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Danielle Guglieri Lima A Manifestação da oralidade na literatura regionalista de João Simões Lopes Neto: Os Contos Gauchescos Mestrado em Língua Portuguesa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2007

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Danielle Guglieri Lima

A Manifestação da oralidade na literatura regionalista de

João Simões Lopes Neto: Os Contos Gauchescos

Mestrado em Língua Portuguesa

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

2007

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Danielle Guglieri Lima

A Manifestação da oralidade na literatura regionalista de

João Simões Lopes Neto: Os Contos Gauchescos

Dissertação apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de São Paulo,como exigência parcial para obtenção do título deMestre em Língua Portuguesa, sob orientação daProfessora Doutora Leonor Lopes Fávero.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

2007

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Banca Examinadora

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Às vezes é bom acreditar naevolução e pensar que o homem ainda

não está concluído.(John M. Henry)

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___AGRADECIMENTOS_____________________________________________

Agradeço a Deus, Pai Eterno, por eu ter superado mais este desafio.

Sobremaneira, à professora Doutora Leonor Lopes Fávero, orientadora

especial, pelo saber e competência.

Às professoras integrantes da Banca de Qualificação, Maria Lúcia da

Cunha Oliveira Andrade e Vanda Maria Elias, pelas sugestões, sensibilidade e

profissionalismo.

Á professora Mestre, Celeste Fragoso Tavares, profissional competente e

amiga incomparável.

Às professoras e amigas, Denise Cavalieri, Clarícia Akemi Eguti e Neusa

Lucas, pelo companheirismo e demonstração de afeto.

À CAPES, pelo financiamento de parte deste sonho.

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___DEDICATÓRIA__________________________________________________

Dedico este trabalho meu companheiro e amigo, Rafael Griffo, pelo amor,

companheirismo, respeito e dedicação.

Ao meu pai, César Lima, pela dignidade, moral, caráter, modelo de homem e

de amor.

Ao meu filho, Raphael, por saber esperar, pela presença, confiança e amor.

A todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, contribuiram para esta

realização.

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___RESUMO_______________________________________________________

Esta dissertação situa-se na linha de pesquisa Texto e Discurso, nas modalidades

oral e escrita. Tem por tema o estudo das manifestações orais em textos literários, e, por

objeto de estudo, os contos que compõem a literatura regionalista do escritor João

Simões Lopes Neto. O objetivo deste trabalho é contribuir para os estudos da língua e

literatura, na interface das modalidades de língua falada e escrita. Especificamente: 1.

examinar as manifestações da língua falada na obra regionalista de João Simões Lopes

Neto; 2. analisar o corpus, por meio dos estudos referentes às propriedades constitutivas

da fala; 3. descrever de que maneira as manifestações da modalidade falada da língua

permeiam os textos selecionados. A fundamentação teórica situa-se na Lingüística

Textual e na Análise da Conversação, vertente sócio-interacional. O material de análise

foi selecionado da obra de João Simões Lopes Neto (2000). Os resultados obtidos

indicaram que no conto, gênero textual/discursivo, a modalidade falada da língua está

presente por meio das propriedades constitutivas da fala: tópico discursivo, turno

conversacional, marcadores conversacionais e pares adjacentes. Concluímos que os

estudos, da modalidade falada da língua, em contraponto aos da modalidade escrita,

contribuem para que a leitura de um texto regionalista possa ser significativa. Não

obstante, tais estudos precisam ter continuidade, pois a investigação realizada foi

centrada apenas no regionalismo de João Simões Lopes Neto. Faz-se necessária a

abertura de novas perspectivas para o estudo de outros contos regionalistas, enquanto

gênero textual/discursivo.

Palavras-chave: língua falada; língua escrita; conto regionalista.

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___ABSTRACT________________________________________ _____________

This dissertation is set forth in the Text and Discourse research line within the oral

and written modalities. Its subject is the study of oral manifestations in literary texts, and

the stories that compose the regionalist literature of writer João Simões Lopes Neto as the

aim of the study. The purpose of this work is to contribute to the studies of language and

literature in the interface of spoken and written language modalities. More specifically: 1. to

examine the manifestations of spoken language in the regionalist literary work by João

Simões Lopes Neto; 2. to analyze its corpus through studies that refer to the constitutive

properties of the speech; and 3. to describe the way in which the manifestations of the

spoken modality of the language permeate the selected texts. The theoretical

substantiation is set forth in Textual Linguistics and the Analysis of Conversations within

the socio-interactional aspect. The material analyzed was selected from the literary work

by João Simões Lopes Neto (2000). The results obtained indicated that in the short story,

a textual/discursive genre, the spoken modality of the language is present by means of the

constitutive properties of the speech, such as the discursive topic, conversational turn,

conversational markers, and adjacent pairs. We concluded thus that studies regarding the

spoken modality of the language, as opposed to those of the written modality, contribute to

a possible significance when reading a regionalist text. However, such studies need to be

continuous, for the realized investigation was only centered upon the regionalism of João

Simões Lopes Neto. It is necessary to open new perspectives for the study of other

regionalist short stories, insofar as the textual/discursive genre.

Key-words: spoken language; written language; regionalist short story.

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___RESUMEN______________________________________________________

Esta disertación se sitúa en la línea investigativa del Texto y Discurso, en las

modalidades oral y escrita. Tiene por tema el estudio de las manifestaciones orales en

textos literarios, y los cuentos que componen la literatura regionalista del escritor João

Simões Lopes Neto por objeto de estudio. El objetivo de este trabajo es contribuir para los

estudios de la lengua y literatura en la interfaz de las modalidades de la lengua hablada y

escrita. Específicamente: 1. examinar las manifestaciones de la lengua hablada en la obra

regionalista de João Simões Lopes Neto; 2. analizar el corpus por medio de los estudios

referentes a las propiedades constitutivas del habla; y 3. describir de qué manera las

manifestaciones de la modalidad hablada de la lengua permean los textos seleccionados.

El fundamento teórico se sitúa en la Lingüística Textual y en el Análisis de la

Conversación, vertiente socio-interaccional. El material de análisis se seleccionó de la

obra de João Simões Lopes Neto (2000). Los resultados obtenidos indicaron que en el

cuento, género textual/discursivo, la modalidad hablada de la lengua está presente por

medio de las propiedades constitutivas del habla: tópico discursivo, turno conversacional,

marcadores conversacionales y pares adyacentes. Concluimos que los estudios de la

modalidad hablada de la lengua en contrapunto a los de la modalidad escrita contribuyen

para que la lectura de un texto regionalista pueda ser significativa. No obstante, tales

estudios requieren continuidad, ya que la investigación realizada se centró apenas en el

regionalismo de João Simões Lopes Neto. Se hizo necesaria la apertura de nuevas

perspectivas para el estudio de otros cuentos regionalistas, considerando el género

textual/discursivo.

Palabras clave: lengua hablada; lengua escrita; cuento regionalista.

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___LISTA DE FIGURAS________________________________ ______________

Figura 1 – Fala e Escrita

Figura 2 – Quadro Tópico

Figura 3 – Marcadores conversacionais verbais

Figura 4 – Função dos marcadores conversacionais

Figura 5 – Quadro tópico – O mate do João Cardoso

Figura 6 – Estrutura digressiva

Figura 7 – Quadro tópico – Deve um queijo

Figura 8 – Quadro tópico – Os cabelos da china

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___LISTA DE ABREVIAÇÕES____________________________ _____________

ST – Supertópico

T – Tópico

D – Digressão

Sbt – subtópico

L – Locutor

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___SUMÁRIO______________________________________________________

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 15

CAPÍTULO I – Fala e escrita ............................................................................. 20

1.1.A língua falada: propriedades determinantes da fluênciacomunicativa..............................................................................................32

1.1.1 O tópico discursivo: um processo colaborativo daconversação...............................................................................................33

1.1.1.1 A digressão: uma estratégia usada nas relações sociais dosinterlocutores..............................................................................................38

1.1.2. O turno conversacional: a alternância nas competências dosparticipantes da conversação....................................................................47

1.1.3. Os marcadores conversacionais: construtores da interação notexto falado................................................................................................48

1.1.4. O par adjacente: um encadeamento de ações na organizaçãolocal do evento comunicativo....................................................................52

1.1.5. A presença da língua falada no conto regionalista...............54

CAPÍTULO II – O conto regionalista: um gênero textual/discursivo ................... 59

2.1. O conto: um breve histórico................................................................59

2.2. A forma do conto: perspectiva morfológica de Vladimir Propp...........62

2.3. Os aspectos estruturais do conto........................................................64

2.4. Conto: uma forma simples, segundo Jolles.........................................69

2.5. O conto: um gênero textual/discursivo secundário..............................72

2.6.O conto regionalista pré-moderno: a figura de João Simões LopesNeto............................................................................................................76

2.7. O Rio Grande do Sul: cenário dos Contos Gauchescos.....................79

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2.8. João Simões Lopes Neto: um enunciador..........................................83

CAPÍTULO III - As marcas de oralidade nos Contos Gauchescos......................91

3.1.Texto 1: O mate do João Cardoso......................................................91

3.1.1. O tópico discursivo...............................................................92

3.1.2. Os turnos conversacionais....................................................97

3.1.3. Os marcadores conversacionais.........................................100

3.1.4. Os pares adjacentes...........................................................102

3.2. Texto 2: Deve um queijo!.................................................................104

3.2.1. O tópico discursivo..............................................................105

3.2.2. Os turnos conversacionais..................................................107

3.2.3. Os marcadores conversacionais.........................................110

3.2.4. Os pares adjacentes...........................................................114

3.3. Texto 3: Os cabelos da china...........................................................115

3.3.1. O tópico discursivo..............................................................116

3.3.2. Os turnos conversacionais..................................................123

3.3.3. Os marcadores conversacionais.........................................126

3.3.4. Os pares adjacentes...........................................................129

CONCLUSÃO.....................................................................................................131

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................134

ESCLARECIMENTO...........................................................................................139

ANEXOS .......................................................................................................... 140

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Do mesmo modo que as aldeiassão iluminadas pelo sol, as idéias

o são por uma Idéia Suprema.(Platão)

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___INTRODUÇÃO___________________________________________________

Esta dissertação compreende uma investigação que, situada na linha de

pesquisa Texto e Discurso nas modalidades oral e escrita do Programa de

Estudos pós-graduados em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, tem, por tema, o estudo da presença das manifestações orais em

textos literários, e, por objeto de estudo, os contos que compõem a literatura

regionalista do escritor João Simões Lopes Neto.

A pesquisa realizada fundamenta-se em pressupostos teóricos na

Lingüística Textual e complementa-se pela Análise da Conversação, vertente

sócio-interacionista. Trata tanto da organização da modalidade da língua falada

quanto da sua representatividade na modalidade da língua escrita.

A fala e a escrita não podem ser consideradas dicotômicas, visto serem

partes que constituem um todo, a língua, cuja função é a comunicação. A

diferença, quanto ao uso de uma ou outra modalidade da língua, decorre da

intenção comunicativa do seu autor. (Marcuschi, 2001 e 2003)

Assim como a escrita, a fala possui propriedades que a constituem, quais

sejam: o tópico discursivo, que trata do assunto sobre o qual se fala (Fávero

2001), os turnos conversacionais, que ocorrem ou recorrem mediante a

alternância dos falantes (Fávero, Andrade & Aquino, 1999), os marcadores

conversacionais, que monitoram e dão ritmo à conversação (Castilho, 1986) e os

pares conversacionais, que são uma seqüência de turnos, trabalhando junto às

demais propriedades, a fim de organizar localmente a conversação. (Marcuschi,

2001)

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Durante os estudos das propriedades constitutivas da modalidade da

língua falada, alguns questionamentos motivaram esta pesquisa, pois o contista

regional constrói sua narrativa, utilizando um falar coloquial, e, se tal contista

utiliza as manifestações da modalidade falada da língua, seus textos literários, de

certa forma, refletirão suas propriedades; no entanto, é preciso saber de que

maneira o autor faz este intercâmbio das modalidades lingüísticas e, se as faz da

mesma forma em todos os seus textos literários.

