízo reflexionante,portanto particular, que deseja, contudo, ser universal.

As duas formas de sublime que Kant distingue, o subli-me matemático e o sublime dinâmico, estão ligadas, ambas,ao conflito de nossas faculdades. Vimos que o prazer pro-vocado pelo belo baseia-se na harmonia de nossas faculda-des: imaginação e entendimento. Exprime ele uma espéciede equilíbrio. Poder-se-ia dizer que o belo engendra calmae serenidade. Um espetáculo horrível, angustiante nunca é

frase exata é: "Não compreendam que a mulher seja desprovida de qualidadesnobres e o homem de qualquer tipo de heleza. Espera-se, pelo contrário, quecada sexo reúna essas duas qualidades, mas de maneira que na mulher todas asoutras vantagens concorram para exaltar ° caráter do belo enquanto o sublimedeve ser o sinal próprio do homem". cf. Obseruations sur te seniiment du beau etdu sublime Paris: Vrin, 1992 p. 38.19Critique de Ia [aculté de juger, op. cit, p. 113.

Marcjimenez 137julgado belo. Em compensação, mesmo uma paisagemterrificante, abismo, rachas, rochedos montanhosos sem for-ma, amontoados de forma caótica, mar furioso, podem pa-recer sublimes. O que prova perfeitamente que o sublimenão está no objeto, mas unicamente no espírito daqueleque julga. Normalmente, eu não deveria achar sublime umtal espetáculo natural, pois a natureza em si mesma é obje-tiva, neutra. Se persisto em considerar sublime um espetá-culo que em si mesmo não o merece, é que me sinto depen-dente de um destino que me ultrapassa, pressentimento deuma finalidade supra-sensível: "A natureza é, portanto, su-blime em seus fenômenos cuja intuição implica a Idéia desua infinitude" .20

O exemplo de Kant é aqui o do sublime matemático,do "absolutamente grande", não mensurável, diante do quala imaginação capitula. A razão, de alguma forma, substitui oentendimento: ela julga o sublime apesar da falência daimaginação. É evidente que tomar consciência desta impo-tência engendra um sentimento de dor, mas, finalmente, aalegria resulta da tomada de consciência da superioridadedo intelecto sobre os sentidos. Encontramos a mesma des-proporção no jogo das faculdades no sublime dinâmico,aquele em que o poder da natureza nos faz tomar consciên-cia de nossa insignificância. O desencadeamento das forçasnaturais,o trovão, os relâmpagos, os ciclones, os terremotosetc. suscitam o temor, mas "seu espetáculo torna-se aindamais atraente quando é assustador, com a única condiçãode estarmos em segurança; e facilmente damos o nome desublimes a esses fenômenos, pois eles elevam as forças daalma além de seu nível habitual e nos fazem descobrir emnós a faculdade de resistência de uma espécie totalmente

lU/bic!.§ 26.

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138 o que é estética."

diferente que nos dá a coragem de nos compararmos com aonipotência da natureza". 21

É preciso compreender bem este trecho: o terror, o te-mor, o medo nada têm de sublimes em si mesmos. Nem asubmissão, nem o desânimo provocados pelo sentimentode nossa impotência. Em compensação, julgar a natureza"sublime" nessas circunstâncias, significa tomar consciênciade que ela constitui um apelo à força que possuímos dejulgá-Ia mesmo nessa situação. A razão intervém neste pon-to: é ela que regula o conflito entre a imaginação e o enten-dimento. Ela permite descobrir em nosso espírito uma supe-rioridade em relação à natureza, exatamente pela despro-porção entre sua onipotência e nossa pequenez, ou melhor,graças a esta desproporção.

De fato, como podemos julgar nossa pequenez, vistoque somos "pouca coisa" - louvável modéstia - a não serpor referência implícita a uma grandeza ou a um poder quenos ultrapassa? O sentimento do sublime é testemunha dorespeito que sentimos por nosso próprio destino. Este res-peito por uma finalidade literalmente "imperceptível", porum mundo transcendente ao qual o conhecimento, a ciên-cia, não têm acesso, apresenta uma analogia com o respeitopela lei moral. Num caso como no outro, o que respeitamosnão somos nós mesmos, tomados individualmente, mas ahumanidade presente em nós como sujeito.

Kant não dedica nenhum desenvolvimento ao sublimenas artes. Contenta-se em declarar que o sublime na arte é"sempre submetido às condições de um acordo com a natu-reza". Se lembrarmos sua definição de gênio, aquele atravésdo qual a natureza dita suas regras à arte, poderemos facil-mente concluir que as obras de arte suscetíveis de serem

"Ibid. § 28.

Marcfimenez 139julgadas sublimes somente podem ser realizadas por gênios(Hornero, Milton) tão raras e excepcionais quanto estes ho-mens de exceção."

Goethe, poeta do Sturm und Drang, pouco sensível àaridez do sistema kantiano e aborrecido com sua terminolo-gia bastante espinhosa, percebeu a importância da Críticada faculdade de julgar. Celebrou com entusiasmo o apare-cimento da obra: "O velho Kant prestou um imenso serviçoao mundo, e eu posso contribuir também colocando, emsua Crítica da faculdade de julgar, a arte e a natureza ladoa lado e dando a ambas o direito de agir de acordo com osgrandes princípios sem finalidade particular l...l. A naturezae a arte são por demais grandes para visar a fins particula-res. Não é necessário que o façam. Há correlações em todaparte e as correlações são a vida". 23 Se a natureza e a artenão visam a fins particulares, isto quer dizer que diante de-las o homem é livre, e que a experiência da arte, por maissubjetiva que seja, é também uma experiência da liberdade.Isto quer dizer que esta experiência é acessível a todos eválida universalmente.

A obra de Kant encerra a seu modo os debates inces-santes e insolúveis sobre as modificações do belo e as cate-gorias estéticas dos séculos e dos decênios que o precede-ram. Precisou ele sintetizar a contribuição das teorias e dasdoutrinas anteriores e a influência delas é perceptível emsua obra, quer se trate de Hume, de Shaftesbury, deHutcheson, de Burke e de Horne," todos representantes do

"Kant cita igualmente as pirâmides do Egito e a igreja de São Pedra em Roma, jácitadas nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime.ljErnst Cassirer, Rousseau, Kant, Goethe. Deux essais, Paris, Berlin, 1991, trad.Jean Lacoste, p. 102-103.

"Henry Home (1696-1782), autor de Elements 0/ Criticism (1762), defendeu aidéia, nào partilhada por seus contemporâneos, ernpiristas e sensualistas, de queo dever autêntico consiste em obedecer incondicionalmente à lei moral.

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140 o que é estética?

empirismo, que o libertaram do racionalismo e do dogma-tismo. Mas a influência de Ou Bos também foi considerável,assim como a de Johann Georg Sulzer 0720-1779), filósofosuíço, para quem o gosto designa a faculdade de reconhe-cer o belo intuitivamente. Quanto a Moses Mendelssohn0729-1786), era em termos quase kantianos que definia afaculdade de julgar como a capacidade de aprovar e de apre-ciar sem desejo, sem finalidade e sem interesse. Não pode-ríamos contemplar a beleza por si mesma, dizia, e nos satis-fazermos com a beleza de um objeto sem possuí-Io e mes-mo sem nenhum desejo de possuí-Io?

De todas essas influências, contudo, uma só domina,porque é a menos compreensível e foi, todavia, a mais du-rável: a de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau, caminhantesem relógio de bolso ou de parede, músico errante, capri-choso, inconstante, sedutor, católico por conversão, antiluzespor convicção, que Kant eleva ao nível de Newton por terdescoberto a natureza profunda do homem e a "lei secretaem virtude da qual a Providência é justificada por suas ob-servações". Sempre Rousseau, diante do qual Kant reconhe-ce sua dívida em termos emocionantes e não habituais: "Hou-ve uma época em que eu pensava realmente que somente oconhecimento e seu adiantamento constituíam a honra dahumanidade e em que eu desprezava o homem comum,que nada sabe. Rousseau recolocou-me no caminho certo.Esse preconceito cego desapareceu: aprendi a respeitar oshomens"."

Sem dúvida, nunca acabaríamos de assinalar as insuficiên-cias, as contradições e os preconceitos das concepçõeskantianas. E é quase prodigioso, para um homem de suacultura, ignorar a esse ponto as obras e os artistas de seu

"Ernst Cassirer, op. cit; p. 31-32.

,~

MarcIimenez 141tempo, esquecer que Konígsberg foi, como Dantzig, um cen-tro particularmente ativo da vida artística da Prússía Oriental.

Um juízo de gosto de tipo rigorosamente kantiano semdúvida nunca foi formulado; da mesma forma, nenhum atomoral de acordo com o imperativo categórico foi provavel-mente realizado. Este não é o problema de Kant, preocupa-do antes de tudo em definir os princípios absolutos, univer-sais, sob os quais poderia ser concebida a liberdade do ho-mem. Leva ele a suas conseqüências extremas a autonomiado sujeito, a de seus pensamentos e de suas produções, edefine a maneira pela qual se pode conceber a autonomiaestética e a da arte, pelo menos em teoria.

Porém, este mesmo excesso leva a posição kantiana auma ambigüidade: a autonomia da esfera estética somente éafirmada e garantida para melhor mostrar como a arte, porsua vez, separada do conhecimento e da moral, reage naesfera cognitiva e na esfera ética. De fato, vimos perfeita-mente que o belo é o símbolo da moralidade, assim como osublime nos dá uma idéia do infinito. É claro que este últi-mo elo com o conhecimento é indireto, visto que a arte secontenta em realizar, ou melhor, em deixar apreender o quea ciência não pode conhecer, isto é, o mundo das coisas emsi, dos númenos.

Todavia, esta relação negativa é suficiente para prepa-rar a emergência de um conceito de arte, como porta abertapara o absoluto, a mesmo título que a religião e a filosofia.Os românticos se lembrarão disso.

Questão clássica: que lugar ocupa a estética de Kant nareflexão contemporânea?

A resposta corre o risco de ser extremamente banal:um lugar considerável, sem dúvida nenhuma, mas isto podeser dito de qualquer filosofia importante das épocas passa-das. Parece mais pertinente perguntarmo-nos se a situaçãoatual da arte e da estética corresponde, de um modo ou de

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142o que é estética?

outro, às teses da Crítica da faculdade de julgar. A resposta,neste caso, é decepcionante: a atitude contemporânea dian-te da natureza, da arte e da razão parece, em todos os pon-tos, diametralmente oposta às exigências e às esperanças deKant. O conceito de natureza é largamente determinado pelotratamento a que nossa civilização técnico-científica, pode-rosamente industrializada, submete a "natureza" exterior ehumana. Uma natureza inviolada, originalmente boa, à ma-neira rousseauniana, alimenta doravante apenas sonhosnostálgicos. A arte, tanto em sua realização quanto em suarecepção, responde a interesses múltiplos: distração, buscahedonística, autocelebração, promoção de uma política cul-tural e, naturalmente, proveito e rentabilidade; são todosfinalidades, muitas vezes não confessadas, que relegam asnoções de "satisfação desinteressada" e de "finalidade semfim" ao nível de utopias ingênuas. Na era das mídias, a co-municação da experiência artística, mesmo quando se apóiano sentimento subjetivo da beleza, não se priva de concei-tos, nem de modelos que ela tenta impor universalmente,sem levar em consideração a diversidade cultural. Estamoslonge do livre assentimento que repousa sobre o apriori deum senso comum estético, presente em cada pessoa. Quan-to ao tribunal de uma Razão unitária, é ele cindido, poderí-amos dizer, em dois júris: um persiste em crer na relação,contudo altamente improvável, de ideais de justiça, de li-berdade e de igualdade. Trata-se, muitas vezes, de alibispara ter a consciência limpa. O outro julga os progressosbaseado numa razão positivista, organizadora, calculadorae, como dizemos às vezes, instrumentalizada.

Duzentos anos mais tarde, os conceitos kantianos pa-recem desafiar qualquer referência a conteúdos reais e con-cretos. Poderíamos julgá-Ios vazios. Kant trata de fato doprazer e da satisfação outorgados pelos sentidos, mas res-tringe imediatamente o alcance da experiência sensível tal

Marc jimenez 143como pode ser vivida pelo indivíduo. A satisfação aparecedesencarnada como se um tabu (moral, cultural, social?)pesasse a priori sobre o desabrochar sensual e o gozo físi-co, a tal ponto que a estética de Kant parece pregar apenasum "hedonismo emasculado"."

Este julgamento severo, contudo, põe o dedo sobre umdos paradoxos do conceito kantiano: o belo, sem conceito,somente é definido pela satisfação, mas esta satisfação éamputada. Não seria possível pensar que a satisfação sejaapenas um elemento entre outros no juízo da beleza? Olharuma bela obra de arte não obedece a todo tipo de solicita-ções e de razões, mais ou menos conscientes, parcialmenteanalisáveis em termos de conceitos, que em nada maculama autenticidade do juízo?

É verdade que os conceitos kantianos interessam-se pelaforma em detrimento do conteúdo. Mas também não sãovazios: são ocos, o que é completamente diferente. Sua ri-queza reside nessa mesma vacuidade. A crítica do juízo degosto nada nos ensina. Talvez! Mas nos ensina muito sobrenós mesmos e sobre esta liberdade à qual, de um certomodo, Kant nos condena.

Nada é dito sobre as qualidades intrínsecas que deve-ria possuir um objeto "belo" ou "sublime". É esta, todavia,uma das grandes preocupações da estética contemporânea.

Em compensação, a experiência Kantiana do belo nosincita a perceber lucidamente as motivações de nossos juízos,a distinguir entre as escolhas sinceras e as preferências hi-pócritas. Ele evita, por exemplo, que confundamos o belo eo deleitável, o juízo estético e o juízo de gosto culinário."

"'cr. T. \'(I. Adorno. Tbéoric estbétique, Paris, Klincksieck, 1996, nouvelle traduction,p. 29: "Bastante paradoxalmente, Kunt vê a estética como um hedonismoemasculado, um prazer sem prazer ...".

"Adorno reconhece em Kant o mérito de ter "arrancado a arte da ignorânciavoraz que não cessa de apalpá-Ia c de saboreá-Ia". (Ibid. p. 28).

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144 o que é estética?

Lembramos a desagradável comparação de Du Bos entre oguisado do cozinheiro e as obras do espírito.

Todavia, a experiência do sublime é mais perturbadora.O belo é apenas o símbolo do bem. Quanto ao sublime, elenos deixa entrever a idéia de infinito e, portanto, a de liber-dade. A liberdade, de fato, é total ou ela não é. O belo estáligado à concordância de nossas faculdades, o sublime aseu conflito. O belo é harmonia, o sublime pode ser disfor-me, informe, caótico. Prazer para um, dor e prazer para ooutro.

Terá Kant percebido, antes de Freud, que sublime ésublimação de um sofrimento escondido, recalcado, transfi-gurado pela consciência (a razão) e que permite que o"inapresentável" se torne momentaneamente "apresentável"?De fato, nada há de mais fugitivo do que o sentimento dosublime ... No plano artístico, isto significa que a liberdadede invenção formal é ela também infinita, sem regras, semprescrições. Somente de nós depende usar essa liberdade efixar seus limites. Somos, de algum modo, únicos donos dojogo.

O sistema kantiano representa a fase de conclusão dasidéias iniciadas pela Aufklàrung.

"Conclusão" não significa aqui "coroamento", mas an-tes ultrapassagem da filosofia das Luzes. Em 1804, quandoda morte do "Chinês de Konígsberg"," no momento em quese apagam uma por uma as luzes da razão, a "fogueira" doromantismo já arde, nascida das desilusões e do desencantopós-revolucionário.

"'A expressão é de Friedrich Nierzsche. Severo, mas lúcido, dizia que o pensamentode Kant era a "história de uma cabeça", constatava que ele havia "vivido pouco",porque sua maneira de trabalhar tomara-lhe o tempo de viver o que quer quefosse.

Marc [imenez 145Friedrich von Schiller redige suas Cartas sobre a educa-

ção estética do homem num espírito kantiano. Mas já se anun-cia a crítica das teses kantianas e das Luzes em geral. Dá elaum outro sentido à autonomia da estética, conferindo à artetarefas de vocação moral e política.

Uma outra "grande estética" está em germe, a de Hegel.Ela afirmará a autonomia da estética como disciplina em simesma, e partilhará, ao mesmo tempo, o eqüívoco de umaliberdade concebida como um ideal, mas nunca realizada.Ela ainda ignora a sorte que a espera: a de ver seu objeto -a arte - perecer ou pelo menos perder sua "verdade e suavida".

Autonomia estética e heteronomia da arte

De Kant a Hegel

Kant afirma com vigor a autonomia da esfera estética ea irredutível subjetividade do sentimento de gosto. Diz ele,evidentemente, que o belo está ligado à moralidade, porémé apenas o seu símbolo; é verdade também que o enuncia-do de um juízo supõe uma possível adesão de todos, mas éclaro que o juízo estético, privilégio do sujeito, é livre dequalquer fim subjetivo ou objetivo.

Um tal desinteresse diante da realidade concreta e ma-terial coloca em problema: que vantagem pode a estéticaextrair de uma autonomia que a separa tão radicalmente detodas as outras esferas de atividades humanas, quer se trateda ciência, da moral ou simplesmente da vida quotidiana?

Kant concede uma preferência ao belo natural sobre obelo artístico, excetuando os casos raríssimos em que inter-vém um gênio criador de uma obra-prima: significa isto quea arte, em geral, e as belas-artes, em particular, desempe-

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146o que é estética?

nham apenas um papel menor na atitude do homem diantedo mundo, diante também da sociedade? O lugar quaseinexistente que Kant concede à criação artística e às obrasde arte, parece, em todos os casos, prová-Io. De fato, a cons-tituição de uma autonomia estética, desempenha um papelprimordial nos sucessores de Kant.

Observamos, acima, que a estética, desde seu nasci-mento como disciplina, desapareceu quase em seguida en-quanto "ciência do belo"." Este argumento permitiu-nosmostrar como essa estética renascia enquanto discurso filo-sófico específico. Em Kant, este discurso mantém-se a umadistância respeitosa da prática concreta das artes. Um poucodemais, sem dúvida! Mas a estética kantiana apresenta avantagem de esclarecer de maneira magistral as questõesconfusas das épocas anteriores. Estamos, pois, em presençade uma remodelagem completa da problemática estética,que diz respeito especialmente às relações entre o sujeito ea realidade, às relações entre a arte e a natureza, ao papelda imitação nas belas-artes, ao papel intermediário da arteentre o conhecimento e a moral.

A importância de Kant não escapa a seus contemporâ-neos. Em 1801 - três anos antes da morte do filósofo deKónigsberg - Friedrich von Schelling 0775-1854) declara:"Antes de Kant, toda doutrina da arte na Alemanha era, ,puro produto da Estética de Baumgarten - visto que estaexpressão foi usada pela primeira vez por Baumgarten. Paraapreciá-Ia, basta assinalar que ela é, por sua vez, um reben-to wolffiano. No período imediatamente anterior a Kant em,que reinavam em filosofia a insípida popularidade e oernpirismo, instalaram-se as bem conhecidas teorias das belasartes e das belas ciências, cujos princípios eram as proposi-

")Cf. acima, primeira parte. "Desligamentos e autonomía", capo III.

Marc jimenez 147ções fundamentais da psicologia dos ingleses e dos france-ses."

Aqui também não podemos deixar de nos surpreendercom a 'espantosa distância crítica demonstrada por essespensadores em relação a seus contemporâneos. Schelling,que nessa época elabora sua própria "filosofia da arte", nãohesita em criticar vigorosamente os que explicam o belopela psicologia empírica e que falam da "maravilha da arte"de maneira tão "ilurninadora e escurecedora" quanto os quenarram "histórias de fantasmas e outras superstições". Irô-nico e acerbo, vilipendia as estéticas "culinárias" que com-põem "receitas ou livros de cozinha", e querem sopesar osingredientes necessários, por exemplo, para a tragédia: "muitoterror, mas não demasiado; tanta piedade quanto possível, elágrimas incontáveis"! Da mesma forma, mostra-se feroz comos pseudokantianos, em sua maioria professores e colegascomo ele, que aprendem de cor a Crítica da faculdade dejulgar estética e a transportam a título de estética para suascátedras e seus escritos.

Em sua opinião, ninguém foi ainda capaz, depois deKant, de elaborar uma verdadeira ciência filosófica da artecom uma "validade universal e numa forma rigorosa". Ora,esta é a intencão de Friedrich von Schelling: construir umsistema estético levando em consideração a evolução históri-ca da arte. Tal sistema marcaria a diferença entre a arte antigae a arte moderna porém consideraria esta oposição comosecundária: esta última seria apenas a manifestação de umaArte unitária original, de um Absoluto. E, naturalmente, cadauma das artes, a pintura,a música, as artes plásticas, e cadauma das obras de arte isoladas, seriam outras tantas manifes-tações temporárias, particulares, deste Absoluto: "Segundo todaa minha visão da arte, a arte é ela mesma uma expansão doAbsoluto L..J. Somente na história da arte se revela a unidadeessencial e interior de todas as obras de arte e o fato de que

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148 o que é estética?

todos os poemas provêm de um único e mesmo Gênio, oqual na oposição entre arte antiga e arte moderna tambémsomente se mostra sob duas figuras diferentes".

Estes trechos do "Curso de filosofia da arte"de Friedrichvon Schelling mostram que os herdeiros diretos de Kant,formados em sua escola, não são adeptos incondicionais desua filosofia. O contexto histórico desempenha, seguramen-te, um papel considerável. A época subseqüente à Revolu-ção não canta mais o idílio, estabelecido desde Descartes ,entre o homem e a razão triunfante. Houve a queda deRobespierre (de Terrnidor),o Tribunal revolucionário e oGrande Terror de 1794. A própria fé na razão, supostamenteconsiderada guia da humanidade na estrada de um progres-so contínuo e infinito em todos os domínios ciência moraldireito, política, é abalada. '"

Schelling, amigo do poeta Hôlderlin e de Hegel, temrazão ao indicar a concomitância do acontecimento históri-co de 1789 - a "revolução nos fatos" - e da transformaçãointelectual devida a Kant - a "revolução nas idéias". Masesta simultaneidade implica também que o refluxo dos ide-ais revolucionários é acompanhado por um recesso da filo-sofia Kantiana.

Kant esforçara-se por limitar estritamente os poderesda razão ao mundo dos fenômenos. Ele obstruíra, por assimdizer, a questão do Ser: o Absoluto, a Verdade, as coisas emsi, os números, não são da alçada da razão. O conhecimen-to é possível porque um sujeito, dotado de princípios apriori, transcendentais, "informa" a realidade empírica. Umatal prioridade concedida ao espírito decorre, portanto, deum idealismo, mas de um idealismo transcendental.

Em compensação, Schelling - acabamos de vê-lo -,Fichte ,e Hegel embaralham as fronteiras estabelecidas porKant. A razão kantiana e às suas ambições, finalmente mo-destas, substituem o espírito orgulhoso, ávido por conhecer

Marcjimenez 149o absoluto, capaz de perceber os próprios poderes e pensa-mentos de Deus. O raciocínio é substituído pela especula-ção. A razão, segundo Kant, supunha um método exigente,rigoroso, rebelde às fantasias da imaginação, às intuições,ao sentimento. Em Fichte e Schelling, o espírito substitui, sese pode dizê-lo, a razão. Este espírito está a serviço de umeu, de uma subjetividade, de um "gênio" que encarna indi-vidualmente todas as faculdades com que a natureza dotouo homem, incluindo os mais contrários aparentemente: arazão e a intuição, o intelecto e a sensibilidade.

Em Fichte (I762-1814) este idealismo é subjetivo: re-pousa ele sobre a unidade do espírito, do eu. Este eu é livree independente: é ele que coloca o mundo fora de si. Mas,ao mesmo tempo, este eu sente dolorosamente sua impo-tência em aceder ao conhecimento absoluto das coisas. So-frimento ambíguo de um eu que se sabe finito, limitado,mas que aspira ao infinito, ao ilimitado e a fundir-se naunidade do mundo, do cosmos. Fichte conserva de Kant aidéia de intersubjetividade, de universalidade, dando-lhes,contudo, um conteúdo concreto. Pensa na constituição deum Estado que regule de forma racional a vida do indivíduono interior da comunidade, tanto no plano econômico epolítico quanto no plano moral e cultural.

Schelling representa a vertente objetiva deste idealis-mo. O espírito não se confunde com o eu. Ele existe tam-bém exteriormente, na natureza: objetiva-se nela. Que faz oartista que cria? Objetiva concretamente a idéia que traz emsi. A arte é, aliás, o espaço por excelência em que o espíritoe a natureza se reconciliam, em que o eu e o mundo seunem e em que se fundem o indivíduo e o universal. Torna-se ele, portanto, manifestação de um Absoluto.

Veremos como Hegel ultrapassa estes dois conceitosidealistas, como a arte, inserida na história, é a revelação, oaparecimento do absoluto sob uma forma sensível.

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150 o que é estética?

É claro que estas filosofias pós-kantianas atribuem àarte um status muito diferente do que aquele que possuíana Crítica da faculdade de julgar e, com maior razão, nosconceitos anteriores. De todas as atividades humanas, elarepresenta doravante a que melhor responde a aspiraçõesessenciais, de ordem metafísica ou teológica. As concep-ções românticas, provenientes da reação antiluzes dos escri-tores e poetas do Sturm und Drang, estão de acordo comessas teses filosóficas.

O movimento pré-romântico Sturm und Drang ("tem-pestade e ímpeto") nasceu antes da Revolução Francesa,por volta de 1770, sob o imperador Frederico lI, em plenoperíodo Aufklârung, Animado por alguns jovenscontestatários hostis ao racionalismo confortável e burguês,ele desaparece em 1780. Não teria deixado traços na histó-ria literária se escritores e filósofos célebres, Schiller, Goethee Herder sobretudo, não o tivessem apoiado.

O Sturm und Drang, momento de exaltação, rebeldeao conformismo, é efêmero, mas visto sob o ângulo dessestrês representantes ilustres, constitui um prelúdio do roman-tismo. "Romantismo", uma palavra difícil de definir: Friedrichvon Schlegel exige duas mil páginas para tentar a operação.É uma forma como outra qualquer de dizer que é impossí-vel. Contentemo-nos com alguns pontos de referência.

Goethe, autor dos Sofrimentos dojovem Werther(1774),já é romântico. Schiller, autor de Os bandidos - igualmente.Mas esses "pré-românticos" evoluem para o classicismo, so-bretudo pelo final do século. Vê-se que a periodização clás-sico-romântica na Alemanha não corresponde ao classicismofrancês do século XVII, nem ao romantismo que a ele suce-de no final do século XVIII.

Os autores da geração do Sturm und Drang são "clás-sicos", porque consideram que a arte grega, nascida - se-gundo as próprias palavras de Goethe - sobre a "terra clás-

Marc]imenez 151sica", representa a "perfeição inacessível", a beleza ideal eintemporal. Este conceito goetheano e schilleriano da artegrega, considerado regressivo por certos contemporâneos,interpenetra-se com a outra fonte importante do romantis-mo alemão: a Idade Média. O próprio Goethe, antes doPartenon, "descobrira" a catedral de Strasbourg e se entusi-asmara pelo estilo gótico. Novalis (1772-1801) celebra a cris-tandade da Idade Média.

No início do século XIX, aparece então um curiososincretismo na filosofia, na poesia, nas artes em geral: pode-se ser, ao mesmo tempo, herdeiro das Luzes, progressista eromântico conservador, clássico e romântico, místico e pa-gão, metafísico e preocupado com a organização do direitoe do Estado, universalista e (em breve) nacionalista. Goethepublica Os Propileus (1798), verdadeiro manifesto clássico,enquanto no mesmo período Novalis, místico e platônico,escreve na revista dos irmãos Schlegel, o Athenaeum, pri-meiro órgão oficial do romantismo. Ele é mesmo um dosanimadores dessa publicação efêmera (1798-1800).

Como explicar esta mistura de fontes e de inspiraçõesdiversas e contraditórias a não ser pela existência de umamesma causa: salvar a Europa graças à cultura, à arte, àpoesia. Conscientizar cada pessoa de que ela pode tornar-se "cidadã do mundo" e de que todas as nações vizinhas,então em guerra - França, Itália, Austria, Alemanha, Ingla-terra - formam um "corpo artístico ideal"(estas expressõessão de Goethe).

Mas a realidade frustra qualquer esperança. A Idéiaeuropéia ainda está longe, sem contar aqui os Países Bai-xos, a Espanha e a Rússia, que acabarão por se coalizarcontra a França. O Primeiro cônsul tornou-se consul vitalí-cio (1802). Em 1804, Bonaparte torna-se Napoleão e suastropas apressam-se em atirar-se sobre a Alemanha: derrotasduramente sofridas (sobretudo em Iena em 1806) pela Prússia

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152 o que é estética?

e por uma Alemanha que sonha, sem por demais acreditar,em tornar-se uma nação.

Não poderemos compreender a reação romântica, emarte e em filosofia, se fizermos abstração da perturbação detoda uma geração de intelectuais diante da situação externaperigosa e de uma situação interna de crises econômicas,sociais, políticas e ideológicas particularmente preocupantes.

A reabilitação da Idade Média, a volta à Antiguidadegrega e latina contribuem para a restauração cultural de umpaís que procura preservar-se do caos. Pouco antes da inva-são das tropas francesas, Novalis define perfeitamente o es-tado de espírito da época: "Na Alemanha, já se podemdiscernir, com certeza absoluta, os pródromos de um mun-do novo. A Alemanha precede, em marcha lenta, mas segu-ra, todos os outros países europeus. Enquanto estes últimosestão ocupados com guerras, com especulações e assuntosde partido, a Alemanha dedica todo seu esforço a tornar-sedigna de participar de uma época de cultura superior e esseadiantamento deve assegurar-lhe, com o tempo, uma gran-de preponderância sobre todos os outros"."

Seja qual for o papel da Idade Média, do sentimentoreligioso, do cristianismo no pensamento romântico, tantoalemão quanto francês (Chateaubriand e Victor Hugo), aGrécia antiga, mais ainda do que a Itália, assedia o espíritodos filósofos e dos poetas.

Mas podemos desde já precisar o que dizíamos acima:a Grécia romântica não é a do século clássico nem a dosescolásticos da Idade Média. Também não é mais a deWinckelmann, apaixonado pela "nobre simplicidade e pelagrandeza serena" das estátuas gregas. A Grécia doravanteentra novamente na história graças às escavações arqueoló-

"'Friedrich Novalis. Petits écrits, Paris: Aubier 1947, trad. G. Bianquis, p. Iô/seg.

\

Marcjimenez 153gicas e, ao mesmo tempo, instala a arte em sua própria his-tória. Ela revela o ponto de vista a partir do qual se podecontemplar a civilização ocidental desde suas origens e com-preender a cultura como processo, evolução, vida e, portan-to, morte.

Mais ainda: o modelo grego permite pensar amodernidade nascente e antecipar, como em Baudelaire,mas já em Hegel, o caráter efêmero de uma arte que tentaromper com a beleza eterna. E o paradoxo da segunda me-tade do século XIX é realmente o fato de a arte grega conti-nuar mostrando-se como um modelo exatamente no mo-mento em que os modelos desabam.

Resumindo: no início do século XIX, no próprio qua-dro da autonomia da estética, o papel e o status da arte, sãomodificados. Duas tendências aparecem. Há os filósofos(Schelling) ou poetas (Hôlderlin) que lhe conferem umavocação metafísica ou teológica: a arte dá acesso ao Absolu-to, à Verdade, ao Ser, a Deus. Pode-se falar de uma sacra-lização da arte. Mas há também os que lhe atribuem tarefastemporais, pedagógicas sociais e políticas. Trata-se, nestecaso, de uma secularização da arte.

Sacralização e secularização nem sempre são antago-nistas e podem existir no seio de uma mesma estética, porexemplo, em Schiller ou em Nietzsche. Mas o importantereside sobretudo no seguinte fato: a estética conquistou suaautonomia tendo por base uma libertação progressiva daarte em relação às tutelas metafísica, teológica, religiosa emoral; tais desligamentos são acompanhados de uma eman-cipação em relação às coações sociais e institucionais: reco-nhecimento do status de artista, questionamento das con-vençôes acadêmicas.

A estética kantiana representa o momento em que aautonomia da estética coincide com a autonomia da arte.De forma abstrata, todavia: a posição forma lista de Kant

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154o que é estética?

condena a arte à impotência e à inutilidade. Em compensa-ção, no momento em que a arte é encarada concretamenteem sua relação com a sociedade como prática efetiva, cria-dora de obras, as ligações reaparecem.

Surge então a pergunta: não será a autonomia estéticaque permite pensar que a arte, em todos os tempos, nuncafoi autônoma?

Os elos entre a arte e a religião, a metafísica, as mitolo-gias, os diversos sistemas de representação do mundo, sem-pre existiram, seja na Grécia, na Idade Média ou no séculoXVIII. Em todas as épocas, filósofos, pensadores ou os pró-prios artistas tentaram atribuir-lhe um papel na sociedade erestringi-Ia a tarefas pedagógicas, por exemplo. Mas tais elosnão eram pensados dentro de um discurso específico. So-mente a constituição da estética como domínio autônomopermite assumir, no plano teórico, esta heteronomia.

Talvez, para chegar à constatação de que tal heteronomianunca foi total e de que a criação artística sempre se rebe-lou contra as ordens que lhe eram impostas." De fato, a artesempre esteve onde as doutrinas e os sistemas convencio-nais não a esperavam: na Cidade ateniense do século Va.c., ela escarnece das admoestações de Platão, na Renas-cença, usa a astúcia com as convenções da perspectiva; noinício do século XIX desafia as normas da representaçãopictórica e as leis da harmonia tradicional. As doutrinas, ossistemas, as teorias da arte intervêm com atraso: a arte, emsua evolução, até agora sempre os precedeu ou os desmen-tiu rapidamente.

Mesmo a sacralização da arte afirmada pelos filósofospós-kantianos e os poetas românticos, de Schiller a Hegel,não escapa a esta sorte. Novalis, Friedrich von Schlegel,

~ICf. mais adiante, segunda parte: "A heteronornia da arte".

Marc]imenez 155Schelling, Hôlderlin consideram que a Arte se torna rival dafilosofia e da religião: ela é revelação do Ser. Este conceitoteológico-metafísico atinge seu apogeu na filosofia da artede Hegel. Mas a "teoria especulativa da arte"32 desenvolve-se no contexto de uma arte que ainda não conhece as revo-luções formais. Ela representa, provavelmente com Hegel, aúltima tentativa para pensar a Arte em sua ligação maiorcom o Absoluto, antes que as artes entrem na fase "absolu-tamente moderna" das vanguardas. (Ver a terceira parte: "Asrupturas"). Terminaremos, portanto, este grande capítulo con-sagrado à autonomia da arte pela estética de Hegel.

Esta obra considerável representa uma síntese das con-cepções pós-kantianas, idealistas e românticas do primeiroterço do século XIX. Além disso, ela constitui, com a deKant, uma das referências obrigatórias da estética modernae contemporânea. Explicaremos por quê.

Mas uma história da estética é obrigada também a fazerjustiça a concepções mais modestas, todavia característicasdas tensões, até mesmo das crises atravessadas por esseperíodo: tensões e crises que o sistema hegeliano procura,precisamente, superar.

A educação estética segundo Schiller

Friedrich von Schiller teve consciência, sem dúvida antesde quem quer que seja, do perigo de abstração na estética

'''Nome dado por jean-Marie Schaeffer à tradição romântica, ocidental, nascidana Alemanha após as Luzes, que afirma revelar a natureza da Arte, como teoriado Ser. A Arte.sacralizada em excesso, transforma-se em saber "estático" e substituia religião. A influência do sistema especulativo estender-se-ia, segundo jean-Marie Schaeffer, até às teorias e às práticas da arte moderna e contemporânea. Cf.L 'a rt de lâge moderne. L'estbétique et Ia philosophie de / 'art du XV/li à nos jours.Paris, Galimard 1982.

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156o que é estética?

kantiana. Menos otimista do que Kant, constata ele em 1795que o "curso dos acontecimentos" não permite mais satisfa-zer-se com a arte idealista. A época está entregue aoutilitarismo ao crescimento do mercado - inclusive do mer-,cado de arte - e o progresso científico e técnico avança apassos largos. A ciência alarga seus limites, diz Schiller, eestreita os da arte.

Mas os acontecimentos são também os conflitos políti-cos e a ameaça de uma guerra que põe em perigo o destinoda humanidade. Observemos a clarividência de Schiller: "L.,]é a necessidade que reina totalmente, agora, e que verga ahumanidade decaída sob seu jugo tirânico. A utilidade é ogrande ídolo da época; ela exige que todas as forças lhesejam submetidas e que todos os talentos lhe prestem ho-menagern"," que peso pode ter o mérito espiritual da arte,atividade irrisória em meio à "quermesse ruidosa do sécu-lo?"

Porém, constatar o papel mínimo da arte já significasubentender que ela poderia, sob certas condições, desem-penhar funções mais essenciais. E as vinte e sete Cartassobre a educação estética do homem (Briele über dieâstbetiscbe Erzicbung des MenschenJpublicadas por Schiller

entre setembro de 1794 e junho de 1795 têm exatamente afinalidade de definir tais funções. É neste ponto que elemodifica consideravelmente a teoria de Kant.

Evidentemente, as Cartas, Schiller o confessa, têm ins-piração kantiana. É preciso lembrar que Kant, mesmo afir-mando a independência da estética em relação à moral,mantinha contudo um elo simbólico entre o belo e amoralidade. Schiller adere plenamente a esta concepção,

l~Friedrich von Schiller, Lettres sur l'education estbétique de l'bomme, Paris, Auhier,edition Montaigne, 1943, traduzidas e prefaciadas por Robert Leroux, segundacarta, p. 73.

Marcjimenez 157mas procura dar-lhe um sentido concreto. Artista, escritor,autor dramático e poeta, defende a idéia de que sua arte e aarte em geral não são inúteis. Elas podem servir aos desígni-os da humanidade, isto é, uma vida harmoniosa e livre, deacordo, ao mesmo tempo, com a natureza e com a virtude.Este ideal satisfaz tanto ao interesse do indivíduo quanto aodo homem, no sentido genérico do termo. Reconhecer esteinteresse, de alguma forma superior, em nada afeta a idéiade satisfação ou de gozo desinteressados. Trata-se simples-mente de desintelectualizar a estética de Kant e de deslocaras exigências kantianas do indivíduo para a coletividade.Por exemplo, de consignar ao Estado político as mesmasfinalidades - ou melhor, as mesmas ausências de finalida-des - da subjetividade.

Schiller dissipa o equívoco mantido por Kant no cora-ção de sua doutrina: o belo, na opinião deste último, de-pende exclusivamente da maneira pela qual o sujeito serepresenta a forma do objeto e o sentimento experimentadoé ligado à harmonia de nossas faculdades, entendimento eimaginação. De um lado, Kant reconhece que nossas facul-dades são solicitadas pelo objeto considerado belo (umarosa, uma tulipa) mas de outro lado o sujeito deve, porassim dizer, "esquecer" esta solicitação para somente se in-teressar pela forma do julgamento puro. Há aqui um enigmaque podemos simplificar: o belo me traz prazer mas eu nãodevo ter consciência deste prazer, caso contrário o belo nãoé belo.

Nào seria mais simples reconhecer que o belo produzem mim um efeito que em nada macula a pureza de meujuízo? Um efeito moral, perfeitamente respeitável se esteobjeto representar qualidades intrínsecas nas quais reconheçoum produto da natureza e da liberdade: a regularidade deum objeto, de uma obra, e a harmonia entre as partes queas compõem dão a impressão de que eles obedecem ape-

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r

158o que é estética?nas a suas próprias leis e isto lhes confere uma espécie de"naturalidade". Eles traduzem uma perfeita adequação daforma à matéria como se a forma fosse produzida livremen-te por essa mesma matéria, sem coação nem artifício.

Estamos próximos da definição kantiana das belas-ar-tes que devem "revestir a aparência da natureza", emboratenhamos consciência de que se trata de arte. Da mesmaforma reconhecemos a idéia kantiana segundo a qual o,gênio é aquele graças ao qual a natureza prescreve suasregras à arte. Mas Schiller, ao contrário de Kant, não se con-tenta em precisar que o objeto belo deve possuir certas qua-lidades. Resta determinar a natureza do efeito que tal objetosuscita em nós e por que razão o objeto belo, singular, har-monioso, encontra eco na própria natureza do homem. Kantfalava de faculdades, de entendimento, de imaginação e derazão. Quanto a Schiller, exprime-se ele em termos de ins-tintos próprios da natureza humana: por que a beleza, aharmonia da forma e da matéria agrada? Porque engendra aharmonia dos dois aspectos da natureza humana, a razão ea sensibilidade. Porque ela é um apelo à conciliação entre oinstinto formal (Formtrieb) e o instinto sensível (sinnlicher

Trieb) .Na realidade, a tradução comumente aceita da palavra

alemã Trieb como instinto é inadequada. Seria melhor falarde pulsão, de impulso dinâmico em lugar de instinto(Instinkt), tendência inata, imperativa. Schiller, aliás, definetais pulsões como energias. O instinto não é perfectível, emcompensação as pulsões podem ser orientadas sob a influ-ência da educação. Para um herdeiro das Luzes como Schiller,não há projeto educativo sem a crença num progresso doindivíduo e da humanidade. Se um tal progresso é possívelé porque a natureza humana não se reduz ao antagonismoentre a pulsão sensível e a pulsão formal, entre as sensaçõese a razão. A seus olhos, a concepção sensualista - a de

-

Marcjimenez 159Burke, por exemplo - e a teoria intelectualista - a de Kant -cometem o erro de privilegiar um dos aspectos da naturezahumana em detrimento do outro. De fato, o homem só serealiza pela mente e só desabrocha na harmonia destaspulsões, em outras palavras, quando as limita a arribas gra-ças à intervenção de uma terceira pulsão, à qual Schiller dáo nome de pulsão de jogo (Spieltrieb). Entregue à pulsãosensível, o homem é prisioneiro de sua natureza, de suasnecessidades físicas; colocado sob o jugo exclusivo da pulsãoformal, é ele coagido por sua razão, vítima de seu poderlegislador, abstrato e desencarnado. Somente o jogo das fa-culdades - entre razão e sensibilidade - permite-lhe escapara estes dois tipos de servidão. Ora, que outra atividade alémda arte - ação recíproca da forma e da matéria - representamelhor esta liberdade que reina no Estado estético?

Assim, a educação pela beleza permite ultrapassar oEstado sensível, aceder ao Estado estético graças ao domí-nio "racional" das pulsões, e chegar ao Estado político, ga-rantia da autonomia assim adquirida. Nesta passagem deum Estado a outro, a experiência do belo é fundamental: obelo enobrece moralmente e este progresso da moralidadesignifica um progresso da razão. Ao termo do processo, istoé, da educação estética do homem, projeta-se o Estado idealno qual o Estado da razão, o Estado moral e o Estado esté-tico se confundem.

É digno de nota que Schiller queira assim, sem traí-Ia,ultrapassar a estética kantiana, transpondo-a na ordem dosfenômenos, no plano da realidade empírica, social, econô-mica e política. A autonomia estética desempenha, portan-to, um papel essencial. Graças a ela, torna-se possível con-ceber um Estado em que a liberdade, reconhecida a princí-pio no domínio da arte, pudesse estender-se a todos osoutros domínios, o das relações sociais e das relações morais.

Schiller sabe muito bem que é impossível atingir nova-

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160 o que é estética?

mente a Grécia antiga, assim como é evidente que não sepode aceder à perfeição absoluta. Mas, se admiramos a artegrega na época do apogeu de Atenas, é porque imaginamosque os gregos tenham podido aproximar-se dessa perfei-ção. A iniciação às artes, à música, à pintura, à poesia favo-rece o desabrochar do indivíduo. O papel do Estado moder-no é o de desenvolver as condições que permitam a todosbeneficiar-se do mesmo privilégio.

Mas Schiller, no final do século XVIII, não se entrega ailusões: o desenvolvimento da sociedade, sob o efeito con-jugado da ciência e da técnica, não é favorável à emergên-cia do Estado estético. Sua crítica do Estado moderno pare-ce-nos hoje estranhamente familiar: "O homem que em suaatividade profissional está ligado somente a um pequenofragmento isolado do Todo, adquire apenas uma formaçãofragmentária; tendo eternamente nos ouvidos só o ruídomonótono da roda que faz girar, nunca desenvolve a har-monia de seu ser, e em lugar de imprimir em sua natureza amarca da humanidade, ele é somente um reflexo de suaprofissão, de sua ciência" .31

Não é mais apenas o utilitarismo da época que ele de-nuncia aqui, mas o mecanismo frio de uma organização so-cial que submete os indivíduos a um princípio de rendi-mento econômico, com as suas conseqüências: atividadefragmentada, lutas dos grupos de interesses, vida mutilada,ressentimento dos excluídos da cultura em relação à elite.Ora, somente a beleza, da qual podemos gozar ao mesmotempo "enquanto indivíduo e enquanto espécie", tem o poderde abolir os privilégios da ditadura: "No Estado estético,todo mundo, mesmo um servente, que é apenas um instru-

;4/bid; sexta carta, p. 108-109.

Marcjimenez 161mento, é um cidadão livre cujos direitos são iguais aos demaior nobreza."

Observávamos, acima, que sacralização e seculariza-ção da .arte não são termos contraditórios; perguntávamosigualmente se a constituição de uma autonomia estética nãoé uma condição necessária para perceber que a arte nunca éautônoma e que ela está sempre em relação com a realidadeempírica. As Cartas sobre a educação estética do homem nosparecem ilustrar perfeitamente estas duas idéias.

Terá a arte um papel a desempenhar na evolução dohomem e da humanidade? Deverá a estética assumir umafunção política? Kant respondia negativamente a estas duasperguntas, de acordo com os próprios princípios de sua fi-losofia. Schiller responde resolutamente de forma positiva.Considera ele, de maneira muito moderna, que a criaçãoartística autônoma é também um fator de transformação dasociedade.

Paradoxalmente, as teses de Schiller não ocupam nareflexão estética contemporânea o lugar que lhes pertence.Todavia, sua concepção das pulsões energéticas, sensíveis,formais e lúdicas não deixa de apresentar alguma seme-lhança com a oposição nietzcheana entre o apolíneo e odionisíaco. Da mesma forma, a sublimação estética daspulsões libidinais inconscientes, à qual Sigmund Freud atri-bui o poder de estruturar "formalmente" a obra de arte parapermitir seu reconhecimento social, lembra, em vários pon-tos, a teoria schilleriana da beleza.

Entre os contemporâneos, o filósofo Herbert Marcuse éum dos raros a ter atraído a atenção para o caráter explosivodas Cartas. Em sua obra Eros e civilização (955), consideraque a teoria de Schiller antecipa as formas modernas decontestação dirigidas contra o princípio de rendimento e atirania da razão que reinam nas sociedades pós-industriais.

Atualizar uma teoria historicamente datada e transpô-Ia

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162 o que é estética?

para a sociedade moderna é certamente uma operação ar-riscada. Seria fácil objectar a Marcuse que Schiller não ante-cipa nada, que ele pertence perfeitamente ao seu tempo ede maneira nenhuma, ao nosso. Porém, é verdade que a"crise" da estética e a questão das relações entre a arte e apolítica assim como são vistas por Schiller não podem aindahoje nos deixar indiferentes.

A iniciação à estética segundo Jean-paul

johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), chamado Jean- Paul, não se beneficia, à semelhança de Schiller, do lugarque deveria caber-lhe em estética. Nietzsche considera-o, to-davia, com razão, como um dos homens "mais característicosde sua época". Esta homenagem não nos parece exagerada.Contudo, não falaremos detalhadamente do Curso prepara-tório de estética que publica em 1804.35 De resto, uma tal obradesafia uma exposição sistemática: repleto de exemplos e dereferências eruditas, alusivo em cada linha, alternando o sé-rio, o cômico, a ironia, o humor e às vezes o grotesco, ele émais uma obra de um romancista do que de um teórico.

jean-Paul felicita-se por não ter escrito um tratado cien-tífico sobre o belo nem um sério discurso sobre a arte. Nãose trata então, mais de uma poética, de que uma estética?Esta censura já lhe foi dirigida. Ele a torna às avessas: "elanão é nem mesmo isso"! E confessa tê-Ia escrito na qualida-de de "brincadeira paródica". Os momentos de autocríticasão aliás bastante surpreendentes: Jean Paul justifica o título"curso preparatório" (Vorschule) por analogia com as pri-

;'.Jean Paul, Cours préparatoire d'estbétiquc, I.ausanne, L'Age d'Hornme, trad. A.-M. Lang e J-1.. Nancy, 1979.

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Marcjimenez 163me iras classes do ensino primário, em que as crianças sereúnem no pátio coberto para aprender suas lições.

Quanto à estética propriamente dita, não tem ele outraambição além da de enunciar seus rudimentos: "A verdadei-ra estética, escreve, somente será escrita, portanto, por umhomem capaz de ser ao mesmo tempo poeta e filósofo".Ora, Jean Paul se sabe poeta, não filósofo. Observa, ironica-mente. "Da presente estética nada tenho a dizer a não serque ela pelo menos foi feita por mim mais do que por ou-tros e que ela é minha na medida em que, na era do impres-so, quando a escrivaninha está tão próxima da biblioteca,alguém pode afirmar ser "seu" um pensamento." Esta estéti-ca terá alguma qualidade? Sim, responde ele num excessode modéstia, se a avaliarmos pelo número de dias consumi-dos para redigi-Ia, isto é, dez mil!

Se a estética ainda precisa ser escrita, isto significa quenenhum de seus predecessores e poucos de seus contem-porâneos conseguiram fazê-lo. Alguns franceses merecematenção. Fontenelle, Voltaire O), alguns ingleses, como HenryHome, pouquíssimos alemães, nem mesmo Schiller. Quantoaos "modernos este tas transcendentes" os que juntam suateoria pelo "padrão" kantiano - como se fala do padrão -modelo de uma costureira - é preferível não dizer nada!

Por que esta estética excessiva, exuberante, românticasem o ser realmente, suscita nosso interesse? As razões sãomúltiplas.

O Curso preparatório de estética, já o dissemos, não éum tratado, mas um conjunto de parágrafos: das grandesdivisões que compreendem uma oito, a outra quinze pro-gramas. Os temas são de uma extrema diversidade: o cômi-co, o humor, o grotesco, o burlesco, o dito espirituoso (Witz),a alegria, a epopéia, o drama, o romance, a ode, a elegia, afábula, o epigrama, a pintura de paisagem, a musicalidadeda prosa, ete.

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164o que é estética?

Jean-Paul não inventa um estilo nem um modo deexpessão. Faz muito mais: põe em prática o gênero literáriopromovido pelo grupo do Athenaeum: uma sucessão deparágrafos, de aforismos mais ou menos longos, "fragmen-tos" no espírito de Friedrich von Schlegel e de Novalis. Noprimeiro número da revista, em 1798, Schlegel publica maisde cem fragmentos atribuídos a Novalis com o título Grãosde pólen. Restam ainda mais de três mil a serem editados!Este estilo convém a Jean-Paul.

Porém, esta escritura fragmentária não é simplesmenteproblema de estilo, nem para os românticos, nem para jean-Paul; o fragmento é um desafio ao pensamento sistemático,ao imperialismo da razão dedutiva e organizadora. O frag-mento é efetivamente como um grão de pólen encarregadode semear a verdade. Poderíamos dizer, paradoxalmente,que o fragmento não é fragmentário: é um microcosmo per-feito em si mesmo: "Semelhante a uma pequena obra dearte, um fragmento deve ser totalmente separado do mundocircunvizinho e fechado sobre si mesmo como um ouriço",declara Schlegel no Athenaeum. Para jean-Paul, receptivoàs crises de sua época doente e sobretudo à profunda crisecultural da qual o romantismo é o sintoma flagrante, o frag-mento, em sua forma mutilada, constitui a escritura adequa-da a esses tempos febris.

Mas o fragmento, graças à sua concisão, é também aforma de expressão ideal do Witz, da dito espirituoso. Abrincadeira humorística não é apta, como o mostrará Freud,a conjurar o mal-estar, a neurose e, ao mesmo tempo, arevelá-Ios? Sendo um condensado de humor e de ironia, oWitz, em sua fulgurância irônica, não traduz o desencanto,até mesmo o niilismo que povoam esse período?

Como Schelling, jean-Paul sente intensamente a sepa-ração dolorosa entre a aspiração do eu ao Absoluto e aimpossibilidade de aceder a ele. Rememorar a Grécia anti-

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Marcfimenez 165ga, modelo imorredouro de delicadeza artística e ética, re-presenta então o único remédio. Um dos mais longos frag-mentos do Curso é um hino aos gregos, à "fresca juventudedo mundo", em resposta à aridez da existência naquele iní-cio do século XIX: "Que viva e delicada luz este sol e essalua de Homero, a Ilíada e a Odisséial"

Jean-Paul vê a Grécia com os olhos de Winckelmann: osonho torna-se fantasma: "Os gregos dão aos deuses a feli-cidade, aos homens a virtude L..J. A filosofia não era o apren-dizado de um ganha-pão, mas da vida, e o discípulo enve-lhecia nos jardins do mestre L..l. A arte e a poesia não eramaprisionadas, enterradas atrás dos muros de uma capital,pelo contrário, elas planavam e flutuavam sobre a Gréciainteira", etc.

"Nada pulula mais em nossa época do que os estetas,observa em 1804. Mas ele é um dos primeiros a beneficiar-se da autonomia estética. Aproveita o fato para criar umalinguagem inédita, um discurso específico, único em seugênero, que será lembrado mais tarde por Schopenhauer eNietzsche e, no século XX, por Walter Benjamin e TheodorAdorno.

Mas entre jean-Paul e os que aprenderão as lições deseu Curso preparatório de estética há Hegel. um pensamen-to sistemático, coerente, uma das mais espantosas síntesesdas diversas doutrinas e teorias sobre a arte. Entre a extrava-gância poética de Jean-Paul e o sistema filosófico hegelianoaparentemente não há denominador comum, a não ser aGrécia, esse espelho antigo diante do qual, por alguns de-cênios, a modernidade permanecerá presa, fascinada pelostraços de sua própria imperfeição.

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166o que é estética?

Hegel e a filosofia da arte

É possível ensinar na universidade uma disciplina quenão existe? Já em 1805 G. W. F. Hegel coloca esta pergunta.A universidade considerada é uma das mais prestigiosas daAlemanha: Heidelberg. Nela, Hegel só se tornará professorem 1816. A disciplina que não existe - ela não se beneficiade nenhuma cátedra acadêmica com este nome - é a estéti-ca! Hegel a ensinará episodicamente a partir de 1818, nauniversidade de Berlim, depois, de maneira contínua, entre1827 e 1830.

Não é possível resumir mil e duzentas páginas de umcurso de estética, reconstituído com bastante fidelidade apartir de notas de estudantes. É preferível acentuar aqui osprincipais interesses deste monumental empreendimento.Precisemos, em primeiro lugar, em que a estética de Hegeldifere totalmente da estética kantiana.

Ao contrário do filósofo de Kónigsberg, Hegel dedicauma verdadeira paixão a todas as artes. No seminário pro-testante de Tübingen (1788-1793), onde faz amizade comHolderlin e Schelling, lê os trágicos gregos, Shakespeare eos poetas alemães contemporâneos. Em Heidelberg, depoisem Berlim, freqüenta os teatros e os concertos, visita asexposições, admira Bach, Haendel, Gluck, Mozart, Rossini.Como crítico, mostra-se severo, até mesmo injusto, para comos pintores e os músicos contemporâneos: nem uma pala-vra sobre Beethoven nem sobre Gaspar David Friedrich.Ignora o escultor Christian Rauch e a escola de Berlim.Rietschel, autor das estátuas de Gluck, Mozart, Goethe eSchiller, não é mencionado. Estranha indiferença para como que está em voga que contrasta com seu interesse pelaarte do passado: a pintura holandesa, sobretudo Van Eyck,Memling, Rembrandt; os vitrais das catedrais, Colônia, Bru-xelas; as cidades, Viena, Paris' Kant, sedentário, se apaixo-

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Marc]imenez 167nara pelas belezas da natureza, Hegel, nômade na Europado início do século XIX, somente tem olhos para o beloartístico.

Evocamos, precedentemente, as reservas de Hegel so-bre o emprego da palavra "estética". Se a adota, é por nãoter outra melhor e porque o termo já entrou em uso. Aexpressão "filosofia da arte", em sua opinião, é de fato maisadequada.

o belo: "um gênio amigável"

Já na introdução à Estética, Hegel precisa sua intenção:trata-se de mostrar que a filosofia da arte "forma um elonecessário no conjunto da filosofia". Não se trata, portanto,de elaborar um metafísica qualquer da arte, mas de partir do"reino do belo", do "domínio da arte". E convém incluiresta filosofia do belo no conjunto no sistema filosófico.

De que se fala? Das diversas belezas próprias das dife-rentes artes, específicas das obras particulares? Mas diantede uma tal diversidade, seria impossível constituir uma ciênciacom alguma validade universal. É preciso, portanto, partirda Idéia de belo. É dela que se deduzem as belezas particu-lares que se deduz o conceito. Hegel aprova Aristóteles:somente existe ciência do geral!

Curiosamente, invoca Platão e cita seu diálogo Hípiasmaior. "Devem-se considerar, não os objetos particulares,qualificados como belos, mas o Belo". É esta, todavia, umadas raríssimas concessões ao platonismo. Platão não hesita-va em criticar a arte e seu caráter ilusório, aparente, relescópia de um mundo ideal. Para Hegel também, a arte éaparência, mas esta "aparência" é real. Ela é a manifestaçãosensível, perceptível, do que os homens, os povos, as civili-zações conceberam graças a seus espíritos e exprimiram gra-

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168 o que é estética?

