HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

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ANTONIO MANUEL HESPANHA 0 CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO O DIREITO E A JUSTIÇA NOS DIAS E NO MUNDO DE HOJE (2. a edição, reelaborada) «Pour les juristes aussi, la question se pose: savent-ils de quoi ils parlent ou parlent-ils de ce qu'ils savent?», Christian Atias, Epistémologie du droit, Paris, PUF, 1994, 29. ALMEDINA

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A N T O N I O MANUEL HESPANHA

0 CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO

O D I R E I T O E A JUSTIÇA

NOS DIAS E NO MUNDO DE H O J E

(2.a edição, reelaborada)

«Pour les juristes aussi, la question se

pose: savent-ils de quoi ils parlent

ou parlent-ils de ce qu'ils savent?»,

Christian Atias, Epistémologie du droit,

Paris, PUF, 1994, 29 .

ALMEDINA

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1. Es tadual i smo e antiestadualismo

A intenção deste primeiro capítulo é destacar que a

maior parte daquilo que se costuma expl icar nas

comuns introduções a o direito - a começar peias que

fazem parte dos programas do ensino secundário - é

o resultado de u n i modelo de pensar o direi to e os

saberes jur ídicos que se estabeleceu, há cerca de 2 0 0

anos, quando a general idade dos juristas pensava que

o direito tinha que ser uma criação do Estado, um reflexo

da sua soberania, um resultado da sua vontade. E m par te ,

isto era u m a consequência da implantação dos mode los

democráticos de Estado, em que a vontade popula r se

expr imia sob a forma das leis emanadas do Es t ado .

Mas esta verdade, nas condições em que foi po l í t i ca

e institucionalmente realizada, tinha pés de b a r r o .

Por um lado, a democracia foi, no séc. X I X , um r e g i m e

muito elitista, part icipado po r muito poucos c idadãos .

O alheamento da general idade das pessoas em r e l a ç ã o

à vida política e ao direito do Estado era muito g r a n d e

e, por isso mesmo, outras formas de direito, o u t r o s

direitos, desligados do Estado, surgiam e s p o n t a n e a ­

mente na comunidade, por vezes como sobicvi\ èiu i.is

de antigas normas sociais ge ra lmen te aceites, ou t r . i s

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2<i I C A l i l I >< >S< :( )IM( ) l)() DIKI I TO...

vezes c o m o produto cia doutrina de unia elite de

juristas q u e t ambém não esquecera nem as suas dou­

trinas t r a d i c i o n a i s , nem o papel dirigente cjue ocupara

na s o c i e d a d e de Antigo Reg ime 9 . Por outro lado, a

d e m o c r a c i a - a fim de reduzir esta dispersão da tareia

fundamen ta l de definir um novo direito - procurou

impor um de t e rminado processo para emitir o direito.

As razões p a r a se prescrever um processo regulado de

lazer o d i r e i t o eram justificadas do ponto de vista

d e m o c r á t i c o , mas a sua complexidade, artificialidade

e demora a i n d a aumentavam mais a distância entre o

direito e o s cidadãos.

A c o n s e q u ê n c i a desta desconfiança em relação ao

direito do E s t a d o foi uma revalorização dos elementos

não estatais d o direito - a doutr ina dos juristas, o

costume e essas formas espontâneas e dinâmicas de

regular q u e surgiam da vida de todos os dias.

Nesta r e a c ç ã o contra o direito do Fstado convergi­

ram escolas de pensamento e intenções políticas muito

diversas. U n s , pura e s implesmente, tinham em muito

pouca con ta os princípios democrát icos e procuravam

substituir o direi to das assembleias representativas por

um direito aristocrático, oriundo da elite dos juristas

ou das prát icas governativas das altas burocracias do

Kstado. Foi o que aconteceu na Alemanha na última

fase do II Impér io , sob a batuta do chanceler Bismarck

e com a caução de uma elite respeitadíssima de juristas,

9 Cf. A. M. Hespaii l ia, (Uiltura jurídica europeia. Síntese de um

milénio, Lisboa, Ki i ropa-Amér ica , 2 0 0 3 .

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IMU.I.IMINARKS | 27

que haveriam d e marcar o s abe r jur íd ico durante

décadas (a c h a m a d a Pandedística, Pandektisitk, Pan-

dektenwissenschafi). Outros, partidários de uma arquitec­

tura liberal da sociedade, entendiam que a democracia

era, sobretudo, a abs tenção do Estado, o Estado mí­

nimo (Etat-veilleur de nuit, Etat-gendarme), com um

direito que cor respondesse a esta ausência do Estado

e ao mero livre curso das vontades individuais. Outros,

ainda, levando mais sério todo o espectro de direitos

não oficiais, valorizavam as instituições criadas pela

vida, vendo nestas um verdadeiro direito do povo,

liberto dos cons t rangimentos do direito oficial ou

doutrinário, o que - valha a verdade - os transformava

nas ovelhas negras da comunidade dos jur is tas bem

pensantes. Out ros , finalmente, en tenderam que o

direito, longe de se deixar enlear na legislação dos

par lamentos ou dos governos po r eles eleitos, devia

seguir a vontade ou o interesse do povo, definido por

dirigentes ou partidos que se autodefíniam c o m o iden­

tificados com o próprio "povo", fosse este en tendido

c o m o uma Nação histórica, como uma raça predes­

tinada ou c o m o uma classe que, tendo sido explorada ,

era agora d i r igente .

Durante os últimos 2 0 0 anos, este movimento anti-

estatalista não deixou de se fortalecer, insistindo alter­

nadamen te nos seus vários argumentos. O s regimes

políticos autoritários dos meados do séc. X X (fascismos,

nazismo, bolchevismo), identificando o d i re i to com

leis e com a autoridade totalitária do Kstado, Coram

apenas a cere ja no topo do bolo. A partir daí , mesmo

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i í H I (lAI.KlI)í )S( :< )IM() l)() DIKl.no.. .

< I c p o i s de se terem restabelecido as democracias na

m a i o r parte da Europa ocidental, uma concepção

l e g a l i s t a do direito passou a ser suspeita de t razer

c o n s i g o novos riscos de absolutismo legalista e de

t o t a l i t a r i s m o do Estado.

Aparte isto, o certo é que as sociedades ocidentais

s e tornavam cada vez mais dinâmicas e diferenciadas.

N a s últimas décadas, a imigração acentuou ainda mais

o p lura l i smo destas sociedades, ao trazer para dentro

d e l a s comunidades com sentimentos jurídicos muito

d i fe renc iados , nomeadamente em relação aos padrões

usua i s na Europa central-ocidental e nas populações

b r a n c a s dos Estados Unidos. Esta erupção do plura­

l i s m o étnico-cultural, a que o direito oficial tem res­

p o n d i d o de forma muito deficiente (entre o desconhe­

c i m e n t o e um integracionismo violento), foi ainda

a c o m p a n h a d a pela crescente importância atribuída a

fo rmas alternativas de vida, cujo reconhec imento era

ex ig ido pelos movimentos feministas, juvenis, ecologis­

tas ou sexualmente dissidentes. Cada um destes movi­

mentos trazia consigo propostas novas de viver a vida

e, c o m elas, novos ideais de just iça e novas normas de

compor t amen to . O próprio cidadão c o m u m , cada vez

mais consciente dos seus direitos e ex ig indo ser bem

governado e tratado pelas agencias públicas e privadas

de aco rdo com "boas práticas", ensaia a construção

autónoma de "direitos de proximidade", que instituam

princípios de relacionamento correspondentes aos sen-

t intentos de jus t iça da generalidade das pessoas, inde­

pendentemente da sua consagração na legislação esta­

dual.

Page 6: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

l'RKLlMINARKS | 2<)

Por fim, a U n i ã o Europeia e, mais em geral, a glo­

bal ização e c o n ó m i c a e comunicacional desvalorizaram

também o Estado e o seu direito, ao proporem formas

de organização polít ica e de regulação que atravessa­

vam as fronteiras dos Estados, desafiando aquilo que

e ra cons iderada a soberania destes.

Iodos estes factos, que antes de serem jurídicos são

civilizacionais, modificaram de forma decisiva as bases

do direi to actual. Sé) muito simplificadamente - e de

forma cada vez mais irrealista - é que este pode

cont inuar a ser identificado com a lei. Esta profunda

modificação na natureza do direito contemporâneo

implica uma modificação, igualmente profunda, na sua

teoria e na sua dogmática, não sendo mais possível

continuar a utilizar conceitos e fórmulas que foram

cunhados num per íodo de monopól io legislativo do

direito para descrever um direito que se afasta progres­

sivamente da lei. Embora t ambém seja certo, como

veremos, que a adopção de uma perspectiva pluralista

do direito não pode perder de vista o significado

democrático hoje assumido pela constituição e pelas

leis. Por isso é que - apesar de todas as suas insufi­

ciências - elas têm ainda que con t inuar a merecer a

designação prestigiante de " fo rma da República" 1 0 ,

como a forma mais regulada, mais controlada e pro­

vavelmente mais adequada de manifestação da vontade

popular.

1 0 Cf. o título do r e c e n t e l ivro d e M a r i a l.iui.i Amaral,

A forma da República, C o i m b r a , C o i m b r a Kdi lora , líOtM.

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M I CAl.KinoSÍ OIMO DO DlkKl 1 ( ) . .

1 . 1 Um saber dependente de pré-compreensões cul­

turais

Quem ler t ex tos q u e v i sam unia introdução ao

direito ou à "c iênc ia d o d i r e i t o " 1 M l í fica muitas vcv.es

com a impressão de que - a o contrário do que devia

acontecer numa "c i ênc i a " l : * — as incertezas e as polé­

micas sobre as ques tões mais básicas acerca do direito

" As aspas são, n e s t e e n o s c a s o s seguintes , os sinais da m i n h a

desconf iança p e r a n t e a f iabi l idade d a s expressões usadas. Iiso-as,

p o r q u e são t o r r e n t e s e t r a n s l a t í c i a s ; m a s , em notas finais a este

cap í tu lo , direi p o r q u e é q u e a c h o q u e se podem trans formar em

"falsos amigos", c o n t r a b a n d i s t a s d e muitos pressupostos, senti­

dos e impl icações n ã o d e c l a r a d o s .