O conto regionalista é um gênero textual/discursivo escrito, no qual o

autor busca relatar um momento singular, envolvendo um número reduzido de

personagens de determinada região. Nesta dissertação, os contos que compõem

o corpus de análise, apresentam uma linguagem quase fiel ao falar do extremo sul

do Brasil. Por este motivo, torna-se relevante um trabalho que demonstre a

integração das duas modalidades lingüísticas: a falada e a escrita, no momento da

interação.

A obra regionalista de João Simões Lopes Neto, Contos Gauchescos é

constituída por vinte contos. Este estudo limitou-se a três textos, pelo fato de

apresentarem um número relevante de diálogos, o que permite a identificação da

fala neles contida. Os três exemplares são: O mate do João Cardoso, Deve um

queijo! e Os cabelos da china, os dois primeiros narrados por Blau Nunes e o

último protagonizado por ele.

Esta investigação tem por objetivo geral contribuir para os estudos da

língua e literatura, na interface das modalidades de língua falada e de língua

escrita.

Quanto aos objetivos específicos, esta pesquisa busca:

1) examinar as manifestações da língua falada na obra regionalista

Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto;

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2) analisar o corpus por meio dos estudos referentes às propriedades

constitutivas da fala;

3) descrever de que maneira as manifestações da modalidade falada da

língua permeiam os textos selecionados.

Esta investigação se justifica pelo fato de que poucos são os estudos

relativos à manifestação oral, presente nos textos literários, assim como são

poucos os estudos sobre a obra de João Simões Lopes Neto, visto ser o autor o

pioneiro na composição de narrativas regionalistas, antecedentes ao período

modernista da literatura brasileira.

O procedimento metodológico, utilizado, foi o teórico-analítico e dedutivo.

Para tanto foram seguidos os passos:

1) levantamento e a análise do material bibliográfico, referente às

propriedades constitutivas da modalidade de língua falada;

2) levantamento e análise do material teórico, relevante ao estudo do conto,

enquanto gênero textual/discursivo;

3) seleção e constituição do corpus de análise;

4) análise do corpus seguindo os objetivos específicos, indicados

anteriormente para delimitar as categorias analíticas.

A análise dos textos seguiu os critérios:

a) leitura linear dos textos;

b) identificação das manifestações orais presentes nos textos;

c) reconhecimento das propriedades constitutivas da fala;

d) classificação dessas propriedades.

Esta dissertação se configura por três capítulos.

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Capítulo I, Fala e Escrita: trata dos conhecimentos específicos da

modalidade falada da língua e seus usos na modalidade escrita da língua. Tais

conhecimentos dizem respeito às propriedades constitutivas da fala.

Capítulo II, O conto regionalista: um gênero textual/discursivo: trata das

vertentes que estudam o conto, enquanto gênero textual/discursivo, bem como

alguns aspectos sócio-histórico-cultural-ideológicos da obra e do autor.

Capítulo III: As marcas de oralidade nos Contos Gauchescos, de João

Simões Lopes Neto: analisa o corpus, quanto às propriedades da língua falada

que o constituem.

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A educação tem raízes amargas,mas os frutos são doces.

(Aristóteles)

___CAPÍTULO I – Fala e escrita_____________________ __________________

O conhecimento de um indivíduo é a realidade do seu saber histórico, é

tudo o que o constitui. Todo esse conhecimento está calcado em suas

experiências individuais e coletivas, bem como nas manifestações de sua

linguagem, as quais refletem a maneira de entender, individual e socialmente, o

mundo do qual ele é parte integrante, pois, no momento em que percebeu sua

linguagem, como produto das relações essenciais de seu trabalho socializado,

passou a exercer ativamente o poder espiritual e material que a construção da

consciência lhe permitira. Ferreira (2004, p. 29)

Ao tornar a linguagem articulada, o homem atingiu a capacidade de falar

e, com isso, passou a criar formas diversificadas de se expressar em todos os

locais por onde passava. Inicialmente falou, depois documentou esta fala com a

escrita. Ferreira (id), ao citar Rocco (1989, p. 26), lembra que, ainda hoje, há por

volta de três mil línguas faladas e pouco mais de cem dessas línguas possuem

registro escrito. Logo, o número superior na existência de línguas ágrafas em

relação às línguas escritas revela

(...) a importância da oralidade no desenvolvimento das comunidadeslingüísticas, também evidencia a importância da escrita como portadora deum poder sociocultural, capaz de alterar a feição do mundo, ainda que onúmero de línguas escritas seja percentualmente muito baixo face àquantidade das línguas ágrafas.

Sabemos que, por meio da língua falada, o mundo se atualiza, pelo fato

de cada comunidade fazer uso da sua capacidade de comunicar-se, conforme

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sua organização social e de acordo com o modo como é vista a sua realidade. A

fala é a língua natural do ser e, na visão de Bronkcart (2003, p. 69):

Toda a língua natural apresenta-se como estando baseada em umcódigo ou um sistema, composto de regras fonológicas, lexicais e sintáticasrelativamente estáveis, que possibilitam a intercompreensão no seio deuma comunidade verbal.

E, de acordo ainda com o mesmo autor,

(...) uma língua natural só pode ser aprendida através das produçõesverbais efetivas que assumem aspectos muito diversos, principalmente porserem articuladas a situações de comunicação muito diferentes. (id)

Entendemos, então, que o homem é aprendiz das experiências sociais e

comunicativas, por que passa ao longo de sua vida; tais experiências o

constituem, enquanto ser social e, por isso, refletem na forma como está

organizada a sua comunicação, tanto na fala como na escrita.

Para que a fala não se perdesse na história, o homem precisava servir-

se de documentos não-perecíveis, que foram adquiridos, quando os seres

humanos passaram a criar símbolos para representar e para documentar suas

idéias. No que diz respeito à língua escrita, Ferreira (2004, p.36) assegura:

(...) houve um longo trajeto construtivo em que o homem foi tomandoconsciência das unidades lingüísticas até enveredar pela criação daescrita, a princípio, com o objetivo de suprir as necessidades societárias,econômicas e agrícolas.

Neste sentido, o homem passou por duas fases para chegar ao domínio

da competência do registro escrito, denominado por Ferreira, escritura completa:

a pintura e a semasiografia, sendo que esta utiliza símbolos com o intuito de

imitar a realidade e aquela recria essa realidade.

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A escrita é o modo de que a humanidade dispõe para registrar seus

pensamentos, primeiramente feitos por meio de desenhos, posteriormente, por

meio de letras e, finalmente, por palavras e textos. Na perspectiva de Auroux

(1992: 18), as palavras são

(...) classificadas em função de seu aparecimento mítico e segundo umsistema de correspondências simbólicas que lhes associa uma técnica,uma instituição, uma planta, um animal ou uma parte do corpo humano.Elas são representadas graficamente.

As palavras são as seleções de uma determinada civilização com o

objetivo de comunicar algo; tais escolhas ganharam força à medida que a escrita

foi se desenvolvendo, pois, historicamente, a escrita foi e é considerada, por

alguns estudiosos, a forma mais perfeita de linguagem e, devido à sua

complexidade, formalidade e abstração, tornou-se a modalidade lingüística

passível de estudos.

Assim visto, a fala não poderia constituir um objeto de estudo como a

escrita, pelo fato de a ela ser atribuído um grau de desestruturação,

informalidade e dependência contextual. No entanto, antes de a escrita ter a

importância que tem hoje na sociedade, a oralidade era a forma de expressão

mais forte e foi considerada pelos gregos um instrumento de dominação, uma

vez que o ato de “bem falar”, historicamente, estava ligado ao poder social.

Entendemos que tanto a fala quanto a escrita são imprescindíveis ao

desenvolvimento social do ser humano, pois estão inseridas em um mesmo

sistema lingüístico, que as compreende de forma distinta, uma vez que ambas

possuem regras e aplicações específicas, constituindo, cada uma, a sua

natureza, embora ainda possamos encontrar estudos, em que uma modalidade é

comparada à outra, propiciando alguns lingüistas considerarem a fala como

inferior à escrita.

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Apesar de o texto escrito ser posterior ao texto oral e ter surgido para

documentar o que antes era expresso apenas pela fala, as duas modalidades

devem ser usadas com a mesma relevância nos mais diversos contextos da vida

diária, nos mais diferentes âmbitos de convívio social, em um nível maior ou

menor de elaboração, o qual dependerá da atividade de interação e do contexto

que cada uma das funções pode assumir. E Marcuschi (2003, p.22) assim

afirma: na sociedade atual, tanto a oralidade quanto a escrita são

imprescindíveis. Trata-se, pois, de não confundir seus papéis e seus contextos

de uso e de não discriminar seus usuários.

Desse modo, tal afirmação remete à idéia de que as utilizações

realizadas da língua – falada ou escrita – são indispensáveis não só para a

convivência, como também para as práticas sociais. Neste caso, não deve haver,

por parte dos estudiosos, supremacia de uma modalidade lingüística sobre a

outra.

Um texto, bem escrito ou bem falado, depende da habilidade de seu

autor em conhecer as adequações pertinentes à linguagem, pois o autor deve

não só conhecer as normas específicas, mas também aplicá-las no momento

adequado. Na modalidade escrita, um texto pode admitir traços da modalidade

falada, tais como as hesitações, paráfrases, repetições e correções; o mesmo

acontece com um texto característico da modalidade falada que se utiliza de

traços próprios da modalidade escrita, tais como as citações, realizadas pelos

falantes, pois a fala não é um conjunto de palavras sobrepostas que proferimos

sem sentido, pelo contrário, possui também graus de elaboração.

Convém lembrar que, se um texto apresentar traços de uma modalidade

que não é a sua, isso não quer dizer que ele perderá a sua propriedade inicial de

texto falado ou de texto escrito; em sendo uma produção que reflete essas

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propriedades, segundo Marcuschi (2003), trata-se de um texto com

características mistas.

O autor de um texto misto pode tê-lo construído dessa forma por motivos

distintos: desconhecer o seu uso padronizado, pretender estender o seu grau de

formalidade ou ainda demonstrar, conscientemente, que seu texto pretende

produzir sentidos específicos. Ao demonstrar consciência, enquanto escreve um

texto, o autor atribui um léxico seletivo, uma estruturação prévia de parágrafos,

suspende as hesitações e correções, próprias de uma interação de fala, tornando

a sua manifestação lingüística mais tensa, e, com isso, mais próxima das

características da modalidade escrita, como pode acontecer, por exemplo, com a

fala de um político, em um pronunciamento nacional.

Quando em um texto escrito há traços de fala, o autor pretende atribuí-lo

à naturalidade e distensão, que o distancia da linguagem utilizada nos textos

escritos, sobretudo nos textos literários e, nesse sentido, em conformidade com

as idéias de Preti (2005, p. 259), o texto funciona como um corpus falado

transcrito, sobre o qual se debruça o pesquisador. São as utilizações e

construções de fala no texto escrito, transcritas nos contos literários, que

interessam a esta pesquisa, pois ao autor de tais produções cabe a função de

criar e mesmo recriar um texto, a partir da sua experiência enquanto falante.

Com base no dado de que fala e escrita caminham de mãos dadas,

Marcuschi (2003) apresenta uma série de perspectivas que caracterizam, de

forma diversificada, a visão dos lingüistas sobre essas relações. A primeira

perspectiva e a de maior tradição entre os lingüistas é a que busca explicar os

aspectos dicotômicos das modalidades falada e escrita da língua. Tal perspectiva

restringe à fala um uso mais distenso da linguagem, que se distancia da norma

considerada padrão, presente nas gramáticas, e atribui à escrita um uso formal,

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ou seja, mais próximo da norma padrão da língua. Marcuschi (id, p. 27) atribuiu a

essa abordagem o nome de perspectiva das dicotomias e, sobre ela, explica:

Esta perspectiva, na sua forma mais rigorosa e restritiva, tal comovista pelos gramáticos, deu origem ao prescritivismo de uma única normalingüística tida como padrão e que está representada na denominadanorma culta. É dela que conhecemos as dicotomias que dividem a línguafalada e a língua escrita em dois blocos distintos, atribuindo-lhepropriedades típicas.