ças à criação de obras de arte concretas. O belo existe emtoda parte ao redor de nós. Ele intervém, diz Hegel, "emtodas as circunstâncias de vida" como neste "gênio amigoque encontramos em toda parte".

E - isto não deve nos espantar - o único belo queinteresssa é o belo artístico, o das produções humanas, coma exclusão do belo natural. Por quê? Simplesmente porqueo belo artístico é sempre superior ao belo da natureza. Éuma produção do espírito e "sendo (o espírito) superior ànatureza, sua superioridade comunica-se igualmente a seusprodutos e, por conseguinte, à arte".36

Dificilmente Hegel pode ser mais claro do que quandodeclara: "A pior idéia que atravessa o espírito de um homemé melhor e mais elevada do que a maior produção da natu-reza e isto acontece justamente porque ela participa do es-pírito e porque o espiritual é superior ao natural't."

Uma das conseqüências desta superioridade incontes-tável do espírito é que a arte não poderia ter como finalida-de a imitação da natureza. Hegel aqui opõe-se radicalmenteà tradição aristotélica em vigor na arte ocidental: "Ao afir-mar que a imitação constitui a finalidade da arte, que a arteconsiste, por conseguinte, numa fiel imitação do que já existe,coloca-se, em suma, a recordação na base da produção ar-tística. Isto significa privar a arte de sua liberdade, de seupoder de expressar o belo"." Ora, a finalidade da arte não éa de satisfazer a recordação, mas a de satisfazer a alma, oespírito.

Basta remontar o curso do tempo para perceber que o"gênio amigo" manteve sempre relações privilegiadas com a

36G. W. F. Hegel, Estbétique op. cit. t. 1. p. 8.

"Ibid.3Klhid t. I p. 34.

Marc jimenez 169religião e com a filosofia. A arte sempre simbolizou, repre-sentou, figurou o sentimento religioso do homem ou suaaspiração à sabedoria. É graças aos vestígios artísticos dascivilizações e das culturas antigas, às estátuas, aos monu-mentos, aos mosaicos, etc., que podemos reconstituir o queforam, então, as idéias e as crenças que animavam os ho-mens das épocas anteriores. Se a arte interessa Hegel atéeste ponto é porque exprime a vida do espírito e permiteque esta vida seja sentida, percebida graças às obras.

A idéia de belo e o Espírito absoluto

Ora, existe em Hegel esta inquebrantável certeza - ouesta "crença" - de que o espírito humano é ele mesmo umaparcela de um espírito que o ultrapassa: um Espírito absolu-to rege o conjunto do pensamento e da atividade humanase se desdobra ao longo da história. Este Espírito absolutoimpele para a realização da Verdade e da Liberdade, sejamquais forem os obstáculos e as vicissitudes que contrariam aação dos homens.

Naturalmente, com um pouco de pragmatismo, poder-se-ia objetar-lhe que a história está repleta de exemplos quedesmentem este "otimismo". A história não é feita de umasucessão de guerras, de injustiças, de devastações causadaspela loucura dos homens, todas elas desastres que condu-zem ao aniquilamento total das mais ricas civilizações, con-sideradas imortais.

Esta objeção não tem valor. O sistema hegeliano, porsua coerência, supera as contradições e sobretudo os acon-tecimentos que parecem contrários à realização do espíritoobjetivo. Não se trata, nele, de otimismo, mas de convicção.Já a linguagem e, em seu mais alto nível, o Conceito, são ossinais do Absoluto: o simples fato de eu poder nomear -

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170 o que é estética?

"dar nome" - ao Espírito, à Idéia, à Alma, a Deus é o indíciode uma existência que não posso negar, mesmo que eu nãopossa representar-me esta existência. Em outras palavras,sejam quais forem as contradições no mundo ou no indiví-duo, entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o belo e ofeio, a justiça e a injustiça, a forma e a matéria, o sensível eo espiritual, a liberdade e a necessidade, o subjetivo e oobjetivo, nada me proíbe pensar que o Espírito conseguirásu per á-Ios ou falando com Hegel, ultrapassá-Iasdialeticamente.

E sejam quais forem as contingências materiais, os aci-dentes da história, terei de me defrontar, no fim das contas,com três formas de absoluto: a arte, a religião e a filosofia.Evidentemente, encontrarei tais formas sob diversos aspec-tos e diferentes estágios de evolução, segundo as culturas,na Índia, no Oriente, no Ocidente, no Egito ou na Gréciaantiga, mas deverei sempre considerá-Ias como expressõesou manifestações do Espírito absoluto, indícios dessa buscainfinita da Liberdade que se confunde com a busca de Deus.

Percebe-se melhor, mesmo além da preferência de Hegelpelo belo artístico, o que o separa de Kant. Este último limi-ta o poder da Razão ao conhecimento dos fenômenos. ARazão, o espírito humano não têm acesso às coisas em si, aoAbsoluto. Para Hegel, pelo contrário, o Espírito, o Absolutoencarnam-se, de algum modo, nas próprias coisas. Nada hána realidade que não seja, em diferentes graus, a manifesta-ção do Espírito absoluto, e nada, por conseguinte, que oespírito humano, pelo menos em teoria, não possa conhe-cer: tudo o que é real é, portanto, racional e acessível àrazão. A recíproca também é verdadeira: tudo o que é racio-nal é susceptível de concretizar-se na realidade.

Para Hegel, é evidente que a tomada de consciênciadas manifestações do Espírito absoluto é um processo histó-rico. Nem sempre foi assim; este processo teve um início,

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Marc jimenez 171pode, portanto, ter um fim. Veremos que este ponto temuma importância capital para o futuro da estética. A filosofiada história hegeliana afirma que a história tem um sentido,uma significação precisa: a do progresso do Espírito quechega ao conhecimento de si, do que é realmente, enquan-to Espírito.

A arte está incluída nesta história: ela exprime, como areligião e a filosofia, a maneira pela qual o espírito conse-gue superar a oposição ou a contradição entre a matéria e aforma, entre o sensível e o espiritual. Ela é assim a manifes-tação concreta do Espírito, da Verdade na história da huma-nidade. "Se quisermos dar à arte um objetivo final, este so-mente poderá ser o de revelar a verdade, de representar deforma concreta e figurada o que se agita na alma humana.Este objetivo é comum com a história, a religião, etc.""

Percebe-se claramente, outra vez, quanto a Idéiahegeliana do belo difere da Idéia Platônica. Para Platão, aidéia do Belo, como a da Verdade e do Bem, é abstrata,intemporal, aistórica. Em Hegel, o belo é a própria realidadeconcreta, apreendida em seu desdobramento histór i-co.Quando esta realidade toma a forma sensível do beloartístico, ela determina o Ideal do belo artístico. E este idealdo belo aparece na história sob três formas fundamentais: aarte simbólica, a arte clássica e a arte romântica.

o sistema das artes

Contentar-nos-emos em lembrar as grandes linhas daclassificação das artes proposta por Hegel, insistindo sobre-tudo nas implicações no domínio da filosofia da arte. Se aEstética é de longe sua obra de mais fácil acesso, esta elas-

.W Ibid p. 77.

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II

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172 o que é estética?

sificação e o sistema no qual ela desemboca apresentamalgumas dificuldades que não se devem unicamente a umafalha na compreensão do leitor.

Acabamos de precisar que o Ideal do belo designa amaneira pela qual a Idéia do belo se realiza historicamenteem formas particulares da arte. Cada uma destas formascorresponde assim a um período determinado da história.

q A arte simbólica: como a arte hindu, para Hegel, é umaforma rudimentar de arte simbólica, o exemplo mais per-feito é a arte egípcia.

q A arte clássica: a arte grega.q A arte romântica: a arte do Ocidente cristão da Idade

Média ao século XIX.

Cada uma destas artes traduz a maneira pela qual aimaginação procura escapar à natureza, dar forma a um con-teúdo. O grau de adequação forma conteúdo, é, portanto,diferente para cada pessoa. Ele está ligado à maneira pelaqual os homens pensam poder traduzir a religião, suas cren-ças ou sua fé na arte.

Na arte simbólica, egípcia, a Idéia - o conteúdo - aindanão encontrou sua verdadeira expressão. Ela é prisioneirada natureza exterior e da natureza humana. Trata-se aqui deuma forma 'pré-artística" que não se separou da intuiçãosensível e cujo modo de expressão repousa em símbolosenigmáticos. Hegel escreve a respeito dos egípcios: "L..] suasobras de arte permanecem misteriosas e mudas, sem eco eimóveis, pois o espírito ainda não encontrou sua encarnaçãoverdadeira e ainda não conhece a língua clara e límpida doespírito" .40

4°lbid. t 11p. 65.

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Marc jimenez 173Não há nada de espantoso no fato de as pirâmides ofe-

recerem assim - segundo Hegel - o quadro da própria artesimbólica. A descrição que faz delas é quase ingênua; "Ossubterrâneos são cheios de labirintos, de profundas escava-ções, de passagens longas que exigem meia hora de cami-nhada, o conjunto apresentando um trabalho cuidado e aca-bado"." O simbolismo egípcio torna-se total na representa-ção dos deuses - Osíris e Ísis ou a esfinge, enigma absoluto- onde sentimos perfeitamente que o espiritual ainda nãoatingiu sua plena e inteira liberdade.

Em compensação, a arte grega representa a perfeitaadequação da forma e do conteúdo. É nela, diz Hegel, queé preciso "procurar a realização histórica do ideal clássico".Os artistas não se esgotam querendo figurar de maneira sim-bólica, freqüentemente enigmática, aspirações mais ou me-nos confusas ao divino. Basta-lhes extrair livremente o con-teúdo de suas obras nas crenças populares já estabelecidasou na mitologia. Por exemplo, o escultor Fídias (490-431)"tomou seu Zeus de Homero". Enquanto a arte simbólica é"balançada entre mil formas", a arte grega "determina livre-mente sua forma" em função da idéia, do conceito, das in-tenções que animam o artista. A técnica é tão perfeita quedomina plenamente a matéria sensível e a submete às or-dens do Criador.

Este equilíbrio entre a forma e o conteúdo é contudofrágil. Hegel explica que, a partir do final do século IV, quan-do a demagogia sucede à democravia ateniense e a negociatae as intrigas pervertem a cidade, a harmonia entre o naturale o espiritual se degrada. Abre-se um abismo entre as anti-gas aspirações à virtude, o respeito para com as divindadese a realidade exterior: a partir da época de Platão e de

41lbid p. 67.

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174 o que é estética?

Xenofonte começa a dissolução da arte clássica antes querenasçam, mais tarde, outras aspirações à espiritualidade.

É na arte romântica - a última forma particular da arte -que a espiritualidade atinge seu apogeu. A arte romântica éuma arte da interioridade absoluta e da subjetividade cons-ciente de sua autonomia e de sua liberdade. A representa-ção do divino, do "reino de Deus" abandona qualquer refe-rência à natureza, à realidade sensível. A arte clássica gregatomava seu conteúdo aos deuses; a arte romântica encon-tra-o na história do Cristo, da Redenção, da Virgem, dosdiscípulos; ela exprime assim a universalidade em seu maisalto grau.

Esta arte "romântica" - Hegel confere um sentido parti-cular à palavra - cobre o período mais longo da históriaconhecida, visto que parte dos inícios da cristandade paraculminar na época de Hegel, naquela em que a significaçãofilosófica ultrapassa o conflito entre a forma e o conteúdo.Esta arte romântica produz obras poderosas em pintura, emmúsica, sobretudo no domínio da criação literária e poética:Dante, Cervantes, Shakespeare, até Goethe e Schiller.

"Modestamente" Hegel considera que a espiritualidadeatinge seu apogeu com sua própria filosofia. Seu sistema,no qual se expressa em seu mais alto grau a significaçãofilosófica por excelência, coincide com o final da arte ro-mântica.

Veremos, mais tarde, a propósito do tema do fim daarte,quais as conseqüências que devemos extrair dela. Masassinalemos logo algumas anomalias na classificação deHegel.

Marc jimenez 175As dificuldades do sistema

Há duas observações a serem feitas nessa periodização:

c:> e todas as artes estão, com toda a evidência, presentessimultaneamente em qualquer época, cada momento pos-sui sua arte privilegiada: arquitetura (arte simbólica), es-cultura (arte clássica) pintura, música, poesia (arte ro-mântica);

c:> cronologicamente, todas estas formas particulares tradu-zem uma espiritualização progressiva: no ponto departida,a forma bruta, a matéria (arquitetura); no pontode chegada, o espírito puro, interiorizado, e a domina-ção absoluta da matéria (poesia).

Pergunta: estas cinco artes, arquitetura, escultura, pin-tura, música, poesia - formas índivíduaís" e diferenciadasdo Ideal que se realiza em cada obra - estarão submetidasao mesmo progresso do espírito sobre a matéria? Certamen-te: "Assim como as formas de arte particulares, consideradascomo uma totalidade, apresentam uma progressão, umaevolução do simbólico para o clássico e o romântico, cadaarte, tomada separadamente, apresenta uma evolução aná-loga, pois é às artes particulares que as formas de arte de-vem sua existência".

Uma primeira dificuldade concerne à organização daEstética; qualquer leitor da obra pôde percebê-Ia. De fato,oestudo das formas individuais, isto é, das cinco artes queconstituem o "mundo real da arte", intervém na primeira

"Nào confundir as formas particulares que correspondern às épocas simbólica.clássica e romântica, e as formas individuais, que designam as cinco artes.______l ar_q_llite_tu_ra_.e_sc_'"""". pintura, música, poesia

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176o que é estética?

parte do terceiro e último tomo do curso. Mas cada arte estápresente a título de exemplo no tomo II, consagrado àsformas particulares. Para saber o que Hegel diz realmente arespeito de uma arte específica, por exemplo, sobre a arqui-tetura ou a poesia, será necessário "navegar" de um tomo aoutro para reconstituir a totalidade do assunto.

Uma segunda dificuldade salta aos olhos: ela consisteem querer estabelecer uma correspondência entre três épo-cas e cinco artes, três das quais somente para a época ro-mântica. A questão parece secundária. Porém uma talimbricação perturba um pouco a noção de arte privilegiada,representativa de cada época.

Por exemplo: a escultura grega encarna o ideal clássicoem seu mais alto grau. Constitui ela um modelo inimitável einigualável. Entre os escultores gregos pode-se contar Fídias.Porém é ao mesmo Fídias, assistido por Ictinos e Calícrates,que Atenas confiou os planos do Partenon, um monumentoarquitetônico. Ora, a arquitetura, sobretudo a pirâmide, é aarte representativa da arte simbólica. Fídias, escultor genial,seria um arquiteto medíocre? Evidentemente, não é o queHegel quer dizer. De resto, a arquitetura, arte simbólica porexcelência, atinge seu ponto culminantemente, segundoHegel, provavelmente sensível neste ponto à admiração deGoethe, na catedral gótica. Vê-se, pois, que a evolução decada arte para uma maior espiritualidade ultrapassa o limitetemporal inicial.

A última dificuldade que evocaremos concerne à poe-sia e à música.

Lembremos o princípio do sistema das artes: arquitetu-ra = matéria inerte, opaca; escultura = matéria e forma, apa-rência da vida orgânica; pintura = aparência visual em duasdimensões; música = interioridade subjetiva, ligada ao tem-po, efêrnera, poesia = subjetividade exteriorizada nas pala-vras.

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Marc jimenez 177Nesta "hierarquia espiritual", a poesia ocupa o mais alto

grau. Não se poderia objetar que ela conserva, contudo, umelo tenaz com a matéria da linguagem, com as palavras,com o trabalho da língua, muito maior do que a música,arte temporal, fugidia, mais próxima dos "anjos", do divino?

Mas a coerência de um sistema baseado na necessida-de, para a Idéia, de chegar ao Conceito, ao Universal, obri-ga a conceder um privilégio à arte que supera sua subjetivi-dade para exteriorizar-se no mundo: o que explica a esco-lha, muito romântica, da poesia. Para Hegel, é a poesia quenão tem pátria, e não a música. Este status atribuído à poe-sia não deixa, contudo, de ser eqüívoco. E é muito significa-tivo que ele hesite sobre ela, ao ponto de contradizer-se.

Havia-se julgado compreender que a poesia fosse, apósa pintura e música, a terceira arte romântica. "Terceira", nosentido da dialética hegeliana, significa que a poesia é asíntese das artes plásticas (tese) e da música (antítese) ou,se preferirmos, a síntese entre a objetividade e a subjetivida-de. "Pode-se caracterizar a poesia de uma forma mais preci-sa dizendo que ela constitui, após a pintura e a música, aterceira arte romântica"." Mas algumas páginas adiante de-clara que a poesia é a "arte em geral". Ela não está maisligada a uma forma de arte particular (arte romântica), eladiz respeito a todas: "Além disso, ela não se liga a nenhumaforma de arte, com a exclusão das outras, mas é uma artegeral, capaz de criar e de exprimir sob qualquer forma qual-quer conteúdo susceptível de ter acesso à ímagínação.?"

Assim, a poesia seria uma forma de arte ideal, univer-sal, presente em todas as épocas, transistóricas, se puder-mos nos expressar assim, na medida em que ela se impõe

'~Estbéliqueop. cito t. 1112' parte, p. 9."/IJid, p.15-16.

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178 o que é estética?

com a mesma força através das três formas particulares, sim-bólica, clássica, romântica. Hegel abstém-se de resolver estacontradição.

Porém trata-se realmente de uma contradição? Não setratará para Hegel, amigo de Goethe, de Holderlin e deSchiller, de mostrar que mesmo a arte pela qual tem a maioradmiração, a poesia, é também capaz de desaparecer? Comoqualquer arte, ela nasce, desenvolve-se e declina. E comoela encarna, ao mesmo tempo, a arte romântica e a arteuniversal, isto significa que a arte romântica, que contribuí-ra para a dissolução da arte clássica, está ela mesma conde-nada a perecer. Mas esta é também a sorte que espera a arteem geral.

o fim da arte

o trecho da Estética dedicado ao fim da arte românticaé, de longe, o mais inesperado, mesmo se a "Introdução"nos alertara um pouco. Este tema intervém já no tomo II, naconclusão do estudo das formas particulares, simbólica, clás-sica, romântica, no momento em que se espera de Hegeluma celebração do período contemporâneo.

Hegel acaba de lembrar que o mundo romântico tevede realizar apenas "uma única obra absoluta": a propaga-ção do cristianismo. Mas, no início do século XIX esta tarefaestá acabada: "Nenhum Homero, nenhum Sófocles, nenhumDante, nenhum Ariosto, nenhum Shakespeare podem serproduzidos por nossa época; o que foi cantado tãomagnificamente, o que foi expresso tão livremente quantoo fizeram esses grandes poetas foi feito uma vez por to-das" .1)

"Ibicl. t 11 p. 340.

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Marc jimenez 179o mundo mudou e a elevação dos sentimentos prega-

da pelo romantismo degenera em formas insípidas. O roma-nesco, o humor, a falta de seriedade no tratamento dos te-mas correspondem à irrupção de uma subjetividade às ve-zes brilhante, mas que doravante se preocupa exclusiva-mente consigo mesma e não mais com o mundo exterior. Aarte, segundo Hegel, "cai sob o domínio do capricho e dohumor".

É bastante estranho constatar, neste ponto da Estética,que Hegel toma como alvo um contemporâneo direto. Defato, o representante típico desta degenerescência do espíri-to romântico não é outro senão Jean-Paul, o autor do Cursopreparatório de estética, cuja obra é rica desses "ditos espi-rituosos, desses rasgos e gracejos" que acabam, por fim, por"cansar o leitor".

A declaração de dissolução da arte romântica intervémalgumas linhas adiante: "Chegamos ao termo da arte român-tica, à soleira da arte moderna cuja tendência geral pode-mos definir com o fato de a subjetividade do artista cessarde ser dominada pelas condições dadas por tal ou tal con-teúdo ou por tal ou tal forma; ao contrário, ela domina aambas e conserva toda a sua liberdade de escolha e de pro-dução"." Para bem compreender o sentido desta reflexão,freqüentemente objeto de mal-entendidos, é preciso situá-Iano projeto de conjunto entre a estética e a filosofia hegelianas.

O emprego de termos pejorativos para caraterizar a si-tuação da época não deve nos enganar sobre a intenção dofilósofo. Hegel fala efetivamente de "decadência", de"degenerescência" e de "dissolução" da arte de sua época.Uma certa nostalgia é, pois, inegável. Mas este não é o sen-timento dominante. Ele precisa, de fato: "Somente o presen-

46Hegel, Ibid., p. 335. o grifo é nosso.

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180 o que é estética?

te existe em todo o seu frescor, o resto está murcho e semviço".

Na realidade, Hegel nos conduz para onde queria le-var-nos desde a "Introdução": o fim da arte romântica coin-cide com o fim da arte e só é possível apreender o sentidodesses desaparecimentos, voltando ao famoso tema enunci-ado já nas primeiras páginas, o da "morte" da arte. Que dizele exatamente? Nada além disto:

"Na hierarquia dos meios que servem para expressar oabsoluto, a religião e a cultura provinda da razão ocupam ograu mais elevado, bem superior ao da arte.

"A obra de arte é portanto incapaz de satisfazer nossaúltima necessidade de Absoluto. Em nossos dias, não sevenera mais uma obra de arte, e nossa atitude para comcriações da arte é muito mais fria e ponderada ['..J. Nósrespeitamos a arte, nós a admiramos; apenas, não vemosmais nela alguma coisa que não possa ser ultrapassada, amanifestação íntima do Absoluto; nós a submetemos à aná-lise de nosso pensamento e isto, não na intenção de provo-car a criação de obras de arte novas, mas, antes, com afinalidade de reconhecer a função da arte e seu lugar noconjunto de nossa vida.

"Os dias felizes da arte grega e a época de ouro dabaixa Idade Média acabaram. As condições gerais do tempopresente não são favoráveis à arte L..l. Seja qual for nossoponto de vista, a arte permanece para nós, quanto a seusupremo destino, uma coisa do passado. Com isso, perdeuela para nós tudo o que possuía de autenticamente verda-deiro e vivo, sua realidade e sua necessidade de outrora e,está doravante relegada à nossa representação. O que umaobra de arte suscita hoje em nós é, juntamente com umprazer direto, um julgamento tanto sobre o conteúdo quan-to sobre os meios de expressão e sobre o grau de adequa-ção da expressão ao conteúdo".

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Marcfimenez 181Autorizamo-nos, de forma não habitual, esta longa ci-

tação - ainda hoje a mais comentada - a fim de dissiparqualquer risco de interpretação errônea, fantasiosa e às ve-zes francamente caricatural.

Várias observações se impõem.1) Hegel lembra que a arte serve para exprimir o abso-

luto. Mas o conhecimento que nos dá é, de longe, inferiorao da religião e da filosofia. Quando atinge seu grau supre-mo de espiritualização e de subjetivização - na arte român-tica sobretudo - ela desaparece enquanto arte, criadora deobras, para ceder o lugar à filosofia. Esta filosofia (da arte)tem como tarefa refletir sobre o papel que a arte desempe-nha doravante em nossa vida cotidiana e na sociedade. Hegelnão diz que a arte está morta nem que os artistas tenhamdesaparecido,mas que ela cessou de representar o que sig-nificava para as civilizações anteriores. É preciso ler destemodo: a arte permanece para nós - na imagem que dela nostransmitiram os gregos, por exemplo - alguma coisa do pas-sado.

2) Observar-se-ão as "condições gerais do tempo pre-sente", o mundo "agitado", alusões ao contexto político, sociale econômico, pouco favorável a um clima cultural e artísticosereno, tanto fora da Alemanha quanto dentro do Estadoprussiano, autoritário e burocrático. Essa época é crepuscu-lar, opaca, marcada peJa industrialização, pelo nascimentoda economia capitalista, pela sujeição do indivíduo às insti-tuições. O próprio sujeito não é mais do que um indivíduodilacerado pela divisão do trabalho, submetido àpauperização e à mecanização das tarefas. As descrições douniverso desumanizado - que citamos aqui a partir de ou-tras obras - são ainda mais realistas e sinistras do que as deSchiller.

3) O fim da arte e a dissolução da arte romântica coin-cidem com a conclusão do sistema filosófico hegeliano que

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182o que é estética/

seu autor assimila à própria filosofia. Tudo o que se dizsobre a estética e que figura no curso diz respeito à arte dopassado, a exemplo da filosofia que se encontra toda, desdesuas origens até o século XIX, contida na filosofia hegeliana.Porém, considerar somente esta ambição desmedida deHegel, muitas vezes denunciada, é um contra-senso. O ver-dadeiro sentido da filosofia e da estética hegelianas é co-nhecido na dialética que se encontra no próprio âmago deseu sitema.

o nascimento da estética moderna

A maioria dos malentendidos a respeito de Hegel re-sultam de uma leitura incompleta e parcial de seus escritos.

É preciso ler o prefácio dos Princípios da filosofia dodireito (1821): "Para dizer ainda uma palavra sobre estamaneira de dar receitas indicando como o mundo deve ser,a filosofia, em todo caso, chega sempre tarde demais. Pen-samento do mundo, ela só aparece quando a realidade tiveracabado o processo de sua formação e se tiver aperfeiçoadoL . .l. Quando a filosofia pinta cinza sobre cinza,uma formada vida envelheceu e não se deixa rejuvenescer com cinzasobre cinza; ela somente se deixa conhecer; a coruja deMinerva só levanta vôo ao cair da tarde". Sua filosofia acabaao ultrapassar-se. Uma forma de filosofia e de vida envelhe-ceu: uma outra começa, e o Espírito tem ainda muito a fa-zer ....

Poderíamos transpor quase palavra por palavra este tre-cho dos Princípios da filosofia do direito à Estética. Tam-bém a estética chega tarde demais: o sonho grego murchoue perdeu o viço, mas permanece o frescor do presente; aarte romântica não mais existe, mas a arte moderna despon-ta e com ela a liberdade infinita de escolher segundo a pró-

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Marcfimenez 183pria subjetividade e de fazer tábula rasa do passado: "Oapego a um conteúdo particular e a um modo de expressãoem relação a esse conteúdo tornou-se para o artista moder-no uma coisa do passado,e a própria arte tornou-se um ins-trumento livre que ele pode aplicar, na medida de seus donstécnicos, a qualquer conteúdo seja de que natureza for."?

A ambição de Hegel reside em sua vontade de ter dese-jado encerrar em um sistema - o do Saber absoluto - todaação e todo pensamento humanos. Sua modéstia, de acordocom os próprios princípios de seu pensamento, reside nofato de ter mantido o horizonte aberto, suspeitando que afilosofia, ao atingir sua coerência já pertencesse ao passado.

Hegel ignora o que acontecerá com a arte moderna; elesó esboça uma "tendência", a de uma crescente afirmaçãoda liberdade do artista e, portanto, da autonomia da estéti-ca: 'É assim que todo assunto e toda forma estão hoje àdisposição do artista que soube, graças a seu talento e a seugênio, libertar-se da fixação de uma forma de arte determi-nada à qual ele fora condenado até então"."

Esta autonomia é incondicional. A arte cumpriu umafunção metafísica e religiosa. Sacralizada, ela foi uma dasformas de expressão mais elevadas da verdade. Pelo me-nos, diz Hegel, "pensara-se assim durante muito tempo eainda se pensa", provável referência aos poetas e aos filóso-fos do primeiro romantismo alemão e aos que seguem aspegadas de Novalis e de Friedrich von Schlegel. Porém, estaforma indefinida talvez se refira também o próprio Hegel,em sua juventude, logo após a Revolução Francesa, quandoaluno interno em Tübingen, lia Homero e Platão na compa-nhia de Holderlin e Schelling.

.' lbid, t. II p. 338.

'H/hic!, p. 39.

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184 o que é estética?

Como foram estranhos essa volta do platonismo empleno racionalismo "esclarecido" e essa crença numa reve-lação do Ser graças à beleza da arte! Todavia, isto é um"erro" declara Hegel uns trinta anos mais tarde. Ele não é,portanto, o fiel herdeiro dos conceitos românticos que atri-buem à arte uma função ontológica, teológica e metafísica.Ele também não é o responsável oficial de uma religião daarte que iria afetar a arte moderna e contemporânea. Ele éainda menos aquele que, por volta de 1830, teria privilegia-do o discurso teórico sobre a arte, a estética reflexiva e abs-trata, em detrimento do prazer sensível e sensual que traz ocontato com as obras.

A partir dessa data até os dias de hoje, a arte e os artis-tas aproveitaram largamente e às vezes abusaram dessa li-berdade entrevista por Hegel. Partidários das rupturas, osartistas de vanguarda libertaram-se das formas e dos con-teúdos tradicionais. Separaram-se do princípio mimético, nãohesitando em quebrar convenções seculares; arriscaram-sea utilizar os mais diversos materiais, a deslocar as formashabituais, chegando às vezes ao ponto de dissolver o pró-prio objeto de arte para reduzi-lo ao puro conceito. Em duaspalavras, fizeram, como diz Hegel, tábula rasa do passadona esperança de que a arte pudesse novamente estar deacordo com o curso do mundo, para o melhor e para oprior.

O mérito de Hegel foi o de ter pensado que o fim daarte romântica marcava, em sua época, a soleira da arte e daestética modernas. A reflexão hegeliana sobre a arte é certa-mente a que teve e tem sempre a maior ressonância naestética contemporânea. Mais ainda do que a de Kant, namedida em que ela prova a paixão de Hegel pelas obrasparticulares e um conhecimento notável de cada arte emparticular. A afirmação da historicidade do belo, contra oplatonismo, e a crítica da imitação da natureza, contra

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Marcjimenez 185Aristóteles constituem, além disso, pontos sem volta paratoda reflexão estética ulterior.

Deste ponto de vista, ele é um dos precursores donominalismo na arte. Nominalismo, em estética, significainteressar-se por cada obra, independentemente dos gêne-ros, das regras, das formas e das convenções que a determi-nam. A obra é então analisada ou julgada em função deseus próprios critérios e segundo o momento em que apare-ce na história. Neste ponto, Hegel aceita a lição dos român-ticos alemães, sobretudo de Friedrich von Schlegel, paraquem a obra de arte, sobretudo a poesia, iria ser objeto deuma crítica estética específica, centrada em sua forma e nãoem seu conteúdo.

Hegel estende esta crítica às obras ligadas a todas asartes. É assim que em música explica claramente por querazão, por exemplo, a música de Aflauta mágica de Mozarto arrebata apesar do aparente absurdo do libreto deSchikaneder. Da mesma forma,analisa ele, quase como umtécnico da música,as óperas de Rossini e de Gluck.

A posteridade considera como "hegeliano" todo proce-dimento estético que se interessa de maneira privilegiadapela idéia, pelo conteúdo expressos pela obra e lhes dáprioridade sobre a forma. Ela é assim oposta à estética deKant para a qual - estam os lembrados - a forma,o desenho,são preponderantes porque causam, ao contrário da cor,um prazer desinteressado.

Esta oposição entre forma e conteúdo, entre kantismoe hegelianismo permaneceu por muito tempo um dos luga-res comuns da reflexão estética. No início do século XX,alguns estetas "marxistas", preocupados em mostrar que aarte era o reflexo da realidade social e política, não hesita-ram em mostrar-se mais hegelianos do que Hegel para justi-ficar suas condenações às revoluções formais na arte mo-derna ou vanguardista. Mas não é necessário ser hegeliano

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186o que é estética?

ortodoxo ou dogmático para estabelecer relações entre aordem social e ideológica e as convenções que regem a artenum dado momento de sua história. O historiador da artePierre Francastel, não marxista, adota um procedimento detipo hegeliano quando mostra, em Pintura e sociedade queo sistema da perspectiva adotado na Renascença resulta dastransformações sociais, políticas, econômicas e ideológicasque marcam o período do quattrocento.

De fato, este antagonismo entre forma e conteúdo efe-tua-se ao preço de uma simplificação e de uma esquernati-zação abusivas dos conceitos de Kant e de Hegel. A refle-xão estética sobre a arte moderna e, com maior razão, sobrea arte contemporânea desinteressa-se totalmente por esteproblema. Ela aprendeu, com Theodor Adorno, que a for-ma artística tem valor de conteúdo, que quebrar ou deslocarestruturas formais exprime uma idéia pelo menos tão forte eplena quanto uma representação -figurativa, mimética nosentido tradicional.

Esta idéia não é assimilável à Idéia nem ao Espírito,mas antes a um conteúdo social e histórico. Quanto à for-ma, ela não é mais determinada por um ideal de beleza, deregularidade, de harmonia, de simetria, mas depende dadiversidade dos materiais, dos procedimentos técnicos en-tregues à livre escolha do artista.

O aspecto mais atual da teoria hegeliana reside certa-mente em sua maneira de conceber o futuro da estética e aautonomia do discurso sobre a arte. De fato, a ação crescen-te da reflexão ou - como diz Hegel - do "pensamento, dasrepresentações abstratas e gerais", tornou-se um traço ca-racterístico da modernidade artística e cultural.

Hoje também temos a impressão de que as dificulda-des da vida se agravaram. Parece-nos igualmente que esteagravamento resulta da "maior complexidade de nossa vidasocial e política" e interrogar-se sobre a 'função da arte e do

.....

Marc jimenez 187seu lugar no conjunto de nossa vida" é uma das questõesno programa da reflexão estética contemporânea.

São estas semelhanças que levam às vezes a prolongaro paralelo entre o início do século XIX e nossa época e aver em Hege! um precursor, quase visionário, da era con-temporânea. Porém, não devemos esquecer que ele esboçaseu retrato da modernidade no plano de fundo de uma ima-gem mítica: a de uma Grécia ideal que continua a obcecaros filósofos e os pensadores, mesmo estando perfeitamenteconscientes de que esses tempos pertencem ao passado.

Em suma, somos tentados a dizer que à idade de ouroda arte sucede a idade de ouro da estética. Sem dúvida.Porém, é também possível ver as coisas de uma forma umpouco diferente. Dizíamos, acima, que o paradoxo da se-gunda metade do século XIX reside no fato de a arte gregacontinuar a aparecer como um modelo exatamente no mo-mento em que os modelos desmoronam.

Precisemos: este desmoronamento não é brutal; odeclínio é progressivo. A reflexão de Hegel marca uma gui-nada, porque, pela primeira vez, desde que se constituiucomo disciplina, a estética autônoma começa a lançar umolhar crítico sobre a arte do passado. Este olhar, todavia,está ainda turvo. Ele não rasga o véu que preserva o modelogrego, a harmonia antiga "inimitável" e insuperável. Tam-bém não percebe o status sempre ambíguo da criação artís-tica. Celebrada, incensada, a arte suscita também desconfi-ança. Platão honra os poetas, mas exige seu exílio para forade Atenas. Dir-se-á que o opróbio só atinge a poesia. Massomente porque é a menos dócil, a mais sutil e a mais espi-ritual, teria dito Hegel: é difícil, neste caso, conferir-lhe umlugar, um espaço, uma função, como é possível fazer paraas outras artes, arquitetura, pintura, poesia e mesmo a músi-ca. Potencialmente, a arte representa um perigo visto quetenta escapar à influência do discurso filosófico e científico

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188o que é estética?

que lhe confere um lugar determinado na Cidade e se opõeà ordem de logos, que é verdade e razão confundidas.

Na "soleira da arte moderna", por volta de 1830, Hegelpressente a próxima rebelião da arte contra a mimese, con-tra as ilusões naturalistas em pintura e em música. Mas ape-nas um pressentimento, não mais do que uma suspeita. Aguinada está apenas esboçada. Quanto mais o mito gregose afasta, mais fascina. E os românticos alemães, entre osquais Hegel, sofreram o encantamento. Mas vem um mo-mento em que a distância é grande demais. A estética perce-berá realmente os interesses da modernidadeartística quan-do qualquer vestígio de fascínio tiver desaparecido. Quan-do o olhar dos artistas e dos filósofos tiver renunciado aescrutar o passado e se tiver voltado, enfim, resolutamentepara o futuro.

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Segunda Parte

A ÜETERONOMIA DA ARTE

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I

A HETERONOMIA E SUAS AMBIGÜIDADES

No início do século XIX, a estética filosófica apresentaum balanço bastante honroso em relação às antigas teoriasda arte que se sucederam desde a Renascença: declínio doprincípio de imitação, historicidade do belo, afirmação dasubjetividade, reconhecimento do gênio e do sublime, statusda obra de arte, papel predominante da crítica, questiona-mento do dogmatismo e do academismo e desligamentosem relação às antigas tutelas, metafísica e teológica.

Evidentemente, todas estas aquisições não derivamunicamente da recente disciplina chamada estética. Ela mes-ma é o resultado de um longo processo de autonomizaçãoligado às transformações econõmicas, políticas, e ideológi-cas que preludiam o que chamamos a modernidade.

Todavia, o que foi criado na metade do século XVIII é- como dizíamos ao falar de Baumgarten - muito mais doque um vocábulo. É um olhar para a arte do passado, mastambém para a arte presente e para a arte futura. A estéticahegeliana permanece, neste ponto, um dos exemplos maisconvincentes de discurso sobre a arte que tenta legitimar nahistória o status filosófico da criação artística.

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192 o que é estética?

Mas a estética autônoma terá por objeto uma arte autô-noma?

Insistimos, várias vezes, na ambigüidade da noção deautonomia estética: a estética constitui-se em esfera particu-lar, separada dos outros domínios do conhecimento, mas,ao mesmo tempo, "autonomia" significa também tomada deconsciência das relações que ligam a estética às outras disci-plinas.

Da mesma forma, convém distinguir a arte como ativi-dade portadora de uma autonomia específica penosamenteadquirida pelos artistas desde a Renascença e a arte comofenômeno ligado à história econômica, política e ideológicade uma sociedade. A estética tem, portanto, como objetouma criação artística ao mesmo tempo livre e irremediavel-mente implicada na vida dos indivíduos e das espécies.

Diderot, Schiller, jean-Paul e Hegel, - para citar apenasestes - traduzem em seus escritos uma espantosa percepçãodos interesses do discursos sobre a arte e a própria arte.Diderot sabe que a crítica dos salões participa dasensibilização do público pela coisa artística. Schiller inscre-ve sua educação estética num projeto ao mesmo tempo morale político. Jean-Paul concebe seu Curso preparatório de es-tética como uma resposta a uma época "doente". Quanto aHegel, reconhece ele implicitamnte que a arte doravantenão pode mais "abstrair-se do mundo que se agita ao seuredor e das condições nas quais se acha engajado."

Neste sentido, podemos dizer que a autonomia da es-tética permite pensar a heteronomia da arte, isto é, refletirsobre o que representa, ou representava no passado, o fe-nômeno "arte". Por ser autônoma, a estética pode analisaras relações que a arte mantém com outros aspectos da cul-tura própria de uma determinada sociedade em um dadomomento de sua história.

Independentemente dos critérios de excelência e de

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Marcjimenez 193perfeição ligados à arte grega, esta última assume, sobretudosegundo Platão, um papel político e pedagógico eminente nacivilização ateniense. Aristóteles confere à imitação e à catarsepoética uma função de educação crítica. É evidente que suasconsiderações "estéticas" dependem de uma teoria da verda-de e do absoluto, mas seria totalmente insuficiente expor oconceito platônico de belo ou a teoria aristotélica da mimeseunicamente do ponto de vista filosófico ou metafísico. Istoseria fazer pouco caso da influência considerável que estesprincípios, estéticos e artísticos, nascidos na Grécia antiga,exerceram sobre o conceito de arte no Ocidente, do pensa-mento medieval até as revoluções industrial, científica e téc-nica da segunda metade do século XIX.

Também neste ponto, Hegel marca uma guinada. Suaestética apreende um momento-chave da consciência histó-rica que se volta para o passado, respeita uma tradição, masela já se prepara para traí-Ia, para até mesmo rejeitá-Ia parauma total inatualidade. Ele se abstém de ir tão longe. MasNietzsche (1844-1900) filólogo tão apaixonado quanto Hegelpela civilização e pela cultura gregas, toma a decisão: suafilosofia estética, contemporânea das primeiras rupturasvanguardistas, é também uma ruptura radical com uma he-rança antiga, de mais de dois milênios e um cristianismo dequase dois mil anos.

Quando subsistem fragmentos de tal herança, em Marx0818-1883), por exemplo, ou em Freud (1856-1939), elesengendram curiosas distorções no pensamento de tais auto-res, entre a modernidade de seus conceitos científicos e suaingenuidade ou sua cegueira diante da arte de seu tempo.

Marx, filósofo e teórico do capital, e Freud, fundadorda psicanálise não são estetas profissionais. Seus lugaresnuma história da estética decorrem de pelo menos duas ra-zões de natureza muito diferente, até mesmo contraditória;de um lado encarnam ambos uma forma estranha de

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194o que é estética?

incompreensão diante das rupturas artísticas e damodernidade; de outro lado, aspectos inteiros da reflexãoestética do século XX permanecem incompreensíveis se nãose fizer referência a suas teorias.

Para resumir: a heteronomia da arte - seu papel socialou político - é ambígua. A criação artística rebela-se cons-tantemente contra as ordens vindas do exterior. Em todosos tempos, a arte teve de resistir contra as tentativas quevisavam a ditar-lhe leis, a impor-lhe convenções, regras, cri-térios, cânones, e a conferir-lhe finalidades. Esta resistênciamanifesta-se tanto na Grécia quanto em todas as outras "épo-cas" da arte.

Todavia, a história tende a esquecer esta resistência daarte e a minimizar sua capacidade de revolta. De fato, cadaépoca gosta de transfigurar o passado numa espécie de épocade ouro, mesmo se, paradoxalmente, ela considere estar emprogresso em relação aos períodos precedentes. Assim, omodelo grego, visto através de seus vestígios, foi ligado, naconsciência ocidental, a filosofias tão eminentes e criadoresquanto as de Platão e Aristóteles. A teoria do Belo, associa-do ao Bem e à Verdade, e o princípio de imitação puderamentão erigir-se como verdadeiras tradições e impor-se du-rante séculos.

Porém, é preciso saber que estes sistemas dissimulam,na realidade, uma fratura profunda: de um lado, valorizamexcessivamente a beleza e sua função ontológica (o belo dáacesso ao Ser e emana dele); de outro lado, desvalorizam aarte ao mesmo tempo como prática e como fenômeno. Aestética de Platão e a de Aristóteles repousam sobre estedivórcio entre uma doutrina metafísica do belo e uma teoriadas artes. Elas não conseguem realmente apagar a fronteiraentre o mundo inteligível e o mundo sensível, entre a Ra-zão, o conhecimento, o Logos de um lado, e a sensibilida-de, o prazer, o gozo, de outro.

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Marcjirnenez 195Neste sentido, são filosofias da "separação" que procu-

ram todos os caminhos possíveis de uma reconciliação. Mas,quando o conseguem, é sempre em proveito do mundointeligível e em detrimento do mundo sensível: os valoresdo espírito, da inteligência, da razão dominam os valoressensíveis.

Sem exagerar, poderíamos dizer que toda a estéticaocidental, da antigüidade até a modernidade, não cessa decontar a história desta separação. Sem dúvida ela conservaainda hoje suas seqüelas.

Temos, portanto, de voltar momentaneamente ao localde nascimento da filosofia. Esta volta é necessária para com-preender as rupturas e as mutações que acompanham a to-mada de consciência da modernidade no século XIX. Hegelcontenta-se em anotar a dissolução de épocas passadas.Baudelaire vai mais longe: rejeita o culto da beleza platôni-ca, eterna, abstrata e indefinível, a fim de promover a belezaefêmera, fugaz da vida moderna. Quanto a Nietzsche, nãohesita ele em instruir o processo de toda a história anteriorda cultura, de Sócrates até os princípios de um niilismo quesua filosofia anuncia para os dois séculos seguintes.

Para todos, trata-se de fato de ver-se livres da filosofiada separação platônica ou aristotélica, mas também de re-nunciar à herança transmitida pela tradição. Mais ainda: amodernidade não reconhece mais o conceito meta físico dobelo. Na época das revoluções artística, cultural, social, po-lítica e industrial, ela cessa de privilegiar o status ontológicoda arte. Insiste na implicação concreta da atividade artísticae da experiência estética do indivíduo na história e na soci-edade.

Por conseguinte, o olhar que a estética da modernidadedirige para o passado não é mais o mesmo. O véu míticorasga-se. Atrás da máscara da estatuária antiga, vestida em"sua nobre simplicidade e sua calma grandeza", há esta luta

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196o que é estética/

permanente da criação artística para preservar sua liberda-de.

Platão: a arte na Cidade

Que teriam sido a filosofia e a estética ocidentais sePlatão não tivesse existido? Uma tal pergunta seguramentenão tem nenhuma pertinência filosófica. Sem grande risco,poderíamos responder: certamente alguma coisa muito di-ferente. Esta falsa interrogação tem a única finalidade deinsistir na considerável influência do fundador da Academiaem todo o pensamento ocidental. Influência tão grande quepode ser encontrada, muito mais tarde, mesmo naquelesque se defendem de qualquer platonismo: há Platão emDescartes, em Kant, em Hegel e até mesmo - pelo menosnegativamente - em Nietzsche.

Porém, de que Platào estamos falando? Trata-se do poetae do músico que em sua juventude compõe ditirambos etragédias para dedicar-se em seguida à filosofia, ou entãodo "legislador" sensato que em As Leis - obra que permane-ceu inacabada - acabou por tolerar as artes e seus benefícios?Fala-se do chantre do erotismo e do amor absoluto, celebra-do com paixão e fervor no Banquete ou do pitagórico,geômetra e matemático do Timeu? Do teórico das Idéiasque confunde a trindade da Verdade, do Belo e do Bem emum único conjunto de essências imutáveis e eternas, ou doteórico de A República que cobre de opróbrio os artistas emgeral e expulsa os poetas para fora da Cidade?

A diversidade e as aparentes contradições de uma obrae de um pensamento que Platão desenvolve durante sualonga vida (427/28-347/46) colocam de fato um problema,sobretudo em nosso domínio. Não é espantoso que tantosteóricos da arte, artistas, poetas e estetas tenham aderido

Marcjimenez 197com tanto zelo e devoção a uma filosofia tão desconfiada,até mesmo tão desdenhosa em relação à arte?

Como se tivesse sido necessário conceder - uma vezpor todas - a esse primeiro grande sistema do pensamentoocidental que a arte precisasse submeter-se para sempre àfilosofia e ao político! Como se tivessem sido definitivamen-te aceitos a decadência do mundo sensível e a depreciaçãode todos os prazeres e de todos os gozos sensuais que seencontram na terra'

Deixaremos de expor, pela enésima vez, a famosa teo-ria das Idéias e não indicaremos aqui todos os trechos sobrea beleza e o amor nos diálogos de Platão; também não acres-centaremos um capítulo suplementar à lista muito longa ecertamente inesgotável das interpretações da filosofia platô-nica. Sugeriremos simplesmente algumas pistas de leitura afim de melhor compreender por que o século XIX inauguradecênios de crises artísticas que não mais estão ligadas aohorizonte platônico.

Todavia, e para dizê-lo sumariamente, Platão tambémvive uma época de crise política e cultural intensa. O proje-to de uma Cidade ideal exposto em A República é concebi-do para trazer uma resposta à decadência da democraciaateniense. Trata-se de uma utopia ou de um plano de refor-ma aplicável à sociedade do século IV? Ninguém o sabe,realmente. Em compensação, conhecemos as preocupaçõesdominantes de um filósofo de uns quarenta anos que deci-de assumir, no plano teórico, os problemas da Cidade: aeducação e a política, a paidéia - pedagogia através da artee da cultura - e a politéia - constituição ou governo daCidade, da polis. Mais precisamente, trata-se de saber quepapel deve-se conferir à formação artística para permitir quetodos os cidadãos vivam harmoniosamente num Estado li-vre da tirania, da oligarquia e de uma democracia sempreameaça da pela corrupção.

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198 o que é estética?

Assim, paralelamente à teoria da idéia de belo - elamesma elemento da teoria das Idéias - existe em Pia tãouma prática do belo, para uso pedagógico e político, atra-vés das artes e das obras que supostamente encarnam abeleza. E neste ponto,o sucesso - termo fraco - obtido pe-las concepções de Platão, decorre da maneira pela qual esteúltimo formula as questões essenciais relativas às definiçõesda beleza e à prática artística. São formulações tão impor-tantes e decisivas que podemos nos perguntar se toda ahistória da teoria da arte e da estética até Nietzsche incluídonão consiste numa série interminável de variações sobre umtema platônico.

Malogro de uma defíníção do belo

Hípias maior, um dos primeiros diálogos "socráticos",é um testemunho desta arte do essencial: a pergunta "o queé o belo", é colocada sem rodeios. Através de um hábilestratagema, Sócrates inventa um duplo de si mesmo, umsegundo Sócrates esmiuçador e impertinente, encarregadode confessar o pretensioso Hípias. É preferível, graças a talintermediário, poder dizer sua verdade, indiretamente, semtemer sua cólera se por acaso esse vaidoso tomasse consci-ência de sua própria tolice e ao mesmo tempo se mostrassedesconfiado com o fato. A armadilha funciona. Das oitodefinições do belo que Sócrates extorque sem dificuldadede Hípias, nenhuma é conveniente. Não, a beleza não éuma bela virgem. Por que não, neste caso, uma bela éguaou uma bela panela? Não é nem o ouro, nem a riqueza, nemo que convém, nem a utilidade, nem o prazer da vista e doouvido, nem o vantajoso, nem o bem.

Que é então o belo? O diálogo não o diz. Sócratesconfessa-se ignorante sobre o belo a ponto de não saber o

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Marc jimenez 199que é o belo em si mesmo. E conclui com um provérbio emforma de reviravolta: "As belas coisas são difíceis".'

A discussão encerra-se, portanto, com uma constataçãode malogro, como a maioria dos diálogos à procura de de-finições, quer se trate da coragem, da piedade, (Eutífrone),da sabedoria (Cármides). Todavia, o balanço não é inteira-mente negativo. Os falsos problemas são eliminados e assoluções errôneas são refutadas: o belo não é o simplesatributo de um objeto que eu possa assinalar na realidade,ainda que passasse em revista todas as coisas existentes nomundo.

De fato, a fingida humildade de Sócrates - que não éoutra senão a de Platão - já antecipa a única resposta verda-deira. Ela surge na sutileza de uma réplica: "Existe um beloem si que orna todas as outras coisas e as faz parecer belasquando essa forma a elas foi acrescentada't.! A palavra usa-da por Platão para forma é eidos, a idéia, que na frase não éoutra coisa senão o belo em si.

Em que consiste esta "idéia"? Visto que nenhuma coisaexistente é bela de maneira satisfatória, trata-se da abstraçãodo belo? Neste caso, somente a idéia de belo é real. Mas, seesta idéia é a única verdade, isto significa dizer que ela éviva. Se ela não depende da diversidade dos objetos con-cretos e não é relativa, isto significa dizer que é absoluta. Ejá que ela sobrevive a todas as coisas perecíveis, isto signifi-ca dizer que é eterna.

Hípias maior anuncia, portanto, muito timidamente éverdade, e como em filigrama, a teoria das Idéias que ARepública expõe detalhadamente na alegoria da Caverna.Prepara ele, assim, esta apoteose da união da beleza e do

'Platão, H/pias maior, .~04 e.

'Ibid., 289 d .

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200 o que é estética?

amor celebrada em O Banquete. Neste diálogo, um dos maiscélebres de Platão, Sócrates tem a última palavra, como sem-pre. Mas desta vez fala em nome de uma estrangeira deMantinéia," Diotima. Esta sacerdotisa de Zeus comunica asolução para a questão que permaneceu em suspenso emHípias maior. como reconhecer e conhecer este belo cujarealidade somente comunica fragmentos ou frágeis indícios?Como perceber esta beleza que "existe em si mesma e por simesma, simples e eterna, da qual participam todas as outrasbelas coisas, de tal maneira que seu nascimento ou sua mortenão lhe traga nem aumento nem diminuição nem qualquertipo de alteração"."

Durante os ágapes masculinos do Banquete, anun-ciadores de seqüências orgíacas, nunca se fala de poesianem de arte em geral. A conversa tem como objeto a manei-ra de chegar ao reconhecimento do elo indissociável entre abeleza, o amor e o saber; "Quando nos elevamos das coisassensíveis através de um amor bem compreendido dos jo-vens até esta beleza e quando começamos a percebê-Ia,estamos perto de alcançar o objetivo; pois o verdadeiro ca-minho do amor [...J é o de partir de belezas sensíveis e subircontinuamente para esta beleza sobrenatural passando, comopor etapas, de um belo corpo a dois, de dois a todos, emseguida dos belos corpos às belas ações, depois das belasações às belas ciências, para chegar a esta ciência que não éoutra coisa senão a ciência da verdade absoluta e para co-nhecer, enfim, o belo tal como é em si mesmo". 5

O Banquete não contém qualquer teoria da arte, nem amenor concepção da beleza aplicada às obras, visto que se

"Cidade da Arcádia, no centro do Peloponeso.

"Platão, O Banquete, 211 b.

'Ibid.

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Marcjimenez 201considera que o belo não é deduzido de nenhuma coisaexistente. Porém, indiretamente, é possível perceber os ele-mentos de uma teoria da arte para a qual A República pro-cura encontrar uma aplicação concreta.

O discurso de Diotima, pela boca de Sócrates, pareceenunciar, desde o início, um paradoxo: para subir os de-graus que conduzem à beleza absoluta é preciso partir, dizela, da beleza sensível. Mas como posso saber que esta be-leza sensível é uma beleza, visto que ainda não conheço abeleza absoluta de que ela participa? Há aqui um enigma.Sua solução encontra-se no Fedro, um outro diálogo con-temporâneo do Banquete e da República."

Fedro é provavelmente o texto mais magnífico e maisfascinante de Platão, sobretudo por sua profundidade ale-górica. Dá ele a chave da teoria da reminiscência e da parti-cipação nas Idéias. É preciso saber, em primeiro lugar, queas almas possuem asas que Ihes permitem acompanhar ocortejo dos deuses no céu. Lá, elas contemplam o mundodas Idéias, as essências de todas as coisas, por exemplo, aVerdade, o bem o belo ou então as virtudes: a justiça, asabedoria, a temperança. Todas estão ávidas por elevar-seassim para gozar da vista do absoluto. Mas nem todas oconseguem. Algumas são como iludidas por suas paixõescarnais, seus desejos ou seus vícios; amolecidas por estepeso, elas caem então novamente na terra. Todavia, conser-vam a lembrança das Idéias vislumbradas de forma fugidia,uma lembrança reavivada pelas pálidas imagens das Idéiasreencontradas na Terra. Evidentemente, precisa Sócrates, "não

6Não discutiremos aqui a cronologia, muito controvertida, dos Diálagasde Platão.Alguns colocam O Banquete depois de A República, outros antes. A mesma coisapara Pedra. O entrecruzamento dos temas tratados por Platão num e noutro esua coerência permitem, todavia, pensar que tenham sido redigidos ao longo deum mesmo período. (385-370).

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é igualmente fácil para todas as almas lembrar-se novamen-te das coisas do céu ao ver as coisas da terra": contempla-ção por demais rápida das essências, ou falta de vivacidadepara algumas. Uma idéia todavia brilha mais do que as ou-tras, como uma estrela resplandescente: a beleza; somenteela "goza do privilégio de ser a mais visível e a mais encan-tadora".

Eis por que o homem a reconhece tão facilmente nascoisas terrestres. Quando percebe seu reflexo nos objetos ounos seres, ele rememora o esplendor da Idéia vislumbradaoutrora e por ela se apaixona. Naturalmente, não se trata,para ele, de lançar-se de forma bestial sobre sua presa. Tor-nado cego por seu desejo e sua paixão frenética, perderiatoda possibilidade de ver a beleza absoluta que se escondeatrás da beleza sensível. Isto acontece, infelizmente, com aque-les cuja iniciação é por demais antiga. Sócrates descreve, nãosem vigor, o que acontece em tal caso: "L..J longe de sentirrespeito ao vê-Ia, ele cede ao aguilhão do prazer e, como umanimal, procura cobri-Ia e lançar-lhe seu sêmen, e no freneside sua aproximação não teme perseguir uma volúpia contraa natureza nem se envergonha por fazê-lo", Eis por que, se-gundo a Diotima do Banquete, o acesso à beleza eterna e aoamor absoluto se efetua gradualmente, como por uma espé-cie de sublimação progressiva do desejo inicial.

Qualquer pé ripio no mundo das Idéias é uma viagemarriscada e acontece que isto se faça à custa das almas. NoFedro, Sócrates expõe uma outra situação possível, relativaà navegação das almas. Pode haver acidentes pelo cami-nho. Seguem-se conseqüências diretamente ligadas ao pa-pel e o status pouco gloriosos que Platão atribui à arte e aosartistas na Cidade. Imaginemos a pressa das almas em que-rer subir aos céus: empurrões, tumulto, precipitação, asasquebradas ou arrancadas! Resultado: a queda. Algumas saem-se bem e sem danos. Se, além disso, tiverem tido tempo e a

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Marc jimenez 203sorte de perceber o maior número de verdades, podem semdificuldade ocupar e animar um corpo. Elas ocupam a pri-meira posição. O homem que produzem só terá então pai-xão pela sabedoria, pela beleza, pelo amor e pelas musas.Para as outras, divididas em oito ordens, a situação vai-sedegradando. A segunda ordem dá um rei justo ou um chefeguerreiro; a terceira, um político, um ecônomo ou um finan-cista; a quarta, um ginasta ou um médico; a quinta, umadivinho ou um iniciado.