"Ciência d o d i r e i t o " ins inua q u e o saber jurídico obedece

a u m m o d e l o de d i scurso s e m e l h a n t e a o das "ciências": ou seja,

e m que há unia r e f e r ê n c i a " v e r d a d e " (e uma só), em que se

p r o d u z e m resul tados object ivos , p o r métodos d o t a d o s de rigor

e univocidade, s o b r e u m a r e a l i d a d e objectiva, e x t e r i o r a o obser­

v a d o r ("positiva"), d e m o d o a o b t e r u m saber geral (de "leis"),

sobre o qual as p r é - c o m p r e e n s õ e s ou as opções (filosóficas,

pol í t icas , ex is tencia is ) d o e s t u d i o s o ( d o "cientista") n ã o têm

qua lquer influência ("neutra l idade" da ciência) . Esta concepção

d o m i n o u o estudo d o d ire i to a p a r t i r d o s meados d o séc. XVlii,

p o r influência cio c i ent i smo cias Luzes e da teor ia kant iana da

c iência . Embora , na sua m a i o r p a r t e , os pressupostos cienlílícos

e n u n c i a d o s sejam a l t a m e n t e c o n t r o v e r s o s , s o b r e t u d o quando

ap l i cados ao d ire i to , a e x p r e s s ã o c o n t i n u a a ser u s a d a , mesmo

p o r aqueles que prob lemat i zam a l g u m a s das a n t e r i o r e s assun­

ções . A expressão banalizou-se; mas , impl ic i tamente , continua a

func ionar c o m o u m a certa forma de conferir l eg i t imidade ¡10

saber dos juristas.

V. nota anter ior .

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1'RKLIMINARl«:s | :t|

se multiplicam incessantemente. Que ro , no en tan to ,

começar por realçar que, tendo em conta que a cultura

jur íd ica do Ocidente j á tem mais de dois milénios, na

verdade aquilo que, de fundamental, se tem discutido

acerca do direito não tem variado assim tanto.

Basicamente, juristas (e não jur is tas) têm-se pergun­

tado:

(/) Se o direito está cont ido nos próprios equilí­

brios da natureza - i.e., se é uma ratio, uma

razão, um equilíbrio, que provenha das pró­

prias situações da vida - ou se, pelo contrár io,

é o produto de uma vontade ocasional, arbi­

trária, "livre" de a lguém - i.e., se é uma

voluntas - (de Deus, do rei ou do povo).

Se se responde que é uma ratio, há lugar para

perguntar:

(ii) Se essa razão pode ser reconhecida por meios

gerais (sob a forma de regras ou normas gerais,

a inda que mutáveis no t empo e localizadas em

certa sociedade) \uonnativismo\\ se apenas pode

ser reconhecida em relação aos rasos particulares

(sob a forma de um sentido particular de

jus t i ça , a que se tem c h a m a d o equidade)

[casuísmo]; ou se, t ratando-se de um saber

essencialmente particular, pode ser, em todo o

caso, acumulável, de modo a que a partir do direito

dos casos concretos já resolvidos se possa construir

um saber prático, uma prudentia, por meio de

indução de regras heuríst icas, que depois aju-

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:vj i CALI m o s c : ó i M o n o D I R K I T O . . .

dcm a e n c o n t r a r o direito de outros easos

prudencial ismo, valor vinculativo dos ¡necedades].

(///) De qualquer destas respostas pode seguir-se um

rosário de ques tões sobre a teoria do d/trilo, mas

relevantes pa ra a prática jurídica: a o r igem 1 4 ,

os f i n s 1 5 e con teúdos do direito, as fontes pelas

quais o d i re i to se manifesta, os métodos para

encontrar o di re i to (ars inveniendi)u] e o aplicar

aos casos (ars iudicandi).

Se se responder que o direito é uma voluntas - ou,

então, que é u m a razão divina incognoscível e, por­

tanto, tão pouco possível de discutir c o m o o é uma

vontade arbitrária [providencialis mo] - as questões que

se podem colocar são de dois tipos:

(/) Pode perguntar-se, num plano político-filosó­

fico, sobre qual seja essa vontade: a de Deus,

a do Povo, a da Nação, a do Estado. Pode,

depois, perguntar-se sobre a legitimidade de tal

vontade para criar direito. E, por fim, se essa

vontade tem limites, sejam materiais (coisas que

não podem ser queridas, v.g., a ofensa de

1 1 Km Deus, na natureza , na r a z ã o . l r > A m a x i m i z a ç ã o da felicidade individual, a observânc ia d e

u m a r e g r a absoluta de justiça, a prossecução da u t i l i d a d e c o m u m

(ou o b e m - e s t a r supra-individual d a c o m u n i d a d e ) . 1 ( ) De u m a forma "inspirada" ou "car i smát ica"; a partir de

ev idênc ias racionais; a par t i r de evidências e m o t i v a s ("sentimen­

tos p a r t i l h a d o s de just iça"); a partir d e um m é t o d o d e discussão

g e r a l m e n t e reconhec ido como apto.

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FRKLIMfNARKS | M\

direitos naturais dos cidadãos), sejam formais

(estabelecimento de formalidades a que a von­

tade deve obedecer ao criar direito).

(ii) Pode, por outro lado, perguntar-se - assu­

mindo a validade da norma querida - uma série

de coisas sobre esta declaração de vontade

criadora de direito (teoria da norma): sobre qual

a declaração de vontade do legislador a que um

caso concreto deve ser referido (qualificação);

sobre o sentido da declaração de vontade

(interpretação); sobre a possibilidade da sua

ex tensão a outros casos não expressamente

previstos (integração); sobre a colisão entre duas

ou mais manifestações de vontade (conflitos ou

concurso de normas); sobre o processo intelectual

de aplicação da norma geral a um caso con­

cre to (aplicação).

Estas perguntas surgiram também logo nos inícios da

tradição ju r íd ica europeia, havendo muitas respostas

para elas - mas nem sempre coerentes ent re si - logo

no eno rme corpus textual do direito r o m a n o 1 7 .

1 7 Vale a p e n a , nesse sentido, lazer um 1 c< onbc< in i cn lo do

l i vro 1 das I ustilutiones do I m p e r a d o r J u s t i n i a n o (.r>2(.) d . C . ) ou

cios títulos 1 e III do l.ivio I do Digesto, do m e s m o (.r>!W d . C ) ,

q u e r e ú n e m t e x t o s dois ou (rês séculos mais ant igos . Cl'. Antonio

M a n u e l H e s p a n b a , Cultura jurídica europeia. Síntese de um Milênio,

Cishoa , K u r o p a - A m é i i ( a , (última versão, a l g o m o d i l i c a d a e

c o r r i g i d a , ed . bras . , Florianópolis , F u n d a ç ã o I to i l cux , lí(M)."»).

s e c ç ã o (*). 1 .1 .

Page 11: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

34 I ( A i . K i n o s m i M o i x ) D I R I .n ( ) .

Passando e m s i l ê n c i o muitas voltas que estas questões

deram, ao longo de* do i s mil anos de história, apenas

anotamos que, a p a r t i r da Revolução Francesa, mas

sobretudo nos dias d e ho je , o princípio que se tornou

dominante na E u r o p a iõi o de que o direi to é a

manifestação da vontade, a vontade do povo [da Nação,

do Estado] 1 *, e x p r e s s a pelos seus representantes (prin­

cípio democrático, soberania nacioiud, soberania poptilar,

soberania estad na e sco lh idos estes pela lórina que o

próprio povo e s t a b e l e c e u na constituição- 0 , ( l o m o o

povo, no momento consti tuinte originário, também

(inis que certos d i re i tos do cidadão (mais tarde ( l lama­

dos direitos fundamentais) presidissem à organização da

República, a vontade dos representantes do povo ficou

obr igada a garantir esses direitos. Daí que, na tradição

europe ia ocidental m o d e r n a , o direito exprima a von­

tade do povo, sob t rês pontos de vista:

1. Ao garantir os di re i tos fundamentais estabelecidos

no momento constituinte;

l s N o t e - s e que estas e n t i d a d e s não são s inónimos, se l>cm <|ue

a d o u t r i n a política as r e l a c i o n e entre si. M > Q u e t a m b é m n ã o são s inónimos , só tendo u m e l e m e n t o

c o m u m - ¿1 re ferência a s o b e r a n i a , c o m o "poder s u p r e m o |e

111 n u I < t Í 1< > 1 .

- ° N e s t e p o n t o , as so luções p o d e m var iar : a e l e i ç ã o por

s u f r á g i o universal , e l e i ç ã o p o r sufrágio restr i to , e s c o l h a por

ó r g ã o s o u c o r p o s sociais (famíl ias, grupos d e interesses ( c o r p o r a ­

t i v i s m o | ) , a c l a m a ç ã o p o p u l a r n ã o eleitoral ( como é pres supos ta

nos r e g i m e s di tatoriais ) .

Page 12: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

l ' R K U M I N . X R I . S l :ir>

2. Observando o processo de criar direito es tabele­

cido n o momento consti tuinte.

Estes dois pontos de vista expr imindo o primado

da Constituição.

3. Validando como direito a vontade normativa

expressa subsequentemente pelos representantes

do povo, de acordo com os processos previstos

no momento constituinte.

Este ponto consubstanciando o princípio da lega­

lidade (ruir of law).