Entendemos que a perspectiva das dicotomias está enraizada no

contexto educacional e, a partir dela, podemos considerar que muitas gramáticas

pedagógicas foram criadas e utilizadas, na sala de aula, com evidências à

separação entre língua (escrita) e uso (fala). Assim, muitas vezes, acreditamos,

de forma equivocada que, para alguém aprender uma língua deve apreender

suas regras e saber utilizá-las, de modo a não considerar que o ser humano fala,

se comunica, portanto, sabe as regras de uso da sua linguagem. Essa

perspectiva atribui o prescritivismo da escrita à língua padrão e a distensão da

fala à língua não-padrão.

A segunda perspectiva, para a qual Marcuschi aponta, é a

fenomenológica de caráter culturalista, em que é observada a natureza cognitiva

das práticas de oralidade versus as de escrita. Essa perspectiva está

fundamentada em estudos epistemológicos, os quais, por sua vez, estão

centrados na observação de como as mudanças sociais são manifestadas pela

linguagem.

Neste caso, contamos com a visão de outros ramos da ciência e, por

esse motivo, essa visão está muito mais sujeita ao estudo das variabilidades da

língua do que aos seus desvios, já que trabalha com a evolução das sociedades,

em que a escrita se instaurou, para explicar as diferenças das modalidades em

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questão. Tal postura, quanto à linguagem, prioriza o meio, onde acontece a

interação, pois, na afirmativa de Marcuschi. (id, p.28)

(...) na verdade trata-se de uma perspectiva epistemológica desenvolvidasobretudo por antropólogos, psicólogos e sociólogos, tais como Walter Ong(1982), Jack Goody (1977), Sylvia Scribner (1997) e os primeiros trabalhosde David Olson (1977), interessados em identificar as mudanças operadasnas sociedades em que se introduziu a escrita.

Ressalta ainda o autor que essa perspectiva revela a supervalorização

da escrita pela localidade, na qual está inserida, tornando-se quase

imprescindível à vida diária das sociedades culturalmente mais elevadas; um

exemplo desse fato é a valorização da variante, considerada padrão, dos falantes

cultos da cidade de São Paulo, pois é a cidade mais rica e desenvolvida do País.

É licito afirmar que essa perspectiva se sobrepõe desigualmente às culturas mais

primitivas, gerando, dessa forma, um preconceito lingüístico, e, principalmente

étnico.

A terceira perspectiva, a variacionista, pode ser vista como intermediária

entre as duas anteriores, pois estuda o papel da escrita e da fala sob o ponto de

vista dos dialetos utilizados pela sociedade. Tal perspectiva trabalha com a

variação da língua, sem discriminar suas modalidades como certas ou erradas, e

considera não o erro, mas o que constitui uma linguagem padrão ou uma

linguagem não-padrão. A perspectiva variacionista trata a linguagem como uma

questão de adequação. Os questionamentos dos lingüistas que a defendem

constituem

(...) estudos que se dedicam a detectar as variações de usos da língua sobuma forma dialetal e socioletal. É uma variante de primeira visão, mas comgrande sensibilidade para os conhecimentos dos indivíduos que enfrentamo ensino formal.

Neste paradigma não se fazem distinções dicotômicas oucaracterizações estanques, verifica-se a preocupação com regularidades evariações. Aqui a língua é observada com rigor metodológico maisadequado que em ambos os casos anteriores. (id, p. 31)

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A última das perspectivas, trabalhadas por Marcuschi, é a

sociointeracionista, que tende a perceber a língua como um real fenômeno de

interação, estando, de certa forma, um pouco mais livre de problemas ideológicos

e de preconceitos, contidos nas perspectivas anteriores: o prescritivismo da

perspectiva das dicotomias, a averiguação das mudanças sociais que afetam

uma linguagem, considerada não-padrão, explicitada pela perspectiva

fenomenológica, e os estudos da linguagem somente sob o ponto de vista

dialetal, postulados pela perspectiva variacionista. A perspectiva

sociointeracionista vê a fala e a escrita em um movimento dialógico, entretanto,

para Marcuschi, (id, p.33)

(... ) padece de um baixo potencial explicativo e descritivo dos fenômenossintáticos e fonológicos da língua, bem como das estratégias de produçãoe compreensão textual. A rigor esses fenômenos fogem aos interesses detais teorias. Por isso a proposta geral, se concebida na fusão com a visãovariacionista e com os postulados da analise da Conversação etnográfica,aliados à Lingüística de Texto, poderia dar resultados mais seguros e commaior adequação empírica e teórica.

Na verdade, essa visão sociointeracionista prevê o uso da linguagem de

uma maneira abrangente, todavia não pode contar com a descrição da sintaxe

nem da fonologia; o ideal para a sua concretização seria que tal visão fosse

ampliada por outros estudos, pois então poderia apresentar um caráter

multidisciplinar, o que lhe asseguraria resultados mais confiáveis.

Ainda sob o olhar de Marcuschi, todas as perspectivas demonstram

resultados e também problemas, embora apresentem uma complementação

entre si e, por este motivo, é preciso levar em consideração o bom senso ao

analisarmos cada uma delas, pois percebemos que tanto a fala quanto a escrita

são representações da linguagem e possuem, cada uma, usos estratégicos,

quais sejam, funções, envolvimentos, negociação, situacionalidade, coerência e

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dinamicidade partilhadas. Assim, podemos conceber a fala e a escrita como

manifestações interativas, dinâmicas e indissociáveis.

Tanto o texto oral quanto o texto escrito, constituem uma co-produção,

entre o falante e seu interlocutor, na qual os envolvidos sabem o que dizer, o

tema do texto, embora não exista, no texto oral, um planejamento prévio,

totalmente pronto, que aponte como as idéias serão expressas, ou seja, o modo

como dizer ou construir um texto. Essa co-produção desencadeia uma

diversidade de estruturas frásicas, léxico fragmentado, descontinuidades

temáticas e verbais, além de uma série de pausas, enumerações, hesitações e

repetições que, no entanto, não constituem uma desorganização.

Entretanto, um texto escrito por um escritor proficiente, que sempre pode

passar e passa, enquanto processo, por inúmeras revisões e releituras, antes de

chegar como produto acabado ao interlocutor, é diferente do texto falado, por ser

considerado uma atividade planejada.

É importante, então, observar que o texto falado se refere a uma criação

intencional, coletiva e organizada, na qual os envolvidos interagem em meio a

relações de dominância ou de igualdade, convivência ou conflito, familiaridade ou

distância (id, ibid). Ainda neste sentido, outros estudiosos, como Rodrigues

(2001, p. 20), estão preocupados com o estudo específico da fala, ao dizer:

(...) o texto é resultado de um trabalho cooperativo de dois interlocutores,que vão compondo à medida que a conversa se realiza. Assim,planejamento e realização do discurso coincidem no eixo temporal, ou sãopraticamente concomitantes.

Todo e qualquer evento de fala acontece, portanto, com determinados

objetivos comunicacionais, orientadores das escolhas do falante no que diz

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respeito à utilização de um grau maior de formalidade ou de informalidade, na

composição de seu discurso.

Convém lembrar que essas escolhas e usos, relativos à fala que, por

alguns teóricos, são considerados um desvio do registro padrão convencionado

da língua, não constituem um erro, pois cada falante tem a possibilidade de

escolher, dentro do sistema lingüístico, os meios necessários para efetivar seus

objetivos de interação, na atividade social de comunicação, em que está inserido;

não obstante, esse falante pode saber que a língua, enquanto instituição social, é

e continuará a ser conservadora, resistindo às inovações estruturais, apesar de

transformar-se rapidamente no que se refere ao vocabulário.

A língua precisa manter-se em equilíbrio, permitindo, assim, a

comunicação e, por esse motivo, muitas vezes se altera, principalmente na fala.

No postulado de Preti, (2003, p.11)

(...) a fala se dá pelo mundo dos signos lingüísticos, devido a inúmeraspossibilidades comunicativas, pelas quais passamos, na nossa vida diária,e, que vão se tornando cada vez mais reais, pela imitação e associação, àmedida em que formulamos nossas mensagens comunicativas.

Então, é a partir da língua, sistema complexo, que conseguimos uma

comunicação com textos do passado, transmitidos pela tradição da oralidade ou

registrados de forma escrita em documentos históricos e literários, que, embora

possam apresentar variações vocabulares, não modificam a essência do que

pretenderam dizer.

Todo texto falado ou escrito pretende transmitir uma mensagem e,

quanto às mensagens desses textos, Tannen (2003, p.31) explica:

A mensagem é o sentido das palavras e das frases faladas, o quequalquer dicionário e uma gramática na mão poderia deduzir. Em uma

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conversa, duas pessoas normalmente concordam sobre o que é amensagem.

Tal explicação vem completar as idéias de Preti (id, ibid), anteriormente

referidas, acrescentando a idéia da existência de uma metamensagem, que seria

o significado implícito do que está sendo dito e que somente seria desvendado

pelos envolvidos, mediante seus conhecimentos extralingüísticos. Tannen (id)

define a idéia da metamensagem da seguinte maneira:

A metamensagem é o significado não dito – pelo menos não comtantas palavras –, mas que inferimos de cada aspecto do contexto: o modocomo se diz algo, quem o está dizendo ou o fato de simplesmente estarsendo dito.

Entendemos, então, que fala e escrita estão intimamente ligadas, são

partes diferentes do mesmo sistema e não devem ser tratadas de outra forma,

isto é, não podem ser analisadas sob perspectiva dicotômica, discriminatória ou

prescritivista, visto que ambas possuem características específicas, objetivos e

aplicabilidade; constituem fenômenos relevantes para o estabelecimento da

comunicação de forma indissociável.

Diante do panorama apresentado sobre fala e escrita, transcrevemos de

Fávero, Andrade & Aquino (1999, p.74), o seguinte quadro-resumo:

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Figura 1: Fala e Escrita. Fonte: Fávero, Andrade & Aquino (1999, p.74)

Constatamos que há mais semelhanças do que diferenças entre, fala e

escrita, por serem modalidades distintas, mas não dicotômicas e, podemos dizer

que uma pode estar contida na outra, em graus maiores ou menores.

A visão sociointeracionista da língua, postulada por Marcuschi (2003),

permite estudar essas duas modalidades e investigar como e com que objetivos

as marcas de oralidade permeiam a literatura, uma prática social

predominantemente escrita.

Preti (2001, p.218) ressalta que a narrativa literária, por constituir uma

manifestação escrita

Fala Escrita

-Interação face a face - Interação à distancia(espaço-temporal)

- Planejamento simultâneo ouquase simultâneo à produção

- Planejamento anterior àprodução

- Criação coletiva:administrada passo-a-passo

- Criação individual

- Impossibilidade deapagamento

- Possibilidade de revisão

- Sem condições de consulta aoutros textos

- Livre consulta

- A reformulação pode serpromovida tanto pelo falantecomo pelo interlocutor

- A reformulação épromovida apenas peloescritor

- Acesso imediato às reaçõesdo interlocutor

- Sem possibilidade deacesso imediato

- O falante pode processar otexto, redirecionando-o apartir das reações dointerlocutor

- O texto mostra todo o seuprocesso de criação

- O escritor podeprocessar o texto a partirdas possíveis reações doleitor- O texto tende aesconder o processo decriação, mostrandoapenas o resultado

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(...) tem afinidades maiores com essa modalidade da língua. Por mais quese pretenda aproximá-la ao fenômeno da oralidade, o escrito literáriopressupõe uma elaboração por parte do escritor, ainda mesmo quando suaintenção seja a de aproximar o que escreve da naturalidade da fala.