Depois, as coisas se deterioram: a sexta ordem engen-dra um poeta ou algum artista imitador; a sétima, um arte-são ou um agricultor; a oitava, um sofista ou um demagogo;enfim, a nona, um tirano, isto é, o contrário absoluto de umfilósofo, ou melhor, de um rei-filósofo.

Se algum dia se procurasse uma relação entre a teoriadas Idéias e uma teoria da arte, aqui está ela claramenteexposta. O poeta e o artista imitador ocupam o degrau maisbaixo ou quase da escala social, um pouco acima do operá-rio ou do camponês, mas muito abaixo do filósofo.

A crítica da imitação

Platão atribui à arte um papel pedagógico primordial nointerior da Cidade ideal. Porém, em razão de sua extremadesconfiança diante da arte e dos artistas em geral, seus crité-rios de seleção são extremamente rigorosos . Este rigor, emsi, é legítimo. Piarão elabora um projeto de Estado harmoni-oso; é perfeitamente legítimo que ele fixe suas exigências emfunção do que julga ser benéfico para todos os cidadãos deuma "Cidade" justa e virtuosa. O único problema é que todosos critérios caminham no mesmo sentido e estão ligados maisa exigências morais do que artísticas ou estéticas.

As artes, como a música.que se constituem a partir de

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204 o que é estética?

relações aritméticas e se baseiam numa harmonia definívelcom ajuda de relações numéricas, merecem todas as hon-ras. Platão invoca Pitágoras: os pitagóricos não afirmam queas orelhas foram formadas para o movimento harmônicocomo o foram os olhos para a astronomia? Em compensa-ção, o ridículo golpeia os músicos que se empenham emcriar novas harmonias, que fragmentam ou multiplicam osintervalos, "importunam e torturam" as cordas de seus ins-trumentos, dão rabecadas na esperança de extrair sons iné-ditos. Pobres músicos, na opinião de Platão, que preferem oouvido ao espírito!

Para a poesia, os critérios de escolha são claros: so-mente são admitidos os hinos em honra dos deuses e oselogios de pessoas de bem, mas todos aqueles que cantama voluptuosidade, o prazer e a dor devem ser excluídos daCidade.

A intransigência de Platào diz respeito sobretudo àsartes que se entregam à imitação, em outras palavras, asartes da aparência. A primeira arte visada é a poesia. Suacondenação intervém já no livro III de A República. Em nomeda educação das crianças, dos futuros homens que deverão'honrar os deuses e seus pais", e que se tornarão os guardiãesda Cidade, Platão pede simplesmente que suas leituras se-jam censuradas. E qual leitura em particular? A de Homero,culpado por usar palavras assustadoras C'habitantes dos in-fernos" "espectros", "Estige"), por mostrar deuses chorosos,em larnentações ou então francamente covardes. Apague-mos estes versos, pede Platão, e substituamos os termosnegativos por expressões positivas.

Esta poesia propõe-se imitar comportamentos huma-nos, paixões, emoções. Se se contentasse em imitar asqualidades e as virtudes como a coragem, a temperança, asantidade, ainda passa! Mas a imitação torna-se um hábitoque impele a imitar tudo, inclusive os defeitos e os vícios.

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Marc [imenez 205A forma dramática da tragédia e da comédia supõe a

imitação dos heróis por personagens, tentados eles tambéma copiá-los fielmente, até em suas excentricidades. É preci-so, portanto, excluir a forma dramática e substituí-Ia pelaforma narrativa pura.

Esta condenação da poesia imitativa, debilitante edesmoralizante, aplica-se também, naturalmente, e pelosmesmos motivos, à música. Nada de melodias lamentosas,de cantos chorosos, de harmonias voluptuosas e de ritmosfrouxos ou por demais variados que levam à embriaguês ouà indolência. Nada de instrumentos de cordas por demaisnumerosas que multiplicam as possibilidades harmônicas.Sobretudo, nada de flauta, instrumento perigoso que emitedemasiados sons, mas somente a lira e a cítara. Se a músicadeve mimar alguma coisa é a virilidade dos valorosos guer-reiros ou então a serenidade da vida campestre.

Ao longo da obra, a crítica da imitação se precisa eendurece. No livro X ela recebe sua justificação filosófica.Até então, a imitação tinha um sentido bastante vago e ge-ral. Ela extraía sua significação na arte do mimo, do simula-dor. A arte do simulador consiste em produzir aparênciasenganosas, simulacros que desviam a atenção tanto da rea-lidade concreta quanto das essências que são, de fato, aúnica realidade.

Doravante, Platão aprofunda estas distinções e hie-rarquiza os graus da mimese. Tomemos o exemplo de umacama. Deus produz a essência da cama. Esta essência é,como seria previsto em Platão, a única realidade. Chega ummarceneiro: ele fabrica uma cama, mais exatamente umaforma de cama inspirada na Forma criada por Deus. Elecopia. Chega um pintor: ele pinta a cama do marceneiro.Portanto, copia uma cópia. Imitação de uma imitação deimitação, a pintura é assim a forma mais degradada damimese, cópia da verdade em "terceiro grau", ela é a apa-

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206 o que é estética?

rência, até mesmo a fraude menos admissível que possaexistir.

A poesia, sobretudo a de Homero, não vale muito mais.Não somente propõe ele às crianças o espetáculo das torpe-zas que suavizam a estada dos deuses no Olimpo; não so-mente cria fantasmas e não realidades, mas nada fez paraajudar os homens a serem virtuosos. Sua vida de poeta nô-made, vagando de cidade em cidade, recitando versos, in-capaz de atrair discípulos ao seu redor, prova perfeitamentea ausência de virtude educativa de sua poesia e de seu en-sino.

Observar-se-á como estamos longe - paradoxalmente- da louca e inextinguível paixão de Hôlderlin por Homeroe Hesíodo: e a que ponto a severidade de Platão contrastacom a admiração de Hegel pelo autor da Iliada e da Odis-séia! Decididamente, ninguém é profeta em sua terra. Nemmesmo Homero na Grécia de Platão ....

Podemos julgar excessivas a condenação da imitação eexclusão dos poetas - mesmo coroados de louros - parafora da Cidade, assim como a severidade para com Homero.A intenção de Platão aparece claramente: trata-se de subme-ter a arte à autoridade da filosofia ou, mais exatamente, àcompetência e à vigilância do filósofo. Somente ele é res-ponsável pela Cidade justa e harmoniosa; somente ele sabeo que é bom e bem para os cidadãos; somente ele, enfim,conhece os meios que previnem a decadência da maioriados governos. Do ponto de vista de um tal projeto o rigordo sistema educativo preconizado por Platào é coerente. Defato, não poderíamos esquecer o contexto histórico e políti-co dentro do qual Platão compõe A República.

Vejamos as datas: Platão nasce em 428/427, dois anosapós o início da guerra do Peloponeso, que opõe Atenas eEsparta. Uma guerra longa, de quase trinta anos, que termi-na com a derrota de Atenas. O nascimento do filósofo co-

Marclimenez 207incide com a morte de Péricles (429). O desaparecimentodo estratego significa o fim da idade de ouro, da era da paz,do domínio de Atenas na terra e no mar, do desenvolvimen-to artístico e cultural de um povo que se identifica com seuarauto, Homero. À harmonia sucede o caos. A ambição e asintrigas pessoais aceleram a decadência da democracia e adegradação dos costumes políticos. Logo que é restaurada,em 403, a democracia condena Sócrates à morte (399). Este"suicídio" imposto é um choque para Platão. Afetivamente,em primeiro lugar, mas também simbolicamente: é aencarnação da sabedoria que desaparece. Do ponto de vis-ta filosófico, esta morte significa também a vitória dos sofis-tas, inimigos irredutíveis. Política e institucionalmente, é umacatástrofe que não pressagia nada de bom para o futuro deuma Cidade que naufraga na demagogia.

A República - o título grego é Politéia - é, pois, umaobra de filosofia política cuja vontade de repor em ordem ede restaurar a justiça se inscreve no programa da Academia.Este programa é de espírito pitagórico. Privilegia ele a apren-dizagem da matemática, da aritmética, da geometria e daastronomia, a fim de lutar contra a atração do sensível e desuas mentiras. Eis por que a educação artística deve acom-panhar a educação "musculada" pela ginástica acompanha-da pelo ritmo de música "militar". O preço pago pela arteneste combate contra a corrupção e o imoralismo parece-nos exorbitante: censura, comissão de seleção das obras dearte, controle, regulamentação e, em caso de necessidade,exclusão.

Em suma, a teoria das Idéias, da prioridade do inteligí-vel sobre o sensível, possui sua vertente pragmática e bas-tante "realista", conformista, antimoderna e - confesserno-lo- bastante reacionária. Este conservantismo obstinado, mui-tas vezes censurado em Platão, não nos interessa realmenteaqui; séculos de interpretação e de comentários de fato de-

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208 o que é estética?

turparam um pouco, o que na verdade estava em causa naépoca. Na própria República, Sócrates hesita em precisarseu programa. Ele é o primeiro a duvidar que possa serrealizado!

É sem dúvida mais frutífero para a reflexão contempo-rânea ler Platào de outra maneira e homenagear uma pers-picácia que seus sucessores e seus exegetas não terão.

Para Platão, filosofia e arte são campos separados. Aatividade "poética"em geral está ligada ao sensível e ao quea ele se prende, os sentidos, a sensualidade, as paixões, asemoções, os afetos. A filosofia tem relação com o inteligí-vel, o conhecimento, o espírito. A relação entre as duas énecessariamente uma relação de sujeição: a arte está o ser-viço da filosofia e, na medida em que a filosofia se identifi-ca com o político, a arte também é submetida à organizaçãodo Estado. Trata-se realmente de libertar a razão, o lagos, douniverso do sensível, e de assegurar assim a liberdade doindivíduo ao preço, é verdade, de uma ascese coercitiva.

Invertamos, agora, o sentido tradicional das leituras dePlatão. Perguntemo-nos se não é ele um dos primeiros adizer a verdade da arte. Ele descreve em detalhes todas asperversões a que leva a atividade artística. Arrola as formasde sedução que ela suscita e os vícios que engendra, mos-trando de que modo age sobre a alma. Para condenar omal, é preciso descrever seus sintomas e seus efeitos. É exa-tamente o que faz Platão. Ele diagnostica a energia eróticacorrosiva, subversiva, perturbadora, contida potencialmen-te na arte, na poiesis, como dizem os gregos. Julga prevenir-nos; de fato, chama nossa atenção para o essencial, isto é,para a capacidade de ruptura da criação. Melhor do queninguém, e já em sua época, sabe onde a arte faz mal e oque fere: a ausência de harmonia, as dissonâncias,os sonsnovos, as coreografias lascivas, a poesia voluptuosa, a gi-nástica por demais sensual ou por demais acrobática, a pin-

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Marcjimenez 209tura virtuosa, colorida ou irisada, as esculturas de formasinstáveis.

É verdade que a teoria das Idéias, das Formas imutá-veis, eternas e fixas, obriga a recusar a evolução das formasartísticas e o dinamismo da inovação. Mas, negativamente,Platão poderia, sem o saber, ser visto como o apologistamais convincente da arte moderna e anticonformista. Nãosomente estabelece ele o catálogo dos poetas e artistas proi-bidos: Homero, Aristófanes, todos os músicos discípulos dosátiro Mársias.? etc; porém estabelece cuidadosamente a lis-ta dos prazeres que se podem extrair de sua convivência.

Para falar de maneira anacrônica, poder-se-ia dizer quePlatão desenvolve, paralelamente a uma estética idealista,uma estética da recepção, do efeito,e que sua reflexão so-bre a arte está ligada ao mesmo tempo à sociologia e àpsicologia da arte. Ao lado do mundo da beleza ideal, queaspira à transcendência e ao divino, existe o mundo da ex-periência concreta da arte, vivida pelo indivíduo e pela so-ciedade. De um lado, a perfeição absoluta,uma esfera dosublime, de outro lado, o mundo sensível, imperfeito, masperfectível graças à filosofia.

Platão respeita a beleza, mas desconfia da arte; de fato,esta desconfiança, por razões morais e políticas, está à altu-ra da importância que ele reconhece nela: a arte longe estáde ser uma questão menor. Ela se torna mesmo uma ques-tão maior quando é assumida pela filosofia.

Estes dois aspectos determinam a ambigüidade daheteronomia artística. Tomando as expressões da famosaalegoria da Caverna, poderíamos opor a face solar, lumino-sa, do belo, à face oculta, tenebrosa, do desejo que anima aarte.

7Na mitologia, Mársias, hábil tocador de flauta, ousou desafiar Apoio. Nunca otivesse feito' Perdeu e pereceu esfolado vivo.

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2100 que é estética? Marcjimenez 211

A história da reflexão sobre a arte no Ocidente apre-senta-se, até o romantismo do século XIX, como um longocomentário contraditório e controverso das teorias platôni-cas e como uma interpretação constantemente renovada dateoria do belo e da mimese. Vimos como a autonomia esté-tica somente se impôs por uma libertação progressiva emrelação aos conceitos meta físicos ligados à idéia do beloideal ou à submissão da beleza à moral e à filosofia. Osdesligamentos que se manifestam a partir da Renascençasão reações à desvalorização das artes da aparência, sobre-tudo da pintura; reações igualmente à depreciação da ativi-dade artística em geral e à subestimação do status do artistaem particular.

Em boa lógica, uma teoria como a de Aristóteles (384-322), aluno rebelde de Platão, que toma a direção oposta àda teoria das Idéias e se pronuncia resolutamente em favorda imitação, teria podido impor-se, ao longo da tradição,como um feliz contrapeso ao rigor ascético da doutrina pla-tônica. Aristóteles não somente recusa a separação entre omundo inteligível e o mundo sensível, mas associa o prazerà imitação artística da natureza. Longe de submeter a arte àautoridade da filosofia e do político, ele não deseja excluir

da Cidade os artistas inconvenientes; pelo contrário, devol-ve às artes suas cartas de nobreza e atribui à poesia, à músi-ca, à pintura e à escultura virtudes benéficas tanto para oindivíduo quanto para a sociedade.

Estaria ele assim em situação de pensar a autonomia daarte? É evidente que não. Veremos, pelo contrário, como aarte permanece, em Aristóteles, ligada de múltiplas manei-ras, ao projeto de organização política, num sentido total-mente diferente, é verdade, de Platào. Mas interrogar-nos-emos também sobre a influência que ele igualmente exer-ceu durante séculos. Apesar das notáveis diferenças que oopõem a Platão, suas concepções contribuíram largamente,pelo menos tanto quanto as de seus mestres, para a desva-lorização secular da criação artística e da minoração do pa-pel social do artista.

Precisemos rapidamente nosso ponto de vista: longede nós a idéia de tornar Platão e Aristóteles responsáveispor seja o que for; sobretudo não o são das transformaçõesque as épocas ulteriores, desde o pensamento medieval atéa época clássica e a época romântica, fizeram sofrer às suasteorias. Platão e Aristóteles engendraram uma multidão deexegetas e de intérpretes que impuseram cada um sua visão"neo", platônica ou aristotélica. Alguns devem ser levados asério, como Plínio o Velho (23-79), Filóstrato, o Velho (170-245), Plotino (205-270), Santo Agostinho (354-430) ou maistarde Marsilio Ficino, cuja influência sobre o pensamentomedieval já assinalamos. Mas outras leituras, menos escru-pulosas, são efetuadas mais em nome de um respeito globalpela filosofia e pela cultura antiga do que em virtude doque dizem de fato os textos, pelo menos aqueles que che-garam até nós. Esta observação vale sobretudo para a Poética.

Aristóteles torna-se uma referência maior nos séculosXVI e XVII, mas apela-se sobretudo para o princípio de au-toridade escolástica para impor concepções particulares às

Esta face oculta do platonismo não é o que a posterida-de julgou ter de valorizar no autor de A República. A tradi-ção ocidental constituiu-se sobre esta base de desconfiançaplatônica em relação ao eros contido - reprimido segundoFreud - no coração da criação artística. Serão necessáriosvinte e três séculos para que Nietzsche, o anti-Platão, inver-ta os parâmetros, denuncie o caráter ilusório das Idéias eassimile a arte à única realidade e à vida.

A tradição aristotélica

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212 o que é estética?

vezes muito afastadas do pensamento do filósofo. Por exem-plo: Corneille e Racine apóiam-se ambos em Aristóteles paralegitimar regras dramáticas que não se encontram todas naobra do filósofo e, além disso, favorecem escolhas estéticase poéticas muito diferentes. A famosa regra das três unida-des, tempo, lugar, ação, não é enunciada em parte algumapor Aristóteles sob a forma de um imperativo absoluto. Paraele, só importa a unidade de ação. A verossimilhança, àqual Boileau dá tanta importância em sua Art poétique, éimportante, mas ela não é uma regra predominante.

Paradoxalmente, Aristóteles torna-se o responsável poruma doutrina clássica já solidamente constituída, quandosurgem, de um lado, as Réflexions sur Ia Poétique d'Aristote,do padre Rapin (674) e,de outro lado, a tradução francesada Poética por André Dacier (692).

Este paradoxo é facilmente explicável. A tradição pla-tônica é contínua; a de Aristóteles é tardia e esporádica. Asnotas recolhidas por Teofrasto (372-327), seu sucessor à frentedo Liceu," da escola peripatética, somente deram origem auma edição completa das obras no século I d. c., mais detrês séculos após a morte de Aristóteles. Platão seduz oOcidente judeu - cristão para quem a concepção da imorta-lidade da alma e da reminiscência mostra-se compatível comseu próprio dogma. Santo Agostinho, no século V, tentauma das mais prodigiosas sínteses entre uma filosofia pagãe sua própria teologia. Aristóteles não é ignorado, mas seupensamento não levanta discussões. O primeiro comentárioconhecido da Poética, texto mutilado, lacunar, inacabado,data do século XII. Deve-se ele ao filósofo árabe Averróis0126-1198) que dedica sua vida ao conjunto dos textos

"Discípulo de Aristóteles, Teofrasto escreveu os Caracteres, obra traduzida porBoileau e na qual se inspirou para seu próprio livro.

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Marcjimenez 213aristotélicos. Começa então, no século XIII, uma era aristo-télica, com Alberto, o Grande, e Santo Tomás de Aquino,prolonga-se ela até o início da Renascença, para declinarcom o cartesianísmo. Mas isso não impede Lessing, AugustWilhelm von Schlegel e Goethe de efetuarem, por sua vez,uma leitura crítica da Poética.

O destino da Poética é um pouco singular. Sua versãolatina data somente do final do século XV; ela somente édifundida no século XVI,na Itália. Seu sucesso é imenso.Mas, que aconteceu entre os séculos XII e XVI? Verossimil-mente, a perda do livro Il, consagrado à comédia. O livro Isó trata da tragédia e da epopéia.

Conhecemos o benefício que o escritor e filósofo con-temporâneo Umberto Eco extraiu deste dasaparecimento dolivro Il, consagrado ao riso, em O nome da rosa. A incertezaque plana sobre a leitura que dele possam ter feito as pesso-as da Idade Média constitui efetivamente um enigmaperturbador. Porém, o maior enigma reside seguramente nainfluência que este texto, curto e incompleto, exerce duran-te quase quatro séculos.

A defesa da imitação

A obra de Charles Batteux Les beaux-arts. réduits à unmême principe (746) é, como vimos, uma das últimas ho-menagens a Aristóteles e à doutrina da imitação. Batteux dizter ficado impressionado pela perspicácia do filósofo grego.Ele vai mesmo mais longe: não somente a pintura é umapoesia muda, mas o mesmo princípio se aplica à música e àarte do gesto. Se Batteux permanece sob a dependência datradição, ele se mantém afastado da ortodoxia clássica: imi-tar a natureza não significa copiá-Ia servilmente, significaimitar a natureza transfigurada pelo gênio.

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214 o que é estética'Homenagem em forma de adeus, numa época em que

Montesquieu, no Essai sur te gout (1757) vilipendia com umaespantosa virulência a filosofia antiga, um "verdadeiroflagelo"L..l estes diálogos em que Platão apresenta o racio-cínio de Sócrates, estes diálogos tão admirados pelos anti-gos, são hoje insustentáveis, porque estão baseados numafilosofia falsa: pois todos estes raciocínios sobre o bom, obelo, o perfeito, o sábio, o louco, o duro, o mole, o seco, oúmido, tratados como coisas positivas nada mais significam".É urgente, para Montesquieu, rasgar de uma vez por todaseste "tecido de sofismas" e pôr de lado o idealismo platôni-co a física e a metafísica de Aristóteles: sem dúvida tam-,bém, mesmo se ele não o precise, a Poética.

A irritação de Montesquieu,um pouco exagerada, tempelo menos o mérito de mostrar a influência exorbitantedos dois filósofos gregos e a focalização de todos os deba-tes, durante séculos, ao redor de suas teorias. Não se dizia,noséculo XVII, que, se a razão reina, Aristóteles governa? Aris-tóteles nem mesmo é mais o nome de um filósofo nascidoem Estagíra, cidade da Macedônia, em 384 a. C. , ele é purae simplesmente uma regra.

A observação de Montesquieu é, contudo, injusta pelomenos em dois pontos: de um lado ela imputa a Aristóteleso que certamente deve ser atribuído aos múltiplos exegetas,comentadores e intérpretes mais ou menos confiáveis desua obra; de outro lado, ela nada diz sobre as razões quepermitiram que esta filosofia se impusesse de forma tãodurável. Sem dúvida, há outros interesses, que não os poé-ticos e estéticos, e motivos mais políticos e ideológicos paraexplicar a sobrevivência do sacrossanto princípio de autori-dade e a submissão a uma ordem considerada estabelecidahá vários lustros. O debate estético secular sobre nações deimitação e de catarse dissimularia então um outro interesse:o do desafio que a arte lança permanentemente às diversas

I

iI!_.-1._

Marcjimenez 215tutelas que tentam dominá-Ia a fim de poder fundar suaprópria ordem, liberta da religião, da metafísica, da moral eda política.

Estamos lembrados de que Platão condena a imitaçãoem nome de princípios ontológicos, morais e políticos: aimitação em segundo ou em terceiro grau, afasta da Forma,da Idéia; é um simulacro enganador utilizado para seduzir ecorromper, cujos efeitos são nefastos sobre a educação; nãohá lugar para os poetas, músicos, pintores, dramaturgosimitadores ria Cidade ideal.

Ora, tais princípios desempenham igualmente um pa-pel essencial na defesa da imitação feita por Aristóteles, masnum sentido diametralmente oposto. Ele não admite a sepa-ração entre o mundo das Idéias e o mundo sensível. Se aIdéia existe num universo ao qual não temos acesso, ele édesconhecível e, por consequinte, nós ignoramos até mes-mo que ela é uma Idéia. Evidentemente, Platào admite apossibilidade de uma "participação" ao mundo ideal graçasà reminiscência. Porém, apreender as essências supõe quenos afastemos do mundo sensível, pálida cópia do mundointeligível, que renunciemos às paixões e que recusemos osprazeres terrenos.

Para Aristóteles, as Idéias não estão no além, elas exis-tem na realidade. Admite ele, como Platão, a necessidadede aceder à verdade, ao belo e ao justo, mas a partir de umarealidade sensível que está no poder do homem conhecergraças à ciência, ao discurso, ao lagos. Em outras palavras, oSer existe,mas em lugar de refugiar-se num mundo dificil-mente acessível, de brilhar, de algum modo, por sua ausên-cia, ele está presente de diferentes maneiras no indivíduo ena natureza. O "Ser se diz de múltiplas maneiras", segundoa expressão de Aristóteles. As Idéias não são, portanto, aúnica realidade; o mundo sensível é igualmente real e oindivíduo é a primeira e a mais alta realidade ou substância.

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, .I

216 o que é estética? I Marc jimenez 217Aristóteles julga severamente o conceito das Idéias imu- estende-se à organização da Cidade, tal como seu predeces-

táveis e exemplares que não explicam a diversidade e a sor a imaginara em A República. Realmente, na Política,mobilidade do real. Platão, diz ele, contenta-se com pala- Aristóteles mostra-se severo para com a constituição davras vazias e se compraz em metáforas poéticas. Sua doutri- Calípolis, da Cidade ideal concebida por Platão. Vimos quena é arbitrária, contrária à experiência concreta. É certo que poucos regimes políticos agradam a este último e, sobretu-a crítica da teoria das Idéias solapa os fundamentos filosófi- do, não lhe agrada a democracia, sempre ameaçada pelacos da concenação platônica da imitação. Imitar, copiar, re- corrupção e pela demagogia. Se ele propõe uma forma depresentar não constituem degradações de um mundo ideal vida comunitária - um "comunismo" baseado na comunida-visto que, segundo Aristóteles, este mundo não existe. de das mulheres, das crianças e dos bens -, não é realmente

Porém, os tabus morais que desacreditavam ou proibi- bom viver nesta Cidade. Não esqueçamos que reina umaam esta imitação caem igualmente: a ação do homem cessa censura "cultural" vigilante; os artistas são perseguidos, osde ser orientada pela aspiração ao conhecimento de verda- espetáculos, os concertos, o teatro e a música são seleciona-des eternas, pela aspiração a conformar-se ao modelo do dos pelo filósofo-rei em função de suas virtudes educativas.bem. A felicidade e o prazer são reabilitados na terra, no Aristóteles concebe uma outra organização social. Par-mundo sensível, visto que procurar ser feliz faz parte da te ele do princípio de que o homem é por natureza umnatureza do homem. O papel do filósofo não é, pois, o de animal político e sociável. Aspira fundamentalmente viverfazer reluzir diante do homem um bem supremo que ele em família, numa aldeia e numa sociedade civil. Estas dife-nunca irá atingir; a educação consiste em indicar alguns 1 " rentes comunidades permitem que sua natureza se realize,preceitos tendo em vista a busca da felicidade, do "sobera- ,I que exista não somente potencialmente, mas em ato. Queno bem", uma felicidade de qualquer modo diferente para I importa o regime político propriamente dito! A aristocracia,cada um. E a maneira mais segura de conhecer a felicidade a monarquia, a oligarquia, a democracia em si mesmas nãoé adotar uma vida submetida à razão. A vida racional, à são nem boas nem más. São apenas o que fazem delas osdiferença da vida vegetativa ou animal, é específica do ser governantes: ou seja, ditaduras, tiranias, demagogias, siste-humano. Ela responde ao mesmo tempo à sua função e à mas liberais. Como todas trazem em si germes de perversão,sua natureza de homem. Por pouco que o homem aplique o essencial reside na observância das leis desejadas pelosseu pensamento à forma mais nobre da vida racional, ele cidadãos. Estas leis, baseadas na moderação e no equilíbrio,notará logo que a felicidade reside no equilíbrio das pai- devem permitir que cada um segundo sua natureza possaxões e das emoções. Perceberá também os méritos da tem- agir segundo a virtude e aceder à felicidade.perança, da prudência e do meio termo que definem a con- Esse desvio pela filosofia de Aristóteles - evocada emduta virtuosa. suas grandes linhas, - é indispensável para compreender

As concepções políticas de Aristóteles estão estreita- sua "estética". Ele permite apreender como a crítica de Platão,mente ligadas, como em Platão, às suas posições filosóficas a refutação das Idéias imutáveis, a defesa da imitação, for-e morais, mas elas chegam a resultados sensivelmente dífe- mam um conjunto coerente, ligado às posições morais erentes. Adivinha-se facilmente que a crítica do platonismo políticas de Aristóteles. Defesa da imitação, apologia da_L

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"Em 342, Aristóteles parte para a Macedônia, a convite de Felipe 11, na qualidadede preceptor de seu filho Alexandre. Somente volta a Atenas em 335. Supõe-seque a Poética tenha sido redigida em grande parte durante esse período.

loAristóteles, Poétiquc, Paris, Gallimard, 1996, trad. J. Hardy, prefácio de Philippe ,

Beck, 1448 b. l 'II_bid., 146/b.

218 O que é estética?

mimese, a Poética é também sua ilustração. É um tratadoincluído provavelmente no programa de ensino destinado àformação intelectual de Alexandre, o Grande."

Imitar é logo definido como um ato legítimo, é umatendência natural: "parece realmente que a poesia deve, emgeral, sua origem a duas causas e duas causas naturais. Imi-tar é natural nos homens e manifesta-se já na infância (ohomem difere dos outros animais por ser capaz de imitaçãoe é através dela que adquire seus primeiros conhecimentos)e, em segundo lugar, todos os homens gostam das imita-ções.'"

Observemos que a poesia designa aqui também a mú-sica que acompanha os poemas. A importância da imitaçãoé apreciada em dois pontos: de um lado, no plano do artistacriador, ela assume desde a infância uma função de conhe-cimento; graças a ela aprendemos, precisa Aristóteles. Deoutro lado, ela traz prazer tanto àquele que imita quanto aopúblico.

A imitação concerne a qualquer objeto: belas ações ouatos vulgares. Aristóteles constata simplesmente que os gê-neros, como a tragédia ou a epopéia, desenvolvem-se e setornam, pouco a pouco, conformes à sua própria natureza:assim, Sófocles, sobretudo, seu Edipo, melhora a tragédiaem relação a Esquilo: na llíada e na Odisséia, Homero le-vou a epopéia à perfeição.

A oposição a Platão é flagrante. Em primeiro lugar, imi-tar, tendência natural, concerne a coisas ou ações concretase não mais a idéias abstratas. O prazer que dela deriva é

Marcjimenez 219uma das primeiras etapas em direção à felicidade; ele podeser vil ou nobre, segundo sua natureza. Em seguida,Aristóteles admite uma evolução possível das formas artísti-cas: elas cessam de obedecer a uma forma de beleza imutá-vel e eterna. Enfim, a poesia em geral, tragédia ou comédia,é reconhecida como um gênero maior; ela é mais "filosófi-ca" do que a história, pois a imitação é enriquecida pelaimaginação do criador. Este último não pinta as coisas comosão; ele as imita tais como deveriam ser. Não somente Sófocles- um dos raros dramaturgos tolerados por Platão - mas osoutros trágicos ou autores de narrativas épicas, comoHomero, encontram novamente seu lugar na Cidade.

Uma vez reabilitada a mimese, a única questão real-mente importante é a de saber qual é a forma poética maiselevada: a tragédia, a poesia dramática ou a epopéia, a nar-rativa, a poesia épica? A questão de Aristóteles é direta: "qualé a melhor, a imitação épica ou a trágica, é uma questão quepode ser colocada". 11

De fato, é uma questão de nuança. Pois a tragédia e aepopéia apresentam eminentes qualidades idênticas. A tra-gédia, todavia, tem uma leve vantagem, pois se desenvolveem menor tempo do que o da leitura. "Prefere-se o que émais comprimido ao que é disperso durante um longo tem-po; suponhamos, por exemplo,que se transponha o Edipode Sófocles em tantos versos quantos há na llíada!" Sobre-tudo, ela se beneficia da música e do espetáculo, precisaArtistóteles,isto é, de "meios muito seguros de produzir pra-zer".

"Prazer"! A palavra decisiva. Mas que tipo de prazer?

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220 o que é estética? Marc [imenez 221A "purgação das paixões" mas. Mas este problema é mais surpreendente quando se

trata de um espetáculo criado totalmente imaginado. Elesupõe uma identificação com um personagem e não maiscom uma pessoa. Evidentemente, esta identificação tem seuslimites, pois não se trata de imitar, de copiar nem de trans-por para a vida real as ações que se desenvolvem no palco.E temos dificuldade em imaginar um jovem que influencia-do pelo Édipo de Sófocles, decide matar seu pai, cometerincesto com sua mãe e vazar os próprios olhos!

Esta transferência da ficção para a realidade será, toda-via, tão inconcebível? Para nós, infelizmente, não. Mas, paraAristóteles, certamente, sim. Experimentando sentimentosanálogos aos que a tragédia provoca em mim, liberto-me dopeso destes estados afetivos durante e após o espetáculo.Dele saio como que purgado, purificado, apaziguado. Taisemoções preexistiam em mim em estado latente e o espetá-culo contentou-se em despertá-Ias? Ou então, tê-Ias-á total-mente provocado? Estará o espectador predisposto, por suaprópria natureza, a reagir em função de uma representaçãoespecialmente concebida para perturbá-Io em pontos sensí-veis de sua personalidade? Aristóteles não o diz.

A Poética não corresponde realmente à expectativada Política. Aqui, também, Aristóteles evocara a catarse,mas unicamente no que dizia respeito à música: "Dizemosque se deve estudar música, tendo em vista não uma únicavantagem, mas várias (tendo em vista a educação e a 'pur-gação" - sobre o que entendemos por "purgação", termousado em geral, falaremos mais claramente num tratadosobre a poética - e, em terceiro lugar, tendo em vista odivertimento, a calma e o descanso após a tensão do esfor-ço)". Evidentemente, ele falará outra vez no assunto, mastão pouco!

Em compensação, a Política fornece algumas precísõesque não encontramos na Poética: ao medo e à piedade acres-

o prazer causado pela tragédia é específico. Aristóteleso define como: "l .. .] a tragédia é a imitação de uma ação decaráter elevado e completo, de certa extensão, numa lingua-gem marcada por tipos especiais de atrativos, segundo asdiferentes partes, imitação que é feita por personagens emação e não por meio de uma narrativa, e que suscitandopiedade e medo, opera a purgação própria a tais emoções" .12

Os atrativos da linguagem designam a proporção variá-vel de cantos e de versos. A essência da tragédia reside naação, não na narrativa, ação representada dentro de um tem-po limitado. O prazer resulta das emoçàes sentidas: medo epiedade. Tudo isto é claro. Aristóteles menciona a causa eos efeitos.

Porém, sobre o mecanismo da operação há poucosdetalhes! Há um só termo bastante inesperado: "purgação",catarse. Pode-se dizer também "purificação". Esta palavramotivou grande número de comentários. Na própria obrade Aristóteles, ela é objeto de várias interpretações, Julga-mos compreender que há uma relação entre a imitação, amimese e a purgação, a catarse: diante de um espetáculoque representa ações dolorosas, tenho tendência a sentir amesma emoção que se procura provocar em mim. A repre-sentação de sentimentos violentos ou opressivos, por exem-plo o terror, o medo ou a piedade, embora mimados e,portanto, fictícios, desencadeia no público, na realidade, sen-timentos análogos.

Esta reação é banal na vida corrente; demasiados acon-tecimentos reais, assustadores ou aflitivos, suscitam emo-ções correspondentes, por exemplo, compaixão pelas viti-

12lhid, 1449 h.

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222 o que é estética? Marc [imenez 223centa-se O "entusiasmo". A respeito deste estado de exaltação,Aristóteles faz referência explícita ao sentido terapêutico dotermo: "Í. ..] certos indivíduos possuem uma receptividadeparticular para este tipo de emoções [o entusiasmo], e ve-mos tais pessoas, sob o efeito dos cantos sagrados, recupe-rarem a calma como sob a ação de uma "cura médica" ou deuma purgação".

Será para ele uma forma de reencontrar o lugar comumsegundo o qual "a música suaviza os costumes"? Sem dúvi-da, há um pouco disto, mas é preciso ir mais longe na inter-pretação.

Na Política, o próprio Aristóteles sugere que a catarsediz respeito igualmente à tragédia, isto é, à vista e não so-mente à escuta do que ele chama cantos éticos, dinâmicos,ou exaltantes. Isto não deve surpreender, visto que a tragé-dia na época realiza uma certa forma de "arte total", har-, ,monizando o texto, os coros e a dança. Mas, além disso, elaconsiste em pôr em cena uma ação, uma intriga em que ospersonagens reais imitam heróis submetidos a um destinoangustiante ou patético. Pensemos, em Édipo. Ora, a músi-ca, sozinha, não é um figurante; ela não representa nada;ela deixa aos ouvintes o tempo de imaginar livremente, se-gundo seus estados de alma, assim como a leitura de umanarrativa. Em compensação, a tragédia impõe um persona-gem, uma máscara com traços definidos. Ela força de algummodo a identificação do espectador convidado a tornar-se,momentaneamente, um "ator secreto'l'" na peça. Mimese deação e de sentimentos reais, a tragédia concentra a realida-de no tempo e no espaço; ela exagera, impele as paixões aseu paroxismo a fim de esclarecer o público sobre as even-tuais conseqüências de seus atos: vejam o que aconteceria,

I;A expressão é de Bossuet.

se por acaso tivéssemos vontade de imitar realmente essasinfelizes vítimas da fatalidade!

O remédio não será pior do que o mal? Um espetáculobrando não seria mais propício à serenidade, à volta aoequilíbrio? Aristóteles não coloca a questão. Sua "cura médi-ca" é homeopática: trata-se o mal através do mal, as paixõesexcessivas através do excesso de emoções.

Esta interpretação não é realmente abusiva. O texto deAristóteles a sugere; ela foi, particularmente, a de todo oclassicismo francês, preocupado em dar ao teatro uma fun-ção moral, até mesmo moralizadora.

Porém, do ético ao político, às vezes há somente umpasso. A Política de Aristóteles baseia-se na filosofia da tem-perança, da moderação, do meio termo. Sua vontade derestaurar a tragédia em declínio, de reatar com a tradiçãodos grandes espetáculos que contribuíram para a glória deAtenas no século V, sem dúvida não está isenta de inten-ções políticas e sociais: permitir que a Cidade viva em paz eassegurar ao cidadão a felicidade de uma vida virtuosa, deacordo com a razão. Um tal programa de educação cívica ecultural não poderia convir ao futuro rei da Macedônia?

Multiplicar os espetáculos trágicos, atrair a multidão aoteatro, significa permitir que a catarse opere não somenteno indivíduo, mas coletivamente. Significa também distrairos cidadãos, desviar sua atenção dos problemas do momen-to - as guerras incessantes - e permitir a expulsão de umamá consciência que começa a assediar um povo em deca-dência. Trata-se aqui de uma explicação quase psicanalíticano sentido atual do termo: o espetáculo acalma as paixõesporque permite viver de forma fictícia, de maneira inocentee inofensiva para a pessoa e para a sociedade, paixões que,se fossem reais, as colocariam em perigo. A catarse autoriza-ria então uma espécie de desrecalque e desempenharia umpapel de exutório.

III

I;, I_~__J._~

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224 o que é estética?

Fala-se de desrecalque. Não é um acaso o fato de terFreud escolhido o termo catarse para designar a finalidadedo tratamento psicanalítico: a volta das pulsões recalcadas àconsciência, sobretudo nos casos das neuroses. Nada há demais prejudicial ao equilíbrio do indivíduo e da sociedadedo que comprazer-se no mal-estar e no sofrimento de pai-xões e de pulsões condenadas ao mutismo, repelidas para oâmago do inconsciente.

Esta interpretação estabelece um elo entre a Poética e aPolítica. Num plano mais geral, ela revela as implicaçõespolíticas - no sentido largo do termo - e o discurso sobre aarte. Ora, também não foi um acaso o fato de este tipo deinterpretação ter sido sistematicamente omitido pela tradiçãoque segue Aristóteles. Aliás, a mesma coisa poderia ser dita arespeito de Platão. No século XVII, já o dissemos, há sobretu-do a preocupação do alcance moral do teatro. Somente se dáimportância às regras da arte, aos procedimentos técnicosque permitem chegar ao efeito procurado. No final do séculoXVIII, Lessing denuncia a assimilação aristotélica entre a po-esia e a pintura em sua crítica do ut pictura poesis. A funçãocatártica através da encenação do terror não lhe agrada. Pre-fere a piedade e considera que a tragédia deve sobretudosuscitar compaixão. Quanto a Goethe, pouco sensível ao efeitode purgação e de purificação da catarse, fala ele somente davolta ao equilíbrio. Em seu período antiquizante e clássico eno quadro de uma estética idealista, privilegia a harmoniaque nasce da contemplação da beleza ideal própria da obrade arte bem sucedida. Sobretudo quando esta obra de artepertence à poesia dramática.

Mais recentemente, Bertold Brecht 0898-1956) baseousua teoria e sua prática teatral neste elo entre estética e po-lítica: "O que nos parece ter o maior interesse social é afinalidade que Aristóteles confere à tragédia: a catarse, apurgação do espectador do temor e da piedade através da

l

, I. i

Marc Jimenez 225imitação de ações que suscitem o temor e a piedade. Essapurgação repousa sobre um ato psicológico muito particu-lar: a identificação do espectador com os personagens imi-tados pelos comediantes". I;'

Brecht critica com virulência a catarse e seus efeitosanestetizantes em relação à realidade pouco agradável domundo atual. Mas é menos Aristóteles que ele denuncia doque a "dramaturgia aristotélica", a tradição do teatro clássicoe "carunchado". Censura-o também por insistir na identifi-cação entre o espectador e os personagens a fim de engen-drar um prazer ilusório que desvia o público da realidadeconcreta. A esta demasiada proximidade que visa, em suaopinião, mistificar o espectador, ele opõe o distanciamento.Este último tem como efeito instaurar precisamente umadistância crítica. Ela permite que o público tome consciên-cia dos interesses políticos e ideológicos da ação fictíciarepresentada em cena. A grande dificuldade deste teatrodidático e épico, que respousa numa concepção marxistada história e da sociedade, consiste evidentemente em con-ciliar, no interesse do espectador, didatismo e divertimento,pedagogia política e magia do espetáculo.

Aristóteles deixa em suspenso o problema da catarse,como aliás todos os seus intérpretes e comentadores. Pode-mos lamentar a perda do livro II da Poética; todavia não écerto que ele tivesse podido resolver definitivamente o pro-blema. Devemos ou não mostrar um espetáculo represen-tando ações e heróis de forte carga emocional? Produz eleum efeito benéfico ou nefasto no público? Nós ainda não osabemos. Basta pensar nos debates atuais, quase insolú-veis.sobre a legitimidade da representação da violência fie-

"Bertold Brecht, ÉcrilS sur te tbéâtre, 1, Paris, l'Arche, 1972, "Critique de Ia Poétiqued'Aristote", p. 237 s.

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226o que é estética?

tícia nas mídias modernas, cinema ou televisão. Efeitocatártico ou incitação à imitação e passagem aos atos reais?O problema da catarse terá ainda um grande futuro.

o "modelo grego"

A atitude de Brecht, autor dramático do século XX, di-ante de Aristóteles e do aristotelismo, ilustra bastante bem aquestão que nos colocamos acima: a da influência tenaz,milenar, da tradição antiga sobre as artes. Aristóteles nãocontribuiu, direta ou indiretamente, pelo menos tanto, se-não mais do que Platão, para uma depreciação da atividadeartística e do status do artista? Esta desvalorização não ex-plicará em parte a emergência tardia, no século XVIII, daautonomia estética?

Procuremos responder.É claro que Aristóteles revoga a proibição platônica que

pesava sobre a imitação. Esta libertação da mimese é aliásmais rica de conseqüências do que se pensará durante sé-culos: a imitação da natureza - natureza do homem, nature-za exterior - não é uma reprodução ou uma cópia servil.Como o mostra a catarse, imitar é mais do que imitar: há umelemento misterioso que é acrescentado na relação da artecom os espectadores. A poesia, em sentido largo, é filosófi-ca. Os artistas obtêm literalmente direito de cidadania e nãosão mais vítimas do ostracismo platônico.

Porém, durante séculos, a imitação se transforma emum dogma coercitivo. Ela se torna mesmo um princípio aca-dêmico que impõe, até o século XIX, uma verdadeira ide-ologia da representação baseada no reconhecimento, so-bretudo nas artes plásticas: somente valem as obras "figura-tivas", aquelas nas quais se reconhecem o objeto ou o sujei-to representado de maneira "natural" ou "realista".

II

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I

I

Marc [imenez 227A poesia é filosófica, mas a arte em geral é antes de

tudo uma técnica. Ela entra na categoria das atividades ditas"poiéticas", inferiores às atividades teoréticas, como a filo-sofia, e às atividades práticas, como a política ou a moral. Afilosofia tem como finalidade a visão ou a contemplação daverdade; a poiética e a moral fixam regras para a ação con-creta e a direção dos indivíduos; a poiética designa a fabri-cação de um objeto e remete tanto à produção de uma obrade arte quanto à arte do sapateiro. Basta lembrar o exemplodo marceneiro, fabricante de camas, em Platão.

É curioso, aliás, observar desde a Antigüidade a distorçãoentre a reputação de que gozam, ainda em vida, certos artis-tas de renome e o desdém no qual se continua a manter oofício de artista em geral. As coisas terão realmente mudadoem nossos dias?

Em suma, Aristóteles, assim como seu mestre, instaurade forma duradoura o preconceito desfavorável em relaçãoà atividade artística. Além disso, anuncia ele a temível dis-tinção entre as artes mecânicas e as artes liberais, entre aprática artesanal e a arte considerada como uma atividadeintelectual. Vimos como os pintores e os humanistas da Re-nascença militavam vigorosamente em favor de umaintelectualizaçào e de uma cientifizaçào de suas práticas ar-tísticas associando-as ao saber matemático e filosófico.

É este mesmo privilégio concedido à inteligência, aoespírito, à alma, por oposição ao corpo, à matéria, que de-termina - podemos lembrá-Io - a classificação hierárquicadas artes em Hegel. Mas, ao mesmo tempo, a filosofiahegeliana se desfaz, de um lado, do modelo grego, de outrolado, da tradição antiga tal como se perpetuou da IdadeMédia ao Romantismo. Segundo seus próprios termos, Hegelsitua-se "na soleira da arte moderna", abrindo-se para umfuturo incerto que sua própria filosofia, por demais tardia,não consegue esboçar.

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228 o que é estética.'Entre a morte de Hegel e as primeiras rupturas que

transformam o mundo da arte, há somente uma geração.Vinte anos, durante os quais os "modernos", admirativos,mas resolutos, aprendem a renegar o mito grego, doravantepor demais inacessível, entre as coisas do passado. Vinteanos, durante os quais a arte aprende a não permanecerindiferente diante das transformações do mundo.sobretudoquando elas tomam a forma de revoluções, começando pelarevolução industrial.

Mas não basta reservar a arte e o pensamento antigosao estudo arqueológico e filológico. A modernidade tentaliquidar cinco séculos de tradição aos quais, apesar de tudo,ela deve seu nascimento. Nada há de espantoso, neste caso,em constatar que a história do século XIX balbucie; umahistória ainda prisioneira de sua nostalgia por uma passadaidade de ouro e já levada pelo turbilhão da modernidade.As rupturas são vividas em primeiro lugar como umdilaceramento.

Dizíamos, acima, que Diderot, Schiller, jean-Paul e Hegel_ para retomar nossos exemplos, - traduziam em seus escri-tos, uma espantosa tomada de consciência dos interesses daarte e da estética de sua época. Pensam no contexto de umdiscurso autônomo sobre a arte e, ao mesmo tempo, estãoem condições de perceber as relações que ligam a arte e ametafísica à religião, à sociedade e ao político. Deduzimosdeste fato que a autonomia estética permitia pensar naheteronomia da arte.

Ao voltar à Grécia antiga, constatamos curiosamenteque os filósofos gregos já manifestavam a mesma lucidez. Éevidente que a arte está sob a dependência da metafísica,da ontologia e da filosofia, mas tais ligações longe estão deserem incompatíveis com uma interrogação muito concretasobre o papel que a arte deve assumir no campo político eno interior da Cidade.

Marc jimenez 229No final das contas, Aristóteles partilha a mesma des-

confiança de Platão diante das obras de arte que desafiamos limites do razoável, da razão e tendem a se afastar daverdade. Daí seu interesse pela poesia épica de Hornero, jávelha de vários séculos e pela tragédia, já antiga, de Sófocles;daí também suas reservas diante das obras de sua época,raramente citadas.

A tradição não se apaixonou por este aspecto "engajado"da filosofia da arte dos antigos. Ela, o mais das vezes, igno-rou esta implicação da arte na vida concreta dos indivíduos.Preferiu promover e legar à posteridade os aspectos maislisonjeiros do mito grego: a "calma grandeza e a nobre sim-plicidade" da arte assim como a grande elevação espiritualdas filosofias platônica e aristotélia, levemente afetadas porséculos de interpretações se não duvidosas, pelo menossempre interesseiras.

Quem venceu, diante deste ideal mítico? Qual é o sen-tido destas rupturas provoca das pelo que chamamos a"modernidade"? Os fatores são numerosos, ligados às con-dições políticas, sociais e econômicas que convergem, nametade do século XIX, para a dissolução de um mundoantigo. Evocaremos ulteriormente, no próximo capítulo, anatureza das transformações no plano da arte e da reflexãoestética; mostraremos igualmente as razões pelas quais es-tas rupturas merecem seus nomes, e veremos por que dife-rem por sua radicalidade, das mutações anteriores, tanto naRenascença quanto no século das Luzes.

Mas o termo modernidade longe está de ser simples eunívoco. Ele se define tanto pela recusa do passado, pelarejeição de uma tradição que continua a assediar os espíri-tos quanto por sua abertura em direção ao futuro. É estaambivalência que atrai nossa atenção nas obras de Marx, deNietzsche e de Freud.

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n

ENTRE NOSTALGIA E MODERNIDADE

Não existem escritos teóricos em filosofia e em estéticaque não comportem, ainda hoje, uma referência explícitaou implícita a Marx, a Nietzsche ou a Freud. Este não é oúnico ponto comum entre o "teórico do capital e da luta declasses", o "profeta da morte de Deus" e o "pai da psicaná-lise", para usar os clichés habituais.

Os três se encontram entre os que poderíamos chamaros artesãos conceptuais da modernidade no século xx. Pen-sadores do século XIX, ligados a uma época ainda prisio-neira do passado e da tradição, conferem eles um conceitoaos verdadeiros sismos que já sacodem a velha Europa; éassim que eles dão um nome a revolução proletária, aoniilismo, ao declínio do ocidente e ao inconsciente. Emborasuas obras nào sejam rigorosamente contemporâneas, elesmarcam, os três, em intervalos próximos, o fim do humanismoherdado da Renascença e da razão clássica. E, o que é aindamais importante, solapam, de forma irremediável, as certe-zas ligadas à concepção do homem como dono e possuidorda natureza.

A ciência triunfa, mas este triunfo é também o das cri-

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232 o que é estética?

ses políticas, econômicas, sociais e artísticas que a atividadecientífica divulga, imaginando poder resolvê-Ias ou pelomenos analisá-Ias.

A Renascença instalava literalmente uma perspectiva quetornava representáveis o homem, a natureza, o universo, atémesmo o próprio Deus, dentro de um espaço e um tempocontínuos e homogêneos, um espaço euclidiano. O séculoXIX é obrigado a crer no progresso dentro de um espaço-tempo descontínuo, heterogêneo, relativo, não euclidiano,sacudido pelas descobertas de Lobatchevski e de Riemann,precursores de Einstein. Não somente o mundo não é maisrepresentável com as antigas fórmulas, mas não é certo queas revoluções e as guerras, as catástrofes anunciadas já nametade do século, o tornem ainda apresentável.

Todavia, se Marx, Nietzsche e Freud nos interessamaqui, não enquanto pregadores do futuro mal-estar da cul-tura ocidental, mas porque cada um conserva a seu modouma certa nostalgia da Antigüidade.

Esta contradição encontra-se no âmago de suas con-cepções estéticas. Ela nos leva a perguntar por que estespromotores da modernidade em política, em metafísica ouem psicologia ignoraram ou recusaram a modernidade artís-tica. Este paradoxo pesa consideravelmente sobre as inter-pretações e sobre as utilizações ulteriores de sua teoria.

Este mesmo paradoxo revela, de um modo geral, umoutro fato importante: o da defasagem entre o aparecimentodas obras de arte e a reflexão estética que tenta interpretá-Ias. Já observamos, em nosso prefácio, este atraso da estéti-ca em relação à criação. Ele verifica o diagnóstico formula-do por Hegel a respeito da filosofia: na soleira damodernidade, numa época em que o artista não é mais obri-gado a obedecer a normas preexistentes e em que ele élivre de escolher a forma e o conteúdo de suas realizações,a estética só pode vir depois. É de fato este o desafio ao

Marcfimenez 233qual ela se expõe, desde então, permanentemente, acompa-nhado por uma outra exigência: a de não vir tarde demais.

Marx ou a infância da arte

Em 1857, Karl Marx 0818-1883) redige uma Introdu-ção à crítica da economia política. Conscienciosamente,estabelece um plano comportando oito pontos importantesque não devem ser esquecidos num desenvolvimento ulte-rior. Anota, por exemplo, a idéia de que a guerra é sempreanterior à paz: que as relações econômicas, o maquinismo eo assalariado apareceram no exército e no estado de guerramais cedo do que no resto da sociedade burguesa ou entãoque a história universal é uma noção recente, etc.

Há algo que ele considera particularmente importanteneste projeto de economia política: recusar o idealismo, cessarde crer que a filosofia, o direito, a moral, a atividade intelec-tual descem milagrosamente desse céu estrelado que fasci-nava Immanuel Kant, e que eles se imprimem de maneiramágica na consciência dos homens. Para Marx, de fato, to-das as nossas representações repousam sobre uma base eco-nômica determinada pela produção e pelo comércio materi-al dos homens. O mesmo acontece com a arte e a cultura:elas não são emanações de um poder supra-sensível ou deuma faculdade transcendente, ainda menos de uma vonta-de divina; são os produtos de uma sociedade organizada eestruturada pelos intercâmbios econômicos, ao mesmo títu-lo que a política, as leis, a religião, a metafísica e a ética.

Neste sentido, a atividade artística e as concepções es-téticas de um povo não são mais autônomas, mas hete-rônomas. Elas dependem de parâmetros sobre os quais nãotêm nenhum poder. Estão incluídas na ideologia, isto é, nasrepresentações forjadas por uma sociedade num dado mo-

______Jll. _

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234 o que é estética?

mento de sua história, segundo o estágio de desenvolvi-mento material e econômico que tiver atingido. Marx e Engels,- muitas vezes co-autores - o dizem claramente: "l...l a mo-ral, a religião, a metafísica e todo o resto da ideologia, assimcomo as formas de consciência que a elas correspondem,perdem logo qualquer aparência de autonomia". O gênioque se concentra em alguns artistas de exceção não é, por-tanto, um dom da natureza nem o efeito de um furor divino,mas um produto da divisão social do trabalho.

Todavia, Marx e Engels não cessam de pedir cautelacontra uma interpretação mecanicista e materialista de suasteorias. A economia somente age em última instância sobrea produção intelectual, isto é, ela abre caminho entre umasérie de ações e de reações recíprocas entre a base econô-mica e a ideologia. Eles admitem, portanto, que se o "de-senvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literá-rio, artístico, etc., repousa no desenvolvimento econômico",estes domínios "reagem todos igualmente uns sobre os ou-tros assim como sobre a base econômica".

Todavia, em princípio, a cada uma das sociedadescorrespondem formas artísticas particulares em relação comseu nível de desenvolvimento: as pirâmides no Egito antigo,a estatuária e a poesia épica na Grécia, as catedrais na IdadeMédia, etc. Uma arte que surge numa determinada épocapode assim agradar aos contemporâneos e não satisfazer aseus sucessores. Não se trata apenas de um problema degosto: as condições materiais de produção mudaram, tra-zendo uma modificação das formas de representação, dasidéias, dos mitos, dos usos e costumes e também, justamen-te, do gosto.

Ora, Marx toma consciência de que a arte constitui umaespécie de exceção a esta concordância global entre o está-gio econômico e social de uma sociedade e sua produçãointelectual. Este é o assunto do sexto ponto de seu progra-

l,

Marcjimenez 235ma: "a relação desigual entre o desenvolvimento da produ-ção material e o da produção artística, por exemplo". E todoseu esforço consiste em tentar resolver esta "incoerência"em apenas duas páginas. São algumas linhas surpreenden-tes por serem justamente repletas de espanto às vezes ingê-nuo e inesperado do teórico intransigente do Capital.

Em primeiro lugar, considera ele como um fato aceitoque "certas épocas de floração artística absolutamente nãotêm relação com a evolução geral da sociedade nem, por-tanto, com o desenvolvimento de sua base material". Repe-tindo claramente: os gregos produziram obras-primas, tra-gédias, epopéias, bustos, monumentos que o estágio deevolução de sua sociedade - inferior ao da sociedade mo-derna - não devia logicamente permitir. Se conseguiram fazê-10 é porque dispunham de uma mitologia, da natureza e dasformas sociais, transfiguradas em arte pela imaginação dosartistas. Daí sua superioridade sobre a arte egípcia: "A mito-logia egípcia nunca teria podido ser o solo, o seio maternoque pudesse ter produzido a arte grega". Mas é claro, emcompensação, que a mitologia grega não poderia ser umafonte de inspiração na época dos teares, das locomotivas edo telégrafo.

Curiosamente, Marx se exprime numa forma inter-rogativa e no tom de uma falsa evidência, como se pudesse,apesar de tudo, subsistirr uma dúvida: "Aquiles poderá exis-tir na época da pólvora e do chumbo? Ou, em resumo, aIliada com a imprensa, com a máquina de imprimir? Oscantos, as lendas, as Musas não desaparecem obrigatoria-mente diante da barra do impressor? E as condições neces-sárias para a poesia épica não se desvanecem?"!

III

.1 'Karl Marx, lntroduction à Ia critique de l'economie politique. Paris, Gallimard,1965, Bibliothéque de Ia Pléiade, trad. M. Rubel e[ L. Evrard p.265 sq.

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236 o que é estética?

Essas perguntas, para dizer a verdade, não são muitocoerentes. Algumas referem-se ao contexto social, econômi-co e material da criação, outras às obras, outra ao herói. UmAquiles moderno carregando baioneta no fuzil em lugar dearco e flechas não é inconcebível numa narrativa de ficção.A redação da llíada ou da Odisséia está muito mais ligada àpoderosa imaginação de Homero do que ao processo técni-co de impressão e de difusão. Em compensação, podemosadmitir que os altos fornos da indústria siderúrgica são pou-co próprios à expressão de uma sensibilidade épica ou líri-ca. E ainda assim!