Formuladas como o foram nos últimos parágrafos,

não se nota a tensão entre a soberania do povo e a

garantia de direitos. Isto porque, de acordo com a

formulação adoptada, os direitos garantidos foram aque­

les que o povo quis que fossem garantidos, no momento

constituinte, e pelos processos jurídicos também queri­

dos por ele nesse momento .

Porém, outras tradições jurídicas - nomeadamente

a norte-americana (e, em menor medida, a tradição

inglesa) - combinam, num equil íbrio diverso, o pr in­

cípio democrát ico com os da garantia de direitos

(liberalismo político) e do respeito pelos processos esta­

belecidos pelo direito: rule of law, ou due process of

laxo). Nesta perspectiva, o povo quis que os direitos

naturais (i.e., provindos da natureza, logo, anteriores

à organização política, ou longamente recebidos p e l a

tradição jurídica) dos indivíduos constituíssem o direi to;

de tal forma qtie o povo ou não pode querer n a d a

Page 13: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

36 I CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO. . .

contra eles (versão n o r t e - a m e r i c a n a 2 1 ) ou, mesmo que

o queira (por meio de un i acto de vontade dos seus

representantes, i.e., do P a r l a m e n t o ) , sempre terá que

respeitar, na sua de r rogação , a rale o/ law ou o due

jrrocess oj law (versão, mais a tenuada , dominante entre

os juristas ingleses que, t radic ionalmente , insistem

mais na soberania do Pa r l amen to ) - ou seja, os pro­

cessos (antes, l ongamen te ) estabelecidos pelo direito.

Verifica-se bo je uma c e r t a tendência paia importar

para o contex to europeu o modelo anglo-saxónico,

mesmo na sua versão mais radicalmente garantista de

direitos prc-legais, que é a amer icana , destacando a

anterioridade dos direitos (dos indivíduos) em relação

ao direito (par lamentar) .

Deve começar por se d izer que a revogação cie leis,

pela Supre-me Court dos EUA, c o m o contrárias aos

direitos representa uma evolução muito recente da

prática jur íd ica nor te-americana. Durante todo o séc.

X I X e uma boa parte do séc. X X , a Supreme Court não

J l C o n s t i t u i c a o dos E l I A. 14 ." Aeto Adic iona l (amendment)'.

" I . All p e r s o n s h o r n o r natural ized in t h e U n i t e d States , and

subject t o the jurisdict ion thereof , are c i t izens o f the United

States a n d ol the State wherein they reside. N o S t a l e shall make

01 e n f o r c e any law which shall abridge the pr iv i l eges o r immu­

nities o f c i t i zens o f t h e Un i t ed States; n o r shall any Slate

d e p r i v e any p e r s o n o f life, liberty, or p r o p e r t y , without due

proces s o f law; n o r deny to any person within its jurisdiction

the e q u a l p r o t e c t i o n of t h e laws". Sobre o s e n t i d o d e due process

of law n o c o n t e x t o n o r t e - a m e r i c a n o : cf. l ittp://www.usconsiitu-

t i o n . n e t / c o n s t t o p _ d a e p . h t m l .

Page 14: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

PRELIM 1 NARKS | :M

ousou exercer esta prerrogativa. Com o actual vigor, só

a partir dos anos 6 0 do séc. X X - a época em que surge

nos EUA, com grande acuidade, a questão dos "direi­

tos cívicos" e do combate à segregação racial - é que

o Supremo Tribunal , então presidido por u m juiz

famoso, Earl Warren, que marcou uma época na his­

tória do direito na América do Norte , começou a

exercer um controle aper tado sobre a conformidade

das estaduais e federais com certos princípios consti­

tucionais (judicial rcvmo)--. Por outro lado, os histo­

riadores do direito norte-americano costumam salientar

que o vigor desta anteposição dos direitos à lei decorre

de dois factores absolutamente próprios da cultura

jur íd ica e política dos EUA - o federalismo e o

2 2 S o b r e a lenta e m e r g ê n c i a d a judicial review ( c o n t r o l e da

const i tucionalidacle das leis) nos Kl ¡A, v. a bela s íntese de

L a w r e n c e M. Kriedman, IAIW in América / . . . / , máxime 1 2 - I S , 143

("courts used ii rarely and g inger ly lor the first c e n t u r y of

i n d e p e n d e n c e | . . . | not until the late n ine teen th c e n t u r y did

judicial review ol legislation b e c o m e a n o r m a l part of t h e life

cycle of major litigation" (p. IS). I 'm o u t r o livro d o mesmo

a u t o r e m ijue estas questões são discut idas é American law in the

Twentieth C.enltin, New Haven, Vale Lniv. Press, 2 0 0 2 . S o b r e o

c a r á c t e r problemát ico clesle p r i m . i d o cio judiciário , n a tradição

jurídica nor te -amer i cana , v. a súmula n o c a p . "Pros a n d cons"

em http:/ /en.wikipedia.org/wiki/ ludicial_review [Virginia (lonsti-

tution d e 1 7 7 0 : "All power o f suspending laws, o r t h e execution

of laws, by any authority, without c o n s e n t ol t h e representat ives

of t h e peop le , is injurious to the ir r ights , and o u g h t not to In-

e x e r c i s e d . " (!)] . V., a inda, M a r i a n A h u m a d a , La jurisdiction

constitucional en Europa / . . . / , cit.

Page 15: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

M I CALEIDOSCÓPIO IX) DIREITO.. .

2 3 L a w r e n c e M. F r i e d m a n , Law in America / . . . / , El.

individualismo agressivo da cultura local, temerosa da

concen t r ação do poder , desconfiada do Kstado

e propícia a uni governo disperso e fragmentado2'*.

A grande dificuldade que , a este propósito, se põe

é a de que, ao passo que a cultura constitucional a m e ­

ricana, além das característ icas peculiares antes referi­

das, se fundou num patr inmnio moral (/.c, quanto aos

[bons] costumes) la rgamente partilhado e pôde, neste

ambien te (boje, em cr ise) , consolidar um catálogo cie

direitos constitucionais razoavelmente unânime, a cul­

tura constitucional e jurídica europeia foi muito mais

variada e divergente, não tendo podido chegar a

posições unanimes quanto a estes direitos. Km virtude

disso, é muito menos claro, para um jurista europeu,

definir o elenco e pr ior idade relativa dos direitos

consti tucionais sem o recurso àquilo que as consti­

tuições e as leis efect ivamente consignaram (ou incor­

poraram na ordem jur íd ica de cada país) e, por isso

mesmo, o risco de arbitrariedade e de impressionismo

de um direito baseado em direitos pré-constituc ionais

é, aqui na Kuropa, se não muito maior, pelo menos

mui to mais presente nos espíritos.

O enunciado anter ior de perguntas (e de respostas)

já mostra que responder e perguntar têm a ver entre

si. Ou seja, que, se se conceber o direi to de certo

modo , daí flui uma série de questões pertinentes

quanto ao seu método, enquanto outras não lêin lugar

Page 16: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

PRKLIMINARKS | M)

nesse contexto . Alterado o grande modelo (o paradig­

ma) segundo o qual o direito é encarado, certas q u e s ­

tões submergem, enquanto outras, novas, se manifes­

tam. O saber jurídico mostra, assim, um perfil histórico

que não evolui em linha recta , segundo uma l inha

evolutiva sem rupturas. Pelo contrário, segue um r u m o

inconstante, explorando, segundo estratégias mui to

variadas, um capital de regras e de problemáticas que,

ao longo de mais de dois mil anos, não variou tanto

c o m o isso- 1 .

Por isso é que é indispensável ter em conta, ao

analisar as "proposições técnicas" do direito, os gran­

des modelos de entender o direito. Pois tais "propo­

sições técnicas" variam de sentido consoante o con­

texto filosófico ou cultural em que andem inseridas.

1.2 Uma primeira e provisória aproximação

Costuma dizer-se que o direito é um conjunto de

normas que rege a vida em sociedade. Nesta regulação

da vida social, o direito coexiste , no entanto , com

outros complexos de normas, como - nas modernas

sociedades oc iden ta i s 2 5 - a religião, a moral, o s <<>s-

2 4 A s i tuação não é s ingular. Pense-se, apenas, c o m o tem sido

d i v e r s a m e n t e recons tru ída a t r a d i ç ã o bíblica, d<> A n t i g o < do

Novo T e s t a m e n t o , por judeus , p o r diversas conlissncs « I I M . I S e

p o r d iversos r a m o s d o i s lamismo.