1.1 A língua falada: propriedades determinantes da fluência comunicativa

A oralidade é a prática de interação mais freqüente na sociedade; é

imprescindível para a comunicação da maioria dos seres humanos, visto que o

texto falado não é um texto sem planejamento, que flui apenas, mas constitui um

texto que possui características próprias e, principalmente envolvimento dos

interlocutores, devido ao fato de que toda a conversação ou pronunciamento

acontece em meio a um contexto situacional e depende de uma série de

elementos lingüísticos, não-lingüísticos ou paralingüísticos, tais como olhares,

expressões faciais e risos trocados, entre os envolvidos.

Como conhecimento não-lingüístico, devemos lembrar o conhecimento

internalizado do todo falante, que sabe a sua vez de falar e contribuir para o

andamento eficaz do evento comunicativo.

A partir dos estudos que envolvem a conversação, quanto à

organização, ou seja, os turnos conversacionais; sabe-se que poucas vezes as

conversações são simétricas, podendo se manifestar de forma assimétrica, com

características de assalto ao turno, sobreposição de turnos, simultaneidades,

pausas e hesitações. O ato conversacional remete a uma seqüência seguida

pelos pares, respeitando seus turnos, de forma que o assunto não se perca. A

esse assunto damos o nome de tópico discursivo.

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As conversas distensas permitem aos locutores inserirem seqüências

diferentes das do tópico em andamento, e tais inserções nem sempre fazem com

que esse tópico seja abandonado ou, a partir delas, um outro seja iniciado. Se o

tópico anterior for retomado, após uma ou mais seqüências inseridas, temos a

constituição de uma digressão, mas se ele for concluído, dizemos que um outro

tópico foi estabelecido. Além do tópico discursivo e dos turnos conversacionais,

existem outras duas propriedades que constituem e atribuem a eficácia

necessária à fluência da língua falada: os marcadores conversacionais e os

pares adjacentes.

1.1.1 O tópico discursivo: um processo colaborativo da conversação

Um tópico discursivo é um processo que envolve os interlocutores de

forma colaborativa na conversação, na qual, segundo Jubran, Urbano & Fávero

et al (1996, p.361)

(...) ocorre o intercâmbio verbal, o conhecimento recíproco dosinterlocutores, os conhecimentos partilhados entre eles, sua visão demundo, o background de cada um em relação ao que falam, bem comosuas pressuposições.

Conforme Brown & Yule (1983), o tópico discursivo deve ser definido

como aquilo sobre o que se está falando e apresenta quatro propriedades

específicas, centração, organicidade, segmentação e delimitação local que, na

perspectiva de Fávero (2002, p.94), apresentam-se da seguinte maneira:

• Centração, propriedade do tópico que decorre de uma organização, em que

está em relevância o falar de alguma coisa, implicando a utilização de

referentes explícitos ou inferíveis pelo outro locutor, norteando o tópico, pois,

quando a centração muda, o tópico será também modificado e passará a ser

outro assunto, logo, outro tópico.

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• Organicidade, também de acordo com Fávero (id) consiste na relação entre o

supertópico e os tópicos co-constituintes e manifesta-se pela interdependência

dos possíveis planos da fala, denominados seqüencial ou linear e hierárquico

ou vertical.

A seqüencialidade ou linearidade do plano de fala está ligada à linha

discursiva e às informações do texto. É por meio da seqüencialidade que

podemos estudar dois fenômenos básicos relacionados à organicidade do tópico:

a continuidade e a descontinuidade:

a) a continuidade: decorre da organização seqüencial do tópico, quando

ele possuir uma situação inicial, uma transformação e uma situação final, ou seja,

quando este for instaurado, desenvolvido e concluído, ou;

b) a descontinuidade: decorre de uma perturbação na seqüencialidade

do tópico, onde é instaurada uma digressão.

A verticalidade ou hierarquia do tópico discursivo está ligada ao fato de

que as relações de interdependência, apresentadas anteriormente, permitem que

seja verificada uma abrangência maior ou menor entre os tópicos de uma

conversação, envolvendo de constituintes maiores para constituintes menores de

um tópico. Essa verticalidade ou hierarquia pode ser percebida no gráfico de

Fávero(2002):

Super Tópico

T1

T2

SbT SbT SbT SbT

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Figura 2: Quadro tópico Fonte: Fávero (2002)

em que:

1. supertópico: a idéia de maior abrangência sobre o que é falado, podendo

abarcar mais de um tópico de uma conversação;

2. tópico: é o assunto sobre o que é falado e constitui a unidade de

análise.

3. subtópicos: os segmentos menores do tópico.

Com isso, podemos perceber que a organicidade de um tópico depende

desses constituintes específicos. Retomaremos então as outras duas

propriedades necessárias para a instauração do tópico discursivo.

• Segmentação compreende marcas que podem ser facultativas ou

multifuncionais, relacionando-se com os elementos dos tópicos, os quais

podem ou não ter uma delimitação marcada;

• Delimitação local indica o início, meio e fim de um tópico discursivo; no

entanto, muitas vezes essa delimitação não está evidente, podendo ser

determinada também por fatores extralingüísticos.

O tópico discursivo é um elemento estruturador da conversação, pois os

interlocutores sabem, quando estão tratando ou não de um mesmo tópico, e têm

consciência de quando mudam de tópico, cortam-no ou ainda, quando cometem

digressões, pois, conforme Fávero (2001, p.39), grande parte do espaço

conversacional é usado em trocas nas quais, falante e ouvinte procuram

estabelecer um tópico discursivo.

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Para Brown e Yulle (op cit), o tópico discursivo não tem uma dimensão

determinada, pode ser menos ou mais extenso, o que dependerá da composição

da conversa no momento de sua construção, visto que sua função é focalizar um

determinado assunto. Entende-se, assim, que a coerência de uma fala é

produzida pela relação texto-usuário, possibilitando uma compreensão eficaz do

discurso. O exemplo de Fávero (2001, p. 39), ilustra essa afirmação:

A – Márcia, já terminou o que eu te pedi?B – A reunião ainda não foi marcada.A – Mas o cliente tem certa urgência.

No tocante à compreensão eficaz, se considerarmos que o contexto e o

conhecimento partilhado entre os interlocutores existe, notamos que ambos

sabem qual é o tópico discursivo em questão. Já a cooperação na construção de

um tópico discursivo é um ponto de grande relevância e, por esse motivo, Fávero

(2001, p.39) diz que o tópico discursivo é uma atividade construída

cooperativamente, isto é, há uma correspondência – pelo menos parcial – de

objetivos entre falantes. Então a correspondência dos objetivos sobre o que se

quer dizer se estabelece por meio do contexto e das relações texto-usuário e é

responsável pelos sentidos da conversação.

Conforme o que foi dito, tópico não precisa estar disposto em seqüência

no texto, pois, em uma conversa, um mesmo tópico pode não só ser várias vezes

retomado, mas também, pode ser reintroduzido.

A suspensão de um tópico e o desenvolvimento de um outro, seguido a

ele, possibilitará uma mudança de idéias sobre o que se fala. Tais idéias são

retomadas para que o tópico seja considerado totalmente desenvolvido e faça

sentido para os interlocutores tanto na fala, como na escrita. Entre a suspensão e

a retomada de um mesmo tópico, uma digressão poderá ser inserida.

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Para Galembeck, (2005, p. 278)

O tópico discursivo pode ser considerado um dos elementosessenciais na produção da fala e, por conseguinte, dos estudos de línguafalada, por abranger dois aspectos, ou melhor, dois princípiosfundamentais para o estudo da fala: o principio fundamentador e oorganizador. O primeiro deles relaciona-se com o fato do tópico (aquientendido como idéia, assunto, alvo) constituir o ponto de referência ou,simplesmente, o referente (idéia, assunto, alvo), algo imprescindível para aelaboração da fala. O princípio organizador, por sua vez, diz respeito aopróprio desenvolvimento dos referentes.

Isto posto, das marcas que delimitam um tópico, podemos nomear as

lingüísticas e as discursivas. Estas últimas são constituídas pela relação de

relevância entre os turnos, questionamentos de um dos interlocutores; aquelas,

pelos marcadores conversacionais, perguntas e repetições, por exemplo. Os

falantes, de acordo com seus objetivos, têm formas diferentes para expandir um

tópico. Segundo Galembeck (id, p. 282),

Esses procedimentos correspondem a diferentes formas de atuação eparticipação dos interlocutores e são realizados com dupla finalidade:reforçar a focalização do tópico em andamento, por meio do fornecimentode informações complementares ou adicionais, e fornecer pistas decontextualização que venham a situar os assuntos tratados no universocognitivo-conceitual dos interlocutores.

Essas expansões estão ligadas à explicitação do tópico que

compreende, para Galembeck (ibid), a explicitação dos fatos, características e

conceitos, a fim de permitirem que ele seja desenvolvido de forma eficaz.

Durante essas expansões, poderão existir desvios, retomadas ou mesmo o

abandono de um tópico, os quais são mais sutis na fala, pois há um envolvimento

muito maior, entre os participantes da fala do que na escrita.

Sabendo que o tópico discursivo é construído de forma cooperativa entre

os falantes e que, dentro de sua organicidade, o fator continuidade determina, na

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pratica social da fala, sua manutenção ou descontinuidade, estudaremos agora

as digressões.

1.1.1.1 A digressão: uma estratégia usada nas relaç ões sociais dosinterlocutores

As digressões são utilizadas pela necessidade de os interlocutores ou

participantes de determinado texto manterem suas relações sociais,

estabelecendo a eficácia do discurso. Uma digressão pode ser encontrada no

texto conversacional ou no texto escrito, de forma que se caracterize por ser uma

mudança tópica, portanto, referente ao tema. Dascal & Katriel (1979: 78), ao

estudarem Keenan & Schieffelin (1972), pioneiras no estudo da digressão, dizem

que, para essas autoras

(...) a digression would be a portion of the conversation which is nottopically related to the conversational material preceding not to the materialfollowing it whereas the later are topically related to each other1.

Com base nessa idéia, os autores investigam tais porções de conversa e

chegam a uma idéia própria do que seja, de fato, uma digressão, isto é,

consideram-na uma porção de conversa que possui duas mudanças tópicas

sucessivas, que envolvem o mesmo tópico, como mostra o esquema de Andrade

(2001, p.74):

1ª etapa: retirada de um tópico (A);2ª etapa: introdução de um tópico (B);3ª etapa: retirada do tópico (B);4ª etapa: reintrodução do tópico (A).

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Neste esquema, o tópico B representa a digressão, tratando de um tema

distinto do tratado no tópico A, que ficou suspenso até que a digressão fosse

desenvolvida, para, depois disso, ser retomado. No entanto, é importante deixar

claro que Dascal e Katriel concordam com Keenan e Schieffelin sobre o que seja

uma digressão, mas divergem delas quando essas priorizam o estudo restrito do

tópico, importando-lhes apenas o estudo do texto pelo texto. Para esses autores,

é preciso trabalhar com uma perspectiva mais ampla, que envolve o aspecto

interacional e, por esse motivo, se valem da noção da questão de relevância

tópica, observando em que condições o desvio tópico origina apenas uma

mudança tópica, uma evolução natural de seu desenvolvimento ou uma

digressão propriamente dita.

Durante uma conversação natural há uma progressão sucessiva de

tópicos. Para Andrade (2001, p.75), tal progressão existe porque, no processo de

comunicação

(...) os tópicos têm uma série de relevâncias que podem ser detectadas eselecionadas pelos falantes, dando origem a novos tópicos. Entretanto, noque se refere à digressão, há um vácuo ou lacuna e não se percebe umarelação imediata com um elemento básico das relevâncias tópicas, criando-se então uma relevância marginal.

A digressão apresenta-se, na maioria das vezes, precedida de um

marcador lingüístico (como a propósito, isto me lembra que, entre outros), o que

permite a volta posterior ao tópico original sem causar incoerência.

1 (...)uma digressão é uma porção de conversa que não se acha topicamente relacionada com omaterial conversacional imediatamente precedente, nem com o material que lhe segue,enquanto o último trecho é relacionado topicamente com o primeiro.

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Entendemos a retomada do tópico, quando observamos, no conto Deve

um queijo..., de Simões Lopes Neto (2000, p.61), o uso de expressões como “e

por falar nisto:”, que tem o objetivo de reintroduzir o primeiro assunto.