Todavia, Marx, visivelmente embaraçado, elude as res-postas e precisa seu pensamento: "Mas a dificuldade nãoreside em compreender que a arte grega e a epopéia estãoligadas a certas formas do desenvolvimento social. Eis adificuldade: elas nos trazem ainda um gozo artístico e emcertos sentidos servem de norma, são para nós um modeloinacessível" .

Temos a impressão de estar lendo o capítulo de Hegelsobre a estatuária grega! A referência à estética hegelianaestá de fato presente nas considerações de Marx mas comalgumas nuanças. Para Hegel, a arte grega, modelo inigua-lável, atingira realmente seu apogeu no século V a. C., masa título de transição: equilíbrio momentâneo entre espíritoe a matéria, ela é vítima de uma dissolução e cede o lugar àarte romântica. Ela é apenas um momento na história darealização do Espírito que leva à "morte" da arte em provei-to da filosofia e da estética.

De um lado, Marx inicia uma "revolução" do sistemahegeliano: a evolução da arte não está ligada à realizaçãodo espírito; ela é determinada pelas condições materiais,sociais e econômicas. De outro lado, se ele não faz avançara questão hegeliana do modelo grego, norma eterna e ina-cessível, ele tem o mérito de abordá-Ia sob o ângulo estéti-

Marcjimenez 237co: é forçoso constatar que esta arte é ainda fonte de prazer,de pasmo e de gozo. Por quê?

Trata-se de uma questão legítima, à qual desta vez eleresponde, mas de maneira bem surpreendente. O encantoque encontramos na arte grega, nada mais é, diz ele, doque a ternura que nós, modernos, sentimos pela infânciada humanidade, por essas crianças gregas nascidas numestado de imaturidade social que nunca mais conhecere-mos.

À questão, que é, todavia, crucial em estética, de comoformas de arte podem sobreviver à história, Marx respondede uma forma bastante piegas, invocando uma nostalgiamatizada de condescendência e de compaixão. "Crucial éexatamente a palavra, se lembrarmos alguns interditos dePlatão sobre a utilização da mitologia sob a forma épica, dodesejo de Aristóteles de restaurar a forma antiga da tragédia,das normas formais impostas pela tradição clássica, até odebate entre Goethe e Schiller sobre a poesia sentimentalou dramática.

Provavelmente, Marx tinha nas mãos as respostas àssuas próprias perguntas. A admiração pela Grécia antiga élargamente um efeito da cultura e da educação. Como po-deria ele ignorar e como poderia não ter aprendido a amarHomero, Sófocles, Praxíteles e Zêuxis, ele que defendeusua tese do doutoramento sobre "A diferença da filosofia danatureza em Demócrito e Epicuro"? Portanto, ele mesmo éum puro produto de uma educação humanista e burguesaque responde aos critérios estéticos e culturais preciosamentesalvaguardados e transmitidos pela tradição.

Marx espanta-se com o fato de formas antigas ligadas asociedades arcaicas comoverem ainda as sociedades mo-dernas. Como não vai além da estética hegeliana, julga sur-preendente que formas e gêneros artísticos, a epopéia, aestatutária, ete. possam, contudo, continuar a expressar con-

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238 o que é estética?

teúdos diferentes, visto que são produzidos por grupos so-ciais diversamente evoluídos.

Aqui, duas respostas são possíveis.De um lado, a tragédia ou o poema épico tratam de

temas eternos: luta do homem contra a natureza, vítima dafatalidade, submetido a seu destino, prisioneiro de suas pai-xões, angustiado pela morte ou exaltado pelo amor, - "te-mas" transistóricos que escapam em parte - felizmente' - àscondições materiais da produção e às coerções econômicas.

De outro lado, o teórico da exploração do homem pelohomem teria podido fixar-se no que havia de comum entrea sociedade escravagista, a sociedade feudal e a sociedadecapitalista: mesmo domínio de uma classe sobre uma outra,mesmo princípio da divisão do trabalho.

A perenidade das formas e dos conteúdos artísticos éuma questão estética interessante, nas não é surpreendente.Numa civilização de progresso, o que é muito mais surpre-endente e inquietante é a perenidade do ditador, aliás dotirano, ou então a sobrevivência da sorte dos mineiros," en-terrados nas minas, versão mal retocada do escravoateniense ou do servo da Idade Média.

Os escritos de Marx consagrados à teoria da arte ocu-pam um espaço mínimo em sua obra. Evidentemente, nãose poderia censurá-Io por não ter tido oportunidade nemtempo de desenvolvê-Ios e de precisar seu pensamento,sobretudo diante das perturbações que afetam o mundo daarte em sua época. Ele morre em 1883, no mesmo ano queÉdouard Manet. Quase vinte anos antes, este último provo-cara um escândalo com seu quadro Olympia. Um verdadei-ro tumulto: uma jovem modelo nua, sem sombras, consi-

derada contrária ao bom gosto e à moral. Mas o que chocao público desorientado é menos a impudica serenidade doolhar de Olympia do que a audácia de uma técnica libertadas convenções habituais: não há mais tradição grega, ro-mantismo italianizante ou oriental. Marx absolutamente nãogostou dessas provocações.

A orientação que se deduz destes textos inacabadosrevela a flagrante contradição entre a modernidade e suasanálises filosóficas e políticas e um classicismo alimentadode nostalgia por uma idade de ouro irremediavelmente per-dida, situada nos arredores do mar Egeu. Ao erigir como"norma" o modelo grego, doravante inacessível, Marx ex-pressa seu apego aos grandes princípios da estética tradici-onal, sobretudo à regra da imitação, atitude que não quer secomprometer com a aventura ainda indecisa da modernidade.

Marx teria declarado não ser marxista. Estaria pressen-tindo o que iria acontecer com sua filosofia política? Duvi-damos de que tenha podido pelo menos entrever oinverossímil destino de uma teoria tragicamente transforma-da, de maneira muitas vezes abusiva, em prática revolucio-nária.

A estética de Marx - o único aspecto de sua obra quenos interessa aqui - cedeu rapidamente lugar a numerosasestéticas marxistas. Estas teorias alimentaram a maioria das

I· grandes controvérsias artísticas do século XX que se interes-

sam pelas relações entre a arte, a sociedade e a política. Odebate está ainda longe de sua resolução. Veremos alguns

II de seus aspectos. Porém é preciso desde já saber que, assimI como sua filosofia, a estética (fragmentária) de Marx teve deI sofrer numerosas interpretações errôneas e caricaturais. Pro-I vavelmente porque, embora ela não carregue toda a res-

'

I ponsabilidade, esta estética se presta a tais abusos. Não sedecreta impunemente a perda da autonomia da arte, ativi-____l dade

desde então, compreendida na ideologia _e_i_r_re_m_e_d_ia_- ...J

Marc [imenez 239

"N. de T. Em francês, "gueules noires": caras pretas.

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240 o que é estética?

velmente implicada na esfera produtiva da sociedade. Oapego exclusivo ao "conteúdo" em detrimento da forma tam-bém não é totalmente inocente. Os doutrinários do realismosocialista, nos ex-países do Leste e seus homólogos ociden-tais souberam extrair conseqüências particularmente desas-trosas desta possível submissão da arte à política, ao Parti-do: conferiram-lhe como única finalidade a representação"fiel" do herói proletário e da revolução em marcha e comisto a desfiguraram em pura e simples propaganda.

A nostalgia pelas estátuas gregas, modelos inacessíveis,é compreensível. É legítimo partilhá-Ia ainda hoje. Este sen-timento é mais inquietante quando se torna fascinação pelanorma, quando engendra estas réplicas geladas de pedra oude bronze, caricaturas alegóricas e funestas, caras a todos osregimes totalitários. Mas isto Marx não podia concebê-Ionem, sobretudo, prevê-Io.

Nietzsche e o espelho grego

A filosofia e a estética de Friedrich Nietzsche (1844-1900) ocupam um lugar excepcional no pensamento do sé-culo XX: a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco, a von-tade de poder, o super-homem, o eterno retorno, a mortede Deus, o niilismo, tornaram-se quase lugares comuns dodiscurso filosófico.

É forçoso constatar que este status privilegiado nemsempre serviu aos interesses do filósofo. Pensamos, eviden-temente, nas grosseiras e perigosas manipulações de suaobra pelo Terceiro Reich e nas interpretações aberrantes dostermos do super-homem e da vontade de poder que permi-tiram ao nazismo reivindicar indevidamente seus escritos.

Pouco após a publicação de Assim falava Zaratustra(1883), sua última grande obra, comunica a sua irmã Elisabeth

1

1

Marc [imenez 241sua inquietação a respeito de um uso abusivo de suas teori-as: "Tremo pensando em todos aqueles que, sem justifica-ção, sem estarem preparados para minhas idéias, invocamminha autoridade!" Convencido de que era o último grandefilósofo do século, Nietzsche, é verdade, não peca por ex-cesso de modéstia. Reconheçamos, contudo, que mostra umasurpreendente lucidez. Não suficiente, contudo, para pres-sentir o papel nefasto que sua cara irmã - seu "fiel lama" -associada a seu anti-semita marido, Fôrster, desempenharãojustamente nos cortes extremamente parciais de sua obrapóstuma.

Os leitores de Albert Camus lembram com toda a certe-za a homenagem que o escritor presta a Nietzsche emL'homme révolté. A conclusão é decisiva: "Na história dainteligência, com a exceção de Marx, a aventura de Nietzschenão tem equivalente; nunca teremos acabado de reparar ainjustiça que lhe foi feita. Conhecemos, sem dúvida, filoso-fias que foram traduzi das e traídas ao longo da história.Porém, até Nietzsche e o nacional-socialismo não havia exem-plos de que um pensamento inteiramente iluminado pelanobreza e os dilaceramentos de uma alma excepcional te-nha sido ilustrada aos olhos do mundo por um desfile dementiras e pela horrível pilha de cadáveres concentracio-nários". Assim são ditas as coisas uma vez por todas!

Mas excetuando as sinistras caricaturas, pensamos tam-bém nas múltiplas análises e comentários que, ao se justa-porem, encobrem o texto nietzscheano ao ponto de torná-10 irreconhecível. Entre estas interpretações, a mais deplorá-vel e infelizmente a mais freqüente é aquela que se apóianas numerosas contradições do pensamento de Nietzsche,distribuídas en diferentes períodos de sua vida. É fácil entãodizer que a coerência de sua filosofia desaba sob o peso decontradições insolúveis.

Algumas dessas contradições parecem, de fato, indu-

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242 o que é estética?

bitáveis: discípulo de Schopenhauer, de quem toma os temasdo pessimismo e da vontade-de-viver, rompe ele com seu"educador" e adere momentaneamente às teses positivistas ecientistas de sua época. A princípio admirador fervoroso deWagner, rejeita em seguida com virulência a música do mes-tre de Bayreuth e se entusiasma pela Carmen de Bizet. Vio-lentamente antimístico, anticristão, antimetafísico e imoralista,parece reatar, em seu Zaratustra, com conceitos cosmológicosmatizados de irracionalismo e de misticismo.

Em lugar de nos determos - mais uma vez - nestascontradições, preferimos ver em Nietzsche uma reflexão quese procura, em busca de sua própria coerência, num finaldo século XIX desprovido de qualquer coesão e rico emparadoxos. Nietzsche faz parte desses pensadores que, comoFreud, dizem, se contradizem e além disso dizem que secontradizem. É esta, sem dúvida, sua única maneira de do-minar docilmente, com o pensamento, uma realidade rebel-de e caótica.

Antes de ser um pensador contraditório, Nietzsche apa-rece, portanto, e sobretudo, como um pensador da contra-dição e como um dos primeiros psicanalistas das tensões edas pulsões que agitam em segredo uma sociedade ociden-tal ao mesmo tempo otimista e inquieta, entusiasmada pelaidéia de progresso e, contudo, angustiada com o futuro. Umanalista sem complacência em relação à modernidade, paraquem a concepção dos gregos, tal qual os imagina, determi-na o ponto de vista que lhe permite criticar o mundo con-temporâneo. Ecce homo (1886), o último livro escrito emseu período de plena consciência é, confessadamente, uma"crítica da modernidade', das ciências modernas, das artesmodernas, sem excluir a política moderna". A Grécia antigaconstitui, a partir de então, uma espécie de espelho, umhorizonte retrospectivo que permite contemplar a imageminvertida do que se tornou o mundo ocidental.

ii!

L

Marc jimenez 243Trata-se, portanto, para Nietzsche, de inverter a ótica

histórica: não cabe a nós interpretar os gregos. Temos dever neles, pelo contrário, os intérpretes dos tempos. Pene-tremos sob o véu opaco tecido pela tradição e escutemosentão o que tem ele a nos dizer.!

Mas de que Grécia se trata? Certamente não da que nosfoi transmitida pelos notáveis helenistas e arqueólogos doséculo XVIII, os Winckelmann e outros historiadores neoclás-sicos que apenas farejam nos gregos "belas almas", "ponde-rações douradas". Somente a "tolice alemã"pode contentar-se em descobrir nos gregos "a calma na grandeza, o senti-mento ideal".

Vemos que Nietzsche não tem palavras suficientemen-te duras para denunciar a "fatuidade dos educadores clássi-cos que declaram estar na posse dos antigos' e legam seusaber com a única finalidade de transformar os herdeirosem "pobres velhos ratos de bibliotecas, corajosos e loucos".Porém, o que mais o irrita é o balanço desastroso dessaeducação milenar: em lugar de aprender a vida, nós nos"gastamos" com a educação clássica. Em lugar de provocarnosso assombro diante do poder de trabalho e da força devida dos gregos que os impeliram ao saber científico, comum golpe desferiram-nos a ciência sem estimular nosso de-sejo de aceder ao conhecimento.

Nietzsche põe o dedo numa ferida pedagógica bemconhecida pelos professores e alunos do século XX: o

'o tema do espelho encontra-se no próprio Nietzsche: "Quando falamos dosgregos, falamos também involuntariamente de hoje e de ontem: sua história,universalmente conhecida é um espelho claro que reflete sempre algo mais doque se encontra no próprio espelho. Servimo-nos ela liberdade que temos defalar deles para poder nos calar sobre outros assuntos - a fim de perrnitir-lhesmurmurar alguma coisa ao ouvido elo leitor meditativo. É assim que os gregosfacilitam ao homem moderno a comunicação ele coisas difíceis de dizer, masdignas ele reflexão" (Opiniões e sentenças misturados, aforismo 218).

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244 o que é estética?

irreparável foi cometido, diz ele, "quando nos impuseram,pela força, a matemática, em lugar de levar-nos, em primei-ro lugar, ao desespero da ignorância e de reduzir nossa pe-quena vida cotidiana, nossos movimentos e tudo o que acon-tece da manhã à noite na oficina, no céu e na natureza, amilhares de problemas, problemas torturantes, humilhan-tes, irritantes, - para mostrar então ao nosso desejo quetemos, antes de mais nada, necessidade de um saber mate-mático e mecânico, e ensinar-nos em seguida o primeiroarrebatamento científico causado pela lógica absoluta destesaber!"

Estranho paradoxo que deseja que seja deturpada apalavra de Sócrates: em lugar de ensinar-nos que saber éexatamente saber que nada sabemos, fizeram-nos acreditarque saber era ingurgitar à força tudo o que os outros havi-am descoberto e aprendido antes de nós. Ora: "Teremosaprendido alguma coisa do que justamente os gregos ensi-navam à sua juventude? Teremos aprendido a falar comoeles, a escrever como eles? Teremos nos exercitado, semtrégua, na esgrima da conversação, na dialética? Teremosaprendido a nos movimentar com beleza e altivez, comoeles, a nos distinguirmos na luta, nos jogos, nos pugilatos,como eles? Teremos aprendido alguma coisa do ascetismoprático de todos os filósofos gregos?'?

Em suma, para Nietzsche nossa educação é um logro,não somente no plano individual, mas no plano da culturahistórica. O irreparável é este déficit de vida em benefíciodo adestramento secular, tendo em vista a produção do ho-mem domesticado, "animal gregário, ser dócil, doentio,medíocre, o europeu de hoje". O homem, este "aborto su-blime", está assim pronto a reunir-se à multidão indiferenciada

'F. Níetzsche, Aurora, aforisrno 195.

..,I

IiI,I,

~

Marc jimenez 245dos indivíduos submetidos à moral, à religião, às mistifica-ções ideológicas, submetidos a estas tutelas que são o Esta-do, a Igreja, ou então a estes poderes espirituais que são aCiência e a Moral.

Para Nietzsche, o 1I11CIO deste processo remonta aSócrates e a Platão, a uma época em que o desenvolvimen-to do espírito e da cultura já era sentido como uma ameaçapara o Estado. O milagre grego não é devido a Péricles, este"grande engano otimista", que prega a união entre a Cidadee a cultura; ele provém, sobretudo, do fato de a cultura terconseguido sobreviver aos censores da Cidade. Em Huma-no, demasiadamente humano, ele não é suave para com oautor de A República: "A Cidade grega era, com qualquerpotência política organizada, exclusiva e receosa diante docrescimento da cultura; seu profundo instinto de violênciaquase só mostrava diante dela embaraço e entraves. Ela nãoqueria admitir na cultura nem história nem progresso: a dis-ciplina estabelecida na Constituição devia constranger to-das as gerações e mantê-Ias em um nível único. Assim comPlatão o desejava ainda para seu Estado ideal. Era, portanto,apesar da polis que a cultura se desenvolvia"." Ela se desen-volveu, mas o mal já estava feito. Ela trazia em si os germesda decadência.

Portanto, se esta Grécia pós-socrática não pode maisservir como referência para os modernos, qual é a que pode"murmurar alguma coisa ao ouvido do leitor meditativo?".

É a esta questão que a paixão de um jovem filósofo devinte e oito anos tenta responder já em sua primeira obra,que provoca escândalo, O nascimento da tragédia (1872).Paixão que, durante toda a sua vida, se transforma em obs-tinação obsessiva em querer resolver o enigma por excelên-

"1'. Nietzsche, Humano, demasiado humano, aforisrno 474.

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246o que é estética?

cia. Este enigma, Nietzsche o formula na época de Ecce Homo,precisamente no "Ensaio de autocrítica" colocado em posfácioà reedição, em 1886, de O nascimento da tragédia: "Aindahoje, há tudo a descobrir e a exumar neste ponto. É preciso,sobretudo, dar-se conta de que há aqui um problema e queos gregos permanecerão incompreensíveis, inimagináveispara nós enquanto não tivermos respondido a esta pergun-ta: o que é o espírito dionisíaco?".

Dioniso, filho de Zeus e de Sêmele, deus da vinha e dovinho, é uma das figuras chaves da obra de Nietzsche, atémesmo de toda a sua filosofia. Todavia, não se pode com-preender o papel e o significado que ele lhe atribui semassociá-Io à sua figura ao mesmo tempo antagonista e com-plementar: Apoio, filho de Zeus e Leto, deus da luz e dasartes. Mais além desses protagonistas de O nascimento datragédia, dois outros personagens desempenham, nos bas-tidores, um papel essencial: Schopenhauer e Wagner.

Bastidores, é verdade, abertos a todos: a dedicatória daobra é uma homenagem vibrante ao compositor dos Mestrescantores, e Nietzsche compraz-se em dizer que aprende muitocom a vizinhança de Wagner, pois se trata de um "cursoprático de filosofia schopenhaueriana". Sejam quais tenhamsido os desacordes posteriores, ele sempre reconheceu adupla influência do filósofo e do músico sobre sua própriaobra.

A influência de Schopenhauer

Dois temas, desenvolvidos por Arthur Schopenhauer0788-1860) em sua obra O mundo como vontade e comorepresentação, chamam a atenção de Nietzsche: exatamentea vontade e o pessimismo. A vontade não é, para Scho-penhauer, uma noção psicológica ou moral, mas uma ca-

! .I,

Marc fimenez 247tegoria metafísica e ontológica: ela é a essência das coisas.Ela ocupa o lugar do númeno ou da coisa em si na filosofiade Kant. Ela é, pois, universal, eterna, imutável e livre.Schopenhauer vai, aliás, até ao ponto de supor que cadavez que usava a expressão "coisa em si", Kant imaginavasobretudo uma espécie de vontade livre.

Esta vontade aplica-se a "todos os fenômenos do mun-do"; ela é a "realidade última e o núcleo do real". A grandediferença em relação a Kant é que a vontade se exprime nomundo e no homem pela vontade de viver, pelo desejo eespecialmente pela sexualidade. Portanto, posso conhecê-Ia, enquanto em Kant nada posso saber da coisa em si. Paraele, o mundo dos fenômenos é o que me "represento", éminha "representação", e ao mesmo tempo é a aparência naqual a vontade se reflete.

Percebem-se sem dificuldade as conseqüências destaposição. Em primeiro lugar, ela é anticartesiana, visto que avontade toma o lugar da razão como princípio de todas ascoisas conhecíveis. Ela é anti-hegeliana visto que o Espíritoé substituído, em todas as suas manifestações, pela vonta-de.

Uma tal afirmação da vontade de viver - manifestaçãoda vontade em todas as coisas - deveria desembocar numotimismo. Ora, isso não é verdade. Paradoxalmente, Scho-penhauer chega à conclusão contrária: o homem conhece avontade, mas a vontade nada conhece. Ela é livre, evidente-mente, mas cega. Schopenhauer diz com muita clareza: "Avontade, que constitui nosso ser em si, é de natureza sim-ples; ela não faz outra coisa a não ser querer, e não conhe-ce."

Resultado: o homem leva uma vida sem fim, sem fina-lidade, desprovida de qualquer significação. Nossos dese-jos, nossas paixões, nossas emoções só têm sentido após amorte. Eles, de algum modo, sobrevivem a nós, manifesta-

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248o que é estética?

ções de uma vontade que perdura imperturbavelmente, in-dependentemente de nossas pobres existências. Excetuan-do esta absurda vontade de viver, que necessidade temosde "viver" sem razão? Um abismo de sofrimento espreita ohomem, que um dia irá morrer. Mesmo o amor perde seusentido: simples ato gerador que só leva a entregar à infeli-cidade e à miséria da existência um ser que não pediu paranascer. Até mesmo o suicídio é contraditório, visto queprova, negativamente, a força da vontade de viver.

É esta a origem do famoso "pessimismo" de Schopen-hauer, sendo ele mesmo de humor rabujento e sujeito acrises periódicas de melancolia, pelo menos antes do suces-so e da fama que vieram, no final da vida, reconciliá-Io comseus contemporâneos e consigo mesmo.

A filosofia da arte ou antes, "metafísica do belo", deSchopenhauer, se deduzem dessas considerações bastantedesiludidas sobre a existência. Anticartesiano, antí-hegeliano,hostil ao cristianismo, rebelde às noções de progresso, dehumanidade, de história, misantropo e iconoclasta, Scho-penhauer é platônico. Crê na teoria das Idéias exposta peloautor do Banquete: visto que a vida é um abismo de infeli-cidades e de sofrimentos, a contemplação das Idéias, graçasà arte, não poderia ser um remédio e uma consolação paraos males da existência? Consolação provisória, é claro, massuficiente para trazer-nos um gozo muitíssimo superior aosimples prazer estético; um gozo que supera tormentos edesejos e nos reconcilia, durante algum tempo, com a es-sência do mundo, com a vontade. De todas as artes, somen-te a música permite alcançar este estado contemplativo ab-soluto, pois ela é a mais imaterial e a menos ligada ao mun-do sensível. Em outras palavras, ela é a mais próxima domundo das Idéias. Em compensação, as outras artes, arqui-tetura, escultura, pintura, tragédia, simples cópias, perma-necem ligadas à reprodução da realidade.

Marc [imenez 249Schopenhauer consegue assim conceber a tripla identi-

dade do mundo, da vontade e da música: o mundo é umamúsica encarnada e, ao mesmo tempo, uma encarnação davontade,. São estes temas que seduzem Richard Wagner e,durante um certo tempo, Nietzsche.

o papel de Ríchard Wagner

Quando Richard Wagner compõe o Anel dos Nibelungen,é em Schopenhauer que pensa e é a ele que dedica umaparte do libreto da ópera. O tema da consolação, da resig-nação, da ascese que coage os desejos, do caráter invivívelda vontade de viver corresponde à sua própria estética datragédia.

Quando se encontra pela primeira vez com Wagner,em 1868, Nietzsche já é wagneriano. Excelente pianista,decifra a partitura de Tristão, executa diante dos amigostrechos dos Mestres cantores, afeiçoa-se ao compositor, este"homem fabuloso" e vê nele "a mais viva ilustração do queSchopenhauer chama gênio".

O nascimento da tragédia é o testemunho desse en-contro intelectual, filosófico e artístico entre Schopenhauer,Wagner e Nietzsche ao redor do significado estético e polí-tico da música. Pois a dimensão política intervém freqüen-temente nas conversas entre Wagner e Nietzsche. Ela apare-ce na dedicatória da primeira edição da obra: "Enganar-nos-íamos ['..J se víssemos neste empreendimento um diverti-mento de esteta no momento em que a emoção patrióticadominava a nação, um jogo gratuito no momento em quetriunfava o heroismo".'

'F. Nietzsche, o nascimento da tragédia. A "Dedicatória a Richard Wagner" traza data elo final elo ano ele 187 J.

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250 o que é estética?

Nietzsche faz alusão a um "autêntico e grave problemaalemão" que ele não precisa, mas que sabemos, por outrafonte, tratar-se da situação política, moral e cultural da Ale-manha logo após sua vitória sobre a França. A questão queele colocará incansavelmente é a de saber se a vitória dasarmas significa, por isso, uma vitória da cultura. Na Alema-nha bismarckiana, pangermanista e tentada pelo anti-semitismo, Nietzsche emite as maiores dúvidas. Em 1886,em Ecce Homo, verdadeira obra de introspecção filosófica,inquieta-se com aquela nação alemã preocupada com hon-radez que "engole do mesmo modo a fé como o anti-semitismo, a vontade de poder (do "Império") como o evan-gelho dos humildes, sem ter a menor perturbação digesti-va". É com "brutalidade" que lança aos alemães algumas"duras verdades" sobre seus conceitos de história: "Há umamaneira de descrever a história em conformidade com aAlemanha e o Império; e há, temo, uma maneira anti-semitade escrever a história". 6

O elo com a estética? Mas, justamente, ele se encontraem Wagner. Na época de O nascimento da tragédia,Nietzsche crê no poder regenerador da música wagneriana.Ele, que sofre com a fatalidade da música, com sua deca-dência, pensa que a Tetralogia permitirá ouvir novamente a"flauta de Dioniso". No drama wagneriano, sopra o espíritotrágico dos gregos anterior à sua própria decadência. Pelomenos, ele o espera. Esperança logo desenganada já nasprimeiras representações da Tetralogia no Festspielhaus deBayreuth. Os espectadores não são gregos ressuscitados queaplaudem as grandes missas wagnerianas, mas sim bons ale-mães que ainda não souberam "superar" sua vitória sobre aFrança: "O momento em que eu começava a rir secretamente

6F. Nietzsche, Ecce Homo. o caso Wagner. "Um problema musical", 2.

1

Marcjimenez 251de Richard Wagner foi aquele em que ele se preparava paradesempenhar seu último papel diante daqueles bons ale-mães, apresentando-se como um fazedor de milagres, comoum salvador, como um profeta e mesmo como um filósofo".Nada naquele teatralismo preparado para seduzir as multi-dões entusiastas poderia aparentar-se à saúde das festasdionisíacas.

Mas piores do que Wagner são os wagnerianos, hóspe-des da "wagneria", onde se vêem, lado a lado, todas as"deformidades", incluindo, acrescenta Nietzsche, o anti-semita. O anti-semita, Bernhard Foster, não é outro senãoseu futuro cunhado!

É impossível citar aqui todas as queixas de Nietzsche arespeito de Wagner. Todas parecem trazer uma extremaambigüidade, como se ele tivesse procurado exorcizar suafascinação e seu "amor" indefectível pela música do mestre."Gostei de Wagner" declara em 1886 exatamente no mo-mento em que decide não mais ouvir sua música. Duas coi-sas pelo menos são atestadas: sua execração pelo"cretinismo" de Bayreuth na Alemanha da época é a suacerteza de que Wagner faz parte da raça dos deuses cujosopro passou depressa demais.

Querer opor o wagnerismo da "Dedicatória a Wagner"em 1871 ao antiwagnerismo do posfácio de 1886, na espe-rança de encontrar mais uma contradição é coisa vã: O nas-cimento da tragédia e o Zaratustra, confessa o autor, esta-rão sempre entre os "pontos culminantes, decisivos", de seu"pensamento" e de sua "poesia".

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252 o que é estética"

Tragédia e nillismo

Se a publicação de O nascimento da tragédia encantaos músicos e os musicólogos sensíveis à musica wagneriana,ela provoca a consternação e a cólera dos filólogos e doshelenistas da Universidade alemã. Que um jovem professorda universidade de Bâle, sem doutoramento, possa consa-grar um trabalho científico à Grécia antiga é uma audácia.Que centralize seu estudo sobre a tragédia no espírito damúsica já é mais suspeito. Que use o subtítulo "helenismo epessimismo" é uma provocação. Mas o cúmulo é atingidoquando considera Sócrates e Platão como os responsáveisancestrais da decadência do pensamento ocidental.

O que choca, sobretudo, é a reabilitação do DeusDioniso, aparentado à embriaguês musical. Figura do su-blime talvez da vontade de viver, certamente: o deus re-, ,nasce periodicamente à vida. Ele é sua afirmação. Dionisoé o homem-bode, o sátiro, cujo culto é celebrado por can-tos litúrgicos, os ditirambos, por ocasião das faltas que lhesão consagradas, as dionisíacas. Estas festas são mal co-nhecidas, mas podemos imaginá-Ias desenfreadas, entre-gues à frenesia sexual e às licenças orgíacas que "submer-gem toda instituição familiar e suas regras veneráveis". O"encanto" de Dioniso tem assim a virtude de reconciliar ohomem e uma natureza que cessa de ser hostil e distribuiseus dons, leite e mel, em abundância. Graças a ele, ohomem não é mais artista, diz Nietzsche, ele se torna obrade arte.

A hipótese de Nietzsche é a seguinte: durante séculos,os gregos foram preservados dessas febres voluptuosas ecruéis, vindas da Ásia, graças à Apoio, deus luminoso, sím-bolo da bela aparência, das formas ideais, do sonho plásti-co. Porém, chegou um momento em que eles cedem à atra-ção destas festas desenfreadas, exaltadas e entusiastas; nas-

Marc jimenez 253ce daí o ditirambo. Apoio teve de "compor" com Dioniso, esua música melodiosa foi obrigada a harmonizar-se com osritmos e os sons não habituais, assustadores e selvagens deDioniso. A alma helênica, trágica por excelência, re~ulta destaaliança entre o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo:equilíbrio entre a medida e o descomedimento celebradopelas primeiras tragédias antigas, antes da epopéia homéricae, portanto, anterior a Sócrates.

Colocado sob o patrocínio de Schopenhauer, O nasci-mento da tragédia anuncia, contudo, a ruptura com a afir-mação do pessimismo radical do filósofo: para Schopenhauer,o pessimismo constituía uma solução para a vontade deviver. Ora, segundo Nietzsche, se a tragédia é por essênciapessimista - ela põe em cena homens vítimas da fatalidade- ela é também, por suas origens, afirmação da vida exube-rante da vontade de viver.

A provocação iconoclasta de Nietzsche começa real-mente com sua interpretação de Sócrates. Sócrates encarnao tipo do homem moderno, o filósofo teórico, dialético,antimístico, moralizador e virtuoso. Mas sobretudo, Sócratesé otimista: ele crê no poder da ciência, no progresso. Seuaparecimento na cena helênica coincide com a decadênciada tragédia, despojada pouco a pouco do espírito da músi-ca: "sob o chicote de seus silogismos, a dialética expulsa amúsica da tragédia". A tragédia "pessimista" nasceu do coroantigo, dionisíaco. Ele está ainda presente em Ésquilo, mui-to menos em Sófocles. Em Eurípedes ele desaparece emproveito do discurso, da narrativa, da linguagem, do racio-cínio. É o fim da embriaguês dionisíaca. "Sócrates, o heróidialético, aparenta-se ao herói de Eurípedes que deve justi-ficar suas ações à força de argumentos e de contra-argu-mentos e que, com isso, corre freqüentemente o risco denão obter nossa compaixão trágica. Pois, quem irá contestarque a dialética comporta um elemento otimista, que celebra

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254 o que é estética?seu triunfo em cada raciocínio e que somente pode respirarna fria luz da consciência?"

Assim, Sócrates e Platão inauguram, segundo Nietzsche,o longo processo da decadência: o da separação entre a artee a vida, entre a aparência e a realidade submetida àdecodagem pragmática da ciência. O remédio? A emergên-cia de um "Sócrates músico" .Este sonho acompanha Nietzscheaté o final de sua vida. Na época de O nascimento este so-nho encarna-se ainda sob os traços de Richard Wagner. Vi-mos como acabou. Mas ele mostra, todavia, que Sócrates,assim como Wagner, permanece para ele uma figura enig-mática, objeto de sentimentos ambivalentes presos entre oamor e o ódio.

Sócrates e Platão são apenas uma primeira etapa nestadesmontagem sistemática do pensamento ocidental; estaetapa é em breve substituída pelo cristianismo. Nietzschenão visa à pessoa do Crucificado ao qual chegará ao pontode se identificar, assim como oporá (ou confundirá), emsua loucura, Dioniso e o Cristo; talvez ele mesmo sejaambos! O que ele visa através do cristianismo é antes detudo a moral e o sistema de valores hostis à vida.' Nietzscheexproba nesta religião sua "reprovação das paixões, o medoda beleza e da sensualidade, um além-celeste inventado paramelhor caluniar a existência terrestre". Mas, sobretudo, cen-sura-a por ser, se é sincera para consigo mesma, "profunda-mente inimiga da arte".

O nascimento da tragédia coloca os futuros marcos da

'Em O crepúsculo dos deuses, Nietzsche tem o cuidado de distinguir a prática dafé por parte de Jesus e a interpretação dos Evangelhos: "O Salvador 1...1 nãoresiste, não defende seu direito, não dá um passo para afastar de SI a coisaextrema, mais ainda, ele a provoca. E ele reza, sofre e ama com aqueles que lhefazem mal. Não se defender, não encolerizar-se, não responsabilizar. Mas tambémnão resistir ao mal. Com sua morte, Jesus não podia nada mais desejar, em si, doque dar a prova mais brilhante de sua doutrina".

Marc jimenez 255filosofia e da estética nietzscheanas, sem que possamos de-duzir, evidentemente, sua orientação definitiva. Mas todosos temas essenciais nele já se encontram em germe: quer setrate da morte de Deus, anunciada em Assim falavaZaratustra, da negação dos "arriêre-mondes' - isto é, dequalquer transcendência - , da recusa de toda moral, davontade de poder - exacerbação da vontade de viver - doeterno retorno e da afirmação da arte como jogo que o mundojoga consigo mesmo.

Estes germes são germes de ruptura: com as noções debem e de mal, com a religião, com a metafísica, mas tam-bém com o espírito democrático representado pelo marxismo.

O que fascina em Nietzsche, com mais de um século deintervalo, é a semelhança entre os pontos de ancoragem deseu niilismo e o desencantamento da época contemporânea:mesma desconfiança em relação às ideologias constituídasem doutrinas; mesma recusa de suas pretensões escatológicas,isto é, de sua vontade de definir os fins últimos do homem.E esta rejeição engloba a religião cristã, tanto o socialismoquanto o conceito liberal europeu colocado no eixo do pro-gresso científico e da rentabilidade econômica.

Nietzsche, precursor do famoso "fim das ideologias"?Por que não? O tema do "eterno retorno" assinala também ofim do devi r, do porvir: a história não precisa mais ser com-pletada visto que a roda gira sobre si mesma.

Para dizê-Io brevemente: Nietzsche tinha nas mãos to-dos os elementos teóricos, filosóficos e estéticos para pen-sar as rupturas da modernidade artística. A música dionisíacasignifica a irrupção da dissonância na consonância harmo-niosa da flauta de Apoio. Sem dúvida, esta ruptura harmôni-ca, tonal, desempenha um papel na fascinação que ele sen-te ao escutar Tristão e Isolda. Em Wagner, ele pressente ummomento capital na história da música ocidental: o de suaemancipação em relação às convenções que regem as re-

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256o que é estética?

gras tonais tradicionais. Este mesmo pressentimento torna-se, aliás, uma certeza em Richard Strauss, Gustav Malher eClaude Debussy que, todos, não se enganarão quanto àimportância da música wagneriana, nem quanto à profundi-dade das análises de Nietzsche.

Dioniso, o deus da dissonância dominada, é também odeus das forças obscuras, subterrâneas, que destrói o equi-líbrio, a simetria e a aparência sabiamente ordenada dasformas. Este deus, que volta repentinamente para perturbaro olhar sereno dos europeus, sobretudo dos alemães sobrea Grécia antiga, significa também, em linguagem freudiana,a emergência das pulsões eróticas reca1cadas pela civiliza-ção ocidental. O próprio Nietzsche não fala do instinto devida reprimido pelo instinto de morte das sociedades mo-dernas?

Que seria uma transposição do tema dionisíaco nas ar-tes plásticas na época das primeiras revoluções formais? Estanão é uma pergunta para Nietzsche.

Nietzsche não gostava de pintura. Dizia-se "pouco sen-sível ao plástico" ao ponto de ser "tomado de uma repug-nância súbita e invencível pela Itália"; acrescenta: "sobretu-do pelos quadros!"; e se vai a Florença é unicamente paraver a cidade e de forma alguma por amor de "não sei quepinturas!" .

Quando faz referência ao pintor da Gioconda o faz paracelebrar Richard Wagner: um único compasso de Tristão bastapara dissipar todos os enigmas de Leonardo da Vinci. Vinteanos mais tarde esta não será a opinião de Freud.

Sua única emoção pictórica lhe vem de Claude Gellée,chamado le Lorrain 0600-1682). Diante do mestre da paisa-gem e da luz ele cai em soluços. Mas esses quadros, éverdade, apenas lhe revelam "toda a arte bucólica dos anti-gos". Mesmo sendo moderno, crítico, iconoclasta, numa pa-lavra, dionisíaco, não se escapa tão facilmente ao encanto

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Marc jimenez 257da "bela aparência" apolínea nem da serena grandeza dodeus de Delfos.

O eterno retorno marca, já o dissemos, o fim da histó-ria. Ele significa também, para Nietzsche, o fim da históriada arte: a única arte susceptível de "voltar" deveria reatarcom o espírito trágico dos gregos!

Esta arte de fato voltou à terra alemã, mas não mais soba forma trágica dos pré-socráticos. Ela tomou os traços gros-seiros de um pretenso neoclassicismo, e uma outra tragédianão ilusória, mas bem real, foi encenada. Os pseudo-Fídiasdo Terceiro Reich, como Arno Brecker, abriram seu funestoprólogo, dispondo na cena estátuas belicosas, desprovidasde qualquer serenidade e vestidas para a guerra: sinistrasréplicas dos fantasmas nazistas, encarnados no mito do gran-de ariano louro. Disso, diferentemente de Marx, Nietzschetivera o pressentimento. Seu mérito foi o de ter-se inquieta-do.

o c1assicismo de Freud

É digno de nota que as duas grandes ideologias totali-tárias do século :xx, o nazismo e o stalinismo, tenham invo-cado - de maneira errônea - respectivamente Nietzsche eMarx. Em compensação, ninguém até hoje tentou inspirar-se no modelo psicanalítico freudiano para realizar concreta-mente uma sociedade e um Estado. Sem dúvida, porqueesta sociedade já existe. Porque esta sociedade é a nossa,constantemente invadida por desassossego, atravessada porcrises egocêntricas, assaltada por pulsões de morte e suastendências autodestrutivas, ávida de apropriação, submeti-da por cupidez ao princípio de realidade e hipocritamentereceosa diante do princípio de prazer.

Os hicroglifos, Roma, Pompéia, a Grécia, sobretudo,

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258 o que é estética?

não foram para Freud refúgios para os tempos presentes,uma maneira arqueológica de descer ao âmago da almahumana a fim de decifrar seu enigma?

Provavelmente. Porém, esta volta para a história podetambém ter um outro significado que faz surgir uma preo-cupação comum ao mesmo tempo a Marx, a Nietzsche e aFreud. Os três tentam compreender o papel e o significadodas forças subterrâneas, inconscientes, que regem ao mes-mo tempo a atividade dos homens e o devir da humanida-de. Partem eles, de algum modo, do princípio de que omundo não é mais transparente. Seria melhor dizer: tomamconsciência da transparência ilusória de um mundo que sejulgava límpido. É por esta razão que procuram identificar omecanismo escondido que explique sua evolução. Para Marx,este mecanismo é econômico; para Nietzsche ele é religio-so, moral e cultural. Para Freud, ele é psicológico e repousano inconsciente. Em todos os casos, trata-se realmente defazer surgir, na consciência forças obscuras, artificialmentedissimuladas ou recalcadas.

Ora, se a maioria das atividades humanas, intelectuaisou materiais, respondem a motivações e a finalidades evi-dentes como a procura da felicidade ou do conforto materi-al, há pelo menos uma que permanece um enigma, isto é, acriação artística. E é para tentar resolver, pelo menos parci-almente, este enigma que Freud, médico, de formação cien-tífica, especializado em neuropatologia, consente em inte-ressar-se, como "profano", pelo domínio da arte.

Freud reconhece de fato, que não é entendido nestamatéria." Nietzsche dizia que nada entendia de pintura, Freud

NA primeira frase de seu estudo sobre o Moisés de Michelangelo diz o seguinte:"Quero precisar, primeiramente, que em matéria de arte não sou um entendido,mas um profano". Sígrnund Freud, "Le Moise de Míchel-Ange' em L'inquietanteétrangeté, Paris, Gallimard, 1985, p.87. L

Marc jimenez 259confessa nada saber de música, não ter nela nenhum prazer.Terá chegado ao ponto, como o teria confidenciado, dedetestá-Ia? Estranho paradoxo, em todo caso, na pátria deMozart e numa cidade como Viena, capital das revoluçõesmusicais!

A estética em geral inspira-lhe a maior desconfiança.Esta ciência da arte e da beleza é capaz de grandes discur-sos para elogiar os méritos de uma obra, mas nenhum este taconta a mesma coisa que seu vizinho e "diz o que poderiaresolver o enigma para o simples admirador" Y Em compen-sação, a arte exerce sobre ele um "efeito poderoso" e sobre-tudo, por ordem decrescente de interesse, a literatura, a es-cultura e a pintura.

O enigma ao qual faz alusão e que decide decifrar éduplo. Ele concerne, de um lado, à gênese da obra numartista, à razão, podemos dizer, da criação: que intençõesprofundas, que motivações impelem certos indivíduos e nãooutros a dar forma à sua imaginação, a seus afetos, a seudesejo?

Mas este enigma diz respeito também à relação entre aobra de arte e aquele que, diante dela, sente uma emoçãoparticular, positiva ou negativa, atração ou repulsão. Estarelação não pode ser puramente intelectual. O choque esté-tico que às. vezes "agarra poderosamente" deve ter comoorigem o fato de eu reconhecer uma semelhança, um pa-rentesco, entre as emoções e as intenções expressas peloartista e as minhas próprias. Freud supõe assim que a pró-pria obra de arte se presta à análise, para além do efeito queproduz: atração, fascínio, ambíguo ou não. De fato, paraele, estas impressões ou estes sentimentos são sempre am-bíguos. Naturalmente, ninguém é obrigado a uma tal análi-

9Ibid, p.88.

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se e é muito compreensível que alguém se atenha à depen-dência imediata do que é ditado espontaneamente pelo jul-gamento de gosto. Mas posso também, como diz Freud,tentar adivinhar a intenção do artista, ser tentado a encon-trar o sentido e o conteúdo da obra e, portanto, a interpretá-Ia. Por que não tentar compreender a razão? Freud é ani-mado pela certeza de que é sempre benéfico para o indiví-duo saber o que acontece ou aconteceu nele. Esta convic-ção encontra-se no próprio fundamento da psicanálise; elavale igualmente para a arte. Neste domínio também, perma-nece convencido de que nossas impressões e o prazer sus-citados por uma obra absolutamente não são enfraquecidospela análise e pela interpretação. Um tal saber pode mesmoestar na origem de um maior gozo estético.

As primeiras interpretações da arte que usam a desco-berta do inconsciente são feitas na literatura.

Em 1896, pouco após a morte de seu pai, Freud temum sonho estranho: ao querer entrar numa loja vê um letrei-ro pedindo aos clientes que "fechem os olhos". No momen-to, ele não presta atenção a essa cena onírica. Porém, umdia, em 1897, este sonho volta-lhe à memória e ele descobreem si mesmo a existência de um sentimento estranho emrelação a seu pai, falecido um ano antes. Um sentimentoalimentado desde a infância, ambivalente, uma mistura deamor por sua mãe e de ciúme por seu pai. Inquieta-se eencontra um equivalente literário dessa situação na tragédiade Sófocles, Edipo rei: o oráculo não advertiu Laio, o pai deÉdipo, sobre o trágico destino de seu filho, obrigado a rea-lizar três atos assustadores: um parricídio, um incesto, e umaautomutilação, vazar os olhos? Assim o sonho anterior, "fe-char os olhos", realizava simbolicamente pulsões reca\cadas;ele revelava também, indiretamente, sob uma formadisfarçada, a culpabilidade inconsciente sentida por Freudquando da morte de seu pai.

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Marcjimenez 261Cada pessoa, é claro, tem o direito de revoltar-se con-

tra a fatalidade, mas isto não impede, diz Freud, que "alenda grega tenha sabido apreender sentimentos que todosos homens reconhecem, porque todos os experimentaram".Ele extrai deste exemplo uma conclusão ao mesmo tempoestética e psicológica: o interesse que sentimos pela literatu-ra, pelo teatro, repousa no fato de reconhecermos um pa-rentesco entre a sorte reservada ao herói e a nossa. Eviden-temente, pensamos na famosa teoria aristotélica da catarse ,retomada pela doutrina clássica: a purgação das paixões,terror e piedade, resulta da identificação do espectador comos personagens. Mas Freud vai mais longe: "Cada especta-dor foi um dia um Édipo em germe, em imaginação e assus-ta-se ao ver a realização de seu sonho transportado para avida, treme de acordo com o recalque que separa sua situa-ção infantil de sua situação atual".

Portanto, não se trata mais apenas de um simples reco-nhecimento baseado numa relação mimética, mas de umaverdadeira tomada de consciência, pelo leitor ou especta-dor, de pulsões reca\cadas, lançadas às vezes durante lon-gos anos para o inconsciente. É digno de nota o fato de estaexplicação responder parcialmente à questão colocada porMarx: se a tragédia e a epopéia antigas causam, após vinte ecinco séculos, um prazer e um gozo estéticos, talvez sejaporque elas representem o jogo de estruturas psíquicas in-conscientes que escapam às transformações sociais e histó-ricas.

A descoberta do complexo de Édipo, fundamental paraa terapia psicanalítica, é considerada por Freud como o pri-meiro indício de uma relação profunda entre as obras dearte e o inconsciente. Ela permite esclarecer o comporta-mento aparentemente absurdo de personagens de ficção,como o de Hamlet no drama de Shakespeare, Por que oherói é tão indeciso em matar seu tio, assassino de seu pai e

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esposo de sua mãe, se não for por causa do "tormento"causado pela lembrança de um desejo antigo e recalcado: ode desposar, ele também, sua própria mãe? O que supõe,antes, a eliminação física de seu pai. A demência fingida deHamlet, sua indiferença para com uma Ofélia levada à lou-cura e ·ao desespero não são reveladoras desta assustadoraculpabilidade que, como uma fatalidade, o conduz ao casti-go?

Excetuando esta transposição da situação edipiana parauma peça do teatro elisabetano, é interessante observar, desdejá, o fato de Freud recorrer à mitologia grega ou latina, querse trate dos próprios mitos, dos deuses ou dos heróis. Sãoeles que infiltram, por assim dizer, a terminologia freudianae determinam as noções essenciais: catarse, Édipo, eros(pulsão de vida), tánatos (pulsão de morte) libido. Voltare-mos ao assunto.

Dois anos após a descoberta de Édipo, Freud publica Ainterpretação dos sonhos. Esta obra fixa os primeiros gran-des princípios da psicanálise. Freud já entrevira, em si mes-mo, a importância do sonho, sobretudo após o enterro deseu pai. Além disso, todas as suas observações sobre paci-entes atingidos por perturbações psíquicas de origem neu-rótica atestam curiosas correlações entre as alucinações ouos sonhos contados pelos doentes e seus estados clínicos.Não seria o sonho a manifestação de pulsões inconscientes,recusadas pelo sujeito em estado de vigília e uma maneira,para ele, de realizar com total impunidade, desejosrecalcados? E se admitirmos que a pulsão erótica seja a maisprimitiva e a mais poderosa de todas, podemos imaginarque ela vá se manifestar no sonho de maneira dissimulada,edulcorada e simbólica. A censura está vigilante: interditos,tabus se multiplicaram por causa da educação moral, social,religiosa. O sonho realiza, portanto, um trabalho demaquiagem das pulsões recalcadas; um trabalho relativa-

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Marc jimenez 263mente fraco na criança, vítima de um traumatismo sexual (oque Freud chama a "cena primitiva"), muito mais intensa noadulto que sofre inconscientemente as seqüelas destetraumatismo ou um novo choque emocional.

O sonho esconde, portanto, um conteúdo latente cujosentido ele confunde um pouco como uma escrita codifica-da à maneira de "hieróglifos". O termo é de Freud. Ele mos-tra que nós nos situamos sempre na Antigüidade ou melhor,entre o Egito da Esfinge, seus enigmas e a Grécia de Sófocles.Para compreender o sonho, devo, portanto, decodificar osentido do conteúdo manifesto, mas tal decodíficação é umaprimeira etapa. É preciso, em seguida, iniciar a interpreta-ção, como um pianista abandona pouco a pouco o estágioda decifração da partitura para de fato interpretar a totalida-de do trecho de maneira artística. Este exemplo, podemosimaginá-lo, não é de Freud, que prefere, de longe, a literaturae as artes plásticas. Mas a comparação com a obra de artejustifica-se e é Freud quem estabelece esta afinidade entre acriação artística e o sonho, entre o artista e o neurótico.

"Gradiva"

No início do século XX, Freud dispõe assim de doisinstrumentos teóricos, provindos da teoria psicanalítica, afim de continuar sua reflexão sobre a arte e sobre os meca-nismos da criação: o complexo de Édipo e a simbólica dossonhos. É grande a tentação de para eles encontrar umaaplicação. A ocasião surge em 1907. Ao visitar Freud, CarlGustav ]ung chama sua atenção para um pequeno romancede Wilhelm ]ensen - escritor alemão pouco conhecido -chamado Gradiva. Trata-se de uma simples novela, publicadaem 1903, batizada "Fantasia pompeana", um tema bastantebanal: uma história de amor convencional em que os dois

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corações que se procuram acabam enfim por se encontrar.Vários elementos atraem a atenção de Freud e o deixamperplexo. O jovem amante, Norbert Hanold, é arqueólogo,conscencioso em seu trabalho ao ponto de não ser consci-ente do amor que sente por uma amiga de infância, ZoéBertgang. Absorvido em seus estudos, sem o saber tranferiusua paixão para um baixo relevo representando uma jovemcom uma singular maneira de caminhar: Gradiva ("aquelaque caminha"). Este baixo relevo existe realmente; está ex-posto no Vaticano. Norbert Hanold imagina que se trata deuma jovem morta em Pompéia quando da erupção doVesúvio no ano de 79. Vai ao local unicamente com finalida-de científica e nas ruínas encontra como por acaso, ZoéBertgang, que le não reconhece: será um espectro, um delí-rio? Ela, pelo contrário, o esperava e procura trazê-Io devolta à realidade desempenhando o papel de um médicopsicanalista avant Ia lettre.

Adivinham-se facilmente os motivos do interesse deFreud: o contexto histórico e geográfico Roma, Pompéia, aItália do 10 século d.C., o deus Marte Gradivus (daí Gradiva):a profissão de Norbert, etnólogo, especialista das profundi-dades da história, como o analista escruta a profundidadeda alma humana; a evocação da Grécia, Zoé ("a vida").Quanto aos motivos de assombro, eles não faltam: a novelacompõe-se de uma seqüência de sonhos, de delírios, dealucinações vividos dolorosamente pelo herói. Cada um seapresenta como uma série de enigmas, herméticos paraNorbert, mas que correspondem às próprias observaçõesclínicas de Freud. A seus olhos um romancista conseguiu,através dos meios da criação poética, descrever um casotípico de neurose obsessiva num indivíduo fetichista e sujei-to ao delírio. Mais ainda: este escritor - totalmente ignoran-te dos trabalhos de Freud - pôs o dedo num dos mecanis-mos fundamentais da criação artística, isto é, a sublimação:

Marc [imenez 265deslocando o próprio desejo erótico recalcado para sua ati-vidade científica, Norbert conseguiu, inconscientemente, éclaro, transfigurar suas pulsões sexuais em paixão social-mente honrosa.

O estudo da Gradiva de jensen nada ensina sobre oinconsciente que Freud já não saiba. Ele reforça sobretudosua convicção de que a psicanálise pode ter algo a dizer nainterpretação das obras de arte e sobre as condições da cri-ação. Apesar de uma breve correspondência com o autor,Freud nunca soube a solução do enigma jensen: teria esteconhecido, na infância, uma jovem sofrendo de claudicaçãolembrando vagamente o pretenso e o singular caminhar deGradiva apresentada no baixo relevo? Teria ele efetivamen-te iniciado, em sua juventude, estudos médicos? Ignorariarealmente tudo da psicanálise e dos trabalhos de Freud? Sãotodas perguntas sem respostas. Elas somente podiam incitarFreud a tentar a experiência da análise não mais num autorcontemporâneo, mas em grandes artistas do passado: esco-lhe Leonardo da Vinci e Michelangelo.

Sublímação, forma, conteúdo

Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci,publicada em 1910, apresenta-se como uma tentativa dereconstituição biográfica do pintor da Renascença. Lembre-mos o essencial deste texto célebre tantas vezes comentado.Freud dispõe de um frágil indício: um sonho antigo contadopor Leonardo da Vinci. Encontrando-se no berço, um abu-tre (ou um milhano ou então um papagaio de papell) ter-lhe-ia "batido na boca com a cauda". Fantasma sexual evi-dente, real ou imaginado. Freud tenta então explicar as zo-nas escuras da personalidade do artista: a falta de acaba-mento de certas telas, uma sede de saber que o distrai da

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pintura, tendências homossexuais (supostas, mas não pro-vadas), rejeição de tudo o que diz respeito à procriação,uma curiosa maneira de pintar o sorriso feminino, sempreenigmático.

Segundo Freud, Leonardo da Vinci teria conseguidosublimar as pulsões recalcadas de sua primeira infância; su-blimação parcial, mas suficiente para permitir-lhe superartendências potencialmente neuróticas e "deslocá"-las ou "in-vesti"-las em atividades intelectuais e artísticas intensas. Osorriso de Ia Gioconda - Monalisa ou Catarina, a mãe deLeonardo? - ou de Santa Ana, a Virgem e o Menino Jesus éapenas esboçado sob a sombra suavizada do sfumato: sorri-so do artista que venceu o neurótico e ao mesmo tempotraços dos sofrimentos secretos já acalmados.

Mais além do caráter iconoclasta do estudo de Freud -ele dessacraliza um pouco um "grande homem" - uma ques-tão se coloca: Freud está analisando quem, Leonardo daVinci ou a si mesmo? Alguns críticos sugeriram esta segundainterpretação, chegando ao ponto de falar de autodescriçãoou de auto-análise. A arte não estará sendo usada aqui comoum pretexto de Freud para examinar sua teoria e suas pulsõespessoais, sobretudo suas próprias tendências homossexuaisque confessa, nesse período, ter definitivamente superado?Além disso, não fizera ele mesmo a ligação entre o comple-xo de Édipo, do qual confessa ter sofrido, e a explicação datragédia de Sófocles? Não estará propenso a encontrar nasobras de arte o que nelas coloca de si mesmo, mais preocu-pado com o efeito que produzem em sua pessoa do que emanalisá-Ias e compreendê-Ias em si mesmas?

A publicação de A interpretação dos sonhos, em 1900, éum fracasso. Apesar da reedição da obra dez anos mais tar-de, planam dúvidas sobre o futuro da psicanálise. Quandopublica "O Moisés de Míchelangelo" em 1914, a ruptura comAdler e Jung já está consumada. A monumental estátua de

Marcjimenez 267Michelangelo na igreja San Pietro in Vincoli em Roma já ofascina. Fascinação que se torna obsessão: vai vê-Ia todosos dias durante três semanas, estuda-a de pé, mede-a, dese-nha-a, decide-se enfim a publicar seu ensaio, anônimo. Freudidentifica-se nesse momento tanto com Michelangelo quantocom o detentor das Tábuas da Lei. Que fazer com as tábuasda psicanálise das quais é o depositário quando acaba deser traído por seus colegas e discípulos mais chegados?

O Moisés da Bíblia era impulsivo, sujeito a repentinosacessos de fúria diante dos idólatras, adoradores do Bezerrode ouro. Ao contrário, a estátua representa-o consciente desua missão: não quebrar as Tábuas, a nenhum preço. Massereno, não! Senhor de suas paixões, "superior ao Moiséshistórico e tradicional", diz Freud, mas inquietante, cheio decólera contida, tanto imagem de santo quanto "príncipe ter-rível", como já observara Vasari. Michelangelo o quis assim,enigmático: homenagem ambígua ao papa Júlio 11, ambicio-so e exigente protetor de um artista também não desprovi-do de orgulho e plenamente consciente de seu gênio.