->;' Q u a s e tudo e que é d i to nesta iniiodiiç.K• ao di ir i ln s e

r e l a c i o n a c o m aquilo que hoje cons idc i amos dnei io . i i a t vme

Page 17: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

40 I C A L E I D O S C Ó P I O DO DIREITO...

lumes, as n o r m a s técnicas , as "boas praticas" e as pró­

prias "leis" cia na tu reza . Tradicionalmente,a distinção

entre o d i re i to e a general idade destes outros comple­

xos normat ivos e r a feita recorrendo à característica da

coerc ib i l idade , o u seja, ao lacto de o direito ser

virtualmente i m p o s t o pela força do l\sia<lo-r\ Deste

cindes (to O c i d e n t e . S i - a b o r d á s s e m o s o u t r a s sociedades o u ,

m e s m o , a nossa n o u t r a s é p o c a s , pouco d o que não ler t er ia

c a b i m e n t o . N e m as d i s t i n ç õ e s e n t r e direito e outros c o m p l e x o s

n o r m a t i v o s s e r i a m a s m e s m a s (porventura , n e m haveria n a d a

que pudesse ser i d e n t i f i c a d o c o m o o nosso d ire i to , mui pe la sua

lor ina , q u e r p e l a s u a f u n ç ã o ) , n e m o d ire i to leriii a l o n n a d o

nosso, n e m c u m p r i r i a as m e s m a s funções, nem seria g u i a d o

pelos m e s m o s v a l o r e s . De t u d o isto se o c u p a a a n t r o p o l o g i a

jurídica, cujos e n s i n a m e n t o s d e v e m ser t idos muito ein c o n t a ,

s o b r e t u d o n u m a é p o c a e m que a mobi l idade das pessoas e d a s

e x p e r i ê n c i a s h u m a n a s t o r n a m q u o t i d i a n o o nosso c o n t a c t o

d i r e c t o c o m p e s s o a s p o r t a d o r a s d e outras culturas, de o u t r a s

c o n c e p ç õ e s d o d i r e i t o , d e o u t r o s valores jurídicos e m e s m o d e

o u t r o e s t a t u t o j u r í d i c o pessoal , r e c o n h e c i d o pelo nosso d i r e i t o

(d ire i to i n t e r n a c i o n a l p r i v a d o ) . V., sobre o assunto, A r m a n d o

M a r q u e s G u e d e s , Entre Factos e Razões - Contextos c Enquadra­

mentos da Antropologia Jurídica, C o i m b r a , Almedina, 2 0 0 1 . 2 U E s t e c r i t é r i o d e d i s t inção é, c o m o v e r e m o s , cada ve/. m a i s

p r o b l e m á t i c o . Note - s e , de sde l o g o , q u e n e m todas as n o r m a s

j u r í d i c a s c o n t ê m a a m e a ç a de u m a s a n ç ã o . Muitas apenas e s t a b e ­

l e c e m uni r e g i m e jur íd ico ( c f , e n t r e m u i t o s outros , o ar t ." 1 7 1 7 ,

ou 1 7 2 1 , e t c , d o C C ; art ." 1 1 , o u a r t . ° 1 1 0 da CRI'): a n o r m a

que e s t a b e l e c e a s a n ç ã o ex is te , e faz p a r t e da ordem j u r í d i c a ,

mas , o m a i s das vezes, é p r e c i s o f i g u r a r u m a longa sér i e cie

n o r m a s i n t e r m é d i a s a t é e n c o n t r a r a n o r m a que c o n t é m a

s a n ç ã o : u m a pena , a p e r d a ( c a d u c i d a d e ) d e u m a v a n t a g e m o u

b e m j u r í d i c o ; a nul idade ou inef icác ia d e u m ac to jur ídico e a

c o n s e q u e n t e ex t inção dos seus efe i tos v a n t a j o s o s . Por o u t r o l a d o ,

Page 18: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

PRKLIM1NARKS | 11

modo, a violação das normas jurídicas importaria unia

consequência forçosa (pena ou prémio) a ser efectivada

pelos poderes públicos. Por isso se distinguiria da

religião, cuja sanção, para os crentes, se efectivará no

desamor de Deus (dos deuses), com as consequências

que cada religião liga a i s so 2 7 . Por isso se distinguiria

da moral, cuja sanção teria u m a natureza meramen te

interior, no "foro" (note-se a l inguagem jur ídica, em

todo o caso) da consciência. Por isso se distinguiria

dos bons costumes ou da urbanidade ("cortesia", "boa

educação"), cuja violação é objecto de uma censura

a palavra "virtualmente" já p r e t e n d e sugerir que as soluções

jurídicas não são s i s t e m a t i c a m e n t e impos tas c o e r c i v a m e n t e ,

d e i x a n d o a soc iedade que subsistam muitas s i tuações n ã o jurídi­

cas: cr imes n ã o punidos , r e n d i m e n t o s não d e c l a r a d o s e impos­

tos não pagos , obr igações j u r i d i c a m e n t e const i tu ídas m a s não

c u m p r i d a s , e tc . Kstas e o u t r a s s i tuações cie n o r m a s jurídicas não

c u m p r i d a s p o d e m m e s m o ser e s ta t i s t i camente d o m i n a n t e s . Por

isso, a coerc ibiliclacle c a p e n a s u m a v ir tual idade d e c o e r ç ã o , não

u m a c o e r ç ã o electiva. Mas há mais . d o m a p r o p o s t a liberal de

"ret irada do Ksiado", c lamo-nos c o n t a cie que, p a r a se lazer

cumprir , o direito c o n t a c a d a vez mai s c o m a i m p o s i ç ã o de

m e r a s desvantagens, no c a s o d e i n c u m p r i m e n t o , q u e são de

natureza p u r a m e n t e e c o n ó m i c a ( c o i m a s , por vezes r id ículas em

lace das vantagens cie não c u m p r i r as n o r m a s , p o r e x e m p l o no

domín io do direito do a m b i e n t e , d o o r d e n a m e n t o d o territó­

r io , da violação das r e g r a s d e t r a n s p a r ê n c i a n o m e r c a d o de

valores imobiliários, e t c ) , r e s u l t a n d o a dec i são de c u m p r i r <>

direito de u m a mera análise "custos-benel íc ios" e n ã o d o teor

de u m a acção compulsiva d o E s t a d o (v., a d i a n t e , c a p . 10) . 2 / Algumas das quais p o d e m ter, e m t o d o o c a s o , reflexos

e x t e r n o s (penitência, e x c o m u n h ã o ) .

Page 19: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

V2 I CALEIDOSCÓPIO l>< ) D I R I M O

social, inas d i fusa 2 8 . Por isso se distinguiria da "vin­

gança privada" (ou da "justiça popular"), eni <jue a

comunidade ou a lguns dos seus elementos se encarre­

gam de inlligir unia sanção a quem violaras regras de

convívio es tabelec idas . 1'or isso se distinguiria das

"boas praticas", cu ja violação apenas daria lugar a

uma censura dir igida à consciência deontológica do

agente, mas não a u m cast igo cjue lhe losse imposto

pelo Estado. J á q u a n t o ás "leis da natureza" (a "natu­

reza das coisas", humanas ou do mundo Tísico), elas

estão garantidas, t an to pela impossibilidade de as

violar, c o m o pelo au tomat i smo da sanção (por exem­

plo: estar em dois lugares ao mesmo tempo; lalar uma

língua que nunca se aprendeu; cruzar os céus no cabo

de uma vassoura; c a m i n h a r sobre as águas).

A esta o rdem normativa que comanda a actividade

livre das pessoas p o r meio da ameaça de sanções se

chama "direi to object ivo", po r oposição a "direito

subjectivo", que se pode definir - agora encarando as

coisas do lado dos sujeitos de direito - como a

(acuidade que o direito confere a cada uni de agir (de

acordo com a sua vontade, facultas agevdt, WUIensmacht;

mas também de acordo com o d i r e i t o ) 2 9 .

J S Dis t ingui i - se-á tias "leis da e c o n o m i a " ? As consequênc ias

negativas da p e r d a de eficiência (de c o m p e t i t i v i d a d e ) ou do

peso excess ivo d a s despesas públ icas n ã o s erá u m a das lais

desvantagens a s s o c i a d a s à v io lação d e u m a lei? N o m e a d a m e n t e ,

em face d a t e n d ê n c i a para "desestat izar" o d i re i to? Veremos isso

mais a d i a n t e , c a p . 10. 2 9 N ã o p o d e r e m o s ver as coisas d e u m p o n t o de vista opos to ,

c o l o c a n d o os d i r e i t o s subjectivos c o m o a var iáve l i n d e p e n d e n t e

Page 20: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

3 . O que é, para nós, o d ire i to?

Tratemos, agora, de operac iona l i / a r um concei to de

direito que tenha em consideração as considerações

anteriores e que permita reconstruir, sobre isso, uma

dogmática mais actualizada, ou seja, mais l iberta da

dependência estadual i st a.

Segundo as regras da lógica, a definição faz-se pela

indicação do género e da diferença espec í f i ca 6 0 .

O género a que o direi to per tence é o dos comple­

xos normativos que regulam as acções livres (depen­

dentes da vontade) dos h o m e n s . A questão principal

reside na diferença específica do direito em relação às

outras ordens normativas que também regulam estas

acções (religião, moral, bons costumes, boa educação).

E comum a opinião de que a diferença específica reside

na coercibil idade estadual das normas j u r í d i c a s 6 1 .

0 0 Ou seja, a d i ferença e n t r e u m a espéc ie e as o u t r a s que

integrara o m e s m o g é n e r o . 6 1 Ou seja, n a v i r tua l idade d e o seu c o m p o r t a m e n t o ser

imposto p e l o E s t a d o sob a a m e a ç a d e u m a sanção . Note - se , e m

todo o caso, eme há n o r m a s a p e n a s permiss ivas ou disposit ivas,

outras que a p e n a s c o n t ê m def inições , e tc . A coerc ib i l idade t e m

que se referir a c o n j u n t o s de n o r m a s e não , s e m p r e , a n o r m a s

isoladas.

Page 21: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

H2 I CALI IDOSt .ÓPIO 1K) DIKI I IO.

Esta o p i n i ã o liga indissociavclmciitc direito c Estado

e, por isso, é característ ica das concepções legalistas

do direito, cujas limitações e irrealismo já lórani abor ­

dados. Mas há mais. Será, realmente , que basta q u e o

Kstado a m e a c e , com uma sanção, quem violar u m a

norma, para que, por esta simples característica ex te rna

(ou formal), essa norma se torne numa norma jurídica'?

Por outras palavras: não haverá nada de substancial, de

interno - t o m o , por exemplo , uma certa lõnte de

legi t imidade (gerando uma razão específica para o b e ­

decer) , a referência a um certo valor a proteger (a uma

certa f inalidade a prosseguir) , distinto de outros, pro­

tegidos (ou prosseguidos) por outras ordens normat i -

vas ( ) 2 no conce i to de direito? E será que, por ou t ro

lado, tudo o que estiver privado dessa es tampilha

estadtial es tá , i r remediavelente , fora do d i r e i t o ? 0 3

Perguntar isto significa, nomeadamente , questionar se

o direi to n ã o se distingue p o r estar ao serviço (por ter

c o m o função assegurar a realização) de certos valores

específicos (digamos, a jus t iça deste mundo, a ordem da

c idade) , seja ele formulado por quem for.