T – O velho Lessa era homem assinzinho... nanico, retaco, ruivote,corado, e tinha olhos vivos como azougue... Mas quanto tinha pequeno ocorpo tinha grande o coração. E sisudo; não era homem de roer corda(...). Falava pouco, masquando dizia, estava dito; para ele, trato de boca valia tanto – e atémais – que papel de tabelião. E no mais, era – pão, pão; queijo, queijo! –

E por falar nisto: D – Duma feita no Passo Centurião, numa venda grande que alihavia, estava uma ponta de andantes, tropeiros, gauchada teatina,peonada e tal, quando descia um cerro alto e depois entrava na estrada,ladeada de butiazeiros, que se estendem para os dois lados, sombreandoo verde macio dos pastos, quando troteava de escoteiro, o velho Lessa. De ainda longe um dos sujeitos já o havia conhecido e dito quem erae donde, e logo outro - passou voz que aí no mais todos iriam comer umqueijo sem nada pagar... Este fulano era um castelhano alto, gadelhudo, com uma pêraenorme, que ele às vezes, por graça ou tenção reservada, costumavatrançar, como para dar mote a algum dito, e ele retrucar, e daí, nascernuma cruzada de facões, para divertir, ao primeiro colorado...

T – Sossegado da sua vida o velho Lessa aproximou-se, parou ocavalo e mui delicadamente tocou na aba do sombreiro:

Boa-tarde, a todos!E apeou-se.

A digressão, em itálico no fragmento, pode ser introduzida por qualquer

tipo de marca formal, aqui indicada, em negrito. A volta ao tópico prévio pode ser

feita por meio de repetições de constituintes ou de orações que, na perspectiva

de Marcuschi (1990, p.1), servem de estratégias de monitoração rítmica de

coerência que contribuem para a sintaxe e organização do discurso; neste

fragmento, a volta a T pode ser feita por meio da pontuação reticente e pelo uso

de um espaço maior, demonstrado pela linha em branco.

Os trechos digressivos não são apenas descontinuadores, mas

elementos que contribuem para o mecanismo da composição textual, visando à

condução do tópico discursivo. As digressões são, de fato, um quadro cognitivo

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em andamento. De acordo com Dascal (1977), há três tipos básicos de

digressão: as baseadas no enunciado, na interação e nas seqüências inseridas.

As digressões baseadas no enunciado apresentam uma relação de

conteúdo semântico, associativo ou pragmático com o tópico discursivo e se

utilizam de marcadores conversacionais para serem instauradas no discurso.

Tais marcadores podem ser, por exemplo: como ia dizendo..., e por falar nisso...,

a propósito..., entre tantos outros. Vejamos alguns exemplos deste tipo de

digressão:

(1) Contextualização: No diálogo a seguir, L1 introduz o tópico “O

abandono dos estudos por causa da doença de seu filho”, enquanto L2 questiona

L1 sobre qual era a sua ocupação nessa época. Reconhecemos, desta forma,

uma digressão baseada no enunciado de cunho semântico, pois todo o léxico é

relevante ao tópico discursivo; e o tópico digressivo “natureza do trabalho de L1”

serve para evidenciar tais relevâncias:

L1 – Quando Antônio nasceu tive de deixar meu emprego, já que omenino nasceu com problemas respiratórios e precisava de muita atenção, sabe?

L2 – Sei, sei... mas o que você fazia antes de ele nascer?L1 – Eu era enfermeira, veja o que é o destino das pessoas... eu

trabalhava em um hospital próximo de casa, atendendo no berçário neonatal.L2 – uhn...L1 – Era um trabalho maravilhoso, me sentia muito à vontade com as

crianças. Então, quando Antônio nasceu, tive de deixá-las para cuidar do meupróprio filho, sabe... mas hoje voltei ao meu ritmo e o Toninho já é um homemfeito.

A natureza das atividades de L1 contribuem para a relevância do tópico

discursivo; embora não estejam totalmente ligadas a ele, existe a relação de

conteúdos (o abandono dos estudos de L 1 e a natureza de seu trabalho) entre

os tópicos, discursivo e digressivo. Neste exemplo, permanece a idéia de que a

digressão contribuiu para o esclarecimento do tópico, pois os dois locutores

sabem que estão desenvolvendo uma fala fora do tópico, mas interagem para

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que a digressão seja instaurada e contribua para o entendimento de tudo o que

está sendo falado.

(2) Contextualização: No exemplo a seguir, L1 introduz o tópico

conversacional “a importância da leitura na vida dos jovens” e L2 expõe sua

opinião sobre o assunto. Em seguida, L1 faz uma pergunta a L2, a qual é

respondida, mas insere outro assunto, o mensalão, tema tratado no momento,

que é continuado por L1, e fechado por L2, quando este conclui que gosta,

dentro da literatura clássica, de ler Machado de Assis.

L1 – A leitura é muito importante... na vida de qualquer pessoa,principalmente na dos jovens que pretendem ser cidadãos bem informados.

L2 – É VERdade, mas é uma pena... que tão poucos jovens lêem comodeveriam.

L1 – E você... gosta de ler o Quê?L2 – Adoro ler.... principalMENTE os clássicos da literatura brasileira,

mas, a propósito, você viu essa vergonha do mensalão?L1 – Vi sim, isso é ruim para a imagem do Brasil.L2 – Pois é, mas o que eu gosto mesmo é de ler Machado de Assis,

muito pouco conhecido pelos jovens de hoje.

Neste trecho, a digressão, em itálico, se relaciona com o enunciado de

forma associativa, é iniciada pelo marcador a propósito e finalizada pelo

marcador, pois é, seguido da conjunção mas, o que faz com que visualizemos o

retorno ao tópico inicial.

(3) Contextualização: Em outra conversação, os locutores estão falando

sobre a escolha de uma escola para o filho de L1, quando L2 pergunta sobre o

curso que L1 começou a fazer. O fato de L1 ter mencionado que precisava logo

escolher uma escola para o filho, por ter de iniciar seu curso, remete à digressão

de conteúdo, baseada na implicatura do que foi dito:

L1 – ... Entã::o, estou visitando as escolas para o Luciano, pois precisocomeçar meu curso, mas estou preocupada porque não sei se ele vai se adaptar,nunca sei se estou fazendo a escolha certa.

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L2 – E você, já começou o curso de pintura?L1 – Começo na semana que vem.L2 – Por que foi adiado?L1 – Ah... PORque... os alunos inscritos ainda estão em número reduzido

e o professor achou melhor esperar mais um pouco, já que estamos quase no finaldo mês, não é?

L2 – Ah... sim..., então você tem mais tempo para continuar procurando aescola para o Lu.

L1 – Com certeza, vou levá-lo comigo, porque assim eu percebo asreações na carinha dele e acho que ficará mais fácil de escolher, mas destasemana não pode passar.

A implicatura, deste trecho, consiste no fato de que L1 diz “preciso

começar meu curso” e, por isso, deve escolher logo a escola do filho. A digressão

está instaurada no momento em que L1 explica a L2 por que o curso foi adiado e

o retorno ao tópico discursivo acontece pela expressão ah sim, pois a partir daí o

assunto será novamente “a escolha da escola do filho de L1”.

As digressões baseadas na interação dependem do conhecimento

partilhado entre os interlocutores e são acompanhadas também por mecanismos

não-verbais, inseridos no contexto imediato. Essas são digressões dizem

respeito a um consenso, a um acordo que sustenta a conversação.

Portanto, a digressão da conversação (4) constitui uma digressão

baseada na interação:

(4) Contextualização: dois locutores estão conversando e o tópico

discursivo em questão é “o uso de calças de cintura baixa”, quando acontece, por

meio de um ruído externo, um desvio na comunicação. Esse desvio que pode ter

vindo do telefone celular de L2, que tocou ou do seu relógio que despertou, e

caracteriza tal digressão, marcada pelo uso do itálico. Vejamos:

L1 – A moda vai e vem não é mesmo? Agora só se usam aquelas calçasde cintura baixa que usávamos na década de 60 e 70.

L2 – O problema é que não temos mais aquele corpinho de antes.....

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L1 – Verdade...L2 – Ai, esse barulho não pára, desculpe, vou desligar....L1 – Mas como ia dizendo... hoje já não temos mais a cinturinha que

tínhamos... CLAro, a calça fica lá em baIXO, não nos ajuda em NAda. L2 – E você também não acha calça de outros modelos, eh...

MUITO difícil..

Quando L2 se refere ao barulho, não sabemos direito que barulho a está

incomodando, pois a suposição de que seja um celular ou um relógio é grande e

todos nós sabemos o quão inconveniente é estar conversando com alguém e o

telefone não parar de tocar, ou o relógio, despertar. Podemos imaginar que L2

tenha tentado fazer o barulho parar, quando diz: “Ai, esse barulho não pára”,

porem não conseguiu.

Convém dizer que esse tipo de digressão acontece em grande número

e, por esse motivo, é apresentado outro exemplo, citado por Andrade (2001,

p.85), retirado do inquérito D2 343 (NURC/SP), ou seja, uma conversação entre

dois informantes e um documentador.

(5) Contextualização: o documentador lança o tema do diálogo a ser

seguido: “a cidade e o comércio”. Os locutores começam a falar, quando L1

pergunta ao documentador algo a respeito do gravador.

Doc gostaríamos que vocês falassem a respeito da cidade e docomércio...

L1 tem saído ultimamente de carro?L2 ((risos)) tenho mas você diz sair... fora...sair normalmente para

a escola essa coisas?L1 pegar a cidade ( )L2 tenho se bem que eu acho que eu conheço pouco a cidade né?

por exemplo se eu for compara com...L1 você viu se está gravando direito ai?—Doc está eu já deixo no automático...L1 ah o automático não indica velo...—Doc não...((vozes distantes))L2 tenho saído sim...

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(SP D2 343:1-13, p.17)

Esta conversa possui, na realidade, duas digressões, a primeira, quando

L2 desvia da resposta, ao dizer, tenho mas você diz sair... fora...sair

normalmente para a escola essa coisas? E L 1 complementa a questão: pegar a

cidade ; este segmento trata de uma seqüência inserida, porém contemplamos,

neste momento, a Segunda digressão, quando L 1 pergunta ao documentador se

ele está gravando direito, visto caracterizar uma pausa no fluxo da conversa, que

se relaciona com o contexto situacional em que documentador e locutores estão

inseridos.

As digressões baseadas nas seqüências inseridas são digressões que

se caracterizam por serem seqüências que podem modificar uma outra

seqüência par do tipo pergunta-resposta, por meio de esclarecimentos,

manipulação ou orientação.

digressão está centrada no ouvinte, pois é uma resposta a um enunciado

anterior, ainda não totalmente compreendido ou aceito. Tal seqüência

desempenha uma função metalingüística, em forma de uma pausa no fluxo

informacional, conforme os dois exemplos a seguir. O primeiro refere-se de uma

conversação, citada por Marcuschi (1986, p.49), e o segundo foi retirado do

projeto NURC/SP.

(6) Contextualização: O pai (L1) está examinando o estado dos livros de

seu filho, quando se refere às dobraduras nas pontas, o que permite que o filho

insira um questionamento (marcado em itálico) que desvia do tópico em

andamento.

L1 Veja só meu filho... isso é coisa? Teus livros estão cheios deorelhas

L2 quantas orelhas uma pessoa tem heim?

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L1 várias meu filho... muitas... muitasL2 que mentira... só tem duas né ?L1 eu disse que SEUS livros /.../

Nesse diálogo ficou claro que o pai realizou uma inserção qualquer,

talvez por estar desapontado com o estado dos livros do filho. Neste caso, a

inserção permitiu que o filho desse andamento à digressão. Percebemos que

assim, como o pai inseriu o assunto, retirou-o também.