Aqui também Freud projeta sua personalidade na obraque estuda. Convém extrair do fato algumas conclusões deordem estética.

Ninguém contesta a semelhança entre o sonho e a obrade arte, sobretudo se forem levados em consideração oslimites indicados por Freud nesta comparação: o sonho sa-tisfaz apenas o narcisismo do indivíduo; a obra de arte, emcompensação, estabelece uma comunicação com o público.

O parentesco entre o neurótico e o artista é mais emba-raçoso. Evidentemente, Freud tem o cuidado de precisar adiferença entre os dois: o primeiro é um associal, o segundoretoma pé na realidade graças à sublimação e à produçãode obras expostas ao reconhecimento do outro.

Apesar desta distinção, a comparação corre o risco deautorizar a idéia, infelizmente bastante comum, de que to-

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dos os artistas, sobretudo os grandes, são um pouco loucos.Os outros são pura e simplesmente fracassados. Este é umdesagradável hábito de alimentar o preconceito desfavorá-vel para com a arte em geral, preconceito que talvez nuncapossa desaparecer da consciência comum.

O mérito de Freud reside em mostrar o prazer e o gozoque se extraem da compreensão da obra de arte; residetambém em explicar a origem destes sentimentos no mo-mento em que se estabelece uma relação íntima, privilegia-da, entre a obra e aquele que a recebe. A arte é uma ilusão,uma consolação para os males infligidos pela realidade, quetoca a verdade de nosso ser no que há nele de mais escon-dido.

Porém, esta estética apresenta, se podemos dizer as-sim, todos os defeitos de suas vantagens. É uma estética do"conteúdo": Freud confessa não interessar-se nem pela for-ma da obra nem pelos processos técnicos de criação. Estaforma é somente um "brinde de sedução" com o qual, justa-mente, a obra se distingue do sonho.

Resistência à modernidade

Ora, na época de Freud, a arte moderna define-se pre-cisamente por sua vontade de romper, não com o conteúdo,mas com as formas tradicionais, convencionais e acadêmi-cas. Não é de espantar se estas novas tendências lhe perma-neçam estranhas.

Mas há coisas mais essenciais. O estudo de Freud Umalembrança de infância de Leonardo da Vinci suscitou estra-nhas e repentinas paixões pela ornitologia. Até mesmo seuamigo Pfister chegou ao ponto de investigar a presença doabutre no quadro Santa Ana, a Virgem e o Menino Jesus,exposto no Louvre. Procurou e, evidentemente, encontrou ...

Marc jimenez 269Como nas charadas e nas vinhetas infantis, conseguiu des-cobrir o pássaro nas pregas dos vestidos confundidos daVirgem e de Santa Ana. Amável e ingênua empresa, mascomo foi perniciosa' Ela dá a entender que o artista projeta(inconscientemente) seus fantasmas na tela e sugere queeles tomam necessariamente uma forma figurativa, reconhe-cível após um exame minucioso.

Mas, embora falível e simplista, esta hipótese de umaprojeção fantasmática põe o dedo num componente subter-râneo da estética freudiana que explica sua resistência àmodernidade. O inconsciente, segundo Freud, exprime-seem imagem, sobretudo no sonho. Em razão de sua afinida-de com este sonho, nasce a tentação de considerar tambéma obra de arte como uma tradução figurada do inconsciente,portanto, legível e compreensível, teoricamente, para todos.Ora, a única maneira de ser legível e compreensível paratodos, sobretudo em arte, é a de conformar-se às regras daimitação, da cópia e do reconhecimento. Nesta estéticamimética, clássica - a que é expressa inegavelmente porFreud - não há, com toda a certeza, nenhum lugar para asobras abstratas, não-figurativas que, precisamente, infringemestas normas. E onde colocar a música, esta arte em que aprópria noção de conteúdo não tem nenhum sentido?

Em 1897, o ano da descoberta de Édipo, nasce em Vi-ena um dos mais importantes movimentos de renovaçãoartística e cultural da virada do século: a Secessão, que temà frente Gustav Klimt. Reúne ele jovens artistas, ouvintes deWagner e leitores de Nietzsche, resolvidos a criar uma "cul-tura dionisíaca". A ópera, os salões, os parques públicoscontinuam a valsar ao ritmo de johann Strauss, mas nessesjardins harmoniosos, burgueses e clássicos penetram as ima-gens e os sons discordantes de Oskar Kokoschka, de EgonSchiele e de Arnold Schonberg.

Freud não os ouve. Assim como não vê o panorama de

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270 o que é estética?todas as vanguardas "históricas", nascidas ao mesmo tempoque ele e das quais as últimas desaparecerão com ele:impressionismo, néo-impressionismo, expressionismo, futu-rismo, dadaísmo, constructivismo, surrealismo. Seguramen-te, há ainda outras!

Uma moldagem de Gradiva, uma estampa da Esfingede Gizé, um baixo relevo do sarcófago do amigo de Aquiles,Pátroclo, estátuas egípcias, são, entre outros, os objetos queesperam o visitante no n° 19 da Berggasse, em Viena, noescritório de Freud.

Freud dá o nome de unheimisch a este estranho senti-mento que nasce da familiaridade com as coisas: quandoestas se tornam por demais próximas, justamente por de-mais familiares, acabamos paradoxalmente por achá-Ias an-gustiantes. Unheimisch é literalmente intraduzível em fran-cês. Adotou-se a expressão "inquietante estranheza:" "In-quietante familiaridade" teria sido sem dúvida preferível. Masnão importa. Basta saber que este sentimento ambivalentepertence, para Freud, ao domínio da estética."

Quem quiser ter pessoalmente a experiência da "inqui-etante estranheza" deve visitar o local, no na 19 da Berggasse,em Viena: verá objetos provindos dos mitos e lendas quenossa cultura nos tornou familiares ..., mas nenhuma obraposterior à Renascença.

Apesar de suas análises penetrantes, que às vezes to-mam o aspecto de verdadeiras premonições sobre o realdevir do mundo e seu estado atual, Marx, Nietzsche e Freudpermaneceram, no plano da reflexão estética, na "soleira daarte moderna", para retomar à expressão de Hegel. Suas

°N. de T. Em francês, inquiétante étrangeté.'OIbid.p.213: "É possível, contudo, que ele ( o psicanalista] venha a interessar-sepor um domínio particular da estética e, neste caso, trata-se ~abitualmente de ~mdomínio situado à parte e negligenciado pela literatura esteuca especializada.

Marc jimenez 271teorias da arte mantiveram-se nos limites de um gosto for-mado pela educação clássica, ela mesma sob a força daimagem decididamente marcante da antigüidade grega oulatina. A arte se lhes apresentou seja como expressão nos-tálgica de uma época passada (Marx), seja como reconcilia-ção e aparência colocada sob o signo de Apoio (Nietzsche),seja como consolação diante da miséria do mundo (Freud).

Veremos, todavia, que esta cegueira face às rupturas damodernidade artística não impede que suas teorias, umavez reinterpretadas e atualizadas, ocupem um lugar consi-derável na estética do século xx. Sua nostalgia comum pelaarte do passado não significa, por isso, suas adesões aostempos antigos, cuja pesada herança em economia política,em filosofia ou em psicologia criticam com virulência. Elaexprime sobretudo suas inquietações e seus desencantosdiante de um mundo prisioneiro das próprias contradições,entre progresso e regressão, novidade e arcaísmo.

Nem marxista, nem nietzscheano, Freud, psicanalista,une-se a Marx e a Nietzsche em seu diagnóstico da culturaocidental. A famosa felicidade, sempre prometida para ofuturo, contenta-se com um pesado tributo: o do sacrifícioda libido, da satisfação autêntica das pulsões, da adaptaçãodesesperada à realidade. Ascese necessária ao desenvolvi-mento do indivíduo como ao da humanidade. A perguntafeita em 1929 em Mal-estar na civilização, é assustadora: "Amaioria das civilizações ou das épocas culturais - até mes-mo a humanidade completa, talvez - não se terá tornado"neurótica" sob a influência dos esforços da própria civiliza-ção?"

Simples pergunta ... A arte, para Freud, é apenas uma"leve narcose" fugidia, uma "simples retirada diante das durasnecessidades da vida não suficientemente profunda para nosfazer esquecer nossa miséria real".

Porém, já a partir de alguns decênios, a arte saiu de seu

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isolamento. Numerosos são os artistas modernos evanguardistas que aprenderam a lição de Freud: a emoçãoestética deriva da esfera erótica. A arte é eros: ela luta contraas forças de morte, contra Tánatos. Todavia, para combatercom armas iguais, é preciso retirar os ouripéis da "bela apa-rência" e romper o acordo harmonioso que a unia ao mun-do de outrora.

Terceira Parte

As RUPIURAS

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I:~iI

I

I

o DECLÍNIO DA TRADIÇÃO

Baudelaire e a Modernidade

Em 1828, Hegel julga ter chegado ao fim da arte ro-mântica. Imagina-se já no "limiar da arte moderna", na espe-ra iminente de uma nova época em que o artista apareceenfim totalmente livre de escolher o conteúdo e a forma desuas obras.

Mas um século separa o romantismo do século XIX e ocubismo do século xx. A soleira alarga-se bem mais do queas previsões de Hegel, pois a herança clássica e neoclássicanão acaba de consumir-se. Ela ainda se mantém nas con-cepções estéticas dos pensadores e dos teóricos damodernidade, quer se trate de Marx, de Nietzsche e maistarde de Freud. Eles não ignoram a arte de seu tempo, masrecusam-se a perceber os novos laços que ligam a criaçãoartística às mutações de sua época. Mesmo a fascinação deNietzsche pelas inovações musicais de Wagner alimenta-seda esperança de ver renascer o coro da tragédia antiga.

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É verdade também que Hegel prediz o sucesso da esté-tica, isto é, de uma filosofia da arte que - como toda filoso-fia - chega sempre, podemos lembrá-Io, após os aconteci-mentos, isto é, tarde demais. Esta predição, muito mais con-vincente do que a pretensa morte anunciada da arte, definea sorte que marca doravante o discurso teórico sobre a arte:o filósofo esteta assiste, impotente e às vezes deslumbrado,ao desfile ininterrupto e precipitado, das escolas, das ten-dências e dos movimentos ébrios de novidade, demodernidade e de rupturas.

Em 1855, Baudelaire fustiga em vão os "modernos pro-fessores juramentados de estética", desconcertados pelos "fru-tos" de uma pintura inédita "cujo gosto engana e desloca ossentidos"; espíritos saudosistas assombrados pela irrupçãode um mundo de "harmonias novas" e de uma "vitalidadedesconhecida" .1

Que reações esperar desses "winckelmanianos" atrasa-dos, imobilizados em seu racionalismo acadêmico? Baudelaireresponde: "O insensato doutrinário do Belo, sem dúvida,diria disparates; fechado na obstinada fortaleza de seu siste-ma, blasfemaria contra a vida e a natureza e seu fanatismogrego, italiano ou parisiense, o persuadiria a proibir estepovo insolente de gozar, de sonhar ou de pensar por outrosprocessos que não os seus próprios".

Baudelaire não é mais brando com a estética reduzidaao estado de "ciência manchada de tinta, gosto bastardo,mais bárbaro do que os bárbaros, que esqueceu a cor docéu, a forma do vegetal, o movimento e o odor da anima li-dade e cujos dedos crispados, paralisados pela pena nãopodem mais correr com agilidade sobre o imenso teclado

'Charles Baudelaire, Critique d'art suivi de Critique musicale, "Expositionuniverselle de 1855", Paris, Gallimard, Folio essais,1992, p.237.

~II

Marc jimenez 277das correspondências= Ele nega ao "professor-juramentado",a esse "tirano rnandarim", a esse "ímpío que se substitui aDeus", o direito de apenas pronunciar-se sobre a beleza'porque o "belo é sempre bizarro" e porque um "belo banal';é um absurdo.

Numa palavra, diante da beleza da vida moderna atarefa mais urgente da estética é a de se calar pois "todomundo concebe sem dificuldades que, se os homens en-carregados de exprimir o belo se conformassem às regrasdos professores-juramentados, o próprio belo desapareceriada terra"."

Baudelaire assume a herança romântica do gênioindefinível e imprevisível, audaciosamente insurgido contrao credo acadêmico do progresso irreversível de uma artecom vocação pedagógica e moral: "O artista somente de-pende de si mesmo. Promete aos séculos futuros apenassuas próprias obras. Só responde por si mesmo. Morre semfilhos. Foi seu rei] seu sacerdote e seu Deus'.'

Dois anos após estas linhas, Baudelaire publica a obra"escandalosa", Les fleurs du mal (1857). Crítico de arte esobretudo não esteta, conhece os escândalos, defende ar-dentemente as dissonâncias de uma vida bela e efêmeraassim como as discordâncias repetidas da arte moderna. Atéa morte, em 1867, ele consegue recensear esses escândalos;sua sucessão desenrola-se ainda em ritmo lento. Todos sãopara ele ocasiões para desmentir a comprovação chorosa deMichelet em 1860: "Não criamos mais, a história matou aarte". Baudelaire não somente o contradiz, mas demonstra ainépcia desse lamento de inspiração hegeliana: digamos antes

"lbid.

lIbid p.238.

<Ibid. p.241.

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que a arte viva, fênix inapreensível, que morre e renasce aolongo das modas, está matando a história, ou melhor, está

. aniquilando sua imagem à antiga elaborada durante séculossob os auspícios de Platão e de Aristóteles.

Aqui, neste "transitório" e neste "fugitivo" que, em suaopinião, caracterizam a época moderna, residem as inume-ráveis rupturas que conferem, provisoriamente, uma coe-rência original à modernidade. A beleza não se define so-mente por sua tendência para o eterno ou o imutável, elasurge a qualquer momento da realidade mais prosaica domundo presente. Se Charles Baudelaire é tão freqüentementeconsiderado como o primeiro a ter definido a modernidadee a tê-Ia experimentado em sua própria criação poética, istodecorre precisamente de sua extrema sensibilidade às rup-turas: rupturas com as convenções acadêmicas, com a gran-de burguesia negocista, com o poder econômico e políticoque exige a submissão da ordem estética à ordemestabelecida.

Neste "século orgulhoso que se julga acima dos infor-túnios da Grécia e de Roma" - segundo a expressão deBaudelaire -, é de bom tom incensar lngres, o pintor dosetruscos, o mestre da linha, e rejeitar Delacroix, pintor davida contemporânea e de um mundo dinamizado pela luz epela cor. Convém execrar Courbet - o Sr. Thiers não deixade fazê-Io' - e vomitar o pintor "realista" de uma sociedadepauperizada. É legítimo lançar um anátema sobre Manet,sobre suas exibições sensuais, julgadas impudicas, assimcomo convém odiar Corot e esse impressionismo queembaralha a clara representação de uma natureza e de ummundo "platonizados", imobilizados por toda a eternidade.

Quem de fato vê claramente nessa época?Baudelaire, muito freqüentemente, mesmo que prefira,

de longe, o pintor da vida moderna, Constantin Guys, aorealista Courbet, mesmo que ignore tudo sobre a música a

Marc jimenez 279ponto de não poder explicar a si mesmo sua súbita paixãopor Wagner. Mas pouquíssimos artistas ou escritores mos-tram uma durável lucidez quanto ao futuro da arte moder-na, sobretudo quando são substituídos por seus sucessores:o impressionismo deixa Corot cético; Theophile Gautier vêem Monet somente manchas de cores justapostas; aos olhosde Cézanne, Van Gogh realiza apenas uma pintura de lou-co, e Zola só vê em Cézanne seu "gênio fracassado", semmedir a importância daquele que já trata a natureza atravésdo cilindro, da esfera e do cone.

Todas estas ofensas à hierarquia política e social, aoacademismo, à ordem estabelecida, à moral, às conveniên-cias burguesas têm um sentido: os pintores saem da cenaplástica delimitada pelo Quattrocento assim como a músicaromântica e pós-romântica abandona o universo sonoro doCravo bem temperado.

Presente, juntamente com Baudelaire, à Exposição uni-versal de 1855, um crítico perspicaz observa: "Os deusesabandonam a pintura moderna, os deuses e os heróis ... Osgrandes tipos da arte cristã, o Cristo, a Virgem, a Santa Famí-lia, parecem esgotados por quatro séculos de combinaçõespitorescas. A mitologia grega, ressuscitada pela Renascençaesgotou essa nova vida". É também com esse adeus que éaberta em 1874, no ateliê de Nadar, a primeira exposição dogrupo dos impressionistas ... exatamente no ano em queWagner acaba O crepúsculo dos deuses.

Todavia, as cimalhas impressionistas não permanecemmais voltadas para o passado; elas orientam o olhar para ofuturo de um mundo transformado pela ciência e pela técni-ca, seduzido pelo movimento e pela velocidade, convenci-dos de que a arte tem o poder de transformar as relaçõesentre um homem e outro e entre o homem e o mundo: "Nãoeram somente novas categorias de homens que marcavamentão sua entrada na história e na arte; o que se colocava

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280 o que é estética?

era o problema fundamental das relações do homem com ouniverso e dos indivíduos entre si, após ter sido rejeitada apresença das divindades religiosas e sociais do passado. Foieste o problema abordado pelos ímpressíonistas"."

Esta vontade de metamorfose, presente no fauvismo,no cubismo e na arte abstrata de Vassili Kandinsky e de PaulKlee, não tarda a revestir a forma mais radical do manifestoestético e político: futurismo, dadaísmo, constructivismo eoutros "ismos" acorrentam, a partir de então, a arte moder-na na espiral infernal das sucessivas vanguardas.

o interesse das rupturas

Definir as rupturas que sobrevêm no século XIX comorecusas mais ou menos bruscas da tradição é evidentementeinsuficiente. Seria fácil objetar que a história em geral e aevolução da arte em particular não são mais do que umasucessão, a intervalos mais ou menos longos, de sobressal-tos, de trancos, de mutações e às vezes de oposições maisou menos radicais às épocas anteriores. Neste sentido, cadaépoca inventa uma modernidade para si mesma, imaginan-do um futuro capaz de libertá-Ia da rotina e do peso dostempos presentes.

Platão, no século IV antes de nossa era, reage como"antimoderno" diante das inovações artísticas sugeri das porcertos sofistas. Sua reação "conservadora" prova, por si mes-ma, a existência de um desejo de mudança que encontrasua expressão na filosofia de Aristóteles, após ter-se esteúltimo separado da Academia. A Renascença marca umaruptura decisiva com o pretenso "obscurantismo" da Idade

5Pierre Francaste!, Études de sociologie de l'art, Paris, Gallimard, Te!, 1989, p.203.

Marc]imenez 281Média; o cartesianismo rompe com a herança escolásticaantes que o racionalismo das Luzes venha combater a razãoclássica e absolutista; racionalismo que é ele mesmo impeli-do pela borrasca romântica. Neste sentido, a querela dos"antigos" e dos "modernos" sempre causou estragos e a"modernidade" - ou seja qual for seu nome - teve sempreseus defensores renhidos e seus detratores ousados.

Que é que permite considerar a modernidade, tal comoé definida por Baudelaire, como anunciadora de transfor-mações mais profundas do que as precedentes? Em que oimpressionismo, nascido pouco depois da morte do autordas Fleurs du mal, pode ser percebido como uma revoluçãode importância pelo menos igual à da Renascença na histó-ria da arte ocidental?

Evidentemente, os deuses antigos, os santos e os após-tolos cristãos desaparecem das artes plásticas; são substitu-ídos por temas que valorizam o lado "épico" da vida con-temporânea, segundo a expressão de Baudelaire. Em duaspalavras, o conteúdo da arte, as idéias representadas trans-formam-se e inspiram-se na atualidade. Porém, mais do quea novidade temática, é sobretudo a forma desta representa-ção que fere o academismo, desconcerta a crítica e choca opúblico. Somente uma minoria de amadores arrisca-se a to-mar partido pelos inovadores. Lembremo-nos da Olympiade Manet. Muito poucos celebram a postura finalmente bas-tante casta e "as formas joviais desta mulherzinha branca";não é a nudez enquanto tal que leva o público a mostrar-seescandalizado, mas, como em Le déjeuner sur l'berbe, a ma-neira não convencional com que Manet trata o contorno e aforma de um corpo sem hierarquia de valores. "Que há demais ingênuo?" pergunta, contudo, e "ingenuamente" o pin-tor; mas os críticos não pensam da mesma maneira e suarabugice contrasta com a inocência da bela indiferente deolhar abstrato: "odalisca de ventre amarelo, encontrada não

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se sabe onde", "gorila fêmea" são estas as amabilidades queacolhem essa "virgem suja" e "macerada".

O mais notável é a distorção entre as intenções dospintores, raramente animados por más intenções, e a irritaçãodos espectadores. Os pintores não procuram conscientementeo escândalo; o mais das vezes constatam que suas obrasprovocam escândalo. É este o caso de Manet, de educação ede sensibilidade burguesas, que deseja obter a Legião deHonra e uma cadeira no Instituto e se abstém prudentemen-te de expor suas telas com as dos impressionistas. Degasencarna também a contradição aparentemente surpreendente,e mantém relações com os primeiros pintores damodernidade, entre o status social, o desejo de reconheci-mento público e a indignação provocada por tais obras. Épossível ser burguês, pudibundo e, contudo, moderno. Oque choca os contemporâneos em Degas, sobretudo nascenas intimistas que mostram mulheres banhando-se e arru-mando-se, não são as promessas de nudez, mas sim a pos-tura do voyeur na qual se instala o espectador, convidado aolhar pelo buraco da fechadura, não - como diz o próprioDegas, - para ver "Susanas no banho" mas simplesmente"mulheres em seu banho de bacia". Trata-se, portanto, deum problema de forma e não de conteúdo. É uma questãode convenções recusadas aqui em proveito de um dispositi-vo visual que dá a impressão de ser testemunha, como porinadvertência, de uma cena ousada, retratada ao natural.

O impressionismo confirma a tendência para as inves-tigações formais, abrindo caminho a explorações sistemáti-cas e em breve perfeitamente programadas sobre a forçasubversiva das formas inéditas; instala-se um novo modo derepresentação, capaz de abalar os antigos dogmas e denun-ciar o estetismo da arte pela arte, com maior segurança ain-da do que o realismo poderoso e generoso de um Courbet,por demais rapidamente recuperado pelo academismo e o

Marc jimenez 283conformismo ambientes. A hostilidade do grande público ede numerosos críticos para com as formas novas está aí paraprovar que tocar na forma significa libertar um poder sub-versivo que ultrapassa o domínio artístico; renunciar àmimese, ao sacrossanto princípio de imitação solidamenteestabelecido há quatro séculos significa solapar os valoresfundadores da moral e da política numa sociedade que con-fia em sua ordem estabelecida.

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MODERNIDADE E VANGUARDA

Baudelaire não gosta do termo "vanguarda": é por de-mais militar! Em 1885, Theodore Duret, historiador de arte epublicista, ignora as prevenções baudelairianas e decidepublicar, precisamente com o título Critique d'auant-garde,seus diversos artigos consagrados aos impressionistas.

Estará suspeitando, nesse momento, o assombroso su-cesso que o termo irá conhecer? O fato não pode ser exclu-ído: ao tomar partido pelo conjunto do impressionismo, Duretconfirma as radicalizações artísticas dos dois últimos decê-nios do século XIX. Pois não se trata mais de ser apenas"moderno", de recusar o passado e de extrair a beleza dostempos modernos. Ser de vanguarda supõe a constante pre-ocupação de promover a novidade a fim de preparar o futu-ro e de anunciar os tempos melhores que estão sendo pre-parados pela ciência e pela técnica. Não é mais possívelcomprazer-se na inumação sempre repetida de um mundopré-industrial, mergulhado em seus arcaísmos, ao mesmotempo nostálgico do passado e beatamente otimista. É frágilo otimismo do conforto das coisas estabelecidas! Curiosa-mente, a vanguarda, ou melhor as vanguardas, voltadas por

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definição para o futuro, são pessimistas, conscientes dasinércias e do peso das tarefas a cumprir. Nasce daí sua von-tade de ir mais longe nas revoluções formais e de multipli-car as rupturas, como se se tratasse de esconjurar o risco deum retrocesso. Uma certa violência não é excluída, pacíficaaté o final do século, mais viva a partir do início do séculoXX: violência poética contra as palavras e feita através daspalavras em Mallarmé, violência musical e ataques contra asensata harmonia tradicional em Debussy, violência contraa arquitetura tradicional para quem sonha conciliar o funci-onalismo e a art déco ou então, como William Morris, afir-ma que a arte deve ser feita pelo povo e para o povo.

Violência já mais agressiva e sentida como tal pelo pú-blico quando Matisse aumenta as manchas e os pontos co-loridos do impressionismo e do pontilhismo: os Fauves, pre-sentes no Salão de Outono de 1905, não seriam perigososrevolucionários apenas capazes de lançar lata de tinta norosto do público?

Violência das desconstruções formais nas diversas cor-rentes do expressionismo alemão e na Blaue Reiter (O Ca-valeiro azul) de Vassili Kandinsky e de Franz Marc. NoAlmanaque;' publicado por esses dois pintores em 1912,em Munique, está traçada a estrada que conduz à arte abs-trata; ela passa pela explosão e pelo despedaçamento dasformas tradicionais cujo arranjo só obedece doravante à sub-jetividade do artista: "Esta escolha da forma é, portanto, de-terminada pela necessidade interior, a qual constitui propria-mente a única lei imutável da arte".

Basta levar a seu termo esta libertação da forma paralibertar a pintura de qualquer representação do objeto re-

'Vassili Kandinsky e Franz Marc, L'Almanacb du Blaue Reiter, apresentação enotas de Klaus Lankheit, Paris: Klincksieck, 1981. 1

Marc jimenez 287conhecível, até mesmo de qualquer objeto, seja ele qual for.O mundo exterior desaparece da pintura. Que resta parapintar se sonhamos com um mundo sem objeto, se afirma-mos, como Malevitch e os suprematistas, que os objetosprejudicam a pintura e que importa libertar a arte do pesoinútil do objeto? Raios de luz colorida (raionismo), figurasgeométricas, um Quadrado negro sobrefundo branco (913),simples esboço preparatório ao Quadrado branco sobrefun-do branco de 1919?

Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, as vanguar-das não se contentam mais em afirmar a vinda da arte mo-derna. Elas manifestam sua angústia do futuro, mistura defascinação e de revolta numa época em que os lustres daBelle Époque se apagam um por um sob o sopro das revo-luções sociais e políticas. Até mesmo a adesão aos novosmitos da industrialização e da técnica adquire um tom derebelião. "Manifesto" é doravante a palavra da moda, perfei-tamente apropriada para expressar a virulência dasreivindicações. Termo ideal para definir o programa futuristalançado pelo escritor e poeta Marinetti, em 1909, nas colu-nas do Figaro; a execração do "mediocrismo acadêmico"exaspera-se em profissão de fé anarquista, revolucionária enacionalista, em vibrante apelo a uma conjuração de todasas artes cúmplices doravante em sua exaltação da beleza davelocidade, da guerra, do militarismo, do patriotismo, dogesto destruidor dos anarquistas e - podemos Iamentá-Io -do desprezo pela mulher. Violência ambígua neste movi-mento de grande fecundidade artística, apto mais do quequalquer outro a exprimir a frenesi da época, pronto a atiçaro fogo que conduz o mundo à sua ruína próxima.

Violência contra a moral, os bons costumes, contra anação e a ordem republicana se acreditarmos na reação dasautoridades municipais da Cidade de Paris na exposição da"Maison Cubiste" no Salão de Outono de 1912. De onde

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288 o que é estética?

vem esta pretensa violência? De Duchamp-Villon, irmão deMareei Duchamp, de Braque, de Picasso e outros "cubistas''qualificados de "bando de malfeitores que se comportamno mundo das artes como os apaches na vida comum". Es-tranha perspicácia da parte dos censores institucionais e dosgendarmes da tradição - que se confundem com os guardasda ordem estabelecida - e não tem quem os iguale paraencontrar com um faro infalível, às vezes antes dos própriosartistas, o ponto exato em que a arte moderna incomoda.

Nesse ano de 1912, na época em que Picasso abando-na o cubismo analítico por um cubismo sintético baseadonas colagens e nos papéis colados, o quadro destinado aviolentar a sensibilidade artística das gerações futuras já estáacabado. Ele é pré-cubista, pouco conhecido do público, etraz um nome propenso à confusão, pelo menos em fran-cês: as Demoiselles d'Auignon, ex-Bordel pbilosopbique, alu-são a uma honrada casa do bairro de Avinyo de Barcelona.As senhoras com rosto de lua crescente - metade decamembert para os que não gostam, máscaras africanas paraos admiradores - até hoje não acabaram de comunicar seusegredo. Este quadro de 1907 está para a pintura modernaassim como está para a música o Quarteto de cordas n° 2 emfá sustenido menor de Arnold Schonberg, primeira tentativade escrita atonal à qual se arrisca o compositor vienense.

Estas duas obras, consideradas pela posteridade comoemblemáticas das rupturas surgidas na arte ocidental, ins-tauram um momento de irreversibilidade: elas consagram aherança do passado ao mesmo tempo em que abrem o vas-to campo da criação do século XX que nenhum artista con-temporâneo poderia pretender ter acabado de explorar to-talmente.

Em 1900, no pavilhão da Exposição universal, especial-mente reservado a Auguste Rodin (1840-1917) o público,boquiaberto, contempla o Homme qui marche: um gigante

Marc jimenez 289de quase três metros, em bronze, com os pés solidamenteplantados no chão, ao contrário do andar aéreo de Gradivaque parece querer a qualquer momento abandonar a pedrade seu baixo-relevo. Que pensa dele o jovem Picasso, eletambém presente no mesmo local e que descobre o artistano auge de sua glória? Poderá ele pensar, por um únicomomento, na igual celebridade que o espera e o fará gozar,alguns anos mais tarde, de uma fama universal?

Mas voltemos a este sujeito bastante robusto que pare-ce decidido a avançar a qualquer preço para um destinodesconhecido enquanto permanece pregado no chão. Paraquem não conhece o cuidado particular de Rodin em nãoterminar suas obras, o colosso causa, de fato, estupefação: édesprovido de cabeça. Visto de frente, o espetáculo é estra-nho, mas apenas isso: quantas estátuas gregas decapitadaspor acidente não se oferecem, sem complexo, à admiraçãodos arqueólogos e dos turistas? É quando é visto de perfil,sobretudo pelo lado direito, que a estranheza se transformaem angústia: será possível, razoavelmente, caminhar semcabeça? E para ir aonde?

O ano de 1900 é também, estamos lembrados, a datade publicação da obra maior de Freud, A interpretação dossonhos. Na soleira do século XX, o homem, seguro de simesmo, consciente de seu progresso, de sua economia, desua ciência, de sua arte e de sua política, descobre em siuma falha. Mais ainda: é-lhe revelado seu calcanhar deAquiles sob o aspecto de pulsões inconscientes que ele nãodomina e que, todavia, comandam o conjunto de sua ativi-dade. Em outras palavras, o mundo que ele se empenha emconstruir de forma racional é largamente o produto de seusfantasmas incontrolados e quase incontroláveis.

O gigante de Rodin impressiona por sua musculatura,estilo Moisés de Michelangelo, porém pertence ao seu tem-po e está muito longe da Renascença; sobretudo, diferente-

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290 o que é estética?

mente de seu "irmão" Le Penseur, outro atleta espantoso, aomesmo tempo filósofo e poeta; os sonhos lhe são proibi-dos, a reflexão também e, naturalmente, o sentido de orien-tação. Compreendem-se melhor as reticências deste corposem cabeça, que é, contudo, uma obra de arte, em avançar;não estará ele encarnando, sozinho, todas as rupturas e asfraturas de um século que se prepara a cristalizar uma partede seus mais atrozes e mais concretos conflitos ao redor daquestão da arte?

Simples datas não fazem a história, mas há convergên-cias, que merecem atenção: Rodin morre em 1917, ano desinistra memória para o fronte franco-alemão; o movimentoDada funda uma galeria, começa a expor e publica sua re-vista em Zurich. Dada é formado por pintores, poetas, es-cultores que, em Paris, New York, Berlim, Colônia, Muni-que, Hanover, Barcelona, lançam o mesmo grito de deses-pero e de revolta contra a guerra, contra a arte ilusão, contrao belo enganador, contra o egoísmo de uma sociedade ca-paz de exterminar milhões de homens. Por isso, todos osmeios são bons, da provocação niilista à zombaria amarga,da cólera ao humor, para mostrar que a arte e os artistas nãopodem permanecer indiferentes nem neutros diante da his-tória real. Portanto, "rnerda para a beleza!", exclama Dada eisto é de tal forma verdade que não se pode pintar, escrever,esculpir "belo" sobre um fundo de cadáveres em pedaços,sanguinolentos e empilhados em trincheiras de nome tãoatrozmente evocativo.

Nenhuma forma artística poderia ser conveniente paraexprimir e denunciar esta realidade mutilante e mutilada anão ser aquela que resulta da disposição aleatória de frag-mentos de matéria e de materiais colados segundo as leis deum arbitrário, de fato rigorosamente controlado. Todos osdadaístas e os que estão próximos do movimento Dada,alguns inspirados pelo futurismo e pelo expressionismo,

~I

Marc Jimenez 291George Grosz, Otto Dix, Kurt Schwitters, Hans Arp, MaxErnst, distinguem-se neste tipo de composições "alquímícas"que subvertem a percepção habitual do mundo e colocamno banco dos réus uma realidade angustiante. Em 1921,dois anos antes da autodissolução da mais revoltada dasvanguardas, numa grande tela bizarramente intitulada L 'oeilcacodylate, Francis Picabia, imprevisível "farsante" da arte,instiga os Dada e seus aparentados a colar o que bem en-tenderem e a assinar cada um por sua vez. Gesto iconoclastaque zomba da arte, ao qual se associam, sobretudo, ManRay, Tristan Tzara e ... Marcel Duchamp.

Marcel Duchamp, exatamente, companheiro um poucoafastado de Dada, que se associa, também sempre distancia-do, ao Manifeste du surréalismepublicado por André Bretonem 1924. Duchamp que, a partir de 1914, começa a semear,no campo já caótico da arte, pequenas bombas de efeitoretardado: uma Roue de bicyclette, um Porte-bouteilles. Sãoobjetos já feitos, produtos industriais e estandardizados,ready-made, acessíveis no comércio, que o artista deslocade seu lugar habitual, desvia de suas funções prosaicas eutilitárias e deseja expor nos espaços consagrados, galeriase exposições.

Em 1917, decididamente, a maior das bombas: umUrinoir, assinado com o pseudônimo R. Mutt, batizadoFountain. A partir dessa data até os nossos dias, estas minasde efeito retardado não param de explodir em intervalosregulares, causando desordem e confusão nas fileiras dosartistas e da crítica de arte. Rebeldes a qualquer tentativa dedesmontagem, elas conseguem, às vezes, fazer esquecer opintor do Nu descendant un escalier (911), de La mariéemise à nu par les célibataires e de La broyeuse de chocolat(913), La joconde (919) enfeitada com barba e bigode,assinada LHOOQ, não é um ready-made, mas precede depouco a passagem ao ato final, último gesto "artístico" de

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292 o que é estética?

Duchamp antes de reunir-se aos surrealistas: doravante elerenuncia à arte, condena a pintura dita "retiniana", para de-dicar-se apenas ao jogo de xadrez. No final dos anos 30, ofilósofo alemão Walter Benjamin qualificará o surrealismode "último instantâneo da inteligência européia".

O surrealismo não marca uma pausa nesta roda infer-nal dos "ismos"? O cenário não está plantado uma vez portodas, pronto para acolher as tragédias, os dramas e as co-médias da arte moderna e contemporânea até este final doséculo XX?

As vanguardas históricas, por seu dinamismo, sua viru-lência e seu radicalismo não terão condenado os movimen-tos nascidos após a Segunda Guerra Mundial a retomar infi-nitamente o mesmo tema obsedante da morte da arte e dofim das belas-artes?

Estas perguntas, que interessam prioritariamente aos his-toriadores da arte, não poderiam, é claro, deixar indiferen-tes os estetas atuais, preocupados em explicar as crises queo mundo da arte e da cultura parece sofrer hoje. Elas serãoo objeto do último capítulo: "A guinada cultural da estética".

A teoria estética e as vanguardas

Já indicamos o relativo atraso da estética diante do rit-mo imposto pela arte moderna e pela rápida sucessão dasdiversas vanguardas.

Uma primeira explicação para esta defasagem de certaforma rende homenagem a Hegel: diante das transforma-ções e das rupturas da modernidade, a interpretação estéti-ca e filosófica intervém senão tarde demais, pelo menosmais tarde. Ela precisa de um certo tempo para responder àespontaneidade criadora dos artistas e à subitaneidade dasinovações: apenas cinqüenta anos entre o Bain turc (Ingres)

Marc jimenez 293e as Demoiselles d'Auignon, entre Ia danse de Carpeaux eIa Muse endormie de Brancusi' Como julgar e avaliar obrasque, além disso, reivindicam elas próprias sua total autono-mia e recusam os critérios acadêmicos e tradicionais herda-dos do passado? Lembramos as temíveis diatribes deBaudelaire contra os professores-juramentados de estéticaaos quais reconhecia um único direito: o de se calarem sobpena de fazer desaparecer a própria idéia de beleza.

Esta prudente discrição da filosofia da arte tradicionaldiante das revoluções da arte moderna prolonga-se até oalvorecer do século XX, no próprio início da explosãovanguardista. Nós a encontramos, na obra que é, contudo,considerável, e curiosamente mal conhecida na França, deBenedetto Croce 0866-1952)

Autor, em 1900, da Estética como ciência da expressãoe da lingüística, Croce polemiza por muito tempo com ohistoriador de arte Heinrich Wólfflin 0864-1945); recusa asteses desenvolvidas por este último em seus Princípios fun-damentais da história da arte afirmando que toda grandeépoca artística se define graças ao seu estilo, isto é, pelostraços característicos formais próprios das obras representa-tivas de um dado período e de uma dada sociedade. Aoestudar comparativamente o estilo clássico e o estilo barro-co e a passagem de um a outro, Wólfflin mostra assim que olinear (Dürer) opõe-se ao pictórico (Rernbrandt), o plano àprofundidade, a forma fechada à forma aberta, a claridadeabsoluta à obscuridade relativa, a pluralidade à unidade. Oestilo evidencia-se então como a expressão do estado deespírito de um povo em um dado momento de sua históriaque rege a criação particular dos artistas.

Croce recusa esta dependência da obra em relação aestruturas globais e a princípios gerais de organização; pelocontrário, privilegia a obra concreta e singular, negando afatídica distinção entre a forma e o conteúdo, visto que a

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294 o que é estética?

forma também é um conteúdo. Esta recusa em separar for-ma e conteúdo, matéria e idéia e em recair nas diferencia-ções das estéticas kantiana e hegeliana deve ser creditada àestética de Croce: é legítimo que este aspecto "moderno"tenha chamado a atenção de um historiador como ClementGreenberg. Em compensação, Croce abstém-se de qualquerjulgamento de valor sobre as transformações sofridas pelasartes figurativas; ele não se compromete nem a favor nemcontra tais mudanças, mas considera-as do ponto de vistada arte universal: "L ..J mais além da pintura e das artes figu-rativas há todas as outras artes, a arte universal L..J, maisalém da arte há ainda o espírito humano na riqueza de suaforma e em sua unidade dialética sem a qual a própria artenão é de fato inteligível; e que finalmente, acima da pintu-ra modernista ou moderna e mesmo além desta pintura quese faz começar, segundo os caprichos, ora com Rembrandt,ora com Giorgione, há a pintura de todos os tempos e detodos os povos, quer a chamemos de cromática ou não cro-mática"."

Evidentemente, em 1919 Croce faz alusão a esta simpa-tia e a esta confiança que mostra sua época em relação à"arte impressionista, cubista, vanguardista e geralmente de-cadente de hoje"; mas ele visa essencialmente à incapacida-de que tem a crítica de aceder ao nível de uma verdadeirafilosofia estética. Sua vontade de fazer do crítico um filósofoestá de acordo com a tarefa elevada que confere à estética:"A estética, que é a ciência da arte, não tem, portanto, porfunção, como se pensa em algumas concepções escolares,definir a arte uma vez por todas e tecer sua trama conceptualde forma a cobrir todo o campo dessa ciência; ela é apenasa reorganização permanente, sempre renovada e cada vez

'0 grifo é nosso.

"II

Marc [imenez 295mais rigorosa, dos problemas aos quais, segundo as dife-rentes épocas, dá lugar a ref1exão sobre a arte, e ela coinci-de perfeitamente com a solução das dificuldades e dos er-ros que estimulam e enriquecem o progresso incessante dopensamento". Nobre concepção da estética à qual gostaría-mos de subscrever hoje, mas que evidencia, aqui também,um certo desengajamento "estratégico" do filósofo diantedos interesses sociais e políticos levantados pelas provoca-ções vanguardistas.

Existe, contudo, uma outra explicação para a atitude deaparente espera da filosofia da arte em relação às vanguar-das. A maioria dos artistas vanguardistas, pintores, escultores,arquitetos, músicos, escritores e poetas, elaboram sua própriateoria da arte no próprio espaço de tempo de suas realiza-ções: o papel do manifesto ou da palavra de ordem à qualadere uma nova escola consiste exatamente em cristalizar aoredor de um tema preciso as energias artísticas em todos osdomínios, e em determinar o interesse filosófico e estético daação coletiva. O próprio manifesto tem a ver com uma verda-deira criação literária e poética; é o caso, sobretudo, do mani-festo futurista de Marinetti (1909) e dos dois manifestossurrealistas de André Breton (1924 e 1929).

O primeiro expressionismo alemão anterior a 1914,0grupo de Die Brücke (1909) ao redor de Ernst LudwigKirchner (1880-1938) e de Emil Nolde (1867-1956), a Associ-ação dos artistas de Munique (1904), à qual adere por al-gum tempo Vassili Kandinsky, querem romper com as con-venções em vigor desde a Renascença e querem afirmar aautonomia radical da criação artística. No plano pictórico,aprendem as lições de Cézanne e dos impressionistas, massuas reações participam de um romantismo exacerbado, umamistura de entusiasmo e de espírito niilista, herdeiro diretode Hegel, dos filósofos românticos alemães, sobretudoSchelling, da música wagneriana e das teorias de Nietzsche.

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296o que é estética?

o Cavaleiro azul de Kandinsky e de Marc, ao qualdevem-se associar os nomes de Klee e de Schonberg (com-positor e pintor) baseia-se em parte nas teorias da cor de-senvolvidas por Goethe e as prolonga numa verdadeira vi-são do mundo: trata-se de invocar a renovação do pensa-mento e de celebrar a liberdade subjetiva do artista a fim depromover valores superiores da arte e de tirar a humanida-de do nada. Uma mesma filosofia anima ainda o Bauhaus,fundado em Weimar em 1919 por Walter Gropius, ao qualaderem Kandinsky, Klee e Schlemmer; fundar o "novo edi-fício do futuro" significa para eles reconhecer a função soci-al da arte, sobretudo da arquitetura. Ao contrário de JohnRuskin e de William Morris, reticentes diante da industriali-zação e do maquinismo, Gropius integra os progressos datécnica - por exemplo, o cimento armado - no projeto gran-dioso de uma obra de arte unitária capaz de harmonizartodas as artes e o artesanato.

Estas correntes não poderiam ter atingido sua maturi-dade reflexiva sem o concurso de teorias sobre a arte abs-trata, magistralmente expostas por Wilhelm Worringer emAbstração e Einfühlu ng (1908). Todos estes "revolucionários"sentem-se, na realidade, investidos de uma missão social;sonham com uma reconciliação entre a arte e a vida e comuma transformação das mentalidades comparável ao que foia Renascença. No Almanaque do Blaue Reiter, Franz Marcnão hesita em declarar: "Encontramo-nos hoje na virada dedois longos períodos, semelhante ao mundo de quinze sé-culos atrás, quando houve também um período de transiçãosem arte e sem religião, em que o que era grande e velhomorreu e foi substituído pelo que era novo e inesperado".

A pintura aparece, portanto, como um simples pretextopara uma revolução filosófica e espiritual mais global e inter-nacional, em que os problemas formais acabariam por desa-parecer, revelando que agir sobre a forma das obras até a

Marc jimenez 297mais total abstração significa, finalmente, agir sobre o con-teúdo e criar idéias novas. É esta convicção que permite aKandinski enunciar um dos problemas mais fundamentais daestética e da arte do século XX: "Marc e eu nos lançáramos napintura, mas a pintura, sozinha, não bastava. Em seguida, tivea idéia de um livro sintético que eliminasse as perspectivascurtas e em desuso, que fizesse cair os muros entre as artes[' . .J e demonstrasse, finalmente, que a questão da arte não éuma questão de forma, mas de conteúdo artístico."

O manifesto do suprematismo, exposto por Malevitchem 1915, evidencia igualmente uma inegável dimensão filo-sófica: afirmar a supremacia da sensibilidade pura nas figu-ras geométricas desprovidas de qualquer significação signi-fica questionar, de maneira radical e paradoxal, a represen-tação clássica, figurativa do objeto como algo que dá acessoao conhecimento. Em Malevitch esta filosofia do "zero dasformas", do "zero da criação" tem valor de metafísica e teo-logia, pelo menos enquanto a Rússia e a revolução lhe per-mitem esperar a construção de um mundo novo.

Nos dois manifestos do surrealismo (1924 e 1929) AndréBreton é bastante claro sobre as implicações filosóficas domovimento para que ele não seja reduzido simplesmente auma corrente literária e artística. A "revolução surrealista"reunida sobretudo ao redor de Pierre Naville, de BenjaminPéret, de Louis Aragon, de Philippe Soupault, enuncia oprograma de uma filosofia da transformação: transformar avida e, mais tarde, transformar a política, na medida em queo surrealismo possa colocar-se ao serviço da revolução (co-munista). Sob o apadrinhamento de Novalis, de Lautréamont,de Rimbaud e com a ajuda de Nietzsche e de Freud, trata-se,segundo as próprias palavras de Breton, de acabar com "amaldade, o ódio e a insípida suficiência" da razãointelectualista e da lógica positivista.

Em 1911, o Cavaleiro azul expõe quatro telas expres-

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298 o que é estética?

sionistas de Arnold Schonberg, pintor e compositor; nomesmo ano, Schonberg publica seu Tratado de harmonia;porém, esta obra de técnica musical, que prega o alarga-mento da tonalidade para os 12 tons da escala cromática,inscreve-se em preocupações que vão além de problemaspuramente composicionais. Schónberg sabe que está rom-pendo com quatro séculos de tradição musical e que talruptura provoca uma transformação cultural de grande am-plitude: "Nossa época interroga-se muito. Que encontrouela: o conforto? Ele invade até mesmo o domínio das idéiase o torna confortável demais para nosso bem".

Nessa data, Schonberg ainda ignora quais são as amea-ças que pesam sobre este "conforto".

Prelúdios às guinadas do século :xx

Os artistas das primeiras vanguardas e os da entre-guerrasão de fato, como já o dissemos, os primeiros teóricos desuas próprias obras. Práticos e teóricos de gênio - como sedizia no século precedente - exploram eles as múltiplaspossibilidades oferecidas por suas épocas para a utilizaçãode materiais e de novos processos e para a escolha de for-mas inéditas. Enquanto filósofos, interrogam-se sobre asimplicações sociais, políticas, até mesmo metafísicas, da artemoderna.

Após a passagem da impetuosa vaga dos "isrnos", apartir dos anos 20, a filosofia dita acadêmica, largamenteherdeira de Kant e de Hegel, não pode mais, decentemente,considerar a arte e a estética como simples complementosde um sistema já constituído, relegados, bastante tarde, paraos confins de uma doutrina, atrás da teoria do conhecimen-to, da lógica ou da moral. Demasiados acontecimentos pro-vam o caráter essencial da criação artística: a exacerbação

,II

Marc [imenez 299das rupturas, a procura frenética da novidade, o radicalis-mo, pelo menos teórico, da tábula rasa em relação ao passa-do, o extremismo das posições antiarte, a virulência das re-ações do público, das instituições e do poder político diantedas incessantes provocações. Em suma, a arte torna-se umproblema maior e a estética, domínio outrora periférico, tor-na-se central nas preocupações teóricas.

O início do século XX é marcado, em filosofia, porvárias guinadas significativas: marxismo, fenomenologia,existencialismo, lingüística orientam a reflexão e fazem es-cola, e a época contemporânea sofre ainda, em graus diver-sos, a influência dessas grandes correntes de pensamento.

Porém, uma das mais importantes guinadas é, sem dú-vida, a guinada estética da filosofia na medida em que estasdiversas formas de pensamento, neste ou naquele momentode seu desenvolvimento, encontram a questão da arte e maisgeralmente o problema da cultura e, sobretudo, o de suafinalidade e de seu papel na sociedade moderna.

A filosofia de Nietzsche, particularmente o status privi-legiado que confere à arte e à estética, constitui a espoletadecisiva dessa guinada: evidentemente, a arte é uma ilusãoe uma consolação, mas é também, segundo Nietzsche, aatividade metafísica e filosófica por excelência. Esquemati-zando ao extremo, poderíamos dizer que o mundo deve servisto, doravente, do ponto de vista da arte.

A arte, todavia, mudou; ela não reflete mais, como nopassado, a imagem harmoniosa de um universo sublimadoe colocado sob a transcendência de um belo ideal. Ela sesecularizou num mundo submetido à crescente racionaliza-ção de todas as atividades humanas, endurecido por clivagensideológicas conflitivas e sacudido por revoluções de carátersocial, econômico e político. O engajamento militante dasvanguardas, quer se trate do anarquismo ambíguo do fu-turismo italiano ou da adesão dos surre alistas ao comunis-

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300 o que é estética?mo, não permite mais considerar a modernidade artísticacomo um fenômeno histórico e ideologicamente neutro.

Esta modernidade, todavia, se expõe a interpretaçõescontraditórias: será ela a expressão negativa de um "declíniodo Ocidente" ou então aquela, positiva, de um mundo emprogresso cujas primícias eram constituídas pelas vanguar-das?

É esta uma questão primordial que encerra a estéticada primeira metade do século xx: em controvérsias particu-larmente vivas até a época subseqüente à Segunda GuerraMundial. De um lado, a arte moderna cristaliza o que ofilósofo alemão Max Weber chama "o desencantamento domundo", mas escondendo a esperança, muito freqüentementeutópica, de que a criação artística pode contribuir para ainstauração de um futuro se não idílico, pelo menos melhor.De outro lado, ela polariza as consciências individuais ecoletivas em oposições irredutíveis: a arte moderna e as van-guardas conseguem a proeza inaudita de se exporem aoódio dos fascismos e à execração do stalinismo, regimestotalitários inimigos, unânimes, contudo, em suas condena-ções de uma arte considerada degenerada ou decadente.

Excetuando tais paroxismos, em que a arte é usadapara finalidades de pura e simples propaganda, a querelados Antigos e dos Modernos conhece, no restante das de-mocracias, uma nova versão muito mais áspera do que a doséculo XVII: ela opõe, doravante, reacionários e progressis-tas, burgueses conservadores e revolucionários utopistassobre um fundo de lutas ideológicas, elas próprias expres-sões das tragédias sangrentas da história real. A guinadaestética da filosofia transformou-se assim, rapidamente, emguinada política da estética.

Será preciso esperar o início dos anos 60 para que aquerela político-estética se atenue progressivamente. Se oarrefecimento dos conflitos entre o Leste e o Oeste perma-

~III

II

IMarc jimenez 301

nece potencialmente perigoso, ele traz um enfraquecimentodas exasperações ideológicas. O desenvolvimento dos mei-os de reprodução, as possibilidades de difusão maciva e oacesso de um público cada vez maior a todas as formas daarte moderna e contemporânea modificam em profundida-de a percepção dos interesses da criação artística. Se o finaldos anos 60 vê ressurgir os ideais vanguardistas dos anos20, a vontade de revigorar o projeto de emancipação e detransformação formulado pelos movimentos radicais da épocafracassa diante da ascensão do poder da sociedade de con-sumo e da civilização dos lazeres. O fato de o apogeu docrescimento nas sociedades ocidentais marcar ao mesmotempo seu declínio e coincidir com o fim dos famosos Trin-ta Gloriosos nada muda no desenvolvimento sem prece-dentes das indústrias culturais. A instituição de poderosossistemas de produção e de distribuição de objetos culturaisacelera a integração de todas as formas de uma arte passadae atual no circuito complexo e, às vezes, imprevisível, dapromoção e da valorização econômica.

Esta guinada cultural da estética sobre um fundo decrise leva, a partir dos anos 80, a um reexame crítico dasaquisições da vanguarda e da modernidade. E os fenôme-nos que caracterizamos ainda hoje, sem dúvida apressada-mente, com as denominações "pós-modernas" e um pouconecrológicas de "desaparecimento das vanguardas", "morteda arte" e "fim da crítica", obrigam a estética a aceitar novosdesafios.

Mais do que nunca cabe a ela demonstrar a falsidadedeste balanço e desempenhar seu papel: ajudar na interpre-tação das novas obras, dissipar as zonas de sombra e deincompreensão que obscurecem as relações entre o públicoe a arte atual, e acompanhar a aventura imprevisível, sem-pre inédita e intempestiva, da criação artística.

Porém, antes de nos interrogarmos sobre o presente e

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302 o que é estética?

sobre o futuro da estética, precisamos voltar mais detalha-damente às guinadas do século XX evocadas acima. Ultra-passados ou não - e de fato não acreditamos que o estejamdefinitivamente - os debates levantados pela confrontaçãoentre a arte moderna e a filosofia da arte deixaram de fatotraços profundos na maneira de perceber as relações que ohomem das sociedades pós-modernas mantém com as dife-rentes formas de expressão da sensibilidade e do imaginá-rio.

Quarta Parte

As GUINADAS 00 SÉaJLO XX

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I

A GUINADA POLÍTICA DA ESTÉTICA

As grandes filosofias que se constituem nos anos 30 eque ainda hoje têm influência na vida intelectual, tradu-zem bastante bem o clima cultural criado pelo nascimentoda arte moderna e pela irrupção dos movimentos vanguar-distas. As reflexões de pensadores como Georg Lukács,Martin Heidegger, Ernst Bloch, Walter Benjamin, HerbertMarcuse e Theodor Adorno, desenvolvem-se no seio deum contexto histórico particularmente traumatizante logoapós a Primeira Guerra Mundial: revolução soviética, ins-tauração de um partido marxista-leninísta, a subida do fas-cismo na Europa, revoltas operárias e movimentos sociais,conseqüências das dificuldades econômicas e do aumentodo desemprego, etc.

Embora adotando caminhos diferentes, e para algunsdentre eles, irremediavelmente antagonistas, todos se abas-tecem nas mesmas fontes filosóficas, sobretudo as do idea-lismo e do romantismo alemães: Kant, Hegel, Fichte,Schopenhauer. Todos lêem Marx, Nietzsche, Freud e Husserl;todos são afetados pelos temas do declínio, da decadência,das crises que concernem tanto às ciências, ao conhecimen-

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to, aos valores tradicionais e às antigas certezas, quanto àsartes e à cultura.

O entusiasmo e o otimismo nos quais se banhava aburguesia antes da catástrofe cederam o lugar à inquietaçãodo presente e à angústia do futuro. Numerosos são os filó-sofos que fazem um balanço pessimista da civilização oci-dental; não hesitam em datar o início da decadência já naorigem desta própria civilização, após a famosa idade deouro da Grécia do século V a.Ci; é o caso, sobretudo, deLukács e de Heidegger. Benjamin, Marcuse e Adorno incri-minam uma perversão da razão nascida a partir do séculodas Luzes, porém encontram os primeiros sintomas da "do-ença" inerente, segundo eles, à racionalidade, em Homero.

Este diagnóstico amargo e desencantado sobre o esta-do do mundo traz, pelo menos, duas conseqüências. De umlado, incita alguns pensadores a aderir às ideologias quedão novamente esperança ao indivíduo desarvorado e pro-metem um futuro melhor para a coletividade: Heidegger vêna "grandeza" interna do movimento nacional-socialista umapossibilidade de salvação para o povo alemão, enquantopara Lukács somente a filosofia marxista da história deter-mina um destino possível para a humanidade; Ernst Blochespera que o comunismo possa permitir a concretização dasesperanças utópicas contidas na arte; quanto a Benjamin,Marcuse e Adorno, influenciados pela concepção marxistada história, mas violentamente hostis ao marxismo dogmáticoassim como às suas realizações históricas e políticas espe-ram, sem ter muitas esperanças, uma convulsão das estrutu-ras da sociedade capitalista capaz de pôr um termo à aliena-ção das formas de vida contemporâneas.

De outro lado, esse mesmo diagnóstico do declínio dacivilização traz avaliações diferenciadas quanto à significa-ção da arte moderna e o papel das vanguardas. Assinaláva-mos, precedentemente, a polarização das atitudes que ca-

Marc jimenez 307racterizam a guinada política da estética: ou consideramos aera moderna e o deslocamento das formas tradicionais comoum reflexo da decadência da sociedade ocidental ou entãovemos neles um modo de expressão privilegiada graças aoqual os artistas adotam uma posição crítica diante da reali-dade e denunciam precisamente o que aconteceu com omundo na esperança de transformá-Io.

Este é, em suas grandes linhas, o interesse de um deba-te estético repetitivo que se prolonga paradoxalmente até asoleira dos anos 80, exatamente quando a evolução da artecontemporânea, doravante indiferente ao problema da for-ma e do conteúdo e gozando de uma completa autonomia,tornou caducos os argumentos dos principais protagonistasdos anos 30.