(>-' Por e x e m p l o , o d ire i to i e f e r i r - s e - i a à Just iça; c o m o a

c i ê n c i a se re fere à Verdade; a m o r a l , à perfe ição individual; a

r e l i g i ã o , à c o m u n h ã o c o m Deus; o u a estét ica, à IWle/.a. ( ) í Por e x e m p l o , n ã o se n e g a r á o c a r á c t e r de jurídica a u m a

n o r m a que n ã o vise a J u s t i ç a ( m a s a oportunidade , o de senvo l ­

v i m e n t o e c o n ó m i c o , a sa lvação d a a l m a , a perfeição individual)?

O q u e , p o r sua vez, nos r e m e t e p a r a u m outro r o s á r i o d e

q u e s t õ e s , a g o r a sobre o c o n t e ú d o e a forma da Justiça: o q u e é

a J u s t i ç a ? c o m o se es tabelece , c o n h e c e ( reconhece ) a Jus t i ça?

Page 22: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DKFINIÇÃO RK ALISTA DC) DIREITO | 8 3

N o início de um livro seu - que se tornou c lás­

sico - o jurista inglês Herbert L. A Hart ( 1 9 0 7 - 1 9 9 2 ) 6 4

afirma que "poucas questões relativas à sociedade foram

postas com tanta persistência e respondidas por gran­

des pensadores de forma tão diversa, estranha o u

mesmo contraditória, como a questão «o que é o

direito?»" Mas ele m e s m o também observa que, se

passarmos dos grandes pensadores ao senso comum,

se verifica uma situação paradoxal, que também ocorre

em relação a entidades de todos os dias, como o

"tempo" ou o "amor": somos incapazes de as definir,

apesar de todos as reconhecermos no plano da expe­

riência 6" 1.

Os juristas romanos - que, a partir de certa altura

(aprox. séc. Il l a . C ) , também tiveram uma noção

específica ("diferenciada") de direito, definiram-no

como "a arte do bom e do justo" - "ut eleganter Celsus

definit, jus est ais boni et aequi", prosseguindo com

frases que exprimiam muito claramente a auto-estima

que os dominava: "é por isto que nos chamam sacer­

dotes. Na verdade, prestamos culto à just iça , t i rando

partido do conhec imento do bom e do equitativo:

separando o justo do injusto, o lícito do ilícito, no

intuito de promover os bons costumes não apenas pelo

í v l ( X , para aspectos biográficos: http://www.law.ox.ac.uk/juris-

prudence/hart .°shtml; h t tp : / /www.oup .co .uk / i sbn /0 -19-927497-r ) . , K ' Herbert L. Hart , The concept of law, cit., 13 s. (existe | b o a |

t r a d . port.: de A r m i n d o Ribe iro Mendes . L i sboa , C a l o u s t e

Gulbenkian, 1 9 8 6 ) .

Page 23: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

84 I C A L E I D O S C Ó P I O DO DIREITO...

medo d a s penas , mas também pela promessa de pré­

mios [ . . . ]"«« (Ulpiano, (t 2 2 8 ) , em Digesto, 1,1,1, pr./ 1).

Trata-se, c o m o se vê, de uma definição de direito

muito densa de sentidos, pois pressupõe que é possível

ident i f icar objec t ivamente o que seja o bem especifi­

camente p r o c u r a d o pelo direito (o 4 jus to") e una série

de va lo res a e le relativos ("bom e equitativo'', "bons

cos tumes") , dos quais depende a t ontra-distinçio entre

o direi to e não-direi to, por um lado, e, depois, entre

direito e ou t r a s ordens normativas. Mas, além disso,

é uma d e f i n i ç ã o que não toma, tão pouco, grandes

cautelas, q u e r quanto à objectividade do conhecimento

desses va lo re s densos que se pressupõe, quer quanto

aos m e i o s adequados a real i /a r tais valores - já que

Ulpiano n ã o t inha grandes dúvidas acerca (his espe­

ciais capac idades dos juristas para sondar estas coisas.

Quem (e c o m o ) reconhece objectivamente o "bem", em

termos de o poder impor c o m o norma de acção a toda

a comun idade? C o m o se identificam, também objecti­

vamente, os meios (as "penas", os "prémios", os cri­

térios da sua distribuição) que são "bons" para atingir

o bem? Mas, mais do que isso, c o m o se distingue o

bem procurado pelo direito do bem procurado pela

moral ou pela religião?

, ) ( ) "Cuius m é r i t o quis nos s a c e r d o t e s appe l l e i ; iuslitiam n a m -

que coli inus, et boni et aequi not i t iam p r o í i t c m u r , a e q j u m ab

iníquo separantes , l icitum ab illicito disc e m e n t e s , boiios non

solum m e t u p o e n a r u m , v e r u m et iani p i a e m i o r u m qnoque e x h o r -

tat ione e i l i ccrc cupientes"

Page 24: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

U M A D E F I N I Ç Ã O R E A L I S T A D O D I R E I T O J 8 5

As perplexidades ainda aumentam quando nos der­

mos conta de que muitas culturas diferentes da nossa

- como também a nossa, se recuarmos uns trezentos

anos - não distinguiam, pe los seus objectivos, o direito

da moral ou da religião, confundindo mesmo, frequen­

temente, o direito com a o rdem do mundo (a "natureza

das coisas"), a qual também era expressa pela religião,

pela moral , pelos costumes legados pela tradição.

Os riscos de uma def inição assim densa - da qual

transparece a autoconfiança que um grupo de espe­

cialistas, que se presumiam dotados de poderes quase

divinos para reconhecer o justo e o injusto, de forma

a extrair daí normas jurídicas concretas - são, po r isso,

muito grandes. Não apenas não se estabelece nenhum

critério objectivo para reconhecer o direito na socie­

dade, distinguindo-o de outras ordens normativas

vizinhas que também aí existem (religião, moral social,

utilidade comum) , como também não se definem, de

forma objectiva ("argumentável", "inteicomunicável"),

noçc~)es tão abstractas e dependentes dos sentimentos

de cada um como as de "justo" ou "injusto" (em suma,

de "justiça"). Finalmente, nada se diz sobre a legiti­

midade dos processos adequados ou legítimos para

prosseguir os valores visados. K neste sentido que se

tem afirmado que uma definição de direito tão densa

([tlikk], M. Walzer r > 7 ) , tão dependente de "valores", e

( > 7 Michael Wal /er , Thick and Thin: Moral Argument at Home and

Abroad, N o t r e D a m e , University ol Notre D a m e Press, 19(H).

Page 25: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

8(> l C:AI . I i n o s c o i M o n o DIRKITO. .

tão ind i fe ren te aos "processos" para os atingir, corres­

p o n d e a unia Corina de totalitarismo. Poi\ ainda que

os v a l o r e s estejam certos (e consensualmente certos

para todos, ou para a maioria), todos os meios usados

para os prosseguir íicam automaticamente legitimados

(a m a g n i t u d e dos (ins justifica a pluralidade dos

n ie ios ) ( i 8 .

V i n t e séculos depois, uni jurista português notável,

João Baptista Mat liado (1927-1991 ) r > < \ relaciona a exis­

tência e a nature/a do direito com a abertura e

indeterminação naturais ao homem (a que normalmente

c h a m a m o s livre arbítrio, ou liberdade) e com a neces­

sidade de compatibil izar estas características com a

necess idade de vida em sociedade segundo regras

c o m u n s 7 0 . Parece, à partida, uma noção menos exigen-

M C o m o , q u a n d o es tamos p r e o c u p a d o s e m reilizar c e r t o s

valores , "o c r i t é r i o d e validade da a c ç ã o ou d o juízo é a sua

eficiência ein r e l a ç ã o a o fim ( . . . ] , p o d e n d o o mais nobre va lor

justificar a m a i s abjec ta acção", isto leva C u s i a v o /agrebclsky a

concluir q u e "o a g i r e o julgar "por valores" sã>, de l a c t o ,

re frac tár ios a c r i t é r i o s regulativos o u del imita i ivos de n a t u r e z a

objectiva, n ã o p o d e n d o ser reconduz idos a r a z õ e s rac iona lmente

controláveis [e as s imJ são incompatíve is c o m as es igencias d o

Kstado d e Dire i to , pois contém i m p l i c i t a m e n t e u m ; p r o p e n s ã o

totalitária" ("Dirit to p e r valori, pr incipi o r e g o l c (;i p r o p ó s i t o

delia do t t r ina d e i principi di R o n a l d Dworkin)", em Qjiaderni

1'iomitini per la storia dei pensiero giuridico moderno, vol. . ' 11 (2002) . , , ( ) Sobre e le , v. h t tp: / /www.f í l ( )S í ) í iay( lerec l io .com / rt íd /n i in ie -

r o 6 7 p o r t u g a l . h t m . 7 0 João B . M a c h a d o , Introdução ao direito e ao discurso legitima­

dor, Co imbra , A l m e d i n a , 1 9 8 3 .