O exemplo seguinte, do Projeto NURC, também ilustra tal conversação:

(7) Contextualização: Este diálogo foi retirado do projeto NURC SP,

sobre o qual nos referimos anteriormente, apresenta uma digressão baseada nas

seqüências inseridas, vejamos:

Doc gostaríamos que vocês falassem a respeito da cidade e docomércio...L1 tem saído ultimamente de carro?L2 ((risos)) tenho mas você diz sair... fora...sair normalmente paraa escola essa coisas?L1 pegar a cidade ( )L2 tenho se bem que eu acho que eu conheço pouco a cidade né?por exemplo se eu for comparar com...

(SP D2 343:1-13, p.17)

Neste diálogo há uma digressão baseada nas seqüências inseridas, em

razão de o documentador pedir que os locutores falem da “cidade e do

comércio”. Logo L1 faz um questionamento a L2 que o responde com uma outra

pergunta, caracterizando a inserção, conforme a proposta de Dascal e Katriel.

(1979)

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Ao inserir uma digressão, o locutor tem certeza de que será entendido

pelo outro dentro do evento comunicacional e, mais do que isso, o locutor sabe o

quão importante é tal inserção para o andamento do discurso.

Tendo verificado as digressões, quanto à tipologia utilizada por Dascal e

Katriel, o próximo item de estudo, trata do turno conversacional.

1.1.2 O turno conversacional: a alternância nas com petências dosparticipantes da conversação

O turno conversacional é a propriedade constitutiva da fala que identifica

o momento em que um determinado falante está com a palavra na conversação,

pois, durante a interação, há a alternância dos participantes, que trocam de

competências, ora atuando como falante, ora, como ouvinte e promovem o

movimento conversacional.

Há diversas possibilidades de constituição do turno conversacional.

Fávero, Andrade & Aquino (1999, p.35-36), ao estudarem Sacks, Schergloff &

Jefferson (1974), dizem que na conversação supostamente, são encontradas as

seguintes características:

a) a troca de falantes recorre ou pelo menos ocorre;b) em qualquer turno, fala um de cada vez;c) ocorrências com mais de um falante por vez são comuns, mas

breves;d) transições de um turno a outro sem intervalo e sem sobreposição

são comuns; longas pausas e sobreposições extensas são minoria;e) a ordem dos turnos não é fixa, mas variável;f) o tamanho do turno não é fixo, mas variável;g) a extensão da conversação não é fixa nem previamente

especificada;h) o que cada falante dirá não é fixo nem previamente especificado;i) a distribuição dos turnos não é fixa;j) o número de participantes é variável;k) a fala pode ser contínua ou descontínua;

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l) são usadas técnicas de distribuição dos turnos;m) são empregadas diversas unidades para construir o turno: lexema

(palavra), sintagma, sentença, etc;n) certos mecanismos de reparação resolvem falhas ou violações nas

tomadas de turno, como por exemplo: ‘desculpe... mas você estavadizendo que’.

As produções dos turnos conversacionais acontecem, por meio de

decisões conversacionais, escolhidas pelos envolvidos, os quais decidem pela

“tomada ou entrega de turno” ou “assalto a ele”. Esses processos de produção de

turnos são considerados estratégias próprias do evento conversacional, pois são

desencadeados somente pelos que participam de tal evento.

O turno constitui o mecanismo fundamental para que aconteça o ato

conversacional, de interação, regulando as intervenções dos falantes. Para

Castilho (1986, p.34), o turno também pode ocorrer em diversas situações não-

lingüísticas como, por exemplo

(...) a passagem de duas ou mais pessoas por um corredor ou porta, ocruzamento de veículos no trânsito, a participação em jogos e debates,enfim, em todas as circunstâncias em que estejam envolvidos dois ou maisparceiros.

Podemos dizer, então, que todas as intervenções dos participantes,

sejam elas referenciais, informativas ou breves, são entendidas como sinais de

acompanhamento do seu interlocutor, constituem estruturas significativas para a

organização do texto conversacional e devem ser consideradas constituintes de

turno.

1.1.3 Os marcadores conversacionais: construtores d a interação no textofalado

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Os marcadores conversacionais são elementos que ajudam a construir a

interação e dão coesão e coerência ao texto falado. Na visão de Urbano (2001,

p.86), funcionam como articuladores não só das unidades cognitivo-informativas

do texto, como também dos seus interlocutores, revelando e marcando, de uma

forma ou de outra, suas condições de produção.

Apresentam-se por meio de palavras ou expressões, mais ou menos

convencionalizadas, que indicam sinais de mudança de comportamento e

acompanham a interação, por meio de recursos lingüísticos ou recursos

prosódicos, como pausas, articulação enfática e alongamentos, e podem ser

produzidos pelos falantes ou pelos ouvintes, apresentando-se de diversas

formas, tais como: a forma lingüística (verbal), não-lingüística (não-verbal) ou

paralingüística (por meio do uso de gestos e olhares, por exemplo), sendo muito

utilizáveis, estes últimos na interação face a face.

Marcuschi (2001, p.61) divide os marcadores conversacionais podem ser

divididos em três tipos: a) verbais, b) não-verbais e c) suprassegmentais.

Os marcadores conversacionais verbais são aqueles que formam uma

classe de palavras ou expressões estereotipadas, de grande ocorrência e

recorrência, mas não contribuem com informação nova para o desenvolvimento

do tópico. Palavras e expressões dicotomizam-se em lexicalizadas (entendeu?

sabe?) e não lexicalizadas (hum... hum, ahã, ué).

Os marcadores conversacionais não-verbais, tais como os olhares

trocados, o riso e a utilização de gestos, têm um papel fundamental na interação

face a face, que, no texto literário, são descritos pelo narrador.

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Os marcadores conversacionais suprassegmentais são de natureza

lingüística, mas não verbal. Para Marcuschi, os dois mais importantes são as

pausas e o tom de voz, sendo que estas têm a função de planejamento verbal ou

de organização do pensamento, enquanto aquelas constituem recursos

importantes na organização da conversação.

Funcionalmente, os marcadores servem de elo entre as unidades

comunicativas, orientando-as entre si, e podem aparecer em várias posições: na

troca de falantes, na mudança de tópico, nas falhas de construção ou em

posições semanticamente regulares, podendo operar como iniciadores ou

finalizadores da interação.

Quadro 2

Marcadores conversacionais verbais

Sinais do falante (orientam o ouvinte) Sinais do ouvinte (orientam ofalante)

Pré-posicionados Pós-posicionados Convergentes

Indagativos

Divergentes

No iníciodo turno

No inícioda

unidadecomunica

tiva

No final doturno

No finalda

unidadecomunicativa

“olha”“veja”“bom”

“mas eu”“eu acho”“não,não”

“epa”“peraí”etc.

“então”“a픓daí”

“portanto”“agoraveja”

“porque”etc.

“n锓certo?”“viu?”

“entendeu”“sacô?”

“é isso a픓que acha?”

etc.

“n锓não

sabe?”“certo”

“entende?”“de

acordo?”“tá?”etc.

“sim”

“ahã”

“mhm”

“claro”

“pois não”

“de fato”

etc.

“será?”

“não diga”

“mesmo?”

“é?”

“ué”

“como?”

etc.

“não”

“duvido”

“discordo”

“essanão”

“nadadisso”

“nunca”

etc.

Figura 3: Marcadores conversacionais verbais Fonte: Marcuschi (2001, p. 68)

Analisando os marcadores verbais, Marcuschi (2001) subdivide-os

em dois grupos distintos, em conformidade com sua fonte de produção: sinais do

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falante e sinais do ouvinte. Quanto a funções específicas, cada qual pode ter

funções conversacionais ou sintáticas, podendo, também, ocupar várias

posições, dentro do turno ou na seqüência dos turnos. Marcuschi mostra essas

funções no quadro a seguir:

Quadro 3

Funções dos marcadores conversacionais verbais

Sinais

produzidos

pelo falante

Sustentar o turno, preencher pausas, dar tempo à

organização do pensamento, monitorar o ouvinte,

explicitar intenções, nomear e referir ações, indicar o

início e o final de uma asserção, dúvida ou

indagação etc.

Sinais

produzidos

pelo

ouvinte

Orientar o falante e monitorá-lo quanto à recepção.

Marcam a posição pessoal do ouvinte localmente,

encorajam, desencorajam, solicitam esclarecimentos

e não têm apenas uma função fática.

Figura 4: Função dos marcadores conversacionais. Fonte: Marcuschi (2001, p. 66)

Castilho (1989, p.254) explica que, sintaticamente, os marcadores

conversacionais verbais são independentes, principalmente quando iniciam um

turno ou quando não são constituídos por verbo, como exemplo a seguir:

L1 passei ali em frente à:: Faculdade de Direito...então estava lembrado... que eu ia muito lá quando tinhasete nove onze...(com) a titia sabe?... e:: está muito piora cidade... está... o aspecto dos prédios assim é bemmais sujo... tudo acinzentado né? (Marcador final )L2 uhn:: poluição né? (Marcador final )L1 ruas mais ou menos sujas... ali perto da Praça da Séda Praça da Sé tudo esburacado por causa do metrô né?...(Marcador no meio

do turno )achei horrível... feio feio feio... e toda segunda à noite

eu passo ali do lado da faculdade certo ?(Marcador final )(.....)

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L2 oh eu acho que em termos de::... centro por exemplo (Marcador inicial )está começando a acontecer um negócio que... você vênormalmente em cidade americana grande WashingtonNova Iorque... que é::... pessoal mais classe alta ir parao subúrbio... e o:: centro bom:: em Washington porexemplo é gueto... né? em Nova Iorque também...

[L1 uhn::

(NURC/SP – Inq. 343 D2, ls. 20-50)

Quanto à posição, os sinais do falante podem vir no início, no meio e no

fim do turno. Já os do ouvinte vêm, geralmente, no ponto de discordância ou

concordância com o tópico, conforme o fragmento do mesmo inquérito do NURC

SP:

L2 quando você vai pra:: para Aliança né? (Marcador do falante – fim doturno)

[L1 é quando eu pego o carro... e:: também éhorrível o aspecto... (parece) assim montoeira deconcreto... sem nenhum aspecto humano certo? Osprédios sem:: estilo arquitetônico... ou de estilo

arquitetônico tudo desencontrado não tem não temintegração...L2 mas isso acho que não tem né? em::... lugar nenhumda cidade a não ser talvez... assim

[me parece que... (Marcador do ouvinte – início do turno)

L2 bairro em termos de de visão::L1 me parece que está ahn:: envelhecida a cidade né?... (Marcadores do

falante)ahn:: muita construção... antiga não tem muitaconstrução nova...

(NURC/SP - Inq. 343 D2, ls. 30-43)

1.1.4 O Par adjacente: um encadeamento de ações na organização local doevento comunicativo

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Para que haja conversação é necessário que exista, no mínimo, uma

troca de turno. Algumas dessas trocas seguem um tipo de padrão, com relação à

sua estruturação e são chamadas de pares adjacentes.

Para Fávero, Andrade & Aquino (1999, p.49-50), a incidência do par

adjacente

(...) ocorre para organizar localmente a conversação, controlando oencadeamento de ações e, inclusive, podendo constituir-se um elementode introdução ao tópico discursivo.

Marcuschi (2001, p. 35) explica que par adjacente (ou par

conversacional) é uma seqüência de dois turnos que co-ocorrem e servem para

manter a organização local da conversação, representando, muitas vezes, uma

co-ocorrência obrigatória, dificilmente adiável ou cancelável, como no caso dos

cumprimentos. Para o autor, os pares adjacentes estabelecem a organização

seqüencial e a pré-seqüencial do texto, podendo, ainda ocorrer sob forma de

seqüências inseridas.

A organização seqüencial mais comum é aquela apresentada pelo par

pergunta/resposta, no entanto podemos observar a ocorrência de outras

maneiras de organização dos pares conversacionais, tais como:

ordem/execução, convite-aceitação/recusa, cumprimento/cumprimento,

chingamento -defesa/revide, acusação-defesa/justificativa, pedido de

desculpa/perdão.

Como o par conversacional mais comum é o de pergunta/resposta (P/R),

convém ressaltar mais alguns de seus aspectos. Há duas formas de perguntas:

fechadas e abertas. As primeiras requerem como respostas sim ou não, as

últimas, também chamadas informativas, realizam-se com alguns marcadores

como: quem? qual? como? onde? quando?