Todavia, o caráter excessivo das posições adotadas naépoca entre os que recusam a arte moderna, particularmen-te Lukács e Heidegger, e seus partidários convictos e, àsvezes encarniçados, sobretudo Benjamin, Marcuse e Ador-no, permite esclarecer certas formas de incompreensão oude rejeição que atingem a arte atual. O contexto é, evidente-mente, diferente; ele é, pelo menos na aparência, menospolítico e menos ideológico. Mas todos estão em condiçõesde constatar a desestabilização da teoria estética diante dodesenvolvimento sem precedentes de uma cultura planetá-ria: o questionamento da modernidade, a exigência de umavolta aos valores clássicos, a denúncia do "não importa oquê" e a dissolução -dos critérios de julgamento desorientamtanto a crítica de arte quanto o público.

Se é claro que as antigas controvérsias teóricas não dãorespostas prontas a estes problemas, elas ajudam a compre-ender suas gêneses e a melhor apreender por que eles secolocam em nossos dias com uma tal acuidade.

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Georg Lukács e a questão do realismo

Lembramos que, para Hegel, a arte grega deve sua qua-lidade de modelo inigualável à adequação perfeita entre aforma e o conteúdo das obras. Quer se trate da estatuária ouda tragédia antiga, esta arte representa a realização históricado ideal clássico, em outras palavras, segundo Hegel, a per-feição por excelência.

Vimos a atitude, muito hegeliana, de Marx: faz sua aidéia da arte grega como modelo insuperável e se espantapor formas artísticas surgidas num estágio de evolução soci-al arcaico poderem ainda ser fontes de prazer e de gozoestético. Esta questão, Marx não a resolve; ela permaneceem suspenso como um enigma que tenha de constituir parasempre uma espécie de mistério da arte.

Já a partir de seus primeiros escritos, é deste problemaque Georg Lukács (1885-1971), aquele que foi chamado o"Marx da estética" , se ocupa: como conciliar o valor eternoda arte com seu caráter histórico? Como normas estéticas,nascidas num determinado lugar, numa dada época e, por-tanto, perecíveis ao longo da história podem cessar de serhistóricas e chegar a impor-se ao longo dos séculos, atémesmo dos milênios, como valores supostamente eternos?

Lukács esboça um início de resposta em A alma e asformas (1910). O tema central deste ensaio diz respeito àrelação entre a alma humana e o absoluto e a possibilidadede o indivíduo dar um sentido essencial à própria vida. Ora,a vida atual, alienante, desiludida, desprovida de ideal, éinautêntica. Não é mais possível dar-lhe uma forma, tantona realidade, na experiência vivida quanto na literatura, emais geralmente, na arte. O artista não é aquele que elaborae põe em forma os dados brutos da vida empírica a fim desugerir uma vida, evidentemente ilusória, porém mais es-sencial do que a vida real?

Marc jimenez 309A arte, a literatura, por exemplo, a epopéia ou a tragé-

dia não visam a reconciliar, no seio de uma forma dramáti-ca, a vida concreta, empírica, sensível - a vida - e as essên-cias, os valores últimos, o absoluto - a vida? Mas numaexistência doravante desprovida de qualquer transcendência,privada de Deus e dos deuses, e que não evoca mais ostempos "bem-aventurados" da Grécia antiga, que forma _pergunta Lukács - é susceptível de acolher e de exprimiresta trágica separação entre a vida concreta e a aspiração doabsoluto? Não seria o ensaio, forma intermediária entre aliteratura e a filosofia, que não é nem poesia, por demaisligada à sensibilidade, nem o tratado, por demais frio, abs-trato e por demais dependente dos conceitos?

De fato, se considerarmos os grandes ensaístas do pas-sado, Montaigne, Pascal e Kierkegaard, vemos que paraLukács a forma literária do ensaio, autônomo, fragmentárioe aforístico, revelou-se particularmente adequado à expres-são da visão trágica dessas grandes consciências solitárias eautênticas, angustiadas diante da vida e da realidade domundo. É claro que o ensaio não resolve nada, ele não dáum ponto de vista global sobre o sentido da existência ele,constata, mas evidencia indiretamente uma forte e invasoranostalgia da totalidade perdida. Após o declínio da epopéiahomérica, resta a forma que recolhe exatamente a tragédiado divórcio entre a vida e a vida, entre o essencial e oinessencial, entre o autêntico e o inautêntico; temos quasevontade de falar da tragédia que é a separação entre o mun-do das Idéias e sua pálida copia na realidade, e de evocar ocorte platônico entre o inteligível e o sensível, na medidaem que o próprio Lukács considera Platão como um dosprimeiros autores ensaístas conhecidos.

Lukács detém assim um elemento de resposta para ainterrogação de Marx: a arte que perdura a despeito da his-tória é aquela que, sempre, uma vez esquecida a felicidade

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da Grécia original, põe em forma a tragédia fundamental daexistência humana. Esta forma não é uma norma eterna,mas essencial: ela traduz o drama permanente e atemporaldo indivíduo ao tomar consciência de que a vida é "umaanarquia do claro-escuro", de que "nela, nada se realiza to-talmente" e de que "nunca alguma coisa vai até seu termo".

Será o pressentimento de uma catástrofe iminente queimpele Lukács a evidenciar em 1911 um pessimismo e umaconsciência da morte que parecem responder como um ecoàs primeiras provocações vanguardistas: "A verdadeira vidaé sempre irreal, sempre impossível para a vida empírica.Alguma coisa resplandece, estremece, resplandecendo maisalém de seus caminhos percorridos; alguma coisa que per-turba e seduz, alguma coisa de perigoso e de surpreenden-te, o acaso, o grande instante, o milagre. Um enriquecimen-to e uma perturbação: isto não pode durar, não seria possí-vel suportá-lo, não se poderia viver nas alturas - nas alturasde sua própria vida, das possibilidades últimas e próprias.Deve-se recair novamente na apatia, deve-se renegar a vidapara poder viver'?'

Entre 1914 e 1915, a catástrofe cessou de ser uma vir-tualidade, e Lukács termina a redação de sua grande obra,uma das mais conhecidas, em plena guerra, A teoria do ro-mance. O mito original da Grécia constitui a tela de fundosobre a qual Lukács expõe a evolução histórica e filosóficadas grandes formas épicas. Esta Grécia é a da epopéia, dostempos bem-aventurados que podiam "ler no céu estreladoo mapa dos caminhos que lhes são abertos e que eles de-vem seguir".

Mas esta Grécia é também a do platonismo, do pensa-

'Georg Lukács, L'âme et les formes, Paris: Gallimard, 1974 tradução, notasintrodutórias e posfácio de Guy Haarscher p.247.

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i,I

Marc jimenez 311mento "mais profundamente antigrego", isto é, o dos iníciosda filosofia. Ora, a filosofia é sempre "o sintoma de umafalha essencial entre o interior e o exterior, significativa deuma diferença essencial entre o eu e o mundo, de uma não-adequação entre a alma e a açào"."

Para Lukács, a época presente é mais do que nunca ada filosofia, isto é, do esquecimento das origens, da essên-cia; tempo de nostalgia em que "o céu estrelado de Kantsomente brilha ainda na escura noite do puro conhecimen-to" onde ele cessa de "iluminar o caminho de cada homem";e "no mundo novo, ser homem é ser só", precisa Lukâcs.' Aquestão é saber que tipo de literatura, que arte, que formaestética convêm doravante a esta civilização ocidental dila-cerada, supondo que ainda lhe seja possível dar um sentidoao seu destino.

Em A alma e as formas, Lukács privilegia o ensaio, masa forma deste ensaio é limitada; ela não é senão a expressãoda recusa das consciências solitárias aspirando em vão àessência. Ora, a época moderna exige expressões literáriascapazes de corresponder a atitudes humanas coerentes esuscetíveis de exprimir a totalidade "extensiva" da vida. En-tre os gregos, a epopéia homérica desempenhava perfeita-mente este papel; ela dava conta dessa totalidade, com muitaevidência e naturalidade; ela devolvia a imagem idílica deuma harmonia entre o homem e a natureza, entre as criatu-ras e os deuses, entre a vida terrena e a transcendência doalém.

Mas nada disso é mais possível. Lukács recebe as liçõesde Hegel e de Marx: a epopéia (homérica) - assim como a

I./

'Georg Lukács, Ia tbéorie du roman, Paris: Gallimard, TeI, 1990, trad. jeanClairvoye, p.20.

'lbid.,p.28.

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312 o que é estética?tragédia de tipo clássico - é uma forma literária própria dainfância e da juventude da humanidade e, portanto, de umaépoca passada. Hoje, somente convém uma outra grandeforma épica, isto é, o romance, "forma literária da maturida-de viril". Por que o romance? Porque, diferentemente doensaio, que atesta a impossibilidade de aceder à reconcilia-ção e à totalidade, o romance repousa sobre a ação de umherói, por exemplo um louco ou um criminoso, capaz deencarnar e de assumir os aspectos mais contraditórios daexistência, ou seja, a totalidade da vida. Assim, Lukács defi-ne o herói romanesco como "problemático"; este herói é, omais das vezes, a projeção do próprio romancista em suaobra, prisioneiro do mundo social e cultural - mundo "con-vencional" e reificado - porém, em busca, permanente edesesperada, do absoluto e de valores autênticos.

Destinada a servir de introdução a um estudo sobreDostoievski, A teoria do romance já inicia uma guinada de-cisiva no itinerário intelectual e filosófico de Lukács. A pro-cura de formas literárias capazes de descrever a decadênciado mundo ocidental contemporâneo e particularmente dasociedade burguesa significa que o filósofo abandona a re-ferência ao modelo de uma Grécia mítica, muito afastadadas realidades presentes, como se houvesse, de certo modo,um esgotamento da nostalgia em relação a um universo ir-remediavelmente perdido. Porém, imergir na história e nassociedades contemporâneas através de uma forma roma-nesca e graças à intermediação de um herói confrontadocom situações que o ultrapassam, significa considerar que oindivíduo não é mais o único dono de seu destino: estepertence doravante à comunidade da qual depende e a umahistória, precisamente, cujo curso é importante transformar.

A teoria do romance não vai muito além desta perspec-tiva. Ela contenta-se em evocá-Ia, apoiando-se em Tolstoi eDostoievski. Lukács coloca simplesmente a questão que

•'II

I

Marc jimenez 313consiste em saber se o romance permanece a forma ade-quada para a era da "perfeita culpabilidade"; será esta formabem representativa de um mundo lacerado que reduz todasas coisas humanas, inclusive o homem, ao estado de sim-ples objetos, sujeitos a interesses políticos e econômicos?

Ou já deveremos pressentir, como em Tolstoi, a emer-gência de uma "nova época da história mundial"? No autorde Anna Karenina, esta nova era aparece somente emfiligrana, simples esboço abstrato e nostálgico. A perspecti-va de uma transformação é mais nítida no autor de Crime ecastigo, onde os contornos do mundo novo são traçados demaneira objetiva. É interessante ler esta bela passagem queencerra A teoria do romance: "[Dostoievskil pertence aomundo novo e somente a análise formal de suas obras po-derá mostrar se ele já é o Homero ou o Dante deste mun-do.l. ...J se ele é apenas um início ou já é uma realização. E ésomente então que a interpretação histórico-filosófica terá atarefa de dizer se estamos efetivamente no ponto de aban-donar o estado de perfeita culpabilidade ou se simples es-peranças anunciam o início de uma nova era - sinais de umfuturo ainda tão fraco que a força estéril do que se limita aexistir pode ainda aniquilá-lo com uma simples brincadei-ra.:"

Em 1918, Georg Lukács adere ao recente Partido Co-munista húngaro, dois anos antes da publicação de A teoriado romance. Em A alma e as formas, Lukács apaixonara-sepelo gesto de Kierkegaard, rompendo seu noivado comRegine Olsen, preferindo simular a vida de um sedutor, ávi-do de gozos sensuais a viver de maneira inautêntica no en-gano e na mentira. Gesto existencial, decisivo, graças aoqual o filósofo dava um sentido definitivo à sua vida, for-

'Ibid. p.lSS.

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mava-a na esperança de aceder ao absoluto. Lukács suspei-tava que faltasse autenticidade no empreendimento deKierkegaard: uma decisão brutal, uma escolha tão categóri-ca não podiam dissipar todos os equívocos.

O gesto de adesão de Lukács ao marxismo, concretiza-do pela publicação, em 1923, de História e consciência declasse, é incontestavelmente um gesto autêntico, e todavia olivro faz pesar sobre a obra ulterior do filósofo um equívocoque ele mesmo nunca conseguirá dissipar. Não é nossa in-tenção expor ou comentar, mesmo sumariamente, as tesespolíticas e filosóficas dessa obra. Condenado pela ortodoxiacomunista, que julga o texto por demais idealista, História econsciência de classe incita Lukács à autocrítica sem nuncaevitar a armadilha da ambigüidade que lhe vale a acusaçãode revisionismo no Leste e de stalinismo dogmático no Oes-te.

O que nos interessa prioritariamente aqui é a idéia deque História e consciência de classe corresponde a uma gui-nada política espetacular no pensamento estético de Lukács.A esperança de uma volta à vida autêntica repousa doravantena revolução, no proletariado, na história, todos vistos comofatores de abertura do horizonte de uma reconciliação entreo homem e o mundo, entre os indivíduos e a sociedade.Talvez não seja exagerado dizer que a revolução proletáriarealiza, doravante, para Lukács, as exigências da Idéiahegeliana e que a sociedade desempenha o papel de princí-pio transcendente cuja ausência é tão dolorosamente senti-da em A alma e as formas e na Teoria do romance. Portan-to, somente um caminho se abre para a arte: não o dasvanguardas ocidentais que se comprazem na expressão dadegradação do capitalismo e descrevem de maneira aflitivaa angústia do indivíduo; não o do romantismo revolucioná-rio que se satisfaz beatificamente com o retrato idílico dosheróis proletários; não o do realismo socialista, escravizado

II

Marcjimenez 315pela política do Partido, realismo vulgar enaltecido a partirde 1934 por Stalin e jdanov, mas o de um realismo bemcompreendido na linha do grande realismo crítico do sécu-lo XIX. A arte tem como tarefa realizar a imagem da realida-de tal qual ela se reflete na consciência dos homens. E quandoestes homens imaginam uma realidade transformada pelarevolução, a arte deve tender para uma reprodução que re-flita fielmente o real.

Esta teoria do reflexo, em Lukács, não significa que sedeva copiar minuciosamente a realidade para chegar a umafiguração ingênua e esquemática segundo as concepçõesestreitas da doutrina oficial do Partido. A realidade refletidanão é um clíchê fotográfico; é uma realidade transfiguradapela consciência dos homens e alimentada por sua imagina-ção. O artista autenticamente realista constrói a realidade apartir de um detalhe, de um elemento típico, particular, parachegar ao essencial, à totalidade. Se Zola, ao contrário deWalter Scott, Balzac ou Thomas Mann, não recebe a aprova-ção de Lukács é porque seu naturalismo dos detalhes e dosacontecimentos às vezes sórdidos da vida cotidiana lem-bra, sobretudo uma reportagem social; estes "detalhe;" per-manecem abstratos, eles não são reintegrados na totalidadede uma obra coerente.

Resta, portanto, a espinhosa questão do formalismo,termo pejorativo sob o qual Lukács reúne o conjunto dasexperimentações formais da arte moderna e das vanguardasexpressionistas, dadaístas ou surrealistas.

É claro que o privilégio conferido por Lukács à Idéiahegeliana, ao conteúdo determinado pelo ideal revolucio-nário, não o leva a defender uma arte considerada como oreflexo da decadência e da desintegração do mundo mo-derno. Já em 1934 Lukács estabelece a lista dos formalistasdecadentes que ele avalia pela medida de um realismobalzaquiano erigído em modelo do realismo crítico. Ele rei-

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316 o que é estética?tera suas censuras vinte anos mais tarde em A significaçãopresente do realismo crítico, um mês antes da intervençãodas tropas soviéticas em Budapeste." Se denuncia o"dogmatismo" de Stalin, ele renova sua condenação da van-guarda, símbolo do declínio da burguesia capitalista e con-tinua a defender o ideal marxista-Ieninista.

A descrição pessimista e brilhante de New York na obrado escritor americano John Dos Passos, o autor de ManhattanTransfert, não poderia responder aos seus critérios "realis-tas" assim como não o poderiam a "alegoria do nada" nouniverso absurdo, opressivo e fantasmagórico das novelasde Kafka, a ausência de perspectiva histórica nos romancesde Robert Musil ou então o "esquematismo" abstrato daspeças de Samuel Beckett. À técnica da livre associação usa-da por James Joyce nos monólogos de Ulisses,que ele con-sidera estetizante e artificial, opõe a "composição autentica-mente ética" dos romances de Thomas Mann. Ele reformulasuas censuras contra o expressionismo e contra o formalismodas peças de Bertolt Brecht.

Estas posições conservadoras são encontradas na pin-tura: elas se detêm nos impressionistas e em Cézanne, erecusam Matisse e Picasso: em música, rejeitam oexpressionismo de Arnold Schonberg, e mais geralmente ododecafonismo da Escola de Viena.

As revelações dos expurgos stalinistas, a leitura deSoljenitsyne e a destalinização não modificam suas convic-ções marxistas. Lukács continua persuadido da existência

SEm 1956 Lukács, então ministro da Cultura, participa da revolução húngara.Preso e deportado por alguns meses para a Romênia, é reabilitado ~or janosKadar em 1957. Nos anos 60, Lukács torna-se o modelo intelectual da Escola deBudapeste. Os trabalhos da escola contribuem grandemente para sola~ar aideologia stalinísta, seus representantes militam ativamente pela ema~Clpaçao daHungria e entreabrem assim o caminho para um socialismo democrático.

Marc jimenez 317de um caminho socialista, a de um marxismo ocidental, nãodogmático e não autoritário, que repouse sobre baseshumanistas. No máximo, tais acontecimentos o incitam, emsua grande obra A particularidade da estética (Die Eigenartdes Aesthetischen) publicada em 1963,6 a nuançar a severi-dade de seus julgamentos anteriores sobre Kafka, Brecht,Ionesco ou Bartok. Porém, sua filosofia da arte permaneceresolutamente baseada nas noções aristotélicas de mimesee de catarse; uma catarse que ele considera como a catego-ria fundamental da estética. Assim, não é surpreendente ofato de só receberem sua aprovação as obras que não acei-tam nem o caos, nem a incoerência, mesmo que sejam am-bos a expressão da desordem do mundo.

Falávamos, acima, do equívoco do gesto de Lukács:alusão à sua adesão ao marxismo e à guinada política desua estética no início dos anos 20, em pleno períodovanguardista.

Um estranho paradoxo paira, de fato, sobre esta obraque foi uma das primeiras do século XX a perceber as rup-turas da modernidade. As obras ditas de juventude, A almae as formas, a Estética de Heidelberg 0912-1914), A teoriado romance, constituem penetrantes e dolorosas meditações,"sobre as dissonâncias do mundo atual, sobre o conceito denovidade, para finalmente desconhecer o significado aomesmo tempo artístico e político da arte moderna.

Lukács não admitiu a idéia de que os experimentosformais possam ter o mesmo sentido de seu combate e vi-sam elas também a denunciar e criticar, através de outrosmeios não "rniméticos" o "desamparo", isto é, a sorte do

6Mas ainda não traduzida em francês!

7A alma e asformas é dedicado a um amor de juventude de Lukács, Irma Seidler,que se suicidou.

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homem moderno, "atirado" num mundo desencantado edesumanizado. É contudo esta vibrante sensibilidade comas dissonâncias e as desfigurações de um universo mutiladoque influencia profundamente, nos anos 20, a orientaçãofilosófica e estética de pensadores como Walter Benjamin eTheodor Adorno.

Heidegger e o retorno às origens

Os escritos de Martin Heidegger (1889-1976) consagra-dos à arte, particularmente à poesia, trazem um outro exem-plo da guinada "política" da estética na primeira metade doséculo xx. Traduzem eles, igualmente, esta polarização dasatitudes e das tomadas de posição negativas contra a artemoderna que encontramos em Georg Lukács.

Mais além das oposições políticas e dos antagonismosideológicos, a marcha intelectual dos dois pensadores apre-senta numerosas semelhanças. Ambos, herdeiros dafenomenologia, representam duas grandes correntes da fi-losofia moderna, o materialismo dialético, para Lukács, e oexistencialismo para Heidegger. Ambos se aproximaram dasou aderiram às duas grandes ideologias totalitárias do sécu-lo, ao stalinismo e ao hitlerismo. Cada um teve o cuidado deconservar uma postura propriamente filosófica, adotandouma distância prudente - e, portanto, equívoca - em rela-ção às realizações políticas concretas dessas ideologias.

Antes de seus pensamentos tomarem caminhos diver-gentes, suas concepções sobre a filosofia da história e seusdiagnósticos sobre sua época procedem de uma mesmaanálise. Lembramos o profundo pessimismo que pesa sobreas primeiras obras de Lukács, A alma e as formas e A teoriado romance: uma "perfeita culpabilidade" reina no mundoem declínio, o homem vagueia por caminhos não mais ilu-

Marc jimenez 319minados pelo céu estrelado, o universo da dissonância estáprivado de Deus e de qualquer transcendência, os temposbem-aventurados terminaram e o homem não pode maisaceder ao essencial, à harmonia e à totalidade. Somente omarxismo pode abrir ao homem o horizonte de um mundonovo.

Esta descrição aflitiva da realidade existente, do "mun-do vivido", segundo a expressão Husserl, é encontrada qua-se idêntica em Heidegger. O "mundo vivido" não é outracoisa a não ser o meio ambiente dominado pela ciência epela teoria, requisitado pela técnica e pela industrialização.Uma tal decadência resulta de um longo processo que re-monta não à noite dos tempos, mas à Grécia socrática eplatônica. Ela está ligada à emergência progressiva damodernidade e acelera-se ao longo de etapas decisivas:cartesianismo, espírito das Luzes, cientismo e positivismo.

Evidentemente, para Heidegger, esta evolução nãocorresponde a um progresso, mas a uma lenta e irresistívelqueda na modernidade, visto que é acompanhada pelaemancipação progressiva do sujeito, pelo triunfo da razão epela vitória da racionalidade em seu domínio irreversível danatureza. A idéia de que uma espécie de fatalidade pesasobre o pensamento ocidental evoca seguramente o niilismonietzscheano, ponto de chegada ao qual conduz a perda dosentido metafísico.

A questão ontológica, a do Ser doravante perdido, es-quecido pelo homem, está no centro da filosofia heídeg-geriana. A emergência da subjetividade, a autonornizaçãoprogressiva do indivíduo, que nos apareceram como fenô-menos históricos be~éficos em estética, são consideradaspor Heidegger como sinais patentes do declínio: o homemnão somente erradicou os mitos, liquidou a teologia, mascortou o caminho que o conduzia à essência das coisas,inclusive à de sua própria essência. O resultado, ou seja, a

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maldição dos tempos atuais, é o desamparo, o homem lan-çado no mundo, condenado a uma vida inautêntica(uneigentlich) num mundo que se tornou ininteligível, queo entrega, de pés e mãos amarrados, à ciência, à lógica, aoutilitarismo, às exigências de uma razão coercitiva. O sujeitoalienado, como diz Lukács, torna-se para Heidegger, umser-aí (Dasein), imerso numa realidade, um ente (das Seiende)hostil, esquecido da totalidade, isto é, separado do Ser (dasSein)

Compreende-se, então, a angústia do homem, prisio-neiro de um mundo inóspito, habitado permanentementepelo medo, preocupado com a inquietação que representaa perda do Ser. Mas esta situação é paradoxal, pois a angús-tia, o medo e a inquietação são todos provas de sua existên-cia. Provas negativas, dolorosas, mas que atestam, exata-mente por isto, a aspiração permanente do homem, doDasein, ao Ser.

Que probabilidades tem o homem de recuperar suaautenticidade? Na verdade, elas são bem pequenas. Elas re-pousam em sua capacidade de continuar a filosofar, ou an-tes, em sua decisão de prosseguir sua meditação metafísica.Escolha paliativa, que lhe evita soçobrar no tédio secretadopermanentemente pelo ente, pela realidade. Escolha provi-sória, visto que, de qualquer maneira, somente a morte res-titui o ser-aí, o Dasein, em sua integralidade e em sua au-tenticidade.

Existe, contudo, uma outra possibilidade oferecida aeste ser-para-a-morte, consagrado a um destino funesto eimprevisível, consciente de uma finitude que confere senti-do e autenticidade (tardial) à sua existência; esta possibili-dade é a que é dada pela palavra poética "habitar poetica-mente nesta terra".

Heidegger cita freqüentemente esta frase do poetaHolderlin, criador da palavra poética por excelência. Em

Marc]imenez 321sua opinião, Hólderlin possui este poder de nomear os deu-ses e "todas as coisas no que elas são"; em outras palavras,nomeia sua essência e é assim que a poesia é "fundação doSer pela palavra".

O dizer poético tem a virtude de escapar à realidade, aeste ente oculto, dissimulado e desfigurado pela técnica; eleacede à verdade, portanto ao Ser. Somente o poeta, cuja"vocação é a volta" permite voltar "à proximidade da ori-gem". Sendo a "origem", com a palavra "volta", um dos con-ceitos mais importantes da filosofia e da estéticaheideggeriana, tentemos elucidar o que quer dizer, aqui, ofilósofo.

O único texto em que Heidegger expõe realmente seusconceitos estéticos intitula-se Origem da obra de arte. A obraé consagrada principalmente à criação poética, a partir deuma leitura de Hólderlin. A escolha do autor dos Hinos, deEmpédocles, de Hiperião evidentemente nada deve ao aca-so. Procuremos lembrar o clima intelectual dos primeirosromânticos alemães, o desejo comum a Novalis, Goethe,Schelling de extrair suas fontes de inspiração na Grécia an-tiga! Tratava-se de restaurar a literatura e a cultura alemãs ede estabelecer novas regras da arte poética alemã. Ora, nin-guém cantou melhor do que Hôlderlin o desespero diantedas ruínas de Atenas, esse paraíso perdido, pátria de Platãoe de Diotima, "filha do céu", heroína do Banquete, mas,sobretudo, amor infeliz do poeta.

Hôlderlin é tarribém aquele que sonha com uma recon-ciliação entre a Grécia e a Hespéria, isto é, não somente aItália (para os gregos antigos), mas também seu país natal, aSuábia, a Alemanha, e todo o Ocidente. O importante, naviagem temporal que conduz ao coração da Grécia, de seusmitos, de seus deuses e de sua arte, e que nos aproxima daorigem é menos a ida do que a volta. Heidegger precisa:"Quando pensa na viagem ao exterior, como viagem, essen-

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cialmente, é no lugar de origem enquanto essencialmentelugar que o pensamento fiel pensa"."

Volta, portanto, ao país natal, à Germânia. Se Holderlinaparece aos olhos de Heidegger como o arauto da almagermânica e de suas aspirações é porque celebra a volta àterra dos antepassados, ao solo alemão, após essa viagemàs proximidades do Ser. Porém, na interpretação de Hei-degger, as fronteiras da Hespéria encolheram: não se tratamais do Ocidente confrontado ao Oriente ou ao Sul, massomente da nação alemã à procura de um destino histórico.Os poetas como Holderlin fundam a habitação original, a"morada", diz Heidegger; mas acrescenta: "Este sobreviven-te prepara o lugar capaz de história, onde a humanidadealemã deve antes aprender a estar em seu país a fim de que,quando o tempo tiver chegado, ela possa permanecer nummomento de equilíbrio do destino"."

A arte, principalmente a poesia, permite assim que opovo alemão cumpra seu destino histórico. E esta arte deveestar o mais perto possível da origem; deve remontar à épo-ca que precede a "modernidade" platônica, aos pré-socráticos, antes mesmo do início da queda da metafísica.

Esta estética do futuro, que sonha com uma arte neo-clássica e pré-socrática, não reserva nenhum lugar para aarte moderna, nascida com a filosofia, corrompida pela téc-nica e, além disso, mundializada, ou seja, "desgermanizada".Abandonando o solo alemão, as obras de arte modernas eas produções vanguardistas perderam seu contato privilegia-do com o "popular" e o "nacional". Elas assinaram um con-trato funesto com a técnica e a ciência universais que, sozi-

"Martin Heidegger, Approcbe de Hólderlin, Paris: Gallinard, 1962, trad. H. Corbin,M. Degny, F. Fédrin, J. Launay, p. 192.

"Ibid.

Marc jimenez 323nhas hoje, regulamentam condições inóspitas da estada dohomem na terra.

Partimos das semelhanças entre o pensamento da ori-gem em Heidegger e os fundamentos da filosofia da arte emLukács. O "Marx da estética" também colhe nas fontes daGrécia antiga. Porém, temos de concluir agora, partindo dediferenças cujas irredutibilidades são evidentes.

A guinada marxista de Lukács destrói o sonho de umavolta a uma Grécia clássica e o da ressurreição do idealantigo no mundo da dissonância. A obra "realista" deve res-ponder aos critérios da totalidade e da coerência formal,mas a forma traz sempre os estigmas do sofrimento do indi-víduo, da pessoa, no horizonte de uma vitória coletiva dasforças revolucionárias.

O horizonte estético de Heidegger permanece domina-do pela repetição: repetição excepcional, por parte de al-guns homens de elite, poetas, filósofos, homens de Estado,marcados pelo sinete de um destino fora do comum e capa-zes de reproduzir, durante um certo tempo, o que foi vividooutrora, na Grécia de Heráclito, dois mil e quinhentos anosantes da nossa era.

Por várias vezes, ao longo da vida, Heidegger confes-sa-se confuso diante da questão da arte moderna. Mas seusleitores correm o risco, eles também, de permanecerem per-plexos diante da inquietante eventualidade para a qual elenos prepara: a de um renascimento inopinado de uma Gréciaarcaica e mítica que nunca existiu a não ser em seus fantas-mas.

A vertente tragicamente caricatural da oposição entreLukács e Heidegger é o afrontamento entre as duas ideolo-gias totalitárias que mergulharam o século XX no horror.Mas abandona-se o campo da especulação teórica para en-trar no da história real. As doutrinas políticas não hesitamem requisicionar os sistemas filosóficos que melhor servem

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324 o que é estética?

seus interesses. Foi o caso do stalinismo e do nazismo. Lukácse Heidegger não escaparam à regra; sejam quais forem, ali-ás, o grau de seus engajamentos pessoais e suas responsabi-lidades de intelectuais implicados nos conflitos de seu tempo.

Mas este antagonismo entre os dois filósofos tem tam-bém um lado paradoxal, isto é, sua recusa comum da artemoderna e sua condenação dos movimentos de vanguarda.Paradoxo, todavia, coerente em relação aos conflitos ideo-lógicos de sua época: a arte moderna não foi classificada nacategoria de arte decadente pelo stalinismo e na de artedegenerada pelo nazismo? E este paradoxo perdura após aSegunda Guerra Mundial, no momento em que renasce, jáem 1945, uma segunda vaga vanguardista ainda traumatizadapela lembrança das recentes caças às bruxas desencadeadaspelos totalitarismos contra os artistas modernos.

Todavia, não se trata mais de um afrontamento entre asnostalgias da Antigüidade ou do Ser e os promotores deuma arte do futuro. O aparecimento de novas formas dearte, o emprego de técnicas avançadas, a influência da esté-tica industrial, o desenvolvimento de um mercado de arteinternacional, a ação das mídias na reprodução e na difusãoexigem, como o assinalamos no capítulo precedente, umaredefinição dos interesses da arte.

Falar de interesse cultural e tratar do aspecto educativo,pedagógico e econômico da arte, seja ela passada, modernaou contemporânea, é hoje uma coisa comum; desde os anos70, este interesse, que se tornou predominante no quadroda democratização da cultura, relegou para as velharias osafrontamentos entre "realistas" e "formalistas" - que, contu-do, eram fortes até a soleira dos anos 60 - assim como ascontrovérsias intermináveis que foram a sensação da fasepós-68, entre a arte burguesa "conservadora" e o radicalis-mo vanguardista, freqüentemente utópico.

Porém, se este interesse cultural é objeto de uma preo-

III

, I

Marc jimenez 325cupação relativamente recente, sua importância não escapaà atenção dos pensadores que, no período de entre as duasguerras, tomam posição em favor da arte moderna. Paranumerosos intelectuais e teóricos europeus, promover a no-vidade e as experiências formais vanguardistas significa lutapela liberdade da arte e pela autonomia da esfera estética.Significa também reagir contra o pró brio que a modernidadeartística sofre por parte tanto dos extremistas políticos quantodo conformismo burguês.

Significa, enfim, para além dos conflitos ideológicos, tentardefinir as relações entre a arte moderna e uma sociedadeocidental em curso de profunda mutação social, econômica,científica, e tecnológica, que sonha com democracia no mo-mento em que esta última é cada vez mais ameaçada.

Estas preocupações unem-se a temas já encontradosem Marx, em Nietzsche, e em Freud. Elas traduzem as espe-ranças e as inquietações de uma época que se interrogasobre o sentido da modernidade e sobre a própria significa-ção do termo "moderno". Esperança em Marx, que imagina-va uma sociedade futura comunista, na qual não haveriamais artistas, porque todo mundo poderia dedicar-se livre-mente à arte; inquietação em Nietzsche transformada emniilismo diante do declínio do ocidente; angústia em Freuddiante do mal-estar de uma cultura prestes a se autodestruir.

As obras de Walter Benjamin (1892-1940), de HerbertMarcuse (1898-1979) e de Theodor Adorno (1903-1969) sãotestemunhos destes sentimentos contraditórios e ambíguosque lhes são inspirados pela evolução da sociedade capita-lista e pelo papel que esta última confere à arte moderna.Formados pela escola do marxismo e da fenomenologia,estes contemporâneos de Lukács e de Heidegger rejeitamradicalmente a ortodoxia comunista, condenam o modelosoviético, ao mesmo tempo em que combatem a ascensãodo fascismo na Europa.

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326 o que é estética?

À espreita de todas as derivas totalitárias, estes filóso-fos, espremidos entre dois apocalipses, concentram suasanálises na gênese das crises políticas, morais e culturaisque correm o risco permanente de abalar as próprias basesda democracia. Sem dúvida, é a acuidade de um olhar quevê longe, na história, que tais filósofos, sobretudo Benjamine Adorno, devem o interesse de que são hoje objeto.

Walter Benjamin e a experiência estética

A estética de Walter Benjamin, tradutor de Proust e deBaudelaire, nunca foi expressa na forma de uma obra coe-rente, menos ainda sob o aspecto de um tratado. A imagemde seu gigantesco conjunto de citações consagradas às passa-gens de Paris no final do século XIX na capital transformadapelo barão Haussmann, suas reflexões brilhantes e fragmen-tárias procedem por temas, aparentemente sem relações en-tre si: Berlim, a fotografia, o cinema, o haxixe, Holderlin,Goethe, Kafka, o dadaísmo, o surrealismo, Fourier, a arquite-tura de vidro, Moscou, a tradução, a crítica de arte, etc.

O único elo nesta diversidade reside no desejo do filó-sofo de apreender as múltiplas facetas deste fenômeno am-bíguo chamado modernidade, mistura de vestígios arcaicose de sonhos futuristas. O percurso intelectual de Walter Ben-jamin assemelha-se à sua vida, imprevisível, até mesmo ca-ótica, itinerante, nômade por necessidade, mas nunca inco-crente."

'''As notas que seguem, relativas à vida de Walter Benjamin são necessariamenteincompletas. Seriam necessárias em maior número para descrever o estr~nhodestino deste filósofo que, fugindo do nazismo, suicida-se nos Pirineus, vitimada chantagem de um policial espanhol, quando consentia, enfim, em reunir-se

aos amigos, nos Estados Unidos, via Espanha.

Marc [imenez 327Durante seus estudos, confessa-se seduzido pelas teses

do historiador de artes Alois Riegl" e seu conceito de vonta-de artística; apaixona-se por A alma e as formas de Lukács,inicia-se na fenomenologia de Husserl, sem nunca cessar dereler Platão e Kant. Seu sonho: reconciliar a seriedade dofilósofo de Konígsberg com a sensibilidade romântica; ana-lisando o período do Athenaeum e as obras de Fichte,Schlegel, Novalis e Schelling, defende sua tese de douto-ramento em 1919, precisamente sobre o "Conceito de críticaestética no romantismo alemão". Sua tese de Estado consa-grada à Origem do drama barroco alemão, em compensa-ção, é recusada pela universidade de Frankfurt.

Tendo-lhe sido proibido o ensino universitário, Benja-min vive com dificuldade, graças a artigos de crítica literária,traduções e emissões radiofônicas. De origem israelita, re-siste às solicitações de seu amigo de infância GershomScholem, grande especialista em religião judaica e em Caba-la, que insiste em fazê-lo emigrar consigo para Jerusalém.

Admirador da História e consciência de classe de Lukács,amigo de Bertolt Brecht, desilude-se com sua viagem aMoscou 0926-1927); renuncia a qualquer engajamento co-munista e permanece como um simpatizante crítico do mar-xismo.

Ligado a Theodor Adorno e a Max Horheimer, convi-dado a participar dos trabalhos do Instituto de pesquisassociais consagradas à teoria crítica da sociedade, não conse-gue integrar-se de fato ao grupo da futura Escola de Frank-furt, obrigada a ver nele um companheiro de estrada fiel,mas preocupado em conservar sua autonomia. Na encruzi-lhada das tendências filosóficas e artísticas de seu tempo,

"Sobre tudo por sua obra L'origine de l'art baroque à Rome, Paris, Klincksiech,1993, trad. Sibylle Müller, apresentação de P. Philipot.

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r

328 o que é estética?

Benjamim permanece "afastado de todas as correntes", se-gundo a expressão de Adorno: nem Moscou, nem Jerusa-lém, nem Frankfurt!

Paris, a "capital do século XIX" simboliza para ele ascontradições da modernidade, as mesmas que Baudelaireconsegue expressar na forma da criação poética: como po-demos continuar a escrever poemas em plena revoluçãoindustrial, no "apogeu" do capitalismo? É a Paris que o con-duz finalmente o exílio, com a esperança de freqüentar ogrupo surrealista. As relações não dão certo, porém ele en-contra Louis Aragon, Julien Green, Pierre Jean Jouve, AndréGide, Mareei Jouhandeau. Raymond Aron considera notávelseu ensaio sobre A obra de arte na época de sua reproduçãomecânica (redigido em 1936), e a primeira versão francesado texto é estabelecida por Pierre Klossowski, revista pelopróprio Benjamin."

Em algumas páginas, Benjamin procura analisar a in-fluência das técnicas modernas de reprodução e de difusãosobre a obra de arte. Mais precisamente, pergunta se o fatode multiplicar uma obra de arte para apresentá-Ia simultane-amente a uma multidão de espectadores afeta ou não ooriginal. A pergunta pode parecer estranha, pois não se vêem quê uma cópia ou uma reprodução mudariam seja oque for no primeiro modelo, que permanece original acon-teça o que acontecer. Ora, segundo Benjamin, alguma coisamuda, que é menos o original em si mesmo do que a rela-ção entre o público e a obra original propriamente dita. Estaalguma coisa ele a chama "aura", espécie de halo que nimbacertos objetos - ou certos seres - com uma atmosfera etérea,imaterial e que confere ao original um caráter de autentici-

"ensaio foi traduzido ulteriormente com o título "L'oeuure d'art à l'êre de sareproducubitité technique".

Marc jimenez 329dade. Uma obra de arte foi criada num momento e numlugar precisos, de forma única, e esta unicidade explica porque as obras de arte antigas, as que encontramos nos locaisde culto, igrejas ou santuários, parecem rodeados de misté-rio: conservariam elas, secretamente, a lembrança de seusesplendores passados e do efeito que produziram sobre osque as contemplavam? Benjamin lembra-nos as origens his-tóricas da arte, quando esta estava ligada a práticas mágicas,rituais e culturais que nossa civilização esqueceu. Toda tra-dição é constituída sobre a base do caráter transmissível daautenticidade e da aura de uma obra, e a função do rito éprecisamente o de ajudar esta transmissão da herança anti-ga.

Mas as técnicas modernas de reprodução de massa nãotêm mais necessidade dessa mediação tradicional: elas agemna rapidez e na simultaneidade. Que lhes importa uma auraque não podem, aliás, conservar nem comunicar! O queinteressa à época moderna, pragmática, materialista, coloca-da sob o signo do dinheiro, é reproduzir, trocar, expor, ven-der. O declínio progressivo da aura significa que as obrasperdem seu valor de culto; além disso, se lhes é atribuídoum valor de troca que as torna negociáveis como qualquerbem de consumo.

Portanto, Benjamin interpreta este fenômeno como umadegradação da arte: o desaparecimento inelutável da artetraz um empobrecimento das experiências estéticas basea-das na tradição e corresponde a uma transformação culturalsem precedentes. Todavia, ele não se atém a este aspectopessimista. A perda da aura não teria seu lado positivo? Astécnicas de reprodução, como a fotografia e o cinema, quetendem a se tornar independentes e atraem para si um pú-blico cada vez mais vasto, não poderiam servir a fins cultu-rais e políticos como distrair as massas e ao mesmo tempopô-Ias em guarda contra a ascensão dos poderes infernais?

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330 o que é estética?

Numerosos artistas marxistas ou próximos ao comunis-mo colocam-se, sobretudo a partir de 1936, a urgente ques-tão de seus engajamentos na luta contra Hitler. Muitos desa-fiam as recomendações de André Breton que recusa em 1935pôr a arte e a poesia a serviço de uma causa, por mais justaque seja. Picasso pinta Guernica (937) logo após o bom-bardeio da cidade pela aviação nazista; Charlie Chaplin pre-para o roteiro do Grande Ditador. O texto de Benjamim éanterior a essas duas obras, porém ele conhece os artistas ese permite uma comparação: "A possibilidade técnica dereproduzir a obra de arte modifica a atitude das massas emrelação à arte. Muito retrógrada, por exemplo, em relação aum Picasso, ela se torna extremamente progressista em rela-ção, por exemplo, de um Chaplin".

Em outras palavras, o cinema, técnica de reprodução ede difusão massiva, arte desprovida de aura - pretensamente- não teria a vantagem de ser mais eficaz do que a pintura,mesmo vanguardista? Não está ela mais próxima das pesso-as, não é mais democrática, mais apta a torná-Ias "progres-sistas"?

A perda da aura teria, portanto, duas conseqüências,aparentemente. contraditórias: uma negativa, pois ela pro-vocaria um empobrecimento da experiência baseada na tra-dição; a outra positiva, pois favoreceria a democratização -e a politização - da cultura. Mas a época, grande devoradorade esperanças, não incita ao entusiasmo. O otimismo deBenjamin cai com bastante rapidez já no ano seguinte. Sub-siste somente a inquietação diante do destino da arte e dasorte reservada à cultura.

As reflexões de Benjamim sobre o declínio da aura nosinteressam ainda hoje, porque ultrapassam o momento his-tórico em que nasceram. De fato, elas acompanham as pre-ocupações contemporâneas sobre o papel ambíguo dasmídias em relação à arte e à cultura. Retomemos a única

Marc]imenez 331definição, um pouco enigmática, que ele dá da aura: "O queé, exatamente, a aura? Uma trama singular de espaço e detempo: aparição única, algo distante, por mais próximo queesteja".

Todos tivemos a experiência estranha de ter diante dosolhos uma obra de arte original. Durante muito tempo, àsvezes meses ou anos, ela se nos tornara familiar à força decontemplá-Ia em efígie, por exemplo, em catálogos de ex-posição. Longe de nós e graças às técnicas de reprodução,ela se tornara tão próxima que tínhamos a impressão deconhecê-Ia em seus menores detalhes. Por pouco que elanos tivesse seduzido, tínhamos apenas um desejo: vê-Ia emsua verdade. Porém, diante do original, duas reações sãopossíveis: a admiração ou a decepção. Num caso como nooutro, fazemos a experiência da aura. Maravilhados, perce-bemos no original este algo indefinível que a reproduçãoera incapaz de transmitir: o caráter único e autêntico deuma obra que sabemos ter sido feita em um tempo e espaçodeterminados. Desiludidos, devemos nos dizer que a con-templação repetida de sua reprodução num certo sentidoembotou nossa sensibilidade: insensibilizados, permanece-mos quase indiferentes à novidade da experiência.

Em seu ensaio, Benjamin observa a crescente necessi-dade, no público, de "apropriar-se do objeto na imagem ena reprodução". Podemos dizer que, desde então, a televi-são e as novas tecnologias satisfazem largamente esta ne-cessidade. Porém, não podemos notar a ambigüidade daproximidade mediática: freqüentemente ela nos dá a ilusãode viver os acontecimentos ao vivo, no próprio local. Este éum fenômeno positivo, visto que aumenta nosso conheci-mento. Em compensação, esta mesma proximidade é enga-nadora: ela leva a nos contentarmos com esta experiênciamediatizada em detrimento da experiência vivida.

Benjamin toca com o dedo um ponto sensível da

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332 o que é estética"modemidade cultural: a despeito das múltiplas possibilida-des de reprodução, de memorização, de acumulação deimagens e de sons que às vezes nos privam do tempo ne-cessário para rever ou ouvir novamente as gravações, nossaexperiência vivida, sensível, concreta tende a empobrecer-se. A isso ele chama a "atrofia da experiência".

Mas há fatos mais preocupantes: poder-se-ia pensar queas técnicas de reprodução aumentam nossa capacidade decriticar a arte, a cultura, a marcha do mundo (ou sua falta'),sobretudo, porque elas estendem a informação a um vastopúblico e não mais somente a um círculo de iniciados ou d~privilegiados. Benjamin, já o vimos, acreditou nessa POSSl-

bilidade. Mas ele muda de tom. "Criticar" para ele comopara Baudelaire é um ato tanto político quanto estético. ~ri-ticar uma obra de arte eqüivale, em sua opinião, a realizarseu "acabamento", em todo o sentido equívoco do termo:resgatar o sentido de uma obra, interpretá-Ia, significaterminá-Ia. Uma obra não criticada é condenada à indiferen-ça e ao esquecimento. .

Mas significa também esforçar-se por esgotar o conjun-to de suas significações; em outras palavras, é fazê-Ia morrerde tal forma que somente permaneçam vivas, para o pre-sente, estas mesmas significações. Um tal empreendimentonecessita um saber considerável em numerosas disciplinas.Não basta situar esta obra na história, descrever seu meio,traçar a biografia de seu autor. Ao estudar o drama barrocoalemão do século XVII, Benjamin deu o exemplo; mergu-lhou, por assim dizer, nestas peças teatrais, praticamentedesconhecidas, pouco representadas por serem quaseirrepresentáveis, como se tivesse desejado tornar-se elemesmo seu autor. Precisou levar em consideração todas astendências da época, religiosas, metafísicas, filosóficas, eco-nômicas e políticas e era isto precisamente que não haviamaceitado as autoridades acadêmicas.

Marcjimenez 333Estará a época atual pronta para mergulhar no passado,

antigo ou mais recente, para analisar e criticar as obras como risco de constatar que os tempos presentes não mudaramfundamentalmente? Estará o publico pronto para renunciarà ilusão de dias melhores que lhe são acenados pelas má-quinas de reproduzir e de comunicar, máquinas de sonhartambém?

Benjamin tem dúvidas. Sob o reinado do dinheiro-rei,do valor de troca, em que a rapidez e o choque contam bemmais do que o conteúdo, a crítica de arte não encontra maisseu lugar. Benjamin constata, desiludido: "Insensatos os quedeploram o declínio da crítica. Pois, sua hora passou hámuito tempo". Observa também: "A visão mais essencial,hoje, aquela que vai ao âmago das coisas, a visão mercantil,é a publicidade. Ela destrói a margem de liberdade própriapara o exame e nos lança as coisas ao rosto de forma tãoperigosa quanto um carro que vem em nossa direção vi-brando na tela do cinema e que cresce desmesuradamen-te"."

Uma tal época não precisa, portanto, de crítica. A publi-cidade existe para informar sobre a existência de obras dearte, simples bens de consumo, que se reúnem aos despojosdos produtos culturais constituídos ao longo da história.Despojos que Benjamin contempla com pavor, pois as obrasnasceram não somente "do esforço isolado dos grandes gê-nios que as criaram, mas, ao mesmo tempo, do anônimotrabalho imposto aos contemporâneos desses gênios"."

E como nada escapa ao desejo de consumir tudo e de

l"WaIter Benjamin, Sens unique, Paris: Lettres Nouvelles, 1978, trad. jean Lacoste,p.220.

14WaIter Benjamin, "Theses sur Ia philosophie de l'histoire" dans Poésie etréuolution, Paris, Denoél, trad. M. de Gandillac, p.281.

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334 o que é estética?contribuir para esta gigantesca transmutação de todas ascoisas em moeda de troca, ele se pergunta se o sonho dohomem, hoje, não é simplesmente o de partilhar a existên-cia de Mickey, de viver num Disneyworld em que o confor-to exterior serve de decoração lisonjeira para nossa indigên-cia interior.

Benjamin deu um rosto angelical à sua filosofia da hi~-tória o de um quadro de Paul Klee: Angelus Novus, o anjonovo. Este anjo não dá aulas, não promete o paraíso. Temos olhos arregalados, a boca aberta e suas asas estão esten-didas. Estará aguardando um sinal de esperança, o anúnciode uma redenção? Não se sabe, pois seu rosto está voltadopara o passado. Contempla a história passada. Nós, simplesespectadores, vemos uma série de a:onteciment~s, umaevolução para algo melhor. O anjo ve apenas catastrofes,ruínas que se acumulam a seus pés. Gostaria de levar socor-ro mas uma tempestade vinda do paraíso incha-lhe as asas;el~ não consegue mais dobrá-Ias. "Esta tempestade, diz Ben-jamin, o transporta para o futuro, para o qual o, anjo nãocessa de voltar as costas enquanto os escombros, a sua fren-te sobem ao céu. Damos o nome de progresso a essa tem-,pestade".

A filosofia da arte de Walter Benjamin nào é um cursode estética; ela exprime sobretudo uma sensibilidade ,exa-cerbada pelas contradições da modernidade que não e es-tranha à nossa época. Percebe ele tais contradições no con-tato com as coisas e os acontecimentos aparentemente maisbanais da existência cotidiana: um passeio ocioso em Berlimou Florença, a leitura de Proust ou de um poema de Mallarmé,uma fotografia insólita de Eugene Atget, o nome das ruas, ailuminação a gaz dos lampiões de rua, a passagem dos Pa-noramas no bulevar Montmartre etc.

Ele pensa numa politização da estética, porque a con-juntura o obriga a isso: trata-se de responder à estetização

Marc firnenez 335da política pregada pelo futurismo italiano e concretizadanas grandes festas nacional-socialistas. Mas Benjamin não éo teórico dos grandes sistemas demonstrativos e coerentes.Leitor de Benedetto Croce, desconfia das considerações ge-rais e privilegia as obras de arte singulares. Suas análises sãoimersões que visam a instaurar uma espécie de intimidade,de simpatia com o objeto. Neste ponto, está próximo dasconcepções da Einfühlung, da "empatia" expostas por VictorBasch," para quem a estética visa a estabelecer uma formade simpatia simbólica com a obra. Mas Benjamin vai maislonge do que este aspecto psicológico, subjetivo, da relaçãoque nos liga à arte. Crê na possibilidade de mostrar que asobras são condensações de experiências passadas capazesde iluminar o futuro se conseguirmos decifrar sua significa-ção simbólica e alegórica. E para denunciar a ambigüidadede um progresso da cultura não são necessários fastidiososraciocínios: basta citar, descrever sem julgar, deixar ao leitoro cuidado de estabelecer as correlações: é exatamente oprocedimento adotado por Benjamin nas milhares de pági-nas que compõem sua obra sobre as galerias parisienses,"verdadeira "fenomenologia da experiência estétíca'"? no co-ração da modernidade.

Em sua obra póstuma, Le visible et l'inuisible, ofenomenólogo Maurice Merleau- Ponty declara: "[...J o pre-sente, o visível, só conta tanto para mim, só tem para mim

"Víctor Basch 0863-1944) foi titular da primeira cátedra de estética criada naSorbonne em 1918. Especialista no pensamento alernào tLa poétique de Scbiller;Essat critique sur l'estbétiquc de Kant, Les doctrines politiques de pbilosopbesclassiques de l'Allemagne), pensa que a atitude estética autêntica consiste emfundir-se com o objeto, em identificar-se com ele.

Ir.Walter Benjamin, Paris, capitale du XIX e sücle, Paris: Le Cerf, 1989, trad. jeanLacoste.17 Lapbenomenologie de l'expérience estbéttque é o título de uma obra do filósofoe este ta Mikel Dufrenne, Paris: Presses Universitaires de France, 1953.

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336 o que é estética?

um prestígio absoluto na proporção desse imenso conteúdolatente de passado, de futuro e de alhures, que ele anunciae que esconde". lH

Esta observação poderia perfeitamente ser a definiçãomais aproximada de um dos aspectos essenciais da estéticade Walter Benjamin.

Herbert Marcuse: eros e cultura

o ensaio de Walter Benjamin "A obra de arte na épocade sua reprodução mecânica" é publicada pela primeira vezem 1937. No ano seguinte, na mesma revista do Instituto dePesquisas Sociais dirigido por Adorno e Max Horkheimer,Herbert Marcuse publica um artigo intitulado "sobre o cará-ter afirmativo da cultura" .19

Este texto é importante por duas razões. De um lado,confirma o lugar predominante da arte e da estética naspreocupações filosóficas da época; ele é testemunha da rup-tura com os grandes sistemas idealistas, como os de Kant ede Hegel. O engajamento dos artistas de vanguarda nas lu-tas ideológicas, já há dois decênios, prova que a arte cessoude ser uma atividade inocente, objeto de puras especula-ções metafísicas. Mas, de outro lado, os novos interessesartísticos ultrapassam a conjuntura histórica. Vimo-lo muitobem em Benjamin: é claro que também quer lutar contra ofascismo, mas sua preocupação essencial concerne, decidi-damente, à sorte da cultura na sociedade ocidental moder-na.

"Maurice Merlau-Ponty, Le uisible et t'inoisiblc, Paris: Gallimard, 1964, p. 152-153.

WHerbert Marcuse, Culture et société, Editions de Minuit, 1970, trad. G. Billy, D.Bresson, ].-B. Grasset.

~.

"

Marcjimenez 337Que entende Marcuse por "cultura afirmativa"?A idéia é simples. A cultura ocidental, herdeira da Anti-

güidade, desenvolveu-se a partir da idéia de que existe ummundo de valores espirituais e morais superior à realidadematerial, prosaica e laboriosa. Este universo nasce da aspi-ração, que há nos homens, de escapar de sua situação exis-tencial, forjando ideais válidos universalmente: ideal de be-leza, de heroísmo, de realização pessoal, mas também debondade, de justiça, de liberdade, de solidariedade e defelicidade. As paixões e as afeições humanas, como o amor,a amizade, a atitude nobre e a coragem diante da morte, sãoigualmente idealizadas e sublimadas. Evidentemente, naantiga ordem social, o acesso a estes valores era reservado auma minoria de privilegiados, preocupada em afirmar aexistência desse mundo ideal, em princípio reservado a to-dos e destinado a servir de modelo às condutas humanas.

Mas este mundo ideal - universo da sublimação - apre-sentava pelo menos uma vantagem: constituía um poderosoestimulante para o desejo de transformar a realidade coerci-tiva, até mesmo de transformar a sociedade existente; emteoria, pelo menos, visto que a própria estrutura da socieda-de, dividida em classes, proibia concretamente qualquermodificação.

Ora, segundo Marcuse, a cultura moderna nada perdeude seu aspecto "afirmativo", ela até mesmo o reforçou, porexemplo, despojando a arte do conteúdo explosivo ou sub-versivo que ela escondia mesmo sob sua forma idealizada.Outrora, a arte prometia uma felicidade de tal formaespiritualizada que ela se tornava quase inacessível; doravantea cultura obtém prazeres, particularmente os de consumosempre acrescido de bens culturais, desde que a realidadeexistente e o sistema social permaneçam imutáveis.

A cultura moderna se apresenta, pois, como uma cultu-ra "afirmativa" à segunda potência. Ela apresenta todos os

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338 o que é estética?inconvenientes da cultura idealista, visto que está baseadana separação entre o ideal e a realidade, entre o mundo dosvalores e o mundo real. Em compensação, ela não possuinem mesmo suas vantagens, visto que à idéia de felicidadetotal, ela substitui a de prazeres fragmentários; além disso,ela faz com que os ideais percam sua força explosiva, a talponto, observa Marcuse como conclusão, que para esta cul-tura embotada, integrada no sistema social e econômico, aantiga cultura tradicional clássica e burguesa toma uma ati-tude progressista.

Esta defesa inesperada da cultura burguesa, exatamen-te no ano (937) em que Goebbels organiza em Munique aprimeira exposição de "arte degenerada" provoca as vivasreticências de Adorno e de Benjamin. Como pode Marcuseagir ele próprio como idealista e ignorar as vanguardas? Comonão vê ele que a modernidade artística de Baudelaire, deKafka ou de Schónberg constitui a base de uma crítica dasociedade?

Contudo, seu artigo é publicado. Horkheimer e Ador-no pensam que seu recente colega tem ainda tempo de fa-miliarizar-se com as posições do Instituto. Excetuando estepassageiro mofo de idealismo estético, o artigo evidenciaque é levada em conta a dimensão política da arte. Marcusepode assim definir as novas orientações teóricas que exporámais tarde, particularmente em Eros e civilização (955) eem O homem unidimensional (964).