Page 26: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

I M A DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO I 87

te, pelo menos porque não liga o direito a um valor

geral e abstracto (e "denso") como a justiça, mas

apenas à necessidade de conduzir o homem para

formas mínimas (e variáveis) de convívio. Tratar-se-ia,

assim, de uma forma de amsensitalismo, estruturalmente

semelhante á que subjaz às diversas concepções de

contra to social desde o séc. xv i i l . N o entanto, o tema

da Jus t iça retorna, a propósi to da dist inção entre a

ordem jurídica e outras ordens normativas presentes na

sociedade. Na verdade, c o m o o di re i to real i /a a sua

função educativa a par com muitas outras instituições

(i.e., s implificando, conjuntos orgânicos de normas),

diz-se no rma lmen te que o que dis t ingue o direito

dessas outras ordens normativas é o facto de as normas

jur íd icas deverem ser cumpridas, n ã o apenas por um

imperat ivo in terno, mas também - c o m o j á dizia

Ulpiano - pela ameaça de sanções ou pela promessa

de prémios . Porém, Baptis ta M a c h a d o - que escreve

numa época muito sensível ao a b u s o da força por

regimes autori tár ios ou total i tár ios, o t e rce i ro quartel

do século X X - não se con ten ta c o m esta definição

externa, pois caracter izar o direi to a p e n a s pe la coerci­

bil idade das suas normas seria c o n s i d e r a r jur ídicas as

normas aberrantes de a lguns desses r e g i m e s (persegui­

ção po r motivos é tnicos , re l ig iosos o u pol í t icos, por

e x e m p l o ) . Para u l t rapassar esta d i f i cu ldade , Baptista

Machado apoia-se em Kar l L a r e n z ( 1 9 0 3 - 1 9 9 3 ) , um

c o n h e c i d o ju r i s t a a l e m ã o dos m e a d o s do séc. X X ,

quando ele def ine o d i re i to c o m o " u m a ordem de

convivência humana or ientada pela ide ia de uma ordem

Page 27: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

88 I CALKIDOSCÓIMO DO DIREITO...

«justa»" 7 1 . Seria esta referência à justiça que permitiria

distinguir as normas do direito de uma ordem de força

ou da regra que a si mesmo se dá um bando de

salteadores (p. 3 2 ) , repet indo uma questão que já tinha

sido posta, nestes mesmos termos, por Santo Agostinho

( 3 5 4 - 4 3 0 d.C.).

Voltando aos clássicos - que é sempre uma forma

eficaz de dispor bem o auditório - lembremos um

outro texto do Digesto. Aquele em que Gaius

(séc. III?) dis t ingue o direi to natural, baseado na

natureza humana (outro valor denso e, logo, proble­

mático nos dias de hoje) , do direito civil (i.e., da

cidade), definindo este c o m o "o que cada povo ins­

tituiu para si, a que se chama civil, como que «próprio

da cidade»" (1)., I, I, 9 ) ; e que, portanto, constituía

como uma "promessa comum e solene da cidade",

como acrescentará Papinianus (D., 1, 3, 1). Estes dois

textos - típicos do republicanismo romano - introduzem

uma ideia que nós hoje podemos entender muito bem

e que expr imimos pelo pr incípio do direito democrá­

tico: o direito é aquilo que um povo estabeleceu,

solenemente (ou seja, respeitando certas formalidades),

Para l e v a r m o s es ta a f i r m a ç ã o a sério, temos q u e e squecer

p i e d o s a m e n t e a l g u m a s d a s pos ições d e Larenz sobre a exc lusão

dos j u d e u s d a c o m u n i d a d e j u r í d i c a a l e m ã . Ele p r ó p r i o o c u p o u

a c á t e d r a d o filósofo d o d ire i to G. Husserl , a fas tado do e n s i n o

p o r ser j u d e u . Enf im, e r a m os t e m p o s d o nazismo, e m que os

tais sent idos d e j u s t i ç a se o b s c u r e c e r a m para muita gente . C) que

j á diz a lgo s o b r e a sua fal ibil idade. . .

Page 28: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 89

para se reger a si mesmo. Princípio este que, hoje, está

estreitamente ligado ao da soberania popular.

Normalmente , este direito querido pe lo povo con­

cretiza-se (i) num momen to consti tuinte originário,

numa Constituição; (ii) em momentos constituintes sub­

sequentes, e m reformas ou revisões (ou emendas [angli­

cismo]) a essa constituição; e, instituída a constituição,

(iii) na edição de normas jurídicas pelos órgãos que ela

declare competen tes para tal.

Esta posição quanto à definição do direito - que

identifica o direito com uma vontade, a vontade

expressa mais ou menos so lenemente pelo povo - é

denominada, tradicionalmente, de positivismo legalista

ou legalismo.

A fama de que o positivismo gozou, sobretudo nos

últimos c inquenta anos, não foi br i lhante , porque ele

apareceu no rma lmen te associado à conversão da von­

tade arbitrária de Estados autoritários em direito legí­

timo - ou seja, em direito a que se devia o b e d e c e r 7 2 .

E, por isso, muito se tem escri to con t ra esta con­

cepção7'*.

/ 2 Veja-se, a i n d a ho je , o ar t ." 8 . ° d o C C ( s o b r e t u d o o seu

n.° 2 ) . A sua g e n e a l o g i a a s c e n d e , e m P o r t u g a l , a o E s t a t u t o

Jud ic iár io d o E s t a d o N o v o , nos a n o s 3 0 d o séc . XX. l S A v u l g a r i z a ç ã o des ta ideia d a r e l a ç ã o e n t r e l ega l i smo e

total itarismo deve-se a G. R a d b r u c h ( d e m i t i d o pelos naz i s e m

1 9 3 3 : Gustav R a d b r u c h , "(¿esetzlich.es U n r e c h t und ü b e r g e s e t -

zliches Recht" , Siiddeutsche Juristerizeitung, 1 ( 1 9 4 5 ) , 1 0 5 - 1 0 8 ) .

Mas tem v i n d o a ser p o s t a em causa p o r e s t u d o s mais r e c e n t e s

sobre o d i re i to sob o naz i smo e sob o l e n i n i s m o - c s t a l i n i s m o :

Page 29: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

90 I CALEIDOSCÓPIO DO DIRKITO.

Kin lace desta polémica, a pr imeira coisa que se deve

observar é que o Icgalismo n ã o (oi, na época contem­

porânea, um atributo c a r a c t e r í s t i c o das políticas auto­

ritárias do direito. Pelo c o n t r á r i o . Ele prevaleceu na

lase inicial da Revolução F r a n c e s a , justamente aquela

que correspondeu ao p e r í o d o de mais enfática afirma­

ção da soberania popular. )á antes , nos Estados Uni­

dos, se manifestara coin u m e n o r m e vigor, logo no

preâmbulo da Consti tuição federa l , de 1778 (21 .6) :

"We lhe people of lhe United States, in order to form a

more perfect union, establish justice, insure domestic

tranquility, provide for the c o m m o n defense, promote

the general welfare, and secure the blessings ol liberty

to ourselves and our posterity, do ordain and establish

this Constitution for the United States of America"1 x.

Constituição que, como j á vimos, t ambém declarava

formal e enfaticamente que n inguém deveria ser tão

ousado que se atrevesse a suspender ou de ixar de

c f , Michael Stolleis, 77/./' Law under the Swastika: Studies on Legal

History in Nazi Germany, C h i c a g o : I 'niversitv o f C h i c a g o Press,

1 9 9 8 ; Joerges /S ingh Ghalc igh ( eds . ) . Darker Legacies of Laic in

Europe: The Shadow of National Socialism and Fascism over Europe and

its Legal Traditions. With a prologue by Michael Stolleis and an epilogue

by JHH Weiler, H a r t Publishing, 2()<>:i. / l Klementos his tóricos básicos sobre o p r o c e s s o cons t i tuc io ­

nal n o r t e - a m e r i c a n o , xig., e m http://vvwvv.archives.gov/national

archives-exper ience /charters /const i tut ion_( i_and_a.html . Exaust iva

ind icação das fontes do princípio const i tuc ional d e que é a

v o n t a d e d o povo q u e deve decidir a c e r c a d a C o n s t i t u i ç ã o e d o

direi to , eme está n a base da p r o c l a m a ç ã o "we the People [...]",

e m ht tp : / /pres s -pubs .uch icago . edu / founders / to ( s/v 1 c h 2 . h t m l .

Page 30: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 91

executar as leis ["All power o f suspending laws, or the

execution o f laws, by any authority, without consent o f

the representatives o f the people, is injurious to their

rights, and ought not to be exerc i sed]" . O mesmo

aconteceu em Inglaterra, país considerado, desde o

início da época contemporânea , c o m o um modelo de

liberdades e de democracia; aí, não só se prolongou

até hoje o princípio da soberania do parlamento, como

também a tradição jurídica inglesa tem sido, nos

últimos duzentos anos, fortemente marcada pelo posi­

tivismo legalista (John Austin [ 1 7 9 0 - 1 8 5 9 ] ; H. L. Hart

[1907-1992] , Joseph Raz [ 1 9 3 9 - . . . ] ) 7 5 . Km contrapartida,

as posições antilegalistas têm consti tuído um sinal

característ ico da política do direito de Estados autori­

tários, para os quais a lei (ou a const i tuição) - mesmo

que sejam as suas leis e as suas consti tuições - podem

ser sempre um embaraço para o arbítr io do poder.

E, por isso, os líderes desses Estados frequentemente

apelaram para normas ou valores supralegais (como o

direi to natural, o génio nacional, o interesse do povo

ou da Nação, a tradição, a opor tunidade política, a

moral e os bons costumes, a religião, quando não para

a simples vontade de chefes carismáticos) para ultra­

passarem os limites rigorosos da lei ("decisionismo") 7 0 .

7 ; > C L unia breve s íntese e m http://en.wikipedia.org/wiki/

Legal_posit ivism Legal_positivism_in_the_Knglish_speaking_worlcl . / ( ) U m e x e m p l o : a C o n s t i t u i ç ã o d o E s t a d o Novo ( 1 9 3 3 )

d e c l a r a v a que "A N a ç ã o p o r t u g u e s a const i tui u m Estado inde­

p e n d e n t e , cuja soberan ia só r e c o n h e c e c o m o limites, na ordem

i n t e r n a , a m o r a l e o d i r e i t o [...]" ( a r t . ° 4 ) . O r a nem esta

Page 31: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

92 I C A L E I I X X S C Ú P K ) I X ) DIREITO.

M e s m o que fosse c e r t o q u e o impér io da lei serve

os r e g i m e s autor i tár ios , h o j e e m dia, muitos dos argu­

mentos ant i legal i s tas c o r r e n t e s n o imediato pé)s-guerra

podem s e r revert idos ou acau te lados .