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Fávero, Andrade & Aquino (1999), sobre os pares adjacentes, dizem

(...) entre os elementos que concorrem para a introdução, oestabelecimento e/ou a mudança de tópico discursivo, a P (pergunta) é omais freqüente, já que ela é multifuncional.

As autoras comprovam a afirmação, com o seguinte fragmento, retirado

do inquérito 360 do NURC SP, pois, no momento em que L1 se aproveita de uma

pausa de sua interlocutora, que falava do problema em ter filhos ainda pequenos,

muda de tópico por meio de uma pergunta:

L2 e dão menos trabalhoL1 ah:: pois éL2 é... cria menos problema ((pausa de 5’’))L1 você entrou nesse último concurso... para procuradora?

(NURC/SP - Inq. 360: 450-453, p. 147)

Em síntese, entendemos que o tópico discursivo, os turnos

conversacionais, os marcadores conversacionais e os pares adjacentes

relacionam-se entre si e contribuem para a eficácia do desenvolvimento e para a

manutenção de uma interação falada. Nesse sentido, os textos escritos podem

ter um grau mais ou menos elaborado, em que o autor procura demonstrar, por

meio do uso de uma modalidade em outra, a naturalidade do falar espontâneo.

1.1.5 A língua falada na literatura: uma modalidade da escrita

Na literatura, a maioria das idéias que o autor objetiva, ao escrever um

texto, precisa ser contada por ele. Quando falamos em maioria das idéias,

referimo-nos à caracterização da temporalidade, espacialidade e personagens,

posto que o discurso somente fará sentido, diante da competência narrativa,

unida aos conhecimentos do leitor.

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Este fato acontece na literatura porque, nessa modalidade de texto, o

autor, como nos textos falados, não dispõe do ouvinte interagindo face a face;

embora, o autor interaja com seu leitor, essa interação acontece sempre de

forma hipotética. Urbano (2000, p.19), sobre a competência narrativa, assegura:

(...) trata-se, na verdade, de enunciação delegada, no sentido de que acompetência de falar ou narrar é outorgada pelo autor da obra a entidadesque ele mesmo projeta, como narrador, personagens, personagem-narrador etc.

Isto posto, ao ilustrar seu texto, o autor contextualiza, opina e interage

com o seu leitor, dispondo apenas da palavra escrita para tanto, e o faz,

inserindo, a simulação do oral, no momento em que lança mão de sua cultura

lingüística, nível de escolaridade e leituras, além da possibilidade que tem

relativa à constante consulta de outros textos.

Essa mescla percebida em um texto literário desencadeará muitos

efeitos de sentido e características das modalidades falada e escrita convivem e

criam um efeito de realidade e atualidade (Fávero, 2005, p.327), podendo auxiliar

na eficácia da construção de uma obra literária, que se torna verossímil se

fundirmos o texto e o seu contexto numa interpretação dialeticamente íntegra.

(Candido, 2000, p.6)

A preferência por um gênero literário, a sociedade de determinada época

e a origem social das personagens e dos próprios autores literários são pontos

importantes de serem percebidos pelo pesquisador de língua falada, na escolha

do seu corpus literário para estudo das propriedades da fala a serem

encontradas na escrita. Para Candido (id, p.08), quando analisamos uma obra,

(...) podemos dizer que levamos em conta o elemento social, nãoexteriormente, como referência que permite identificar na matéria do livro, aexpressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nemcomo enquadramento que, permite situá-lo historicamente; mas como fator

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da própria construção artística, estudado no nível explicativo e nãoilustrativo.

Ao fazer uso do conhecimento extralingüístico, o autor de um texto

literário pode, se quiser, distanciar-se de um uso purista da língua em sua prática

literária. Foi o que ocorreu, no início do século XX, quando alguns escritores se

mostraram indiferentes a uma espécie de modismo que os considerava elite,

quando primavam pelo uso impecável da linguagem.

Com essa postura de indiferença ao que vigorava na época, alguns

autores desenvolveram uma nova maneira de redigir, caracterizada pela

originalidade, incorporando em suas obras o coloquial das mais diversas regiões

do Brasil, o que chamamos hoje de regionalismo. No caso desta dissertação,

privilegiamos somente o regionalismo do extremo sul do Brasil, devido ao fato de

ainda serem poucos os estudos relativos a este período, assim como são poucos

os estudos das manifestações lingüísticas dessa região, conforme já indicamos

na introdução deste trabalho.

Dentre os escritores que produziram esse tipo de literatura, destacamos

o pioneiro, João Simões Lopes Neto, nascido em Pelotas, Rio Grande do Sul,

que publicou, em 1912, Contos Gauchescos, contos esses que, de acordo com

Preti (2003, p.163), são ao mesmo tempo dramáticos e poéticos, impregnados de

oralismo do verdadeiro gaúcho dos Pampas.

A mescla de expressões campeiras, castelhanas e indígenas,

juntamente com o uso consciente da pontuação, contribui para o autor ressaltar a

oralidade, presente nos seus textos. Além disso, outro fator que enfatiza o uso do

oral é a existência de diálogos nos textos, que são as marcas orais de maior

relevância para o este estudo, pois, diante das conversas construídas pelo autor,

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dispomos de elementos, ainda que de segunda mão, que permitem analisar a

presença da língua falada em textos escritos.

Nos contos, o autor revela um conhecimento profundo dos elementos da

fala gaúcha, quando os transcreve em uma conversação ficcional, o que nos

remete, enquanto pesquisadores, ao fato de que todo indivíduo falante, antes de

se condicionar aos fatores situacionais de um ato concreto de fala, está

subordinado aos fatores socioculturais do grupo do qual é participante. (cf.

Urbano 2000)

O narrador-personagem dos Contos Gauchescos permanece

condicionado aos fatores socioculturais de seu grupo e, pelo fato de ser um peão

de estância e trabalhar com o gado, utiliza um falar específico da região dos

tempos, em que viveu sua história. Ás vezes, inicia sua fala dirigindo-se a

alguém, outras, conta simplesmente os fatos, ou reproduz, por meio do discurso

direto, as falas dos protagonistas. Para tanto, utiliza um falar quase natural,

considerando que, se ouvíssemos os contos, teríamos a impressão de que o

narrador nos fala aos ouvidos, devido às marcas de oralidade contidas nos

textos.

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As idéias são somentesombras da verdade.

(Giordano Bruno )___CAPÍTULO II – O conto regionalista: um gênero te xtual/discursivo_______

Este capítulo apresenta um estudo sobre algumas perspectivas

relacionadas ao conto, sob três direções distintas: a beleza, referente à estética,

o sentido, à histórica e a forma, à morfologia.

A partir dos estudos sobre a estética, no século XX, surgiram as

primeiras investigações sobre os gêneros. Dentre essas, torna-se relevante a do

estruturalista russo Vladimir Propp, na obra Morfologia do Conto, publicada pela

primeira vez em Leningrado, em 1928 e, somente, traduzida para a língua

portuguesa no ano de 1983; uma outra abordagem realizou-se, por André Jolles,

no sentido de estudar a transformação dos gêneros, na obra Formas Simples,

com primeira edição alemã datada de 1930.

Com relação aos gêneros do discurso, cabe ressaltar Bakhtin, autor da

obra A estética da criação verbal, publicada em meados do século XX e, dentre

nós, Marcuschi, autor dos Gêneros textuais & ensino, de 2002, cujas referências

serão apontadas posteriormente.

2.1 O conto: um breve histórico

À palavra conto atribuem-se duas etimologias distintas: pode vir da

forma latina commentu(m), com o significado de invenção ou ficção, ou pode ser

também um deverbal de contar que decorre de uma outra forma latina:

computare. (Gotlib, 2000)

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Para Gotlib (id, p.13), do ato inicial de contar uma história oralmente,

surge o conto, que evolui para o ato de registrá-la por meio da escrita. Quando os

contadores passaram a registrar as histórias que contavam, o conto passou da

narrativa oral para a escrita, adquirindo um caráter literário, embora não

encontremos autores que precisem uma data específica para o surgimento do

conto. Para alguns, tal surgimento pode ser anterior a alguns milhares de anos

do nascimento de Cristo, afirmação essa que pode ser comprovada pelo relato

do conflito de Caim e Abel e de outros episódios bíblicos, como Salomé, Rute, A

História do filho pródigo e a Ressurreição de Lázaro.

No Egito, foram encontrados alguns exemplares, datados de 14a.C,

como Os dois irmãos e Setna e o livro mágico. São representantes do conto

persa e árabe, as narrativas dos episódios das Mil e uma noites, Aladim e a

lâmpada maravilhosa, Simbad, o marujo e Ali-Babá e os quarenta ladrões que,

na visão de Moisés, (1979, p.17) correspondem ainda hoje ao melhor que já se

criou em matéria de conto.

Da Índia, contamos com os exemplares de Panchatantra, Jataka, e

Hitopadexa; os primeiros apresentam-se em forma de coleções, de autores

desconhecidos; e o último, em um manual de fábulas e histórias. Dos contistas

indus, tem-se somente a notícia de Somadeva, do século X, criador de Oceano

de Histórias.

No apogeu da Idade Média, o conto conheceu sua época áurea,

sobretudo pelas novelas de cavalaria e por autores como Margarida de Navarra e

Chaucer. Nos séculos XVI e XVII, a produção de contos foi muito grande e,

graças ao influxo de Boccaccio, sobretudo na Itália, o gênero expandiu-se. Na

Espanha, Cervantes e Quevedo deram grandes contribuições.

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Durante o período da pós-medieval, as produções narrativas começaram

a apresentar, segundo Moisés (id, p.17),

(...) uma espécie de paralisia, de artificionismo (...) tirando-lhe algumascaracterísticas apenas ressuscitadas mais adiante. Trata-se, em suma, deum período de afetação e declínio, de que poucos escritores se salvaram.

O ambiente revolucionário e reformador dessa época foi o responsável

por tal declínio; no entanto, alguns contistas como Piron, Marmontel e Hamilton,

liderados por Voltaire, século XVIII, são de grande relevo e conferiram ao conto a

manutenção da vitalidade, até então, conseguida somente pelas produções

medievais.

No século XIX, o conto atingiu sua maturidade e viveu sua época

esplendorosa, surgindo contistas lidos até hoje. Nessa fase, considerada madura,

o gênero abandonou o seu estágio empírico, indeciso e folclórico. Com isso,

adquiriu uma categorização tipicamente literária devido à presença de estrutura e

características compatíveis com sua essência.

Na França, como em nenhum outro país, o conto se fortificou a partir dos

autores pós-medievais D’Ouville, Perrault e La Fontaine, além de outros como

Balzac, Flaubert e Guy de Maupassant, que abriram a lista dos grandes

escritores. Maupassant conferiu ao conto uma fisionomia que passou a ser

imitada por muitos seguidores, tornando-se, assim, um verdadeiro mestre da arte

de contar histórias.

Outros contistas também merecem destaque, dentre eles, o inglês

Edgard Allan Poe que, além de contista também foi um estudioso das teorias do

conto, com as primeiras histórias de detetive e os russos Nicolai Gogol e Anton

Tchekov, esse último, considerado o maior contista da Rússia.

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Em Língua Portuguesa, contamos com nomes como Fialho de Almeida,

Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Alexandre

Herculano, Rebelo da Silva, Júlio Dinis, Aluísio de Azevedo, Simões Lopes Neto,

entre outros.

No século XX, no cenário universal literário, o conto ganhou porções

eruditas e há inúmeras composições de primeira grandeza como as de Virgínia

Woolf, James Joyce, Franz Kafka, Ernest Hemingway e Máximo Górki. No Brasil

e em Portugal, há um reflexo das narrativas curtas, americanas e européias,

denominadas short-stories que se observam nas obras de autores como Monteiro

Lobato, Aníbal Machado, Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Carlos

Drummond de Andrade.