Como muitos intelectuais de sua geração, sobretudoseus amigos do Instituto, Marcuse, formado ele também naleitura de Hegel, de Husserl, de Kierkegaard, de Marx e deFreud, sofre a influência de Georg Lukács e de MartinHeidegger. Sua primeira tese de doutoramento sobre o ro-mance alemão (922) inspira-se ao mesmo tempo na Estéti-ca de Hegel e na Alma e as formas. É sob a direção deHeidegger que redige, em 1932, sua tese sobre Hegel.

Marcjimenez 339o tema da alienação e da reificação em Lukács e o do

desamparo do indivíduo prisioneiro de sua angústia exis-tencial em Heidegger traduzem, em sua opinião, uma preo-cupação comum: reencontrar um sentido autêntico para avida. Não seria possível reconciliar a fenomenologia e omarxismo? A idéia não agrada a Heidegger. Marcuse renun-cia então ao seu projeto, com maior facilidade por ter co-nhecido a adesão de seu mestre à ideologia nacional-socialista e por ter descoberto, ao mesmo tempo, a ediçãocompleta das obras de Marx e de Engels.

Esta leitura confirma-lhe a existência de um abismo entrea teoria de Marx e a realidade soviética. Mas ela lhe revelatambém um dos raros pontos comuns entre um estado tota-litário e as nações democráticas: a construção do socialismoé um malogro.

No Leste, a revolução comunista foi traída. No Oeste,ela se torna cada vez menos possível: a classe operária inte-gra-secada vez mais ao sistema; ela renuncia pouco a pou-co a uma transformação radical e se concentra sobre posi-ções reformistas social-democratas.

O que acontece na União Soviética, evidentemente, nãosurpreende Marcuse. O que o intriga, sobretudo após a Se-gunda Guerra Mundial, é o poder de integração manifesta-do pela sociedade industrial moderna para invalidar todasas oposições de caráter político e artístico, que pregam umoutro caminho que não o da rentabilização desenfreada dasatividades humanas. E o que o choca ainda mais é a despro-porção entre o formidável potencial de libertação que re-presentam os progressos científicos, técnicos e industriais ea manutenção de controles e de repressões que obrigam oindivíduo a refrear seus desejos e suas pulsões para sublimá-los em força de trabalho.

Em suma, Marcuse se interroga sobre a forma modernade um "mal-estar na civilização". Mas, desta vez, não estamos

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340 o que é estética?

mais na Viena de Freud, por volta de 1929; estamos nosanos 50, nos Estados Unidos - Marcuse exilou-se para lá em1934 - na soleira da "sociedade de consumo".

Eros e civilização. Contribuição a Freud (955) é certa-mente a obra mais importante de Herbert Marcuse. Visa elaaproximar as teses de Marx sobre a exploração pelo traba-lho e as de Freud expostas exatamente em Mal- estar nacivilização. Trata-se assim de colocar as bases de uma trans-formação cultural e "estética" da civilização industrial e dedefinir o papel da arte na sociedade moderna. É neste pon-to que a reflexão de Marcuse nos interessa aqui. A tentativade conciliar o autor do Capital e o fundador da psicanálisenão é aberrante.

Várias vezes em sua obra, Marx nos previne contra orisco de crise grave, até mesmo fatal, que ameaça a sobrevi-vência da sociedade capitalista. Esta crise teria como causa,particularmente, o absurdo de uma civilização que colocatodo seu desenvolvimento no progresso científico e técnicoem detrimento do desenvolvimento do indivíduo. Marxobserva igualmente a desproporção entre o acúmulo de ri-quezas através do capital, potencialmente fonte de felicida-de para todos, e a sorte pouco invejável reservada à catego-ria social mais numerosa.

Quanto a Freud, faz ele um diagnóstico nitidamentepessimista do estado da civilização européia entre as duasguerras. Não reconhece que o indivíduo paga um alto preçopela felicidade prometida pela civilização, ou seja, satisfa-ção adiada das pulsões, obrigação de adaptar-se à realida-de, sacrifício da libido? Não levanta a hipótese audaciosasegundo a qual a própria humanidade ter-se-ia tornado neu-rótica por causa dos esforços exigidos para a edificação dacivilização?

Esta semelhança de ponto de vista entre Marx e Freud,ambos preocupados finalmente com o destino do indiví-

--

Marcjimenez 341duo, vítima de coerções incontroláveis, justifica para Marcuseo sentido de seu empreendimento: desenvolver o projetode uma cultura não repressiva que possa permitir aos ho-mens reatarem com a idéia correta de felicidade.

Decide então reinterpretar a tese de Freud. Embora esteúltimo deplore o mal-estar da civilização atual, ele abre pou-cas perspectivas para uma eventual melhora. De fato, Freuddiz que a civilização nasce da repressão das pulsões desde aorigem dos tempos, como uma fatalidade. A sublimação dosdesejos inconscientes e o recalque das pulsões eróticas cons-tituem a condição sine qua non da adaptação ao "princípiode realidade". Esta adaptação passa pelo respeito aos inter-ditos, às regras e às convenções sociais, morais e religiosasque permitem organizar a vida em sociedade. A naturezanão é tão pródiga em recursos para poder deixar a cada uma possibilidade de satisfazer imediatamente os próprios de-sejos e viver segundo o "princípio de prazer".

Em suma, segundo Freud, a organização racional dacivilização é uma resposta adequada a um estado inicial depenúria. E a civilização, preocupada com sua autoconser-vação, não pode eliminar esta racionalização sob pena devoltar à penúria, de regredir a um estado anterior de evolu-ção, isto é, ao caos, até mesmo à barbárie.

Esta lei de organização e de repressão instintual, queassegura a sobrevivência da espécie humana, aplica-se igual-mente, para Freud, ao desenvolvimento do indivíduo. Emseus Trêsensaios sobre a teoria da sexualidade, mostra comoa passagem para o estado adulto supõe, desde a primeirainfância, a interiorização progressiva dos tabus sexuais im-postos pela sociedade. Aprender a adiar a satisfação da pró-pria libido - termo ao qual Freud dá um sentido mais amplodo que o de sexualidade genital - permite a passagem destefamoso princípio de prazer ao princípio de realidade queresponde às exigências da socialização e autoriza um com-

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342 o que é estética?portamento considerado normal. Evidentemente, para Freud,este aprendizado, nem sempre consciente e voluntário, nãoé idêntico para todos. Às vezes, ele malogra e a origem dasneuroses deve ser procurada exatamente na maneira pelaqual cada um reage, em função de sua história pessoal e desua educação, ao recalque de suas pulsões eróticas, sobre-tudo quando estas últimas são reativadas após umtraumatismo qualquer. Nasce daqui a necessidade de umtratamento psicanalítico que, graças a uma tomada de cons-ciência dos traumas, particularmente dos da primeira infân-cia, visa a permitir ao paciente retomar seu lugar na socie-dade.

Evidentemente, Marcuse não nega a necessidade deuma repressão fundamental das pulsões. Mas a tese de Freudparece-lhe contraditória e insuficiente em vários pontos. Se,de fato, e como reconhece o próprio Freud, é a humanida-de, a civilização e a sociedade que são "neuróticas", à forçade repressões instintuais - de resto inevitáveis - não seráparadoxal querer reintegrar o doente no ambiente que, pre-cisamente, está na origem de sua doença?

Além disso, a sociedade industrial moderna exige bemmais do que a estrita adaptação ao princípio de realidade.Ela exige uma submissão à rentabilidade econômica que setraduz por um sacrifício injustificado do tempo livre e uminvestimento desmedido da energia pulsional no trabalho.Ora, o princípio de rendimento representa uma opressãoque é acrescentada ao princípio de realidade. Esta limitaçãosuplementar - Marcuse fala em super-repressão - não estaráem contradição com o nível de desenvolvimento tecnológico,particularmente com a automatização das tarefas? Sobretu-do numa sociedade que se queixa, por outro lado, de sofrerde superprodução, vítima de um desperdício do qual não sebeneficiam nem mesmo os deserdados do planeta!

Mas não será abusivo falar de super-repressão em socie-

Marc jimenez 343dades modernas, não totalitárias, industrialmente evoluídas,como os Estados Unidos, por exemplo?

Exatamente não, segundo Marcuse, pois esta super-re-pressão se abstém de usar meios brutais e autoritários. Pelocontrário, ela passa todas as aparências de uma maior liber-dade. O princípio de rendimento é pragmático. Não exigemais respeito para com os valores e os ideais pregados pelasociedade burguesa do século precedente. No plano ético eestético, a esfera do sublime não lhe interessa; pelo contrá-rio, ele acelera a "dessublímação", favorece a dessacralizaçãodos antigos tabus sentidos, todos, como obstáculos para asua hegemonia. Porém, esta dessublimação é também ummeio de controle econômico. Ela permite que seja atribuídoum valor de mercado a todos os aspectos da atividade hu-mana, até mesmo a mais privada. Marcuse dá a este proces-so o nome de "dessublimação repressiva" a que consiste,por exemplo, em explorar comercialmente o sexo em detri-mento de uma verdadeira erotização das atividades e dasrelações humanas: "A ilustração mais eloqüente deste fato éa introdução metódica de elementos "sexy" nos negócios,na política, na publicidade, na propaganda, etc. Na medidaem que a sexualidade obtém um valor definido de mercadoL...] ele se transforma em instrumento de coesão social"."Em duas palavras, o princípio de rendimento não libera,contenta-se em liberalizar.

Estas considerações parecem afastar-se do domínio daestética; de fato, eles determinam o quadro no qual Marcusepensa as relações entre a arte e a sociedade. Pois falta, defato, conceber a hipótese de uma civilização não repressiva,cuja prefiguração seriam as obras de arte e a criação artísti-

lOHerbert Marcuse, Eros et ctuütsatton. Contribuition à Freud, Paris: Editions deMinuit, 1963, trad. Jean-Guy Nény e Boris Fraenkel, revue par I'anteur, p.12.

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344 o que é estética?

ca. Utopia, sem dúvida, mas em que ponto, pergunta Marcuse,esta utopia seria mais ilusória do que a de uma racionalidadeque, em nossas sociedades modernas, se mostra freqüen-temente insensata para não dizer irracional? Seria ela maisquimérica do que a política dos príncipes governantes quan-do querem assegurar a felicidade da humanidade graças aoequilíbrio do terror nuclear?"

Ainda assim, é preciso dispor de um modelo teóricoplausível! Marcuse julga encontrá-lo, como foi anunciadoanteriormente, nas Cartas sobre a educação estética do ho-mem de Friedrich von Schiller. Consideradas muitas vezescomo um prolongamento da teoria de Kant, foi muitas ve-zes omitido, segundo Marcuse, seu aspecto subversivo. Nin-guém viu que Schiller explicava antes de Freud a doença dacivilização pelo "conflito entre os dois instintos fundamen-tais do homem, os instintos sensíveis e os instintos formais".O interesse essencial colocado pelas Cartas foi ocultado: oque nasce da luta entre logos, a razão ou o conhecimentoracional, e eros, a energia sensual, dinâmica. Segundo Marcu-se, somente Carl Gustav Jung teria percebido as implicaçõesde uma tal teoria; ele ter-se-ia mesmo assustado com a no-ção de "instinto de jogo" e a utopia de um Estado estéticoautônomo, liberto da razão repressiva.

Marcuse não ignora, é preciso repeti-lo, que a hipótesede uma harmonia dos instintos está ligada à visão. De todasas atividades humanas, colocadas em sua maioria sob o con-trole da razão, somente a arte pode ainda, em sua opinião,esboçar a utopia. Porém, é preciso supor que o imaginário e

"Em Eros e civilização, (955) podemos ler: "Nas condições "ideais" da civilizaçãoindustrial adiantada, a alienação seria suprimida pela automatização do trabalho,pela redução do tempo de trabalho ao mínimo e intercambialidade das funções".A um meio século de intervalo, esta "utopia" parece tomar a forma de um programabastante realista!

I

••••••••

Marc fimenez 345os fantasmas, ligados ao inconsciente, possam ainda esca-par ao controle da racionalidade. Enquanto conseguiremfazê-lo, a forma estética e particularmente as formas "surrea-listas e atonais" da modernidade, estarão em condições deexpressar o que a civilização do princípio de rendimentotenta permanentemente recalcar, isto é, a imagem de ummundo realmente reconciliado consigo mesmo.

As projeções imaginárias da arte, o universo aparenteque ela nos propõe exprimem, pois, a negação do mundoreal, a vontade de romper com a racionalidade de uma soci-edade que, como dizia Schiller, cinde o homem em dois esomente explora uma parte de suas faculdades.

Podemos recusar Prometeu, herói da cultura ocidentallaboriosa e submetida à razão, e a ele preferir outros mitos:muito mais dionisíacos. os mesmos que são celebrados pe-los escritores e os poetas, André Gide, Paul Valéry ou GastonBachelard. Narciso, imagem da reconciliação com a nature-za, e Orfeu, imagem da criação lírica, poderiam perfeita-mente encarnar, segundo Marcuse, o sentido desta "GrandeRecusa"."

O relativo otimismo de Eros e civilização, ligado à es-perança de uma realização concreta da utopia graças à arte,desaparece em O homem unidimensional. Ensaio sobre aideologia industrial adiantada. Segundo Marcuse, o capita-lismo americano tende para uma sociedade "fechada" que"disciplina e integra todas as dimensões da existência, pri-vada ou pública". A "unidimensionalidade" designa precisa-mente a sujeição de todas as atividades humanas ao sistemamercantil e sua submissão à produtividade, ao princípio derendimento.

"Marcuse toma esta expressão ao filósofo e epistemólogo Alfred North Whitehead0861-1947).

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346o que é estética?

Porém, sociedade fechada nào quer dizer sociedadeconcentrada em si mesma. A guerra do Vietnà mobiliza for-ças materiais e humanas num conflito de tipo imperialista,que denota a vontade de impor a ordem americana e omodelo unidimensional às outras regiões do mundo. O tra-ço mais característico desta sociedade unidimensional resi-de em sua faculdade de absorver as forças de oposição sus-cetíveis de ameaçar seu equilíbrio. De resto, o crescimentodo bem-estar material e a possibilidade que oferece o siste-ma de satisfazer necessidades que ele mesmo suscitou oucriou desaceleram as veleidades de contestação. Esta aceita-ção e esta interiorização das regras do jogo por parte dosgovernados mostram o perfeito funcionamento dadessublimação repressiva: afinal de contas, ela assegura acoesão social.

A arte e a cultura não escapam a esta lei de integraçãona sociedade unidimensional. Mais do que nunca, paraMarcuse a cultura tende a tornar-se afirmativa. Ela não cri-,tica mais a sociedade propondo ao público uma outra ma-neira de viver, suscitando uma aspiração para transformar aexistência presente. Através do herói nacional, do gangster,da estrela, do grande patrão, da figura carismática, ela secontenta em expor variantes de uma vida idêntica, e essasvariantes não "servem mais para negar a ordem estabelecida,elas servem para afirmá-la"."

Marcuse não critica globalmente a democracia da cul-tura. Ele põe em causa um mecanismo extremamente preci-so da comunicação cultural que afeta o próprio conteúdoda obra e de sua significação .junto ao público. Nos roman-ces contemporâneos - ele cita Um bonde chamado Desejo,

Z3Herben Marcuse, L'bomme unidimensionnet, Paris: Editions de Minuit, 1968,trad. Monique Wittig, revue par l'auteur, p.92.

Marc]imenez 347Gata em teto de zinco quente, Lolita - a sexualidade é des-crita de forma muito mais realista e audaciosa do que emRacine, Goethe, Baudelaire ou Tolstoi. Mas por mais selva-gem e obscena que seja, ela é totalmente inofensiva para asociedade que a recupera para transformar as obras em best-sellers.

Quanto às vanguardas artísticas em geral, limitadas emsua capacidade de pôr em causa uma comunicação culturalda qual se beneficiam, elas se contentam em manifestar seudesejo de romper com a própria comunicação, mas não como sistema que gera essa comunicação. Assim, na sociedadeunidimensional, até mesmo a Grande Recusa é recusada. Aevolução do capitalismo avançado em direção a um contro-le administrativo e institucional cada vez mais eficaz e preci-so da existência inteira leva a encarar o "fim da utopia", emoutras palavras, o próprio desaparecimento da estética.

As teses de Marcuse seduzem uma grande parte da ge-ração contestatária do final dos anos 60 e do início dos anos70. Às vezes à custa de malentendidos. O homemunidimensional termina com a seguinte citação de WalterBenjamin: "A esperança somente é dada àqueles que nãotêm esperança".

É sem demasiadas esperanças no futuro que Marcuseespera realmente uma melhora do sistema, o que não oimpede de estar ao lado das minorias oprimidas e de com-bater particularmente contra a segregação racial. Cético quan-to ao destino reservado à cultura e à arte nas sociedadespós-industriais, recusa, contudo, qualquer niilismo. Não con-sidera, por exemplo, a beleza como algo "reacionário", queseja necessário põr abaixo os museus ou outras instituiçõesculturais; não pensa que a paixão amorosa esteja ultrapassa-da, nem que a criação poética seja coisa antiquada. Pelocontrário, num universo que se dedica a dessublimar tudo ea tudo sacrificar aos sacrossantos interesses econômicos, ele

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348 o que é estética?

está persuadido de que a manutenção de uma suspeita desublimação pode ainda aparecer como um ato de resistên-cia .... antes que seja aberta, num futuro improvável, a estra-da de uma dessublimação "libertadora".

Sua última obra, A dimensão estética. Para uma críticada estética marxista (977) é uma retomada dos temas de-senvolvidos anteriormente. Foi um erro, sobretudo na Fran-ça, ter-se considerado este texto como uma superação deEros e civilização. Marcuse entrega-se simplesmente a umacrítica sistemática, um pouco desatualizada, do realismosocialista numa época em que ele não estava mais na moda,pelo menos no Ocidente. Quando se teria esperado umareflexão sobre certas correntes "plásticas" norte-americanas,engajadas na crítica da representação ou no desvio da insti-tuição artística, Marcuse contenta-se em insistir, de maneiraabstrata, no alcance crítico das deslocações formais.

Mas, sem dúvida, já perdia ele a esperança, como odeclarara pouco antes, em 1976, num jornal francês, de quepudesse ainda existir um dia uma obra de arte capaz dechocar. Desta obra, citaremos sobretudo a dedicatória: "Quan-to à minha dívida para com a teoria estética de Theodor W.Adorno, é quase supérfluo assinalá-Ia aqui"."

T. W. Adorno: uma estética da modernidade

Essa homenagem de Marcuse a seu colega do Institutode Pesquisas Sociais é tardia: quando escreve essas linhas, aobra póstuma de Adorno, intitulada precisamente Teoriaestética está publicada há sete anos (970).25 No momento

"Herbert Marcuse, Ia dimension estbétique. Pour une critique de l'estbétiquemarxiste, Paris: Editions du Senil, 1978, trad. Didier Coste, p.8.

lYf. W. Adorno, Théorie estbétique, op. cil.

Marc jimenez 349de sua publicação, este texto não tem grande repercussão,nem mesmo na Alemanha. Na França, será preciso esperaros anos 80 para que os trabalhos do que é chamada Escolade Frankfurt, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, WalterBenjamin e Herbert Marcuse, comecem a suscitar o interes-se dos sociólogos e dos filósofos da arte.

Adorno é até então conhecido como teórico da música ,autor de ensaios sobre Wagner,26 Stravinski e Schónberg."Sua defesa dos movimentos de vanguarda e sua apologia detodos os "ismos" do entre-duas-guerras parecem historica-mente datadas. Suas referências artísticas referem-se essen-cialmente à Segunda Escola de Viena: Alban Berg, ArnoldSchônberg, Anton von Webern; em literatura cita, sobretu-do, Mallarmé, Kafka, Proust, Valéry, james ]oyce, o poetaPaul Celan e Samuel Beckett, ao qual dedica Teoria estética.No domínio das artes plásticas, que aborda, diz ele, comonão-especialista, menciona os impressionistas, os pintoresexpressionistas alemães, Klee, Kandinsky, Picasso, mas ig-nora os movimentos dos anos 60. Suas únicas alusões visama denunciar indiretamente todas as tendências que procu-ram, em sua opinião, destruir a própria noção de obra, comoa action painting, a arte conceptual, os happenings ou aarte bruta.

A estética de Adorno parece, portanto, acumular para-doxos: milita por uma modernidade radical baseada em obrasevidentemente importantes e exemplares, mas já clássicas;afirma que somente a pintura não-figurativa permanece pos-sível no futuro, sem pensar que as reviravoltas fazem parte

"T W. Adorno, Essai sur Wagrwr, Paris: Gallimard, 1966, trad. H. Hildebrand e A.Lindenberg.

27T. W. Adorno, Pbilosopbie de Ia nouvel/e musique, Paris: Gallimard, 1962, trad.H. Hildebrand e A. Lindenberg.

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350 o que é estética?da história da arte; continua a promover o caráter subversi-vo de uma literatura de vanguarda enquanto ela já se en-contra nas antologias e nos manuais escolares.

Outros paradoxos: estas obras musicais, pictóricas e li-terárias são, em sua maioria, consideradas difíceis; Adornoas estima justamente em razão de seu hermetismo. Todaviasão elas que, em sua opinião, devem com o tempo atrair aatenção de um público cada vez mais numeroso e despertarsua consciência crítica.

Quanto à própria obra, Teoria estética, desenvolve ela,permanentemente, a idéia da arte como "promessa de feli:i-dade" - cara a Stendhal-, mas abre-se sobre uma constataçaode negro pessimismo: a arte não é mais algo que existeespontaneamente e, na sociedade atual, mesmo seu direitoà existência está ameaçado. Adorno fala mesmo de umapossível "des-estetização" da arte, isto é, de um estágio emque a arte cessa de ser arte.

Na verdade, toda a evolução da arte contemporânea,há mais ou menos três decênios, parece contradizer as tesesde Adorno: a arte moderna é celebrada em locais renovadose atraentes, os diretores encenam as peças de Beckett,Schónberg é tocado nos concertos e o entusiasmo pela artecontemporânea faz a felicidade das políticas e das institui-ções culturais. Contrariamente à tese de Adorno, a arte nãoestá mais submetida ao imperativo absoluto da modernidaderadical; ela se inspira livremente nas formas do passado queconjuga com os materiais e com os mais diversos procedi-mentos, tradicionais ou altamente técnicos, do presente oudo futuro.

Todavia, apesar destes limites históricos, as concepçõesde Adorno continuam a exercer uma influência determinantena reflexão estética contemporânea. Os paradoxos que pa-recem minar sua teoria são também os de uma época pro-fundamente marcada pela crise da modernidade. É quase

j:

Marcjimenez 351banal constatar que a idéia de crise, que ja preocupava oescritor romântico jean-Paul, tornou-se hoje inseparável daprópria noção de moderno. E, evidentemente, não é poracaso que a reflexão de nosso tempo herda tantas inquieta-ções expressas por Husserl, desde o início deste século,sobre as "crises nas ciências européias" ou as "crises da hu-manidade".

Esta crise não poupa o mundo da arte. O papel predo-minante das instituições culturais, das mídias, das estratégi-as da comunicação e o impacto das modas modificam con-sideravelmente a relação que mantínhamos havia séculoscom a arte e as obras. O fato já fora observado por WalterBenjamin. Na verdade, a situação da arte contemporânea émenos idílica do que a que foi evocada precedentemente.Podemos nos espantar, por exemplo, com a flagrante con-tradição entre a adesão muitas vezes entusiasta do públicoàs manifestações culturais e sua falta de gosto pelas cria-ções recentes. O turismo cultural e as excursões aos museusou aos catálogos informativos deixam planar dúvidas sobrea intensidade e a autenticidade das "experiências estéticas"e sobre suas capacidades de modificar, ou em outras pala-vras, de enriquecer a vida cotidiana.

A própria noção de modernidade está desvalorizada.Há já dois decênios, ela é vítima da ilusão segundo a qualteríamos entrado numa época pós-moderna caracterizadapelo fim da história, o fim das grandes ideologias e o fim daclivagem histórica entre os valores do passado e os do pre-sente ou do futuro. É tentador conceber a história, em par-ticular a da arte, como uma gigantesca reserva de formas, deestilos, de materiais e de procedimentos, e ver nela um acervoinesgotável de inspirações, ao serviço de uma criação liber-ta do dogma do progresso.

A conseqüência mais evidente desta indiferenciaçãoentre os valores do passado e os do presente é o desapa-

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352 o que é estética? Marcftmenez 353recimento dos critérios em que se apoiavam outrora a crítica têm como programa compreender o malogro das revolu-de arte e a crítica estética para avaliar e julgar as obras de ções socialistas na Europa, militar contra a ideologia nacio-arte. na l-socialista e prevenir contra qualquer instauração ou res-

Determinaremos este ponto no capítulo seguinte. Po- tauração de regimes totalitários. Invocam um marxismo teó-

rém, evidencia-se, desde já, que a "crise da arte" e a "crise rico, mas - vimo-Io em Benjamin e Marcuse - rejeitam radi-da crítica" não são simples lugares comuns; se isto aconte- calmente a ortodoxia marxista-Ieninista e o modelo da soei-ce, é porque traduzem a perda de legitimidade de uma arte edade soviética.que se tornou indefinível; esta arte é submetida a imperati- Após a guerra, as pesquisas de Adorno orientam-se maisvos econômicos e culturais; ela está mergulhada, além dis- diretamente para a psicologia de massa e a sociologia daso, numa sociedade tecnológica e numa civilização de lazeres cultura. Ele participa, sobretudo com Bruno Bettelheim, deque se interrogam ainda quanto a seu verdadeiro estatuto e uma pesquisa coletiva, sobre as origens do anti-semitismoquanto à sua função. estudando, ao mesmo tempo, a influência das mass media

Não é raro comparar a crise dos tempos atuais - no sobre a arte e sobre a cultura tradicional.alvorecer do terceiro milênio - àquela que grassava nos anos De fato, tais atividades desenvolvem-se à margem de30. Contudo, nada é igual. Excetuando, talvez, o sentimento seus interesses dominantes, a música e a filosofia. Autor dede inquietação latente diante do que muda com demasiada uma primeira tese sobre Husser! (1924), depois, de umarapidez e ainda não tem nome. Um sentimento que os artis- segunda sobre Kierkegaard (1931), Adorno lê com entusias-tas vanguardistas dedicaram-se a expressar, às vezes antes mo os trabalhos do jovem Lukács, A a/ma e as formas e Ade todos, e que os de hoje provavelmente não ignoram. teoria do romance. Interessa-se muito pelos ensaios de Walter

A obra de Adorno, Teoria estética traz precisamente a Benjamin consagrados aos primeiros românticos alemães emarca dos anos 30, estigmas de uma época angustiada em ao drama barroco. Mas a filosofia não poderia eclipsar suaque defender a arte moderna significava resistir às tentativas paixão pela música. É em Viena, a partir de 1928, que faztotalitárias que visavam a liquidá-Ia. Este interesse político e seus estudos de piano e de composição musical, sobretudoideológico desapareceu hoje, pelo menos no Ocidente, e com Alban Berg, com o qual faz amizade. A partir de 1957,por enquanto. Resta a perspectiva de um (novo) fim da arte em Darmstadt, participa como amador esclarecido das no-e de uma dissolução da estética que obseda ainda muitos vas orientações da música serial definidas por Karlheinzfilósofos contemporâneos. A recorrência deste tema na re- Stockhausen e Pierre Boulez. Continua porém persuadidoflexão teórica sobre a arte leva a analisar mais detalhadamente até a morte de que somente a música de Schónberg, a daa obra de Adorno. livre atonalidade, antes do dodecafonismo e do serialismo

Como o de Max Horkheimer, o nome de Adorno está oferece um autêntico exemplo de "música da liberdade". 'ligado ao Instituto de Pesquisas Sociais e aos trabalhos dos A dia/ética do esclarecimento, publicada em 1947 eintelectuais alemães de origem judaica, exilados nos Esta- redigida em colaboração com Horkheimer, é uma das obrasdos Unidos após a instalação do regime nazista. Reunidos i fundamentais da Teoria crítica. Ela não trata diretamente deno seio da Teoria crítica, estes filósofos e estes pensadores :'.1 música; em compensação, Horkheimer e Adorno interro-_1_

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354 o que é estética?

gam-se sobre o devir da arte e da cultura em geral na soci-edade moderna. Ora, somente é possível compreender estedestino, remontando às origens da civilização ocidental, àque-le momento em que se afirma pela primeira vez essa confi-ança absoluta no poder da razão. Já encontramos esta preo-cupação em Nietzsche e em Heidegger.

Todavia, para Horkheimer e Adorno, é preciso remon-tar mais longe na gênese do lagos se quisermos apreender olugar central que ele ocupa no Ocidente. A exploração ar-queológica da razão tentada por eles aproxima-se assim doque o filósofo Jacques Derrida chama a "desconstrução dologocentrismo ocidental". Não se trata mais de deplorar adecadência da civilização desde a antigüidade grega, massim de esclarecer um dos mais estranhos enigmas da nossahistória. Sobretudo a seguinte: como pode a Razão, princí-pio superior em nome do qual a filosofia das Luzes elabo-rou os maiores ideais da humanidade, direitos do homem,liberdade, justiça e igualdade, inverter-se num fabuloso ins-trumento de dominação capaz de subjugar tanto a naturezaquanto os próprios homens? Como explicar a defasagementre os valores proclamados em alto e bom som pelo libe-ralismo democrático, herdeiro da Revolução, e a fria reali-dade pouco a pouco pervertida em racionalidade tecnológica?

Horkheimer e Adorno jogam, portanto, com o duplosentido da palavra razão, princípio supremo e faculdade deconhecer para aceder à verdade. Em ambos os casos, estarazão é ambígua, dialética. ela liberta o homem de suasservidões, ela o livra do obscurantismo, mas cria também,sobretudo no seio do capitalismo avançado, uma consciên-cia tecnocrática ao serviço de uma classe dominante. A Se-gunda Guerra Mundial, catástrofe mundial, ilustra paraHorkheimer e Adorno esta capacidade que possui a razãode destruir-se a si mesma. Não se trata, como pensa Lukács,de uma "destruição" da razão nem, como o sugerira um dia

1Marc jimenez 355

Horkheimer, de um simples "eclipse", mas de uma tendên-cia permanente da razão para a autodestruição."

Quais são as conseqüências deste fenômeno no planoartístico e cultural? Nos Estados Unidos os dois filósofosassistem ao prodigioso desenvolvimento das mídias, cine-ma, imprensa, disco, publicidade. A "democratização cultu-ral" colocada sob o controle de uma outra forma deracionalidade, a da economia, deixa-os céticos. Esta demo-cratização tornou-se um problema de management e demarketing; ela obtém resultados inegáveis, mas contenta-sesobretudo em distribuir as migalhas da cultura tradicional.Horkheimer e Adorno forjam a expressão, hoje usada cor-rentemente, de "indústria cultural" para designar o apareci-mento de uma cultura estandardizada, condicionada ecomercializada segundo os modelos de bens de consumo.Esta crítica lembra, evidentemente, o ensaio de Marcuse sobreo caráter afirmativo da cultura; ela lembra também as tesesde Benjamin sobre a perda da aura.

A denúncia da indústria cultural está subjacente na Teo-ria estética de Adorno, mas ela não é, contudo, o elementodeterminante de sua reflexão sobre a arte moderna. Adornoreconhece que o "processo que entrega ao museu qualquerobra de arte, até mesmo a mais recente de Picasso é,irreversível". Querer atacar de frente tal processo é inútil.Adorno despreza o crítico impenitente que se declara sem-pre "descontente com uma cultura sem a qual seu mal-estarnão teria objeto". .

A atitude adequada não consiste, portanto, em passar otempo a vilipendiar a instituição cultural, mas em exumar asobras enterradas nos museus. É graças à análise profundadas obras - à "análise imanente" - que ele julga poder pôrem evidência seu caráter subversivo, polêmico, atenuadoquando de sua inumação nos panteões da cultura.

Além disso, a integração inevitável da arte tradicional

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356o que é estética?no sistema comercial confere, em sua opinião, argumentospara defender as obras de vanguarda, inclusive as mais her-méticas na aparência. Estas obras, evidentemente, são difí-ceis, mas apresentam a vantagem de resistir à Iiqüidaçãorealizada pela indústria cultural. Segundo Adorno, elas sãodessa maneira protegidas de qualquer recuperação e con-servam seu poder crítico diante da sociedade. Porém, todamodernidade envelhece e acaba por tornar-se clássica; épreciso, pois, promover constantemente as obras que evi-denciam uma modernidade radical, aquelas que absorvemos materiais e os processos tecnicamente mais elaboradosna época em que são criados. Adorno toma a Rimbaud suafórmula: "É preciso ser resolutamente moderno".

Evidentemente, há uma contradição: Adorno aceita, nodomínio da arte, uma racionalidade técnica e científica, de-nunciando seus efeitos negativos sobre a evolução social.Mas não se trata da mesma racionalidade. Se Adorno arris-ca-se a avançar no terreno da modernidade artística é justa-mente porque as obras de arte não são produtos como osoutros: elas imitam - poderíamos quase dizer que arreme-dam - a racionalidade que reina no universo desencantadoda realidade, para melhor assinalar a distância que separa aaparência artística do real.

Assim, a música de Schónberg extrai as mais extremasconseqüências de uma racionalização da linguagem musi-cal. O compositor utiliza as dissonâncias recusadas por seuspredecessores para traduzir o sofrimento num mundo víti-ma da catástrofe e do horror. Se tais dissonâncias assustamtanto os ouvintes, declara Adorno, é justamente porque elaslhes falam de suas próprias condições.

Em literatura, os diálogos aparentemente incoerentesdo teatro de Beckett, Fin de partie ou En attendant Oodot,desempenham o papel das dissonâncias dodecafônicas: asrepetições de palavras, os silêncios entre as réplicas, o cinis-

1Marcjimenez 357

mo das situações não descrevem o desastre de um mundoem declínio, fazem mais do que isso: significam seu trágicoabsurdo sem mesmo ter de nomeá-Ia.

Compreendemos melhor uma das idéias mestras da es-tética de Adorno: as obras de arte não criticam a realidadepintando-a de maneira realista, jogando com o caráter figura-tivo de seus temas ou de seus conteúdos. Rejeita ele as obrasque desejam expressar um determinado conteúdo político enaufragam na propaganda. Se a obra põe em causa o real, seage eficazmente sobre o público no sentido previsto, é graçasà sua forma não habitual: desestruturada, deslocada, numapalavra, "trabalhada". Guernica, o quadro de Picasso, é exa-tamente o contrário de uma fotografia realista representandoa cena de um massacre. Sua denúncia do regime franquistanão é menos virulenta. E os republicanos espanhóis enga-nam-se quando pensam que os deslocamentos formais desfi-guram a tela e amenizam seu impacto crítico.

Estas reações provam somente, para Adorno, que a fa-mosa distinção entre a forma e o conteúdo não possui ne-nhuma realidade: a forma é também um conteúdo. Outrora,como hoje. Simplesmente, outrora a forma era constitutivada bela aparência. Ela transfigurava e sublimava as cenasmais atrozes em nome da Beleza da Arte. Ela desempenha-va um papel de reconciliação entre o público e o mundo;um papel que ela abandona em um momento da históriaem que a vida é, segundo a palavra de Adorno, mutilada.

As formas da arte moderna, elas também mutiladas,dizem assim o que é a verdade do mundo e da sociedade ,tais como se tornam, isto é, sua inautenticidade e sua falsi-dade. Possuem elas, segundo sua expressão, um "conteúdode verdade" que Ihes permite resistir à sua absorção pura esimples pela sociedade atual. É por esta razão que a arte,concebida apesar de tudo por Adorno como uma promessade felicidade, só pode expressar negativamente a perspecti-

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358 o que é estética?

va longínqua de uma reconciliação entre o indivíduo e o

mundo.A estética de Adorno evidencia-se assim como uma

estética "negativa", até mesmo na recusa do filósofo em es-boçar o perfil de uma sociedade "diferente", desprovida dedominação, não repressiva, não conflitiva e sem violência.

A arte somente pode revestir-se de um sentido na ne-gação do mundo presente. Auschwitz e a Shoah demo~stra-ram, na opinião de Adorno, a inanidade da cultura ociden-tal, impotente para prevenir o inominável e incapaz deremediá-Io. Será pelo menos possível escrever um poemaapós a barbárie? Adorno tem dúvidas, em seguida vol.ta atrás:renunciar à criação poética, à arte, significaria abdicar pordemais facilmente diante dessa barbárie. Isto significaria tam-bém que a arte não seria mais testemunha - a escritura -dos sofrimentos acumulados ao longo da história.

A estética de Hegel situava-se na soleira da arte moder-na. A estética de Adorno encerra-se no alvorecer de umaarte literalmente inqualificável. Nos anos 30, ela representauma das raras tentativas filosóficas e estéticas para compre-ender a significação social, política e ideológica das revolu-ções formais da arte moderna, exatamente no momento emque ela luta para ser reconhecida.

Em 1970, a obra Teoria estética fecha o ciclo das gran-des filosofias da arte inaugurado por Kant e Hegel. Ela cons-titui hoje a última tentativa sistemática visando a apreender asignificação da arte no plano geral de uma filosofia da história.

A grande ausente da estética de Adorno é a pintura.Como explicar tal lacuna?

A maioria das referências artísticas de Adorno dizemrespeito à grande música ocidental, clássica e moderna. Suaevolução de Bach a Boulez traduz, em sua opinião, um pro-gresso contínuo do material musical. Este material não éconstituído pelas notas, mas por tudo o que se encontra

Marcjimenez 359entre as mãos do artista no momento de criar: os sons, osacordes, as formas, os estilos, os procedimentos técnicos,ete. Este material não é uma simples matéria prima, pura,neutra, que o artista encontra em estado bruto. É uma maté-ria que viveu no passado e dentro de uma sociedade; ela foitrabalhada pelos artistas das épocas anteriores de uma for-ma diferente da de hoje. Todo músico do ano 2000 podecontinuar a compor uma valsa emfá sustenido à maneira deChopin. O mundo das variedades não deixa de fazê-lo. Po-rém, segundo Adorno, este músico está situado num estágiode desenvolvimento do material musical menos adiantadodo que o da época contemporânea. Além do risco de fazerum mau Chopin, tem ele poucas possibilidades de ser con-siderado um compositor vanguardista ou simplesmentemoderno.

Toda a teoria estética de Adorno baseia-se na idéia deque o material artístico, condicionado pela sociedade e pelahistória, é submetido a uma racionalidade crescente. Mas oque, a rigor, é válido para a música ocidental, durante umdeterminado período de sua história, poderá igualmente seraplicado às artes plásticas?

Adorno reencontra o problema do ut pictura poesis noqual tropeçavam os artistas da Renascença e que Lessingtentara resolver. Suspeita ele da existência de uma profundaanalogia entre a pintura e a músicá, particularmente entre amúsica não tonal e a pintura não figurativa. Este parentescoresidiria no caráter expressivo de suas linguagens. Esta lin-guagem evolui: tende para uma objetividade, anunciada pelapintura abstrata de Paul Klee, ao mesmo tempo músico epintor."

'"T. W Adorno, Sur quelques relations entre musique etpeiruure, Paris: La Caserne,1995, textes, reúnis et traduits de I'allemand par Peter Szendy, avec Ia collaborationde jean Lauxerois, p.31-51.

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360 o que é estética?

Será desejável que estas duas artes tendam para umamaior objetividade? Não correriam então o risco de perderseu caráter escripturaê Adorno preocupa-se com essa even-tualidade: de que maneira uma arte que cessasse de serlinguagem e expressão poderia continuar a escrever os so-frimentos da história?

Na verdade, Adorno duvida da validade de sua compa-ração. O que o incomoda não é a música, seu domínio decompetência. Ele vê em Schonberg aquele que soube aliar aconstrução pura e racional e a expressão, a objetividade e asubjetividade. Em pintura, depois de Klee, ele mesmo con-fessa não saber o que pode vir.

Alguns meses antes da morte, Adorno retira-se paraconsagrar-se a um livro sobre ... Beethoven! Provavelmente,lembra ainda as linhas que escreveu um dia sobre GustavMahler: "Com a liberdade daquele que não foi inteiramenteengolido pela cultura, o vagabundo da música junta o peda-ço de vidro que encontra na estrada e coloca diante do solpara dele fazer jorrar mil cores".

No plano pessoal, Adorno extrai as conseqüências desua estética negativa. Persuadido de que a cultura se prepa-ra para engolir tudo, convencido de que a administração e aburocratização crescentes da sociedade moderna limitampouco a pouco a autonomia do indivíduo, refugia-se numasolidão um tanto altiva. Exprime de fato o desejo de que"seja dado a todos o que se mostra sempre como um privi-légio", mas rejeita todas as formas modernas de mediaçõesculturais que permitiriam concretamente a partilha das ver-dadeiras experiências estéticas. Esta recusa de qualquer com-promisso com o universo da comunicação marca os limiteshistóricos da teoria de Adorno no momento em que se im-põe de forma irresistível a guinada cultural da estética.

n

A evolução da arte ao longo dos últimos trinta anos érica em acontecimentos e em reviravoltas: nascimento, de-pois inumação de novas vanguardas, crescimentoexponencial do mercado da arte e do consumo cultural, emseguida crise de ambos; declaração recíproca de guerra en-tre a arte moderna e a arte contemporânea; irrupção da artetecnológica e nostalgia dos valores tradicionais; necrologiaprematura da modernidade por uma pós-modernidadeefêrnera, crítica de arte desorientada e crítica estética ausen-te; apoio ativo do "Estado cultural" e dos poderes públicosa uma arte que freqüentemente desconcerta o público, etc.

Estes acontecimentos, cuja lista aqui é incompleta, de-safiam qualquer tentativa de visão global. Eles contrariamtambém a esperança de chegar a uma teoria geral da artesobre um período que, de resto, ainda é o nosso. No máxi-mo, o esteta filósofo pode encontrar algumas tendênciasdominantes mais além das modas e das correntes às vezescontraditórias.

É claro, por exemplo, que o peso das instituições pú-blicas e privadas no domínio cultural assim como o papel

I,

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362o que é estética?crescente das mídias na produção e na difusão das obrasmodificam o status da criação artística na sociedade atual.

A questão das relações entre a arte e a política, tãocrucial ainda nos anos 70, parece hoje bastante em desuso.Na época, trata-se de reatualizar o alcance crítico das van-guardas do início do século: insiste-se no significad~ co.rr~-sivo das transformações formais para lutar contra a ínsntur-ção e inserir novamente a arte na vida cotidiana. A estéticae a filosofia da arte trazem sua caução teórica aos artistasque tentam subverter a política oficial da ação cultural.

A partir de 1968, Daniel Buren declara que cada pes-soa, os não-artistas, os "outros" são a priori tão dotadosquanto os próprios artistas: "A única coisa que talvez, sepossa fazer após ter visto uma tela como as nossas, e arevolução total".

Em 1974, em Art et politique, Mikel Dufrenne milita comentusiasmo e vivacidade por uma arte realmente popular,ao alcance de todos. Sensível às teses de Marcuse, ele reativaa utopia de uma revolução ao mesmo tempo artística e po-lítica em que a beleza, o jogo, o prazer infiltrar-se-iam emtodas as dimensões da existência: "Onde quer que criar sejajogar, e em que o jogo introduza jogo no sistema, ab.ale e~algum lugar as relações de dominação e as certezas ideoló-gicas que as justificam, a arte é política".

O início dos anos 80 registra um nítido esboroamentodessa dimensão política, ideológica e anticultural da arte.

A atitude negativa de Adorno, sua maneira de valorizarexcessivamente uma experiência subjetiva julgada incomu-nicável suscitam reticências. Certos filósofos, até mesmoglobal~ente seguidores de sua teoria, censuram-Ih~ sU,ar~-cusa obstinada de qualquer compromisso com a indústriacultural. Pensam que a experiência estética das obras dearte clássicas ou modernas é suficientemente rica e densapara resistir à laminação das mídias e à banalização cultural.

Marc jimenez 363A estética da recepção: Hans Robert Jauss

A partir de 1978, Hans Robert jauss desenvolve as ba-ses de uma "estética da recepção", 1 essencialmente aplicadaà literatura. Como seu nome indica, esta estética insiste naimportância da acolhida, da "recepção" da obra pelo públi-co. jauss insiste particularmente no papel primordial da re-ação dos leitores, de seus julgamentos e de suas expectati-vas diante de obras novas. Face à novidade artística, trêsreações são possíveis: a satisfação imediata, a decepção, atémesmo a irritação ou então o desejo de mudar e de se adap-tar aos horizontes inéditos abertos pela obra. Para Jauss,estas diferentes atitudes diante do que ele chama justamen-te um "horizonte de espera" não se eqüivalem. Elas permi-tem mesmo estabelecer normas de qualidade e hierarquizaras obras: pode-se assim conceder um privilégio àquelas que,em razão de seu grau de novidade, causam nos leitores umprazer inédito. Elas não satisfazem um desejo já programa-do pelo hábito, mas preenchem uma espera secreta e ante-cipam, de algum modo, as aspirações implícitas.

jauss, portanto, põe o dedo sobre uma das insuficiên-cias da teoria de Adorno: valoriza a importância do gozoestético, e considera que tal gozo nada perde ao ser comu-nicado a um público, por mais vasto que seja. Segundo suaspalavras, convém "restaurar a função comunicativa da arte,e até mesmo devolver-lhe sua função criadora de normas".

Não significa isso, diz jauss, provar uma grande fideli-dade a Kant, para quem o gosto é precisamente a faculdade

'Hans Robert Jauss, Pour une estbétique de Ia réception, Paris: Gallimard, 1978,trad. Claude Maillard, prefácio de Jean Starobinski. Esta obra é uma coleção detextos, alguns publicados em 1972, sobretudo "Pequena apologia da experiênciaestética", já polêmica, em oposição a Adorno. Hans Robert Jauss, nascido em1921, é professor de literatura na universidade de Konstanz.

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w.-.-

364 o que é estética?de julgar tudo o que permite comunicar-nos com qualqu~routro homem, até mesmo com nosso sentimento? Kant naoune o valor do prazer desinteressado ao fato de poder eleser universalmente partilhado?

Estética e comunicação: Jürgen Habermas

As concepções de Jürgen Habermas desempenham umpapel considerável nesta maneira de considerar o. ~niversoda comunicação, particularmente por parte dos filósofos eestetas contemporâneos. No plano teórico, legitimam eles aidéia de que as mídias tecnológicas aumentam a difusão dasobras de arte junto ao público e favorecem assim uma reno-vação benéfica das experiências estéticas.

Antigo assistente de Adorno na universidade de Frank-furt, Jürgen Habermas (nascido em 1929) é um herdeiro dis-sidente da Escola de Frankfurt. Várias vezes, em sua obra,critica ele as teses desenvolvidas por Horkheimer e Adornosobre a indústria cultural. Não acredita que a submissão dasobras ao sistema econômico transforme o prazer estéticoem puro e simples divertimento. Em sua opinião, é erradopensar que o consumo cultural possa servir de c~n:pens_a-ção às frustrações da existência cotidiana. As mídias saoessencialmente veículos da linguagem, "amplificadores dacomunicação linguageira" que apresentam a vantagem deabolir o tempo e o espaço. Eles "densificam" as trocas dediscursos; autorizam a intersubjetividade e a íntercorn-preensão. Enquanto tais, não dependem do sistema com:~-cial. pelo contrário, favorecem a possibilidade de rransmítiras experiências estéticas a um público maior e, portanto, demanter concretamente a promessa de felicidade contida nasobras de arte e tão cara a Adorno.

A esta razão fria e cínica - a "racionalidade instrumen-

Marcjimenez 365tal" - que, segundo Horkheimer e Adorno, conduz o mun-do ao fechamento burocrático e à cegueira, Jürgen Habermasopõe a "razão comunicativa", uma razão baseada no discur-so, no intercâmbio e na interação entre os indivíduos.

Portanto não há, segundo Habermas, uma única e mes-ma razão, fatalmente condenada a tornar-se um instrumentode opressão. Existem, pelo contrário, diferentes formas deracionalidade, científica, ética, estética. Elas não são antago-nistas nem destinadas a um afrontamento. Habermas observaque no século XVIII, particularmente em Baumgarten, a esté-tica ou ciência da beleza corresponde a uma diferenciação darazão. Podemos, lembrar, aliás, que Baumgarten define a es-tética como uma forma inferior de conhecimento porque,apesar de tudo, está ligada à sensibilidade.

Portanto, Habermas não exclui a possibilidade de quea estética possa, a longo prazo, agir sobre as outrasracionalidades e influir na existência cotidiana. Numa pers-pectiva mais ou menos longínqua, chegar-se-ia assim a umareconciliação de todas as figuras da razão. Esta eventualida-de evocada por Habermas tem o direito de levar ao ceticis-mo: a realização de um tal objetivo não lembra uma utopia?

Mas, a não ser retirando-se do próprio ambiente, pode-se reconhecer também que não há outra escolha possível:aceitar as regras do sistema atual significa também homena-gear a "soberania" de uma arte capaz de sobreviver aos "maus"tratos do sistema cultural. Como uma garrafa lançada ao mar,cada obra segue seu caminho: ninguém conhece realmente opoder de sua mensagem e ninguém sabe quem a recolhe.

A maioria dos recentes trabalhos sobre filosofia da arte,tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, traduzem esteapaziguamento da crítica em relação à indústria cultural eao sistema comercial. Mais voltados para a arte contemporâ-nea, estão eles preocupados sobretudo em encontrar-lheum status na sociedade atual, insistindo nas capacidades de

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366 o que é estética?inovação de uma criação artística sempre dinâmica eimprevisível. Como conseqüência, recusam a extrem~negatividade de uma teoria como a de Adorno .. Se respei-tam sua defesa audaciosa da modernidade, conslderam-na,em compensação, como por demais nostálgica das primei-ras vanguardas, austera e voltada, finalmente, para posiçõesbastante conservadoras.

Mas há diferentes maneiras de assinar um pacto de ali-ança com o sistema cultural. Ou nos adaptamos às condi-ções presentes, conservando, apesar de tudo, a idéia, ou aesperança, de uma arte sempre em revolta e hostil à suainstitucionalização, ou então aceitamos totalmente a atualorganização cultural, potencialmente geradora de prazerese gozos estéticos múltiplos.

A primeira atitude remete à tradição européia, à qualnos consagramos. Ela é fortemente marcada pela experiênciadas vanguardas históricas e sobretudo pelas implicações po-líticas e ideológicas destes movimentos desde o início doséculo xx. Esta tradição é ela mesma herdeira das concep-ções idealistas e românticas que conferem à Arte a vocaçãode abrir o acesso ao Ser, ao Absoluto e à Verdade. "Manifes-tação sensível da Idéia", segundo Hegel, a arte torna-se, paraNietzsche, a atividade metafísica por excelência. Ela é literal-mente "essencial" para Lukács, revelação do Ser em Heideggere indício de verdade para os teóricos da Escola de Frankfurt.Erigida em ideal, esta arte engendra um universo aparente,oposto à realidade. Pode ela então servir de modelo e guiaras aspirações que visam a transformar o mundo real. Ela nãoé mais apenas o meio desta transformação, mas também umafinalidade, orientando os projetos da modernidade.

A segunda atitude faz referência à tradição anglo-saxã,à da filosofia analítica. No domínio da arte, ela se apóiasobretudo nos trabalhos do filósofo americano Nelson Good-mano A filosofia analítica propõe-se, precisamente, "anali-

Ma rcjimenez 367sar" a estrutura da linguagem que serve para designar ascoisas. Em lugar de interrogar-se sobre o significado de umdiscurso, ela se interessa pela sintaxe e pela maneira usadapor tal discurso na disposição dos signos e dos símbolos.

Tomemos um exemplo simples, até mesmo simplifica-do. Uma grande parte da filosofia leva a pensar que o mun-do se apresenta como uma imensa tabela que deve ser deci-frada. Felizmente, possuímos a chave que nos permite com-preendê-lo, isto é, a linguagem; ora, consideramos esta lin-guagem como um reflexo, mais ou menos fiel, da realidade.Trata-se aqui, segundo Goodman, de uma ilusão: a lingua-gem nada diz do mundo; ela é simplesmente um sistemasimbólico que nos permite "fabricar" mundos, quer se tratedo conhecimento, da natureza ou da arte.

Veremos ulteriormente qual é o papel desempenhadopela reatualização das idéias de Goodman no debate estéti-co contemporâneo. Mas é preciso dizer, desde já, algumaspalavras sobre os pontos essenciais desta teoria.

Nelson Goodman e a linguagem da arte

Em Linguagens da arte. Uma abordagem da teoria dossímbolos (968), Nelson Goodman declara que deseja reabi-litar a estética aos olhos dos cientistas, geralmente desde-nhosos diante desta disciplina. O argumento mais convin-cente consiste seguramente em mostrar que não há diferen-ça fundamental entre a experiência científica e a experiên-cia estética: a arte, como a ciência, seria um sistema simbó-lico, uma "versão" do mundo, uma maneira de fabricá-lo.

O que é que, desde Baumgarten, impede a estética deser posta rigorosamente no mesmo plano do conhecimentológico? A sensibilidade e as emoções! Consideremos, então,que as emoções são instrumentos de conhecimento, que

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368 o que é estética?

elas funcionam de maneira cognitiva. Liberemo-Ias de suascargas subjetivas e psicológicas e vejamos nelas simples meiosque permitem discernir as propriedades e as qualidadesobjetivas possuídas e expressas por uma obra.

A arte, para Goodman, é portanto problema de conhe-cimento e não de representação. A experiência estética nãoestá mais baseada nas idéias, nos fantasmas ou nas paixõesexpressas por uma obra de arte. Mais sobriamente, ela re-pousa em nossa capacidade de ver em quê a obra de arte éum sistema simbólico e de compreender como funciona estesistema de símbolos.

A estética analítica não define mais a arte em função doque ela é em sua essência suposta ou futura, mas segundo oque ela enuncia em sua existência e no que dizemos dela.O que é expresso por uma obra de arte, seu conteúdo, suaidéia, portanto, não é levado em consideração.

Goodman afasta assim todas as noções "clássicas" dafilosofia da arte tradicional, como o prazer, o gozo e outrosafetos. As questões relativas ao gosto, à beleza, ao julga-mento e ao valor das obras tornam-se secundárias. Elas de-saparecem diante da pesquisa dos elementos, chamados porGoodman "sintomas da estética", que permitem distinguirprecisamente o estético do não-estético: "A distinção quefaço aqui entre o estético e o não-estético é independentede qualquer consideração de valor estético. Isto é um fato.Uma execução abominável da Sinfonia londoniana é tãoestética quanto uma esplêndida execução; e a Ereção dacruz de Piero não é mais estética, mas apenas melhor doque a de um mau pintor. Os sintomas da estética não sãomarcas de mérito; uma caracterização da estética não requernem fornece uma definição da excelência estética". 2

'Nelson Goodman, Langages de l'art. Une approcbe de Ia théorie des symboles. Nimes:Editions Jacqueline Chambon, 1990, présenté et traduit par ].Morizot, p.298.

r.,

Marc jimenez 369Goodman distingue assim, com nitidez duas noções

que assimilamos habitualmente uma a outra: a estética e aartística. O importante não é que uma obra seja julgada bela,agradável ou bem executada conforme a idéia que tradicio-nalmente temos da arte; o essencial é que ela funcione este-ticamente.

Publicado em 1977, o artigo de Goodman "When isArt?"precisa com clareza o novo desafio. A questão primor-dial não é mais: "O que é a arte?", mas sim: "Quando háarte?". E a resposta do filósofo renova ao mesmo tempo oprograma da estética analítica: há arte quando uma coisafunciona simbolicamente como obra de arte.

Isto significa que um objeto de arte não é em si mesmouma obra de arte; torna-se arte se assim decido vê-lo ou seo contexto me leva a isso. Um quadro de Rembrandt usadopara tapar um vidro quebrado cessa de funcionar como umaobra de arte. Ele desempenha essa função quando é suspensonas cima lhas do museu. Este exemplo surpreendente -iconoclasmo felizmente raríssimo - não é um simples truísmo.Goodman chama de fato nossa atenção para um fenômenoimportante da arte contemporânea.

Quando Marcel Duchamp expõe um urinol ou umagarrafeira com a cumplicidade da instituição artística, nãoespera que os espectadores se pronunciem sobre a qualida-de estética intrínseca desses objetos. De resto, tais coisassão produtos industriais, são ready-made, e não criações damão do artista. Porém, batizando-as como obras de arte, eleas faz funcionar como tais. Ora, sabe-se perfeitamente queo "sucesso" de Duchamp continua, até os nossos dias, amergulhar a posteridade numa mistura de fascínio e de per-plexidade.

Numa época em que os critérios de avaliação das obrastornam-se indecisos, em que a atribuição da qualidade daobra parece ligada ao arbitrário e se assemelha a uma certi-

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370 o que é estética?

dão de batismo, não devemos, justamente, fazer abstraçãodas sempiternas questões, quase insolúveis, sobre as nor-mas que supostamente determinam com segurança o valordas obras? É o que parece ser o pensamento de Goodman.

Esta filosofia analítica da arte apresenta-se às vezes comoum pouco desorientadora, sem dúvida porque se revela muitomais pragmática do que a da tradição européia. A arte cessade ser para ela esta "escritura inconsciente da história", acarregar todos os sofrimentos do passado de que fala Ador-no. Ancorado na realidade, ela contribui para "fazer ummundo", ele mesmo parte integrante de uma cultura e deuma civilização.