Km p r i m e i r o lugar, t e m o s que constatar que a

d e m o c r a c i a polí t ica - n o r m a l m e n t e na forma de

d e m o c r a c i a representat iva - é a forma política larga­

mente d o m i n a n t e no m u n d o cultural que constitui a

nossa re fe rênc ia . K, por isso, todos os argumentos que

se t i ravam do carácter autori tár io, arbitrário, ditatorial

da lei (aqui lo a que i r on i camen te j á se chamou de

r e f e r e n c i a , logo p r e l i m i n a r à m o r a l e a o d i re i to - que os juristas

de e n t ã o t e n d i a m a ident i f icar c o m o d ire i to n a t u r a l - , impediu

o c a r á c t e r autor i tár io e f r e q u e n t e m e n t e a r b i t r á r i o da a c ç ã o d o

E s t a d o o u a p r o m u l g a ç ã o de leis p r i m a r i a m e n t e ofensivas das

l iberdades de opin ião c d e e x p r e s s ã o d o p e n s a m e n t o . A impor­

tânc ia d a lei na sa lvaguarda c o n t r a os ac tos arbi trários d o p o d e r

a i n d a foi mais c l a r a nos to ta l i tar i smos n a / i e bolchevista, e m que

a v o n t a d e do Führer , do P a r t i d o ú n i c o ou d o s seus comissár ios

pol í t icos tinha força de lei. O dccis io i i i smn c o m o fundamento

do d i re i to foi t eór ica e f i losof i camente justificado p o r C a r l

Schmit t (Carl Schmitt , Ibldische Theologie: l'ier Kapitel zur Lehre

von der Souveränität, M ü n c h e n , 1 9 2 2 ) , m e m b r o d o Pan ido Nacio­

nal-socialista (ab 1 9 3 3 ) e p r i n c i p a l t eor i zado! d o direito nazi

( m a x . Staat, Bewegung, Volk: Die Dreigliederung der politisdien Einheit,

1 9 3 3 ) , m e m b r o d o C o n s e l h o de E s t a d o d a Prúss ia , e de fensor

de que o princípio const i tuc ional f u n d a m e n t a l d o III Re ich e r a

a vontade do F ü h r e r ( „ F ü h r e r t u m " ) e n ã o a m e r a l ega l idade

(„Der Wille des Führers ist Cesetz") . Dito isto, não é justo

i g n o r a r como os valores ' jusnatural i s tas" (ou "supralegalistas")

da justiça, da l iberdade, da igualdade, e tc . , fundaram a r g u m e n ­

tos políticos muito importantes n o c o m b a t e ás d i taduras .

Page 32: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 93

redução ad Hitlerwn11) constituem sobrevivencias de um

m o m e n t o histórico que não existe mais.

E m segundo lugar, segundo o antilegalismo, a

recusa do n o m e de direi to às "leis injustas" teria a

vantagem de lhes negar o carácter jur íd ico e, logo,

cogen te ou obrigatór io. Ora , se estudarmos a história

da resistência aos regimes totalitários dos anos 3 0 e 4 0

do séc. X X , consta taremos duas coisas. A primeira

delas é que a esmagadora maioria dos juristas - mesmo

em países de bri lhante tradição jurídica - raramente

usou este argumento para justificar o direito (ou mesmo

dever) de resistência às leis aberrantes; pelo contrário,

elas foram invariavelmente aplicadas com o assenti­

men to ou colaboração do corpo dos juristas e dos

juízes . Mas, mais do que isso, a existência potencial

deste argumento a favor de um "combate jur íd ico às

ditaduras" não raramente constituiu uma diversão de

formas mais eficazes de se lhes opor, desde as formas

aber tamente políticas (a começar pela crítica política

da lei, que não lhe nega o valor de lei, mas a critica

nos seus fundamentos políticos, morais ou religiosos)

às formas de resistência ou de revolta, legal ou ilegal,

passiva ou activa.

Hoje , em contrapartida, o contexto político é outro.

E, sobretudo, outros são os riscos que ameaçam o

princípio do direito democrático.

7 / Tra ta - se d e u m trocadi lho c o m a e x p r e s s ã o reduvtio ad

absurdinn, a r g u m e n t o que consiste e m a t a c a r u m a propos ição

m o s t r a n d o que e la conduz a resultados absurdos .

Page 33: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

94 I CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO. .

O p r i m e i r o risco é o de que alguém se substitua ao

povo na tare ia de c r i a r d i re i to .

Isto pode acon tece r de vár ias formas, algumas das

quais bas tan te ant igas na t rad ição ju r íd i ca ocidental,

d o m tuna delas já nos def rontámos , nesta curta intro­

dução: pressupondo (i) que exis te um direito "natural",

oti " rac ional" , ou " c e r t o " - ou seja, que existem

respostas independen tes da cultura, dos interesses ou

das opin iões , para a pergunta "isto é ou não justo?" 7 8

- e (ii) que os juristas, pelo seti saber ou pelo seu

t re ino, são capa/.es de descobr i r essas respostas, a

ten tação é grande pa ta substituir ao direi to de raiz

democrá t ica um outro de raiz aristocrática, formulado

por uma eli te de especial is tas. Pois se passaria no

direi to aquilo que se passa e m outros ramos do saber

- c o m o a matemática ou (em m e n o r grau.. .) a medicina

- em qtie as decisões sobre as "soluções certas" não

d e p e n d e m do voto. Daí que o dire i to - c o m o "ciência

do j u s t o " - não pudesse ser dir igido por um princípio

/ H Q u e ex i s t e um dire i to "certo" , n a r e e e n t e forniulacao de

R o n a l d Dworkin (V. Dvvorkin, "No right a n s w e r ? ' , in Law,

Morality and Society, Essays in Honour of II. L. Hart, P. M.

S. H a c k e r & J o s e p h R a / ( e d . ) . C l a r e n d o n Press, O x f o r d , 1 9 7 7 ,

5 8 ss. e "Is t h e r e Really N o Right Answer in H a r d Cases", in

A Matter of Principle, H a r v a r d Univ. Press, C a m b r i d g e ( M a . ) ,

1 9 8 4 , 1 1 9 ss.). O u t r o t e x t o i t i teressante ( a g o r a m i m sentido

posi t iv is ta): E u g e n i o Bulygin, "Objectivity o f Law in the View o f

L e g a l Positivism", Analisi e diritlo 2 0 0 4 , a cura di P. C o m a n d u c c i

e R . Guast in i ( = http:/ /www.giuri . i inige. i t / intro/dipist /digita/t i lo/

t e s t i / a n a l i s i _ 2 0 0 4 / 1 5 b u l y g i n . p d f ) .

Page 34: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 95

democrático, sendo, antes pelo contrário, um domín io

própr io de um saber de autoridades (um saber "dog­

mático", i.e., que devia ser aprendido de uma aristocra­

cia de especialistas, e não estabelecido pela vontade dos

cidadãos). Não é raro que esta argumentação seja

reforçada, salientando as deficiências conhecidas do

sistema democrático, nas suas várias versões, nomeada­

mente na actuais democracias representativas, proble­

matizando ainda mais a bondade, só por esta razão,

de um direito democrát ico, d o m o veremos (cf. infra,

I I I , n.° 11.4), esta suposição de que os juristas consti­

tuem um grupo socialmente neutro, dominando uma

ciência e dotado de uma especial perspicácia axiológica

ou de uma autoridade intelectual que torna as suas

decisões indiscutíveis, tem sido posta em causa pela

generalidade dos cientistas sociais e dos epis temólo-

g o s 7 9 . Dadas estas dúvidas, não há fundamentos bas­

tantes para substituir um direi to de raiz democrát ica ,

fundado na sensibi l idade comuni tá r ia da jus t i ça ,

expressa pelos processos democra t i camente estabele­

cidos, por uni outro de raiz aristocrática, baseado

numa pretensão de sabedoria que nem a epistemologia,

nem a sociologia, têm podido demonstrar .

O segundo risco para o pr inc íp io do direito demo­

crát ico é o da substituição de um direito de raiz

7 9 Não se exc lu i , c o m o q u e a c a b o d e dizer, a f u n ç ã o

e s c l a r e c e d o r a , o r i e n t a d o r a d a d i s c u s s ã o e e s tab i l i zadora d a s

so luções , que os jur i s tas p o d e m d e s e m p e n h a r na rea l i zação d o

d i r e i t o .

Page 35: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

<)<> I C A L E I D O S C Ó P I O D O D I R E I T O . . .

democrática p o r um outro baseado em normas preten­

samente na tu ra i s , impostas pela própria natureza das

relações h u m a n a s . A ideia é antiga. Km todas as épocas

houve a t e n d ê n c i a para crer, ingenuamente, que as

normas de vida e n t ã o aceites eram as normas ditadas

pela natureza, das coisas, do homem, das relações

sociais e h u m a n a s (das relações familiares, das relações

amorosas, do exe rc íc io cio poder, cios negócios, e t c ) .

Abordaremos brevemente duas manifestações desta

tendência.

Hoje, insiste-se muito na lé>gica das relações econó­

micas - segundo os padrões do actual capitalismo

avançado - c o m o um modelo forçoso de organização

das relações, não apenas económicas, mas, em geral ,

das relações humanas . Nesta perspectiva, valores

como o da rentabi l idade económica, da expansão do

mercado, da submissão de todos os juízos de valor

(incluindo os do direito) a uma análise custos-benefí-

cios, seriam tão incontornáveis que contra eles não

poderia valer a soberania popular ou o princípio da

decisão democrá t ica do direito. Todavia, a observação

das sociedades históricas, ou mesmo das actuais, mostra

que a economia já prosseguiu de muitas formas o

combate à escassez, a produção de bens, a optimização

social das vantagens, a distribuição cio produto, a

ponderação dos custos e dos benefícios, a distribuição

de uns e outros ou pelos particulares ou pela comu­

nidade; de tal modo que alegadas leis naturais ou

inevitabilidades, neste domínio, não são empir icamente

comprováveis , podendo, pelo contrário, constatar-se a

Page 36: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 97

existência cie postulados culturais e polít icos subjacen­

tes a todas as análises e c o n ó m i c a s 8 0 . S e n d o estes pos­

tulados produto de convicções ou de escolhas contin­

gentes (civilizacionais, comunitárias ou apenas de certos

grupos), não têm lo iça bastante para se imporem às

decisões comuni tár ias sobre o direito (v., infra, I I I . 10

e IV.14.2) .

Uma outra manifestação de naturalização da cultura

é algum do discurso que se taz em torno dos direitos

naturais - ou "direitos fundamentais", consoante se

adopte uma formulação mais "americana" ou uma mais

"europeia". O princípio do direito democrát ico não

tem outro fundamento senão o de garantir os direitos

mais eminentes dos membros cia comunidade, a come­

çar pelo direito de estabelecerem um direito como

norma de vida comum, do qual decorrem, para todos,

direitos e deveres.

Naturalmente que este direito de estabelecer uma

norma cie vida comum - uma ordem ou forma da

República - só se justifica enquanto vise, em última

análise, o respeito cios direitos dos cidadãos. Mas,

como a vicia comum é impossível se os direitos pes-

8 0 K neste sent ido q u e soc ió logos , a n t r o p ó l o g o s e historiado­

res insistem e m q u e o cá l cu lo e c o n ó m i c o é "culturalmente

embebido" (a e x p r e s s ã o c d e Kar l Polanyi, 1 8 6 6 - 1 9 6 4 , sobre o

qual , v. ht tp: / /en .wikipedia .org/wiki /Karl_Polanyi e a interessante

n o t a , o r i e n t a d a j u s t a m e n t e p a r a a ques tão da desmistificação das

"regras d o m e r c a d o " , e m http://www.tguide.org/Bulletin/polaii

y i . h t m .

Page 37: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

?)H I CALEIDOSCÓPIO ! ) ( ) DIREITO

s o a i s , m e s m o os mais eminentes, forem intangíveis,

n ã o pode haver direitos incomensuráveis, ou seja, não

p o d e haver direitos que escapem, no seu exercício, a

i i i n confronto , a uma ponderação, com os direitos dos

o u t r o s (individuais ou de grupos 8 1 ) ou com os direitos

d a própr ia comunidade , como garante do conjunto

d o s direi tos de todos.

Por isso, a defesa - hoje comum entre as mais

rad ica i s correntes ideológicas liberais - cio princípio

d e uma prevalência absoluta dos direitos individuais

H [ E x e m p l o s d e d ire i tos d e grupos são o direito à identidade

e s o b r e v i v ê n c i a cu l tura l , o d i r e i t o à paz e segurança colectiva, o

d i r e i t o a u m a m b i e n t e são e acolhedor, o direito a um consumo

s e g u r o , o d ire i to à p r e s e r v a ç ã o do patr i -mónio; estes direitos

c o l e c t i v o s p o d e m ser p r o t e g i d o s p o r formas colectivas de reivin­

d i c a ç ã o destes d i re i tos , c o m o a "acção popular" (art .° 52 da

C R P ; sobre ela v. C a r l o s A d é r i t o Teixeira, "Acção Popular - Novo

P a r a d i g m a " , e m http: / /ww\v.diramb. g o v . p t / d a t a / b a s c d o c / F C H _

1 9 8 6 8 _ D . h t m ; M a r i a n a Sot to Maior, "O direito de acção popu­

lar na C o n s t i t u i ç ã o da Repúbl ica Portuguesa", em Documentação

e Direito Comparado, n . u s 7 5 / 7 6 ( 1 9 9 8 ) = http://www.gcldc.pt/

activiclacle-editoi ial/pclfs-public acoes/7f)7()-g.pdt; cí. Lei n.° 8 3 /

9 5 , d e :U d e A g o s t o - Direi to de par t i c ipação procedimental e

de a c ç ã o p o p u l a r ; a lguns de les são sanc ionados penalmente : o

caso mais p a t e n t e é o da c r i m i n a l i z a ç ã o d o genocídio p e l o

dire i to pena l i n t e r n a c i o n a l e p o r muitos direitos nacionais; m a s

poder - se - ia a p o n t a r a i n d a a cr imina l i zação d a guerra c o n t r á r i a

aos pr inc íp ios d a C a r t a das N a ç õ e s Unidas , c o m o a t e n t a d o a o

direito co lect ivo à p a z ; ou, n u m círculo a inda mais vasto, os

delitos c o n t r a o a m b i e n t e , c o n t r a o p a t r i m ó n i o cultural, c o n t r a

as boas prát icas nas re lações c o m os consumidores , etc.

Page 38: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DEFINIÇÃO REALISTA IX) D I R E I T O | 99

sobre o Direito (como ordem compat ib i l izadora , ou

ponderadora, ou reguladora) pode ser cons iderada

uma ameaça grave ao princípio do direito democrát ico.

Por um lado, sem uma positivação (ou incorporação

objectiva, um reconhec imento seguro) desses direi tos

numa ordem jur íd ica , o que se instaura é o arbí t r io

quanto à stta identificação, quanto ao estabelecimento

do seu âmbito e quanto ao seu peso relativo perante

outros direitos. K, com isto, corre-se o risco de que

cada um ou cada juiz defina, recorte e valore o

catálogo de direitos segundo as suas convicções pes­

soais, impondo-as a todos c o m o o princípio ou fun­

damento do Direito. Por outro lado, mesmo os direitos

mais fundamentais não são abso lu tos 8 2 , pois têm que

se medir com os direitos dos outros ou, se se quiser,

com os deveres criados pela convivência no seio da

República. O problema não é, em suma, o de "tomai'

os direitos a sério" (R. Dworkin) ou não, pois todos

quererão levar a sério os direitos seriamente estabele­

cidos e ponderados. O problema é antes, por um lado,

o de saber quem define séria e objectivamente esses

direitos, sobretudo num mundo cultural e ideologica­

men te plural como o de hoje; e, em segundo lugar,

s i A vida c e d e , em cer tas o r d e n s jurídicas, p e r a n t e o direito

d e punir; c o m o se e n t e n d e dever ceder , e m gera l , pelo devei de

defesa da República (em g u e r r a justa); c e d e p e r a n t e o estado de

necess idade ou a legí t ima defesa, que e x c l u e m a ilicitude doado

d e m a t a r quando o a g r e s s o r se e n c o n t r e nessas situações de

e x t r e m a inexigibi l idade.

Page 39: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

100 I CALEIDOSCOPIO DO DIREITO...

se se podem levar a sério os direitos de uns sem

igualmente se levarem a sérios os direitos dos outros,

isto é, sem se levar a sério a séria tarefa da sua ponderação.

O terceiro risco que se coloca à democraticidade do

direito é o da submissão do direito querido e posi­

tivado por uma comunidade a um direito real ou

alegadamente querido por uma comunidade mais glo­

balizada. Embora a constituição de espaços jurídicos

mais vastos, correspondentes a espaços de interacção

humana também mais vastos, apareça como uma carac­

terística dos nossos dias, há sempre que verificar se a

participação nesses espaços de direito mais globalizado

Ib i realmente querida pela comunidade mais restrita,

se em relação a essa integração houve um momento

constituinte em que a comunidade decidiu, segundo as

normas da sua constituição, pelo menos aceitar como

seu o direito instituído a um nível superior, de acordo

com regras também pré-definidas e aceites. Caso con­

trário, poderemos estar a submeter o direito consti­

tuído democrat icamente a formas não democrat ica­

mente legitimadas de estabelecer direit.o s :*.

Dissemos que alguns dos argumentos contra o prin­

cípio do direito democrát ico são obsoletos, que os

outros não têm fundamentos empir icamente compro­

váveis e que, por isso, o direito deve ser definido como

8 : i V., infra, a propós i to d o processo d e i n t e g r a ç ã o jur íd ica

e u r o p e i a , cap . 12 .2 ( D e m o c r a t i c i d a d e d o d ire i to e i n t e g r a ç ã o

jur íd i ca e u r o p e i a ) .

Page 40: HESPANHA, O caleidoscópio do Direito

UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO Dl REI'IX) | 101

aquela o rdem normativa que o povo soberanamente

quis e constituiu para conviver.

A questão qtie colocaremos de seguida é a de saber

o que é isso de "o povo querer".

Tratados têm sido escritos sobre esta pequena frase,

in terrogando-se sobre o que é o povo? como é que o

povo quer? como se manifesta a sua vontade? Sendo

questões da teoria política pertinentes, mas pratica­

men te indecidíveis, l imitar-nos-emos a explorar, no

c a m p o mais especificamente jurídico, a resposta dada

a esta questão pelas correntes do pensamento jur íd ico

que, para não ficarem encerradas em posições dema­

siado formalistas - c o m o as que só consideram c o m o

expressão da vontade comunitária a lei parlamentar - ,

observam como é que, na real idade dos factos, a

comunidade constitui direito. Referimo-nos às corren­

tes realistas - vivazes, primeiro na França dos finais do

sec. X I X , depois na Inglaterra e nos Estados Unidos

e, mais recen temente , nos países escandinavos. 8 4

8 1 U s o p r o p o s i t a d a m e n t e o t e r m o I n g l a t e r r a , e não R e i n o

U n i d o , p a r a s a l v a g u a r d a r a l g u m a s espec i f ic idades do d i r e i t o

e scocês , p o r e x e m p l o .