A maior dificuldade da teoria dos símbolos aplicada àarte reside em sua acepção particular do termo estética. QuerGoodman o queira ou não, a estética é antes de tudo ouniverso da sensibilidade, das emoções, da intuição, dasensualidade, das paixões, domínio em que reina umaambivalência irredutível a símbolos e a um sistema de nota-ção. No imaginário privado ou público, a obra de arte viveda infinidade das interpretações possíveis e dos julgamen-tos nuançados, às vezes contraditórios e instáveis solicita-dos por ela. A teoria geral dos símbolos aplicada ao conhe-cimento da natureza - uma das primeiras preocupações deGoodman - não desemboca numa "física". Aplicada à arte,tal teoria conduz realmente a uma simbolização das obras,mas não a uma "estética".

Arthur Danto e a "tranfiguração do banal"

As concepções estéticas de Arthur Danto inscrevem-seigualmente no quadro da filosofia analítica aplicada à arte.Todavia, não se trata mais de elaborar uma teoria dos sím-bolos, mas de justificar a arte moderna.

•..

Marc jimenez 371Danto decide responder por outros meios à pergunta

de Goodman: "Quando há arte?" Como explicar, sobretudo,que objetos de uma banalidade tão aflitiva como os fac-similes das caixas de papelão Brillo expostos pelo artistaAndy Warhol em 1964 possam ser percebidos como obrasde arte, enquanto podemos encontrá-Ias, quase idênticas,em todos os supermercados?

A resposta é simples: coloquemos lado a lado uma ver-dadeira caixa Brillo e uma cópia do artista, ou então umurinol funcional e o ready-made de Duchamp. Percebe-sealguma diferença "estética"? Não, evidentemente, visto queos artistas tudo fizeram para que suas cópias fossemindiscerníveis do original. Conclusão: somente a interpreta-ção permite explicar essa "transfiguração" do objeto banalem obra de arte. Esta interpretação escapa totalmente aoprofano. Ela não é espontânea; ela supõe um público infor-mado, que conhece o ambiente da arte e que se deixa en-volver por uma "atmosfera de teoria artística" . Danto fala do"clima" criado pelo "mundo da arte". Assim, o iniciado, in-formado pelo mercado, pelas mídias, pelos profissionais,pelos conhecedores, pelos críticos oficiais pode empreen-der a identificação do objeto e reconhecê-lo eventualmentecomo "obra de arte".

O procedimento de Danto parece astucioso; mas eledeixa vários pontos na sombra. Por exemplo, será legítimoassociar Duchamp e Warhol? Pode-se aplicar o mesmo raci-ocínio a um objeto industrial "que já existe" - estilo ready-made - e um objeto fabricado pelas mãos do artista - ascaixas Brillo?

Admitamos que o fenômeno artístico permaneça semalteração. A comparação entre o objeto não exposto e oobjeto exposto será probante? De fato, Danto precisa: "Emminha opinião, uma obra possui um grande número dequalidades que são completamente diferentes das de um

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•..

372 o que é estética?

objeto que, embora seja materialmente indiscernível dela,não é uma obra de arte. Algumas dessas qualidades podemmuito bem ser estéticas ou originar experiências estéticas"."

Uma pergunta se coloca: que são estas qualidades seelas não são perceptíveis? Se não são perceptíveis, comoafirmar que são diferentes? Em que reside a diferença entreas qualidades "estéticas" e as qualidades "não estéticas"?

Danto acrescenta: "L..l mas antes de poder reagir a es-tas qualidades num plano estético, é preciso saber que oobjeto em questão é uma obra de arte. Portanto, para poderreagir diferentemente a essa diferença de identidade, é pre-ciso já saber distinguir entre o que é arte e o que não é"."

Resumindo: é preciso saber diferençar para saber fazera diferença. Para distinguir um objeto qualquer de uma obrade arte, é preciso saber antes que objeto é uma obra de arte.A solução reside, como vimos, na interpretação ...Falta, po-rém, compreender de onde a instituição, na origem extraiesta presciência que lhe faz adivinhar que objeto é umaobra de arte.

A dificuldade de Danto, que é também a de mais deum visitante de exposições de arte contemporânea, não virádo fato de conservarmos aqui a categoria "obra de arte"para aplicá-Ia a um objeto que absolutamente não reivindi-ca esta qualidade?

anto, como Goodman, considera supérfluos e inade-quados o julgamento de gosto, a apreciação subjetiva e aavaliação qualitativa. É verdade que nos exemplos citadoseles provavelmente aumentariam a confusão. A interpreta-ção do públicao é válida unicamente se conseguir coincidir

3Arthur Danto, La transfiguration du banal. Une philosophie de l'art, Paris: LeSeuil, 1989, p.160.

'Ibid, p.160-161.

Marc]imenez 373em grau máximo com a interpretação que o próprio artistadá de sua "obra". Todo o trabalho interpretativo consisteportanto, em acumular o maior número de conhecimenmssobre o mundo da arte a fim de reduzir ao mínimo a even-tual margem de incompreensão entre a intenção do artista eo público.

Arthur Danto sublinha uma das tendências ~trovertidas da arte do século XX: a que faz depender a atri- \buição da qualidade da obra ao que se sabe dela do artista .de seus projetos, de sua inserção no ambiente' da artéY~/arte nada mais é do que aquilo que se decide que e1a-~eja,. ..um puro pr~duto, n~o mais artístico, mas .arti.[icial,.engen- l'\ \.(Idrado pelo Jogo da lmguagem e da comurucaçao no interior l J \da instituição artística.

É verdade, por exemplo, que as "ações" de ]oseph Beuyssomente se esclarecem a partir das intenções do artista e desua vida. A Cadeira (1964), o Traje de feltro (1970), Paradade Trem (1976) são incompreensíveis para quem não conhe-ce a simbólica do.s mat~riais usados: graxa, feltro, metal, ~t~."JSem nenhuma afirmação sobre o sentido desses "obje~público somente veria neles resíduos menos providos - seisso for possível! - de atração estética do que o mictório-chafariz de Duchamp e as caixas de papelão de Warhol. Pode-se também, ao contrário de Danto, considerar esses "atos" N~como provocações: sem dúvida, eles irrompem no mundo daarte, mas, se transpõem a entrada da instituição, é com aesperança de abalar seus muros e de desastibilizá-Ia. Umaesperança, de resto, freqüentemente frustrada.

Mas, para Danto, esta concepção de uma arte hostil àsociedade e à realidade não pode fazer esquecer que elaparticipa, querendo-o ou não, do "mundo da arte" e que elaé também, segundo a expressão de Goodman, uma "manei-ra de fazer o mundo". Trata-se aqui de uma interpretaçãoincontestavelmente mais pragmática e realista do papel da

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374 o que é estética?criação artística na sociedade ocidental moderna. Resta sa-ber se esta imagem de uma arte reconciliada com o mundonão é justamente aquela que os artistas se esforçam semprepor desunir. .~.

Compreende-se melhor a origem do debate conteinpo-râneo entre a estética analítica, de tradiçã~ ~nglo-sax~.- e:;-sencialmente norte-americana - e a tradição europeia daqual a estética de Adorno, por exemplo, se quer herdeira.

Para ma, seria ímpossível, repetir ao infinito o jogoínterrrunável do [ulgamento __de valor, sentI?!e subjetivo, eque se julga universal. Ela valoriza a função de conbeci-:

~~tf'l da arte -eà possibilidade oferecida dê- abrir-se aomundo, até mesmo de aceitá-Ia tal como é e ,

Para a outra __em compensação, a obra-de arte encerraelementos históricos e sociais que a estética tem a tarefa deexplicitar. A obra não somente "julga'l-à sua maneira a histó-ria e a sociedade, mas ela própria é candidata à apreciação eà avaliação do público. Um pouco como se este último tives-se de julgar, a cada vez, a qualidade da contribuição artística.

Estas duas grandes correntes da filosofia da arte serãoinconciliáveis? A questão continua aberta.

A critica da modernidade: o pós-moderno

A acolhida favorável reservada, sobretudo na França,às teses de Nelson Goodman e de Arthur Danto deve muitoao contexto artístico e estético. Uma teoria que neutralize osjulgamentos de valor sobre as obras e conceda uma priori-dade à-descrição sobre a avaliação convém mais a uma épo-ca abalada pelo desaparecimento dos pontos de referênciae dos critérios estéticos.

A partir do final dos anos 70 e no início dos anos 80, ascríticas dirigidas à modernidade e aos projetos vanguardistas

Marc]imenez 375tornam-se mais intensas. A moda dita "retrô" já era sintomá-tica de um requestionamento de um sentido da história queevoluía de forma linear para um futuro modernista e radio-so. A época da pós-modernidade e da pós-vanguarda quermarcar o final da idade moderna e da utopia com uma per-feição inacessível. É- a 'época do individualismo e da afirma-ção de uma liberdade que deixa a cada pessoa a liberdadede julgar e de avaliar a seu bel prazer. Rejeitam-se os critéri- .os e as normas estabelecidas pela arte moderna, e cada umse torna mais conciliador para com as formas e os estilos dopassado.

Na França, em 1983, um ardente defensor da arte con-temporânea dos anos 60-70 anuncia, como subtítulo à suaobra, uma "crítica da modernidade", O autor constata a de-fasagem entre o dinamismo da vida cultural e a decrepitudedas artes plásticas condenadas a alimentar-se nas fontes jáesgotadas de uma modernidade moribunda: Dada, arteconceptual, pop art, neo-expressionismo ete.

O retrato aflitivo das "belas-artes" é feito em termosvivos e vigorosos: "De um lado, os últimos representantesda pintura abstrata e analítica multiplicam ao infinito as va-riações sobre o invisível e o quase-nada. E para enganaresta penúria do sensível, a glosa inchar-se-á em proporçãoinversa de seu objeto: quanto mais diminuta for a obra maiserudita será sua exegese. Uma dobragem da tela, um traço,um simples ponto tornam-se um pretexto para um extraor-dinário anfiguri em que se respondem os diferentes jargõesdas ciências humanas [...J Alhures, os devotos da antiarte,sessenta anos após Dada, continuam a agitar os sinaisderrisórios de um apelo às armas ao qual ninguém respon-de - nem respondeu alguma vez".'

SJean Clair, Considérations sur l'état des beaux-arts. Critique de Ia moderriité,Paris: Gallimard, 1983, p.12-13.

_____________J- _

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rII

~ ()~ 3~ o que é estética?

~ As correntes ditas pós-modernas que se multiplicam noI domínio das artes e do pensamento filosófico se apresen-J tam, portanto, como remédios -.salvadores para a crise. De

~ que se trata?~;] O termo pós-moderno tem origem nos debates que"'~:;:J' opõem, nos anos 60, as arquiteturas construtivistas e mo-

dernistas, herdeiras do Bauhaus, Walter Gropius, Moholy-Nagy, Mies van der Rohe, Le Corbusier e uma geração mais- I" recente representada particularmente por Robert Venturi e

((31ãrIes Moore) Estes últimos desejam reagir contra o funci-~o exaltado por seus ilustres predecessores. Consídes

ram-no por demais austero e por demais característico damodernidade dos anos 20-30. Propõem uma arquitetura mais _flexível, concedendo uma maior importância à fachada e,aos elementos decorativos. À pura função substituem a "fun-ção-ficção simbólica'~: Agrada-lhes integrar formas do pas-sado, recorrer aos estilos antigos, sem contudo quebrar ocaráter funcional da arquitetura.

Declaram-se, portanto, pós-modernos apesar do cará-ter rebarbativo deste neologismo. Charles Moore, o arquite-to da Piazza d'Itália em New Orleans - um dos exemplosmais espetaculares do pós-modernismo - não gosta da pala-vra. Se a adota, é somente porque a arte, a moda e a deco-ração de interiores já se apoderaram dela. Em 1978, Charles]encks, crítico de arquitetura, declara ter empregado a pala-vra pela primeira vez em seu livro L 'architecture postmo-derner

La condition postmoderne, de ]ean-François Lyotard, épublicada no ano seguinte (979). A obra do filósofo fran-cês, elaborada nos Estados Unidos, tem uma repercussãoconsiderável. O autor explica como as grandes teorias ci-

"Charles jeneks, L 'architecture postrnoderne, Paris: Denoel-Gonthier, 1978.

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Mare jimenez 377entíficas do período moderno tendem a se tornar caducas.As "grandes narrativas" vivem uma crise de legitimidade.Ninguém mais crê seriamente no tema do progresso da hu-manidade nem no da emancipação iminente do homem gra-ças à ciência e à técnica. Segundo Lyotard, este processo decrise é irreversível. O termo pós-moderno, para ele, é pejo-rativo. Ele não tem a ver, diz o filósofo, com a ideologia dapós-modernidade, nem com as paródias e as citações queinvadem todas as artes.

O vocábulo pós-moderno é, pois, afetado por dois sig-nificados contrários. Mas a moda e o espírito do tempo fa-zem seu trabalho. O primeiro sentido leva a melhor. Torna-se sinônimo de crítica da modernidade enquanto Lyotardpedia somente a reavaliação da modernidade. Seus protes-tos contra a amálgama não mudam nada. A época "moder-na" é declarada antiquada e a "pós vanguarda", versão artís-tica da pós-modernidade, derrama-se, com velocidade epi-dêmica, na pintura, na literatura, na música e na filosofia.

O neologismo "pós-vanguarda" mais ainda do que ode pós-modernidade, pode fazer sorrir, por sua curiosa cons-trução a partir de dois prefixos antagônicos "pós"e "avante".Propõe ele um "após", conservando uma aparência de nos-talgia em relação ao passado. Ele dá a estranha impressãode querer predizer o futuro escovando a história a contrapelo.

Esta ambigüidade caracteriza efetivamente as correntesartísticas dos anos 80, sobretudo nas artes plásticas: os"anacronistas" ou "citacionistas" italianos e francesas, con-sagrados na bienal de Veneza de 1984, o movimentoTransvanguarda de Achille Bonito Oliva, os Novos Fauvesalemães exprimem ao mesmo tempo uma firme vontade deultrapassar o modernismo e uma grande perplexidade dian-te do desaparecimento das vanguardas. Os artistas inspi-ram-se na memória histórica, justapõem ou misturam de for-ma eclética estilos heterogêneos numa mesma obra, juntam

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r

378 o que é estética?

o decorativo, a citação, o folclore num caos muitas vezeslúdico e humorístico.

Tratar-se-à de conjurar o medo de entrar na "pós-histó-ria" e de celebrar com um brilhante buquê final o fim doespetáculo oferecido pela modernidade? Achille Bonito Olivaparece pensar assim quando declara, em 1980, que o con-texto atual da arte é um contexto de catástrofe, "assistidopor uma crise generalizada de todos os sistemas". Este sen-timento de crise global afeta tanto a arte, a cultura, quanto aeconomia e a política. Leva ele a conceber um fim possívelda história. O que não significa, evidentemente, que a histó-ria se detenha, mas que a única maneira de responder àausência de antigas referências e à dissolução dos valorestradicionais consiste em inspirar-se no acervo inesgotávelda história da humanidade.

Baudelaire sabia que o pintor da vida moderna estácondenado a fazer o retrato de uma modernidade transitó-ria, fugitiva e contingente. Mas essa modernidade somentepoderia ser ultrapassada por uma outra modernidade, elamesma precária, e assim por diante. O artista da era pós-moderna não tem outra escolha a não ser a retrospectiva

~ repetida do passado e a aceitação do presente. Liberto dautopia modernista, está ele convidado a gozar serenamentee sem aspirações ilusórias e "futuristas", dos benefícios daépoca atual: "A grande cultura e a cultura comum, declaraBonito Oliva com entusiasmo, realizam uma junção que fa-vorece a instauração de uma relação cordial entre a arte e opúblico, acentuando o aspecto sedutor da obra e o reco-nheci de sua intensidade interior".

A pós-modernidade não é nem um movimento nemuma corrente artística. É muito mais a expressão momentâ-nea de uma crise da modernidade que se abate sobre asociedade ocidental e particularmente sobre os países maisindustria i ados do planeta. Mais do que uma antecipação

Marc jimenez 379do futuro que ela se recusa a encarar, ela aparece, sobretu-do, como o sintoma de um novo "mal-estar na civilização".O sintoma desaparece progressivamente. A crise permane-ce: ela ocupa hoje um lugar considerável no debate estéticosobre a arte contemporânea.

A arte e a crise

O sentimento de crise generalizada é próprio de cadafinal de século. Todavia, esta impressão é, sem dúvida, maisforte quando este final coincide com o de um milênio.

Nada revela melhor a morosidade ambiente dos anos90 do que os leitmotive sobre o tema "a arte está em crise, acrise está na arte, o caos está em toda parte e tudo é caos!"de que se fazem eco as revistas especializadas e mesmo aimprensa de grande público. Basta justapor algumas cita-ções extraídas de comentários recentes para compor o qua-dro de um naufrágio: "mercado da arte em falência", "insti-tuição enfraquecida", "rede cultural opaca", "crítica de artetímida", "modernidade ditatorial", "vanguarda terrorista","mídias recuperadoras", "ensino artístico anêmico", "pinturainexistente", "música contemporânea elitista e confídenci-ai", "artistas charlatães", "Duchamp, pai de uma posteridadedesastrosa", ete.

Mas invertamos este triste quadro e olhemos o outrolado: as instituições públicas subvencionam a criação artísti-ca contemporânea e salvaguardam o patrimônio, as empre-sas privadas multiplicam seu apoio aos artistas graças aomecenato e ao sponsoring, um público zeloso e fiel compri-me-se nos festivais e nas exposições, sem falar do papelcada vez maior das mídias tecnológicas no domínio da ex-periência estética individual.

Não teremos nós, então, a tendência de esquecer que

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380 o que é estética?

as incertezas, as perturbações e as exasperações marcam ahistória da arte? Sobretudo ao longo dos dois últimos sécu-los, pontuados pelas rupturas, pela sucessão dos "ismos" epelos repetidos choques das vanguardas! A crise não desig-nará o estado permanente da evolução artística, como o dasociedade inteira?

Toda época tem este sentimento de ser um momento-charneira, oscilando entre a nostalgia do "já visto" e o dese-jo do "nunca visto"; período de desconforto e de incertezaem que os antigos valores fora de moda ainda não estãosubstituídos pelos novos; instante de tão profunda confu-são que "a humanidade projeta inconscientemente seu de-sejo de sobreviver na quimera das coisas que nunca foramconhecidas, mas esta quimera assemelha-se à morte".'

Lembremo-nos de Platão expulsando para fora da Ci-dade os poetas e os compositores de músicas por demaisvoluptuosas, de Le Brun qualificando os coloristas de borra-tintas e de tintureiros, de Carl Maria von Weber declarandoBeethoven "bom para o asilo de alienados"e dos burguesesque gritam diante de Le déjeuner sur l'berbe, dos antidebus-systas que vociferam na estréia de Pelléas et Mélisande ete.Interrompamos esta lista que, de qualquer modo, é intermi-nável!

A crise atual é ilusão ou realidade? Duas interpretaçõesse enfrentam. Elas parecem suficientemente contraditóriaspara mergulhar na maior complexidade a reflexão estéticacontemporânea, desesperadamente à procura de uma visãoglobal da situação presente. Mas é possível formular umahipótese: perguntar, por exemplo, se "crise" e "ausência decrise" não são as duas facetas de um mesmo fenômeno, isto

7T. W. Adorno, Minima Moralia. Réfiexions sur Ia vie mutilée, Paris: Payot, 1980,trad. E. Kaufholz e J. R. Ladmiral, p.222.

Marcjimenez 381é, O nascimento de um poderoso sistema econômico encar-regado da gestão das práticas culturais e artísticas.

As instituições e as indústrias culturais conheceram defato um desenvolvimento sem precedentes ao longo dosdois últimos decênios. O sistema cultural moderno tem avantagem de suprimir o antigo antagonismo entre a arteburguesa, freqüentemente elitista, e a arte de massa, reser-vada ao grande público. Governado pelo princípio de ren-tabilidade, ele distribui ao maior número de pessoas o mai-or número de bens culturais e funciona como uma gigantes-ca cornucópia em que todos podem satisfazer à vontade ospróprios desejos e paixões.

Este sistema tolerante e laxista aceita todas as formas etodos os estilos da arte passada, moderna e contemporânea.Todavia, se deixa ele em segundo plano as hierarquias devalor e as diferenciações estéticas, também não se desinte-ressa pelo valor das obras. Dispõe porém de seus próprioscritérios, somente conhecidos pelos peritos e pelos especia-listas do mundo da arte e apenas por eles. Seus meiospromocionais são de forma a conseguir criar um consensoao redor de obras contemporâneas, mais apreciadas em fun-ção da fama do artista do que em razão de suas qualidadespróprias e cuja chave escapa o mais das vezes ao grandepúblico.

Criador de seus próprios valores e de seus critérios deexcelência, o cultural pode, portanto, economizar uma re-flexão estética que se interessa sem descanso e prioritaria-mente pelas resistências que cada obra opõe à sua absorçãono circuito do consumo cultural. Excetuando os fatores eco-nômicos, sempre conjunturais, o mal-estar contemporâneoé, portanto, bem real. Paradoxalmente, resulta ele do pró-prio sucesso de um sistema cultural hegemônico, apto adesarmar qualquer crítica graças à sua generosidade e à abun-dância de suas contribuições.

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382 o que é estética?

É bastante significativo que o termo cultura tenda asubstituir-se ao de arte nas expressões mais correntes davida cotidiana. A arte ou as artes tornam-se um subconjuntode uma esfera em constante expansão. Esta esfera é a da"comunicação cultural", que dispõe de todos os meios tec-no lógicos e mediáticos ao serviço da difusão e da promo-ção de seus produtos, outra palavra que muito freqüen-temente substitui a de obras, considerada por demais ligadaa uma concepção tradicional da criação artística.

Pode-se, portanto, falar de uma "lógica cultural" paradesignar o processo de universalização que responda à exi-gência de democratização na sociedade moderna. Mas estalógica cultural não satisfaz a todas as expectativas da expe-riência estética coletiva ou individual. Sabe-se perfeitamen-te, por exemplo, que o público, tantas vezes perplexo dian-te de certas criações inéditas da arte contemporânea, esperaem vão a revelação dos critérios estéticos que permitiram aseleção de tal produção em lugar de tal outra. Certamentetais critérios existem, porém permanecem muitas vezes umapropriedade de peritos e de pessoas que decidem, freqüen-temente competentes, mas discretos.

Excluído de um jogo cujas regras ignora, o público nãotarda a convencer-se da existência de um consenso entreiniciados que o condena a desempenhar o papel de consu-midor profano e dócil. Frustrado e desorientado, deixa-seentão envolver pelo ambiente, o da total dissolução doscritérios estéticos; época de grande bem-aventurança, emque tudo é supostamente possível em arte, incluindo o "nãoimporta o quê". Walter Benjamin não anunciara o fim dacrítica no dia em que o homem conseguisse realizar seusonho de viver num Disneyworld?

Marc ]imenez 383Aquestão dos critérios estéticos

A reflexão atual sobre a arte dedica uma parte de seusesforços a resolver esta tensão entre a "lógica cultural" e a"lógica estética", entre a aceitação passiva dos benefícios dosistema cultural e a vontade de legitimar a apreciação e osjulgamentos aos quais estão expostas as obras.

Já fizemos alusão ao gesto provocador e iconoclasta deMarcel Duchamp no início do século XX: expor, numa gale-ria de arte, um objeto feito, um ready-made, como roda debicicleta, pente, garrafeiras, ou o cúmulo: um urinol. Emoutras palavras, nada que não solicite realmente o sentidoestético. Duchamp declara-se anarquista, hostil à pintura quechama de retiniana, pintura de cavalete, suspensa nascimalhas e destinadas a mobilizar unicamente o olhar.

É claro que ele está perfeitamente consciente da blasfê-mia: "Meu chafariz-mictório partia da idéia de tentar umexercício sobre a questão do gosto: escolher o objeto quetenha a menor possibilidade de ser amado. Há poucas pes-soas que consideram um mictório uma coisa maravilhosa.Pois o perigo é o deleite artístico. Mas pode-se fazer comque as pessoas engulam qualquer coisa; foi o que aconte-ceu". Efetivamente, "aconteceu", e mesmo com tanta perfei-ção que, por uma curiosa ironia da sorte, gerações de artis-tas e de amadores .conseguiram a partir de 1917, deleitar-secomonão-~

, EXiStemmúlt~nterpretações do gesto de Duchamp.Precisamos, portanto, limitar-nos às que nos interessam eque exigem poucas palavras. Esqueçamos a vontade do ar-tista de questionar um modo de representação pictórica so-lidamente ancorado na cultura ocidental, sobretudo a partirda Renascença. Esqueçamos também a armadilha lançada àinstituição artística e a resposta desta instituição que, final-mente, se presta ao jogo.

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384 o que é estética?

Ficou um traumatismo e seqüelas de que nossa épocaparece sofrer ainda. O ready-made coloca de fato o proble-ma da definição da arte: nada ou quase nada no ponto departida, um objeto banal ou trivial transforma-se milagrosa-mente em "obra de arte" pela graça do batismo do "artista"e da "confirmação" da instituição. O milagre provém de poucacoisa: basta deslocar as fronteiras da arte. Não se perguntamais "O que é a arte?", mas, como diz Nelson Goodrnan:"Quando existe arte?", a partir de que momento e em quecondições opera-se a transmutação?

Na realidade, o problema aqui está mal colocado. Nãohá transmutação nem conversão do ready-made em objetode arte, mas simplesmente irrupção, no campo artístico, deuma ação inédita, de tipo Dada. A implicação do mundo daarte transforma esta mistificação jocosa em mistificação sé-ria.

Ela o é, de fato. Pois este ato sacrílego - ou dessa-cralizante - tem como conseqüência um abalo de todos oscritérios clássicos que servem habitualmente para julgar ecriticar a obra, ou mais geralmente o objeto de arte. Portan-to, não é de espantar que o final do século :XX, já perturba-do pelo desaparecimento dos critérios modernos ouvanguardistas e pelo ecletismo pós-moderno, considereDuchamp - erradamente - como o grande responsável peladecadência da arte contemporânea.

Que soluções propor à deliqüescência dos critérios es-téticos? Evidentemente, três se apresentam ao espírito: ourestauram-se os critérios antigos, ou substitui-se a obrigaçãode julgar e de avaliar pelo imediatismo e pela espontaneida-

:íde.J!g prazerestético, ou procuram-se novos critérios.V~ ~o de critérios tradicionais coloca pro-

blemas insolúveis. Que tipo de critérios? Extraídos de queépoca? Antiga, clássica, romântica, moderna?

As normas e as convenções estéticas exprimem a sen-

1!

Marc jimenez 385sibilidade de uma sociedade em um dado momento; elasnão são entidades abstratas que se podem arrastar à vonta-de dentro da história. Continuar neste caminho significa evi-denciar uma nostalgia pelo passado, às vezes respeitável,mas inapta a compreender a evolução da arte. A menos queela já não seja, em si mesma, um julgamento, implícito edesfavorável, sobre a arte contemporânea.

A segunda solução consiste em erigir o prazer e o gozoestéticos em critérios de qualidade ou de êxito de uma obra.Esta atitude não é nova. Ela remonta ao século XVII e lem-bra os debates intermináveis sobre o gosto, entre os partidá-rios do sentimento e os defensores do julgamento baseadona razão. Todo mundo concorda facilmente em reconhecerque o defeito redibitório de uma obra de arte é o de suscitarseja a indiferença, seja o tédio. Devemos dizer, por isso, queprazer eqüivale a julgamento?

Evidentemente, resolvemos o problema dos critériosimpossíveis de serem encontrados, sobretudo para a artecontemporânea. Eliminamos a questão do julgamento, daavaliação, da hierarquia dos valores, grande dificuldade daestética. Porém, simplificamos ao extremo a noção de pra-zer. Freud mostrou, de fato, que o domínio do prazer e dogozo estéticos apresenta a mesma complexidade que o gozoerótico: ambos são ambivalentes. Isto significa que o gozo eo prazer encerram às vezes uma boa dose de seus contrários,assim como o ódio é o amigo-inimigo do amor.

Além disso, dificilmente podemos admitir que o prazerseja uma espécie de dado em estado puro na obra de arte.Uma obra de arte me agrada, seja! Mas o prazer que sinto éelaborado por mim, em função de meu temperamento, dodespertar de minha sensibilidade à arte e de minha educa-ção. O prazer, de forma alguma específico à esfera estética,não é, portanto, um critério de qualidade artística. Talvezele seja um dos múltiplos elementos do julgamento, mas ele

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-386 o que é esté~ica?

me ensina muito mais sobre mim mesmo do que sobre aobra com a qual sou confrontado.

Enfim, o prazer não poderia indicar seja o que for so-bre a qualidade artística de uma obra. A satisfação sentidana leitura de um romance policial ou diante de um filmedestinado a divertir não leva, por tal razão, a julgar que setrata de obras-primas nem mesmo de obras de arte. Emcontrapartida, pode acontecer que uma coreografia moder-na, não familiar ao meu gosto, ou então uma pintura realistae crua acabem por forçar minha atenção a despeito de qual-quer atração espontânea. Aqui tudo é questão de nuanças esão estas diferenciações, às vezes sutis, que permitem levarem consideração o que pertence à estética - o que aquilisonjeia os sentidos - e ao artístico, que supõe um mínimode objetividade.

O terceiro caminho orienta-se para a definição de crité-rios estéticos específicos para as obras contemporâneas.Concebe-se com facilidade a dificuldade deste tipo de pesqui-sa. Os critérios, já o lembramos, são a expressão de umasituação histórica e social particular. Não existem critériosintemporais imutáveis que permitam apreciar, sobre as mes-mas bases, um quadro de Botticelli e uma obra de FrancisBacon, a música de Palestrina e a de Ligeti.

Se quisermos absolutamente falar de critérios, será pre-ciso, portanto, procurá-Ios não numa esfera transcendentalqualquer, aistórica, mas na própria obra. Admitir-se-á, porexemplo, que é difícil considerar como obra de arte bemsucedida, e com maior razão como obra-prima, um objetosuscetível de passar despercebido. Da mesma forma, umacomposição pictórica, musical ou literária incoerente, ela-borada de modo arbitrário, totalmente aleatória, a partir demateriais e de formas justapostas de maneira heterogênea,impõe-se raramente como obra de arte ... excepto se estaincoerência provém de uma demarche intencional e se ins-

Marc jimenez 387creve em um projeto coerente do artista, como a escritaautomática dos surrealistas.

A "obra de arte" designa habitualmente um objeto, umaação, um gesto que apresentam um mínimo de lógica emsuas demarches e de rigor em seus procedimentos. Contra-riamente ao preconceito corrente, as obras de arte não seperdem nesta vaporosidade artística ou estética que comdemasiada freqüência serve para depreciar a arte aos olhosdos cientistas.

Será possível dizer que o gesto do escultor, a técnicacontrapontista, a pincelada do pintor, a escritura política, amarcação de uma coreografia, os gestos do ator são despro-vidos de precisão? Acusam-se o Tratado de harmonia deSchonberg, o Cravo bem temperado de Bach, o Tratado dapintura de Leonardo da Vinci, as Senhoritas de Avignon deserem vaporosos? Mesmo se o primeiro ready-made de Mar-cel Duchamp, é "não importa o quê" ele não é não importaonde, não importa quando, não importa como!

Porém as obras citadas aqui mais do que obedecerem amodelos pré-estabelecidos, produziram, sobretudo, critérios.Como dizíamos precedentemente, são as obras de arte queengendram os critérios e não o inverso. Nem todas as obrasde arte são obras-primas. Quando isso acontece, o fato sig-nifica que souberam transgredir as normas em vigor em suaépoca. Mas isso somente o tempo pode prová-Io.

Aplicada à arte contemporânea, a questão dos critériosaparece, portanto, como um falso problema. Imaginemosum critério aparentemente indubitável como aquele invoca-do acima: o caráter racional da obra. Quem me diz que talcritério é e será sempre bom? Qual é o critério do critério, eassim por diante? Não seria melhor dizer que o aspecto "ló-gico" de uma obra é, ele também, um dos parâmetros entreoutros? Evidentemente, ele é importante, porque constituium elemento de inteligibilidade e de compreensão da obra.

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388 o que é estética?

Permite ele a análise crítica e a interpretação e, portanto, odiscurso conceptual comunicável a outrem.

Todavia, tal parâmetro nada diz sobre a qualidade daobra. Ele vale o que valem as técnicas, o ofício e o saber.Úteis para distinguir o charlatão do artista verdadeiro, nãosão critérios necessários nem suficientes: quantas obras nãoresultam de um acontecimento contingente, de um aciden-te, às vezes de um gesto imprevisível como aquele que le-vou o artista americano ]ackson Pollock a "inventar" a técni-ca do dripping. Quantas obras, em compensação, nasceramde um profissionalismo rigoroso, exalando ao mesmo tem-po o indizível tédio do dever bem realizado?

Pode-se admitir que nas obras mais desconstruídas, nasmais estrambóticas, reina uma ordem oculta, ligada ao in-consciente, ao sabor das "pulsões primárias", como o de-monstrou o psicólogo Anton Ehrenzweig." Todavia, mesmotais pulsões não resultam freqüentemente, como Freud tãobem o demonstrou, de uma pequena desordem ... na ori-gem?

o desafio da estética

Nenhuma teoria estética dispõe hoje do guia que per-mitiria outorgar infalivelmente as estrelas do mérito a obras ,em sua maioria, à espera de interpretação. No final do sécu-lo XX, a filosofia da arte é obrigada a renunciar à sua ambi-

~"çã~ passada: a de uma teoria estética geral que al5race oemverso da sensibilidade, do imaginário e da cria ão.

Não é possível, ao mesmo tempo, estar na sacada e

"Anton Ehrenzweig, L'ordre cacbé de l'art. Essaisur Iapsycbologie de t'imaginationartistique. Paris: Gallimard, trad. F. Lacone-Labarthe e C. Nancy, 1974.

Marc jimenez 389ver-se passar na rua, dizia Auguste Comte. Ao mesmo tem-po perto e longe das obras, a estética se encontra nessasituação; ela pode apenas lamentar não ter o dom da ubi-qüidade. Imersa em sua época, é legítimo que ela sonhe emrealizar uma outra universalidade que não aquela propostapelo sistema cultural; é também legítimo que tente elaborarcritérios libertos dos imperativos do mercado da arte, dapromoção mediática e do consumo.

Sua tarefa assemelha-se então à de Sísifo: exumar umaobra enterrada sob anos de indiferença e de esquecimentoou proceder à valorização de um artista contemporâneo sig-nifica também assumir o risco de suas próximas integraçõesno universo indiferenciado dos bens culturais. Será este ris-co suficiente para obrigá-Ia à renúncia? Isto seria esquecerque a estética é questão de "distância conveniente"." De~'"':'\siadamente perto da "mundanidade", ela se contenta~ easpirar a atmosfera ambiente; cede às modas efêmeras erenuncia à sua vocação filosófica que é a de ver "além".Demasiadamente longe da realidade ela naufraga na espe-culação abstrata. ----------':.---

A visão correta? Basta acomodar o olhar às propostasdos artistas e aceitar seus convites para viver intensamenteuma experiência em ruptura com o cotidiano. Tais propos-tas podem intrigar, chocar, desorientar, irritar, às vezes tam-bém entusiasmar e deslumbrar. A tarefa da estética consisteprecisamente em prestar extrema atenção nas obras a fim deperceber "simultaneamente, todas as relações que elas esta-belecem com o mundo, com a história, com a atividade deuma época" .10 Ela reata então com a exigência de Kant: sair

"Expressão de Walter Benjamin.

I(~ean Starobinski, La relation critique, Paris: Gallimard, 1970, p.195.

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III

I"

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\ 390 o que é estética?

tl\~da solidão da experiência individual, subjetiva e abrir essaN experiência se não a todos, pelo menos ao maior número.

Baumgarten já pressentia que a estética era uma "ciên-cia" particular. Isto é dizer pouco! Como qualquer ciência,ela evolui em função de seu objeto. Porém, no sentido in-verso, ela devesempre esperar ser ultrapassada por ele. Naverdade, ela nunca o espera; é sempre surpreendida pelasrupturas e pelos choques intempestivos da criação artística.

Lembramos a alternativa colocada por Friedrich vonSchlegel: ou a arte, ou a filosofia. Não é proibido pensarque a estética seja obrigada a reconciliá-Ias permanente-mente. Como qualquer disciplina, ela é construída sobre abase das dificuldades que encontra, mas também das solici-tações de que é objeto. Em nossos dias, tais solicitaçõesresultam precisamente da confusão causada por uma criseque gostamos de considerar sem equivalente na história.Como se nossa época tivesse de gozar do privilégio da ori-ginalidade! Mas nem a estética nem a filosofia têm por voca-ção repetir periodicamente a oração fúnebre da arte, doscritérios, da crítica, dos valores, dos ideais perdidos oumomentaneamente extraviados.

A estética aceita a aposta se responde aos crescentespedidos de interpretação, de elucidação e de sentido; sedemonstra que circular nos parques de atração da cultura éagradável, mas é ainda mais importante que a cultura circu-le em cada um de nós.

A partir dos Tempos Modernos, a filosofia teve de daradeus à metafísica, à verdade, ao Ser, à ciência, às grandesideologias, às utopias da modernidade; ao homem também,que ela entregou aos cuidados das ciências humanas. Masela nunca pôde, de fato, cortar os laços com a arte. Ferra-menta pedagógica, argumento teológico, instrumento depropaganda, cópia da natureza, aparência inofensiva, refle-xo da realidade, projeção de fantasmas, paixão narcisista,

1Marc fimenez 391

objeto de prazer, meio de conhecimento, a arte sempre foi obrinquedo da filosofia. A filosofia, todavia, leva a sério talbrinquedo, talvez com secreta inveja do artista, capaz deapreender com um gesto, com uma cor, com um simplesacorde o que os discursos e os conceitos nunca conseguemrealmente expressar.

A arte revela-se assim como a questão essencial da filo-sofia. Muito raras são as filosofias que não se prestaram aisso, antes mesmo que a estética tivesse nascido um dia dafilosofia. E é por esta razão que o filósofo da arte não pode,sob pena de ele mesmo desaparecer, acreditar seriamenteem uma morte da arte. Ou então, se acredita nela, é à ma-neira de Francis Picabia ao declarar: "A arte está morta! Souo único a nada ter herdado dela".

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r

ÍNDICE DE NOMES PRÓPRIOS

A

Adler 266Adorno 7,21,102,143,165,186,305,306,307,318,325,326,327,328,336,338,348,349,354,355,356,358, 359, 360,362,363,364,365,366,370,374,380Agostinho (santo) 34, 35, 84, 211, 212Alberti, Leon Battista 36, 37,44,46Alberto, o Grande 2, 33, 213Alernbert, Jean d' 81Alexandre, o Grande 66, 101, 218Andrea del Castagno 46Angelico 47Apoio 68, 209, 246, 252, 253, 255, 271Aquiles 235,236,270,289Aragon, Louis 297, 328Ariosto (Ludovico Ariosto, dito I') 178Aristófanes 209Aristóteles 20, 26, 66, 83, 106, 167, 185, 193, 194, 210, 211, 212, 213,214,215,216,217,218,219,220,221,222,223,224, 225, 226,227,229,237,278,280Arnauld, Antoine 69Aron, Raymond 328Arp, Hans 291Atenodoro 100Atget Eugêne 334Averróis 212

Bach,J. S. 22, 166,358,387Bachelard, Gaston 345Bacon, Francis 386Balzac, Honoré de 315Bartok, Bela 317Basch, Victor 335Batteux, Charles 93, 95, 98, 99, 123, 133, 213Baudelaire, Charles 7,153,195,275,276,277,278,279,281,285,293,326,328,332,338,347,378Baumgarten,A. G. 5,18,19,20,21,32,74,95,99,112,113,114,115,132,146,191,365,367,390

B

Page 202: jimenez, marc - o que é estética

400 o que é estética? Marcjimenez 401BaxandaIl, Michaél 41, 47Bayle, Pierre 69, 70, 71, 89Becken,SamueI316,349,350,356Beethoven, Ludwig van 15, 166,360,380Benjamin, Walter 7, 165,292,297,305,306,307,318,325,326,327,328,329,330,331,332,333,334,335,336,338,347,349, 351, 353,355,382,389Berg, Alban 349, 353Bernini, Gian Lorenzo (dito o Cavaleiro) 66Bettelheim, Bruno 353Beuys, ]oseph 15, 373Bizet, Georges 242Blanchard, Gabriel 65, 73, 75Bloch, Ernst 305, 306Boileau, Nicolas 20, 69, 74, 89, 98, 104, 212Bonaparte, Napoléon 151Bonito Oliva, Achille 377, 378Borgia, Cesar 38Bossuet, ]acques Bénigne 222BotticeIli, Sandra 386Bouhours (Padre) 63, 71, 74Boulez, Pierre 353, 358Brancusi, Constantin 14, 293Braque, Georges 288Brecht, Bertolt 224, 225, 226, 316, 317, 327Brecker, Arno 257Breton, André 13, 130, 291, 295, 297, 330BruneIleschi, Filippo 46Buren, Daniel 362Burke, Edmund 88,106,110,136,139,159C

Condillac, Etienne Bonnot de 80, 81Corneille, Pierre 22, 59, 60, 212Corot, Camille 278, 279Courbet, Gustav 278, 282Coysevox, Antoine 98Cristina da Suécia 63Croce, Benedetto 293, 294, 335

D

Dacier, Mme. 69Dacier, André 212Dante Alighieri 174, 178, 313Danto,Arthur7,370,371,372,373,374David, Louis 80, 115, 166Debussy, Claude 256, 286Degas, Edgar 282Delacroix, Eugene 278Demócrito 237Derrida, ]acques 354Descartes, René 20, 24, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59,60,63,69,76,78,79,80,89,92,114,148,196Diderot, Denis 5, 79, 81, 88, 93, 94, 99, 104, 106, 107, 108, 109, 110,111,112,113,192,228Dion Crisóstomo 83Dioniso 246, 250, 252, 253, 254, 256Diotima 200, 201, 202, 321Dix, ano 291Dos Passos, ]ohn 316Dostoievski, Fiodor 312, 313Du BosCabade)70,89,90,91,92,93,98, 105, 107, 140, 144Duchamp, Mareei 13, 288, 291, 292, 369, 371, 373, 379, 383, 384, 387Duchamp-Villon, Raymond 288Dufrenne, Mikel 335, 362Dürer, Albrecht 293Duret, Theodore 285

Calícrates 176Camus, Albert 241Carlos V 37Celan, Paul 349Cervantes, Miguel de 174Cézanne, Paul 22, 279,295, 316Champaigne, Philippe de 64Chaplin, Charlie 330Char, René 22Chardin, ]ean-Baptiste 111Chateaubriand, François René 152Chopin, Frédéric 359Colbert, ]ean-Baptiste 60, 68, 69, 98, 106Comte, Auguste 389

E

Eco, Umberto 213Édip0218, 219,221,222,260,261,262, 263,266,269Ehrenzweig, Anton 388Einstein, Albert 232Engels, Friedrich 234, 339Epicuro 70, 237Ernst, Max 291, 295, 305, 306

I:

Page 203: jimenez, marc - o que é estética

4020 que é estética?Eros 161,338,340,343,344,345,348Ésquilo 218, 253Eurípedes 253

F

Faure, Elie 60Félibien, André 55, 60, 61, 62, 63, 74, 75Felipe II 218Fénelon, Françóis de Salignae de Ia Mothe 69Fichte, Johann Gottlieb 148, 149, 305, 327Ficino, Marsilio 56, 211Fídias 173, 176, 257Filareti (Antonio di Pietro Avelino, dito) 37Filóstrato, o antigo 211Fontenelle, Bernard 69, 70, 163Forster, Bernhard 241Fõrster, Elisabeth 241Fouquet, Nicolas 60Fourier, Charles 326Fragonard, Jean Honoré 111Franeastel, Pierre 10, 186, 280François I 37Frederico II 150Freud, Sigmund 6, 22, 116, 144, 161, 164, 193, 210, 224, 229, 231, 232,242,256,257,258,259,260,261,262,263,264,265,266, 267, 268,269,270,271,272,275, 289,297, 305,325,338,340,341,342,343,344,385,388Friedrieh, Caspar David 11, 17, 18, 24, 109, 111, 144, 145, 146, 147,148,150,154,155,162,164,166,183,185,240,344,390

G

Galilei, Galileu 78Gassendi, Pierre 60, 69, 78, 79Gautier, Théophile 279Gellée, Claude (dito le Lorrain) 256Gide, André 328, 345Giorgione (Giorgio Barbarelli) 294Giotto 45Gluek, Christoph von 110, 166, 185Goebbels, joseph Paul 338Goethe, johann Wolfgang von 93, 109, 111, 115, 139, 150, 151, 166,174,176,178,213,224,237,296,321,326,347Goodman, Nelson 7, 366, 367, 368, 369, 370, 371, 372, 373, 374, 384Green, Julien 328

•...

Marc jimenez 403

li'

Greenberg, Clement 102, 294Greuze, Jean-Baptiste 111Grimm, Melchior, barão de 111Gropius, Walter 296, 376Grosz, Georges 291Guys, Constantin 278

H

Habermas, Jügen 7, 364, 365Haendel, Georg Friedrieh 166Haussmann, Georges, barão 326Héeuba 100Hegel,G.W. F6, 12, 18,21,35,85,88,95,96,99, 104, 111, 113, 115,116, 145, 148, 149, 153, 154, 155, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171,172, 173, 174, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186,187, 188, 192, 193, 195, 196, 206, 227, 228, 232, 236, 270, 275,276,292,295,298,305,308,311,336,338,358,366Heidegger, Martin 7, 305,.306, 307, 318, 319, 320, 321, 322, 323, 324,325,338,339,354,366Heráclito 323Héreules 68Herder, johann Gottfried 150Hesíodo 206Hípias 198, 199, 200Hitler, Adolf 330Hobbes, 1110mas 78, 79Holderlin, Friedrieh 116, 148, 153, 155, 166, 178, 183, 206, 320, 321,322Home, Henry 139, 163Homero 69,134,135,139,165,173,178,183,204,206,207,209,218,219,229,236,237,306,313Horáeio 68, 97Horkheimer, Max 336, 338, 349, 352, 353, 354, 355, 364, 365Houdar de Ia Motte, Antoine 69, 70Hugo, Vietor 22, 152Hume, David 79, 80, 139Husserl, Edmund 305, 319, 327, 338, 351, 353Huteheson, Francis 79, 80, 139

I

letinos 176Ingres, Dominiques 278, 292loneseo, Eugene 16,317

Page 204: jimenez, marc - o que é estética

404 o que é estética? Marc jimenez 405J Lessing, Gotthold Ephraim 5, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 103, 109, 123,

213,224,359Leto 246Ligeti, Gyorgy 386Lippi, Filippino 40Lippi, Filippo (Fra) 40, 41, 46Lobatehevski, Nieolas 232Loeke, john 69, 79, 80, 81, 89, 91Longino 74, 75, 84Louis XIV 57, 59, 60, 68Lukáes, Gerg 7,305,306,307,308,309, 310, 311, 312, 313, 314, 315, 316,317, 318, 320, 323, 324, 325, 327, 338, 339, 353, 354, 366Lully, jean-Bap 98Lyotard, Jean-François 376, 377

Jauss, Hans Robert 7, 363Jdanov, Andrei 315jean-Paul (Johann Paul Friedrieh Richter) 6, 162, 164, 165, 179, 192,228,351Jeneks, Charles 376Jensen, Wilhelm 263, 265jouhandeau, Mareei 328jouve, Pierre-jean 328Joyee, james 316, 349Júlio II 100, 267Jung, Carl Gustav 263, 266, 344

KM

Kadar, janos 316Kafka, Franz 316,317,326,338,349Kandinsky, Vassili 280,286,295,296,349Kant, Immanuel 6, 12, 18, 21, 35, 38, 44, 49, 54, 57, 74, 76, 78, 79, 80,81,88,91,95,99,104,105,110,111,113,114,115,117, 118, 120,121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 134, 135,136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149,153,155,156,157,158,159,161,166,170,184,185, 186, 196,233,247,298,305,311,327,335,336,344,358,363,364,389Kierkegaard, Sôren 309, 313, 314, 338, 353Kirehner, Ernst Ludwig 295Klee, Paul 280,296,334,349,359,360Klimt, Gustave 269Klossowski, Pierre 328Kokosehka, Oskar 269

Mahler, Gustav 360Malebranehe, Nieolas de 58, 69, 79, 80, 89, 91Malevitch, Kazimir 287, 297Mallarmé, Stephane 286, 334, 349Manet, Edouard 238, 278, 279, 281, 282Mann, Thomas 315, 316Marc, Franz 286, 296, 297Mareuse, Herbert 7, 161, 162, 305, 306, 307, 325, 336, 337, 338, 339,340,341,342,343,344,345,346,347,348,349,353,355,362Marinetti, Filippo Tommoso 287, 295Mársias 209Marx, Karl6, 116,193,229,231,232,233,234,235,236,237,238,2 39,240,241,257,258,261,270,271,275,305,308,309,311, 323, 325,338,339,340Matisse, Henri 286, 316Meeenas 97Memling, Hans 166Mendelssohn, Moses 140Merleau-Ponty, Mauriee 335Mersenne (Pêre Marin) 53, 78Miehelangelo 38, 40, 258, 265, 266, 267, 289Miehelet, Jules 277Mies van Der Rohe, Ludwig 376Milton, john 135, 139Minerva 41, 182Moholy-Nagy, Laszlo 376Moisés 258, 266, 267, 289Monet, Claude 279Montaigne, Miehel de 59, 96, 156, 309

L

La Bruyêre, Jean de 69La Fleche 80La Font de Saint Yenne 105, 106, 107La Fontaine, Jean de 71La Mothe Le Vayer, François de 69La Tour, Maurice Quentin de 111Laio 260Landino, Cristoforo 46Lautréamont (Isidoro Ducasse, dito) 130, 297Le Brun, Charles 60, 61, 64, 65, 66, 67, 73, 98,380Le Corbusier (Edouard jeaunneret-Gris. dito) 376Leibniz, Gottfried Wilhelm 69, 78, 79, 113

J

Page 205: jimenez, marc - o que é estética

406 o que é estética? Marc jimenez 407Montesquieu, Charles de Segondat, barão de 71, 214Moore, Charles 376Morris, William 286, 296Mozart, W.A. 15,166,185,259Musil, Robert 316

Polidoro 100PolIock, Jackson 388Poussin, Nicolas 22, 55, 62, 64Praxíteles 237Príamo 100Prometeu 345Proust, MareeI 326, 334, 349N

Nadar, Felix 279Napoleão 151Narciso 345Naudé, Gabriel 69Naville, Pierre 297Newton, Isaac 118, 134, 140Nietzsche, Friedrich 6, 11, 21, 116, 144, 153, 162, 165, 193, 195, 196,198,210,229,231,232,240,241,242,243,244,245,246, 249, 250,251,252,253,254,255,256,257,258,269,270,271,275, 295, 297,299,305,325,354,366Nolde, Emil 295Novalis, Friedrich 93, 151, 152, 154, 164, 183, 297, 321, 327

R

o

Racine, Jean 212, 347RafaelIo, Sanzio 62, 64Rameau, Nicolas 110, 111Rapin (Padre) 212Rauch, Christina 166Ray, Man 291Rembrandt 166, 293, 294, 369Riedel, J. F. 132Riegl, Alois 327Riemann, Bernhard 232Rietschel 166Rimbaud, Arthur 101, 297, 356Robespierre 148Rodin, Auguste 22, 288, 289, 290Rossini, Gioacchino 166, 185Rousseau, jean-jacques 24,80,81, 111, 139, 140Rubens, Peter Paul 65, 75RucelIai, Giovanni 41Ruskin, John 296

Olsen, Régine 313

p

Palestrina, Giovanni Pierluigi 386Pascal, Blaise 24, 60, 73, 309Pátroclo 270Péret, Benjamin 297Péricles 207, 245Perrault, Charles 69pfister, Oskar 268Picabia, Francis 291, 391Picasso, Pablo 13, 102, 288, 289, 316, 330, 349, 355, 357Piccinni, Niccolà 110Piero delIa Francesca 37Piles, Roger de 55,64,65,66,73,75,76,111Pitágoras 46, 204Platão 6,21,23,26,56,83,106,107,154,167,171,173,183,187,193,194,196,197,198,199,200,201,202,203,204,205,206, 207, 208,209,210,211,212,214,215,216,217,218,219,224,226, 227, 229,237,245,252,254,278,280,309,321,327,380Plínio, o antigo 83, 100, 211Plotino 56, 211

s

Safo 22Saint-Evremond, Charles de 70Schaeffer, Jean-Marie 155Schelling, Friedrich von 146, 147, 148, 149, 153, 155, 164, 166, 183,295,321,327Schiele, Egon 269Schikaneder, Emmanuel 185Schiller, Friedrich von 6, 18, 24, 93, 109, 111, 145, 150, 153, 154, 155,156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 166, 174, 178, 181, 192, 228,237,335,344,345Schlegel, August Wilhelm von 213Schlegel, Friedrich von 111, 150, 154, 164, 183, 185, 390Schlemmer, Oskar 296Scholem, Gershom 327

Page 206: jimenez, marc - o que é estética

408 o que é estética? Marc jimenez 409Schonberg, Arnold 13, 102, 269, 288, 296, 298, 316, 338, 349, 350,353,356,360,387Sehopenhauer, Arthur6,165,242,246,247,248,249,253,305Sehubert, Franz 15Sehwitters, Kurt 291Seott, Walter 315Seriabine, Alexandre 101Seidler, Irma 317Sêmele 246Shaftesbury, Anthony 79, 80, 139Shakespeare, Willian 166, 174, 178, 261Sóerates 107, 195, 198, 199, 200, 201, 202, 207, 208, 214, 244, 245,252,253,254Sófocles 218, 219, 221, 229, 237, 253, 260, 263, 266Soljenitsyne, Alexandre 316Soupault, Philippe 297Souriau, Etienne 101Spinoza, Barueh 69, 78Stalin, ]oseph 315, 316Starobinski, ]ean 109, 363, 389Stendhal (Henri Beyle, dito) 350Stoekhausen, Karlheinz 353Strauss, ]ohann 256, 269Stravinski, Igor 349Sulzer, ]ohann Gerg 140

Van Gogh, Vineent 279Vasari, Giorgio 40, 45, 66, 267Venturi, Robert 376Vernet, ]oseph 111Verroeehio 41Vinci, Leonardo da 16, 20, 37, 38, 44, 45, 47, 48, 97, 98, 256, 265, 266,268,387Virgílio 97Vitruvio 66Voltaire 79, 110, 121, 163

w

Wagner, Riehard 6, 101, 242, 246, 249, 250, 251, 254, 255, 256, 269,275,279,349Warhol, Andy 371, 373Watteau, Antoine 111Weber, Carl Maria von 380Weber, Max 300Webern, Anton von 349Winekelmann, ]ohann ]oaehim 20, 100, 109, 115, 152, 165, 243Wolff, Christian 113Wólfflin, Heinrieh 293Worringer, Wilhelm 296

Tx

Xenofonte 174Tánatos 272Téniers, David 111Teofrasto 212Terrasson (abade) 70Thiers, Adolfo 278Tiziano (Tiziano Vereello, dito) 37, 38, 64Tolstoi, Leon 312,313,347Tomás de Aquino (santo) 33, 213Tzara, Tristan 291

z

Zeus 173, 200, 246Zêuxis 237Zola, Emile 279, 315

u

Ueeello, Paolo 41

Valéry, Paul 345, 349Van Eyek, ]an 166

v

I J

Page 207: jimenez, marc - o que é estética

11

ÍNDICE DAS NoçÕES,ESCOLAS E MOVIMENTOS

A

Antigüidade 22, 26, 34, 83,107,152,227,232,263,324,337Aufklarung 144, 150

B

Bauhaus 296, 376Blaue Reiter 286, 296Brücke 295

c

Cinquecento 38, 41Classicismo6,14,44,49,58,62,109,150,223,239,257Clássico 52,54,58,74,93,99,103,150,151,152,173,175,176,224,225,293,308,312Constructivismo270, 280Cubismo 275, 280, 288

D

Dadaísmo 270, 280, 326Desconstrução 103, 354Dodecafonismo 316, 353Dogmatismo 52, 140, 191, 316

E

Empirismo77, 79, 81, 140, 146Escola de Frankfurt 327, 349, 364, 366Expressionismo 270, 286, 290, 295, 316, 375

F

Fauvismo 280Funcionalismo 286, 376Futurismo 270, 280, 290, 299, 335

Page 208: jimenez, marc - o que é estética

412 o que é estética?H

Hedonismo 143Humanismo 47, 231

I

Idade Média25, 26, 33, 34, 38, 39,41,43,56,70,72,97,115,151,152,154,172,180,213,227,234,238,280Idealismo 21, 23, 148, 149, 214, 233, 305, 338Impressionismo 270, 278, 279, 281, 282, 285, 286Luzes 25, 51, 111, 113, 144, 145, 151, 155, 158, 229, 281, 306, 319,354

N

Naturalismo 111,315Niilismo6, 164, 195, 231, 240, 252, 255, 319, 325, 347Nominalismo 185

p

Pessimismo 242, 246, 248, 252, 253, 310, 318, 350Pós-moderno 7, 374, 376, 377, 384

Q

Quattrocento 37, 38, 39, 41, 44, 46, 56, 186, 279

R

Racionalismo24, 52, 56, 70, 79, 80, 81, 92, 93, 99, 140, 150, 184, 242,276,281Renascimento 12, 323Romantismo 117, 150,227Romantismo 5, 95, 115, 144, 150, 151, 164, 179, 183, 210, 239, 275,295,305,314,327

s

Simbolismo 173Sturm und Drang 139,150Subjetivista79, 110Surrealismo 270, 292, 297, 326

Marcjimenez 413uUtilitarismo156, 160, 320