2.2 A forma do conto: perspectiva morfológica de Vl adimir Propp

Estudiosos delinearam nuances do que vem a ser o conto, mas coube a

Vladimir Propp, um acadêmico estruturalista, analisar os componentes básicos

do enredo dos contos populares russos, e identificar seus elementos narrativos,

nas suas formas mais simples e indivisíveis, dando origem ao conto maravilhoso.

Na visão de Propp o conto é uma narrativa em prosa, de curta extensão,

mas que conta com os mesmos componentes do romance. Dentre as principais

características do conto, apontamos a concisão, a precisão, a densidade, a

unidade de efeito ou impressão total – da qual também falava Edgard Allain Poe

(1809-1849) e Anton Tchekhov (1860-1904). É objetivo do conto causar um

efeito singular no leitor, pois

(...) a miscelânea, a diversidade colorida do material que constituem oscontos fazem com que a nitidez, a precisão, sempre que se trata de pôr e

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resolver problemas, não se obtenha senão com muitas dificuldades.(Propp, 1983, p.39)

As idéias de Propp vêm de encontro ao fato de que todas as

abordagens, antes da que fora proposta por ele, estudavam o conto dentro de

uma perspectiva genética, faltava-lhes, portanto, a descrição sistemática e,

consequentemente científica. Propp buscava uma descrição exata do que vinha a

ser o conto, pois, para ele, o que era observado, até então, era que a maioria dos

investigadores começa pela classificação e introduzem-na fora do corpus

quando, pelo contrário, deveriam deduzi-la deste. (id, p. 40)

As classificações do conto acontecem não somente a partir da sua

divisão em categorias, mas, principalmente, a partir da sua divisão em assuntos.

Ao estudar Wundt, um autor que trabalha com a psicologia dos contos, Propp

esclarece quais podem ser os assuntos que dividem o conto:

1. Contos-fábulas mitológicas (Mythologische Fabelmärchen).2. Contos maravilhosos puros (Reine Zaubermärchen).3. Contos e fábulas biológicas (Biologische Märchenund Falben).4. Fábulas puras sobre animais (Reine Tierfalben).5. Contos <<sobre as origens>> (Abstammungsmärchen).6. Contos e fábulas humorísticas (Schezmärchen und Scherzfabeln).7. Fábulas morais (Moralische Fablen). (id, p. 42)

Para chegar a essa divisão, proposta por Wundt, Propp isolou as partes

constitutivas dos contos, comparou-as entre si e, ao chegar a um resultado

classificatório, realizou o trabalho morfológico que consistia em descrever os

contos, segundo suas categorias e a relação dessas categorias entre si e com o

todo.

Nesse trabalho morfológico, Propp identificou valores constantes e

varáveis, ambos presentes nos contos. Um valor constante para o teórico é o das

personagens, pois sabemos que elas conservam suas ações, mas mudam

apenas seus nomes nas narrativas e, ao mudarem de nomes, mudam de

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funções. E as funções constituem os valores constantes dos contos; embora as

funções sejam constantes, o modo de realizá-las é variável, e, conforme a fala do

estruturalista (id, p.59), a função enquanto função é um valor constante. No

estudo do conto a questão de saber o que fazem as personagens é a única que

importa; que faz qualquer coisa e como o faz são coisas acessórias.

Assim visto, podemos entender que as funções são poucas, o que não

impede, por exemplo, que as personagens sejam muitas e, segundo o autor, sua

sucessões apresentam-se, muitas vezes, idênticas, no que tange ao conto

maravilhoso.

Ao isolar uma função, qualquer que seja, o estudioso consegue realizar

agrupamentos, isto é, consegue delimitar contos com as mesmas características,

pois descobre que, em uma seleção de textos, há propriedades, que, de acordo

com Propp, são estruturas específicas.

Nesse sentido, a teoria de Propp embasou muitos de nossos teóricos,

considerando que a morfologia dos contos não constitui um fim em si mesmo,

mas uma descoberta da especificidade do conto como gênero, com vistas a

atribuir uma explicação histórica para sua uniformidade. (cf. Mélétinski, 1983, p.

234)

2.3 Os Aspectos estruturais do conto

O conto é uma narrativa breve que tem como objetivo contar um fato

relativo a uma ou a um número reduzido de personagens, cujos detalhes são, ou

podem ser, tão condensados que buscam produzir uma única impressão no

leitor. É uma narrativa singular que possui unidades de ação, tempo e espaço, as

quais devem obedecer a uma estrutura harmoniosa que contém apenas um

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objetivo: a univalência, ou seja, tudo o que é escrito e todas as unidades

estruturais caminham para narrar algo, em um curto espaço de tempo.

O que interessa ao conto é o momento único, vivido por uma

determinada personagem, portanto, a palavra “momento” é de grande relevância.

O contista não se preocupa em relatar o que vem antes ou depois do episódio;

ele narra apenas o momento, em que a(s) personagem(ns) sai(em) do

anonimato, isto é, o momento em que a sua história fica à disposição do leitor.

A objetividade, plasticidade e horizontalidade do conto constituem-se em

meio à brevidade das ações, nele narradas, geralmente em terceira pessoa,

sendo a realidade concreta o foco principal. Entendemos por realidade concreta

aquela que se faz real para o contista e seus leitores, não a realidade do dia-a-

dia. Sobre a questão da realidade, Moisés (1979, p. 27) assegura que do enfoque

dado pelo autor à realidade concreta nasce o realismo, a verossimilhança do

conto com a vida: não admite malabarismos estruturais sem comprometer seu

caráter próprio.

As palavras utilizadas no conto são reduzidas, cuidadosamente

selecionadas e convergem para uma única célula dramática, assim como a

trama, que se inicia próxima ao epílogo e da qual conhecemos apenas os

momentos anteriores ao clímax2 dramático. Progressivamente, todos os fatos da

trama, em uma ordem lógica, caminham rumo ao clímax.

É a perspicácia do contista que determina o “aprisionamento” do leitor no

jogo narrativo e que o mantém junto à obra até seu desenlace, que geralmente é

2 Clímax é o momento da narrativa em que teremos a revelação do conflito, é o ponto máximodo suspense de um conto.

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enigmático, surpreendente e inesperado, sob a forma de sanção, seja ela prêmio

ou castigo.

A linguagem do conto não é complexa, mas simples, acessível à

compreensão de qualquer leitor. O diálogo é um constituinte relevante no conto e

pode estar presente em diferentes formas de discurso: direto, indireto ou indireto

livre.

No discurso direto, a personagem fala sem a intervenção do autor,

diferente do discurso indireto, em que o autor reproduz, com suas palavras, as

falas das personagens e as dispõe em forma de narrativa sem dar relevo algum a

elas; o autor apenas narra o que sabe.No discurso indireto livre, há uma mescla

existente entre a primeira e terceira pessoas da narrativa, portanto, o autor é uma

espécie de interlocutor híbrido, confunde-se à personagem e, juntamente ao

narrar, opina sobre os fatos.

Há contos que apresentam uma forma rara de narrar, denominada

monólogo interior. Essa forma é construída por meio da representação do mundo

psíquico da personagem, traduz-se em forma de fluxo de consciência, tornando

acessível ao leitor informações desordenadas, tais como vieram à mente da

personagem. De textos brasileiros, que apresentam essa técnica como forma de

narrativa, podemos citar alguns contos de Clarice Lispector e, do cenário

internacional, vale lembrar, pelo pioneirismo no uso do fluxo de consciência, a

primorosa obra Ulisses, de James Joyce, embora não seja um exemplo de conto.

As personagens do conto aparecem em número reduzido, geralmente

duas ou três, quando mais, são apenas referidas e têm um mundo autônomo:

não é a brevidade que as caracteriza. O que as caracteriza é o fato de os

problemas serem delas, e não nossos. (Gotlib 2000, p.57). As personagens,

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quando atuantes no conto, podem ser planas ou estáticas, visto que são

imobilizadas no tempo e espaço, mostrando apenas um pouco da sua

personalidade; e, delas é conhecida apenas uma, das tantas facetas que

compõem seu caráter.

No caso dos contos de Simões Lopes Neto, o narrador, Blau Nunes,

pode ser caracterizado, na perspectiva de Candido (2002, p. 61), como uma

personagem de costume, visto ser apresentado ao leitor por meio de

(...) traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, emsuma, de tudo que os distingue vistos de fora. Estes traços são fixados deuma vez para sempre. E cada vez que a personagem surge na ação bastainvocar um deles. Como se vê é o processo fundamental da caricatura, ede fato ele teve seu apogeu, e tem ainda sua eficácia máxima, nacaracterização de personagens cômicos, pitorescos, invariavelmentesentimentais ou acentuadamente trágicos.

Nesse contexto, Moisés (1979) assegura que o ponto de vista, ou o

ângulo em que se desenvolve a narrativa, pode ser verificado, a partir de

perspectivas diferentes. Para o autor, há quatros tipos de perspectivas, mas para

esta pesquisa são relevantes apenas:

• a do narrador-personagem, em que a personagem principal conta a sua

própria história e usa primeira pessoa, singular ou plural, limitando a

área da narrativa;

• a do narrador observador, quando o escritor evita entender ou

questionar quaisquer dos fatos narrados; apenas os transmite.

O foco narrativo depende da intencionalidade do escritor e varia de um

conto para outro. Algumas tipologias tenderão a esse ou àquele foco narrativo,

para que a obra não perca sua característica de verossimilhança.

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O conto, como explica Moisés (1979, p.124), apresenta uma única célula

dramática, presente em toda a narrativa. Tudo o que é contado pelo narrador

converge para uma única focalização e, por esse motivo, temos uma unidade de

ação, que constitui a fração de ação decisiva para o desfecho previsto. A essa

ação, correspondem outras unidades igualmente importantes: de espacialidade e

temporalidade, pois sabemos que os cenários da narrativa são quase únicos ou

únicos e o seu momento é breve.

O conto tradicional, estudado de maneira mais estrutural, abstrai tudo o

que seja irrelevante ao texto para se preocupar com o ponto em questão, por isso

é preciso que o leitor esteja atento a todas as palavras e a todos os sentidos por

ele revelados. Desse modo,

O conto caracteriza-se por ser objetivo, atual: vai diretamente aoponto, sem deter-se em pormenores secundários. Essa ‘objetividade’,observável ainda noutros aspectos adiante examinados, salta aos olhoscom as unidades: de ação, lugar e tempo. Moisés. (1979, p.127)

Perante essa postura, todas as unidades estruturais do conto devem

convergir harmoniosamente para o mesmo e único objetivo. Às unidades

estudadas devemos acrescentar a unidade de tom, que se evidencia pela tensão

interna da trama narrativa e pela escolha rigorosa de palavras no arranjo textual.

Essa unidade foi chamada por Edgard Allan Poe de “unidade de impressão”

(apud Gotlib,1985, p.59) pela singularidade, em que acontece a narrativa e, pelos

sentimentos suscitados por meio da escolha de palavras nela contidas.

Com base na obra de Carl H. Grabo, Moisés (1979, p.139) distingue

cinco tipos de conto: as histórias de ação, de personagem, de cenário ou

atmosfera, de idéias e de efeitos emocionais, as quais não diferencia pela

estrutura, mas pela essência a objetivo narrativo.

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Ao contista cabe a tentativa de mostrar a realidade, que decorre da sua

percepção do mundo. O conto apresenta um fragmento de realidade, em uma

visão circunscrita e independente de seu ponto de vista ou tipologia, que lhe deve

dar um efeito único. Sobre esse fragmento de realidade, que não dispensa o

efeito único do conto, Bosi (1995, p.9), afirma que o contista é um pescador de

momentos singulares cheios de significação com total domínio, de forma

consciente e intencional, da narrativa.

2.4 O conto: uma das formas simples, segundo Jolles

André Jolles realiza um estudo das formas mais gerais de manifestação

literária. O autor acredita, portanto, que existam primeiramente as formas

históricas, que originam as formas atualizadas, que, por sua vez, dão origem às

formas literárias mais complexas, tais como o romance policial, considerado por

ele, uma atualização da adivinha3.

Jolles inicia seus estudos sobre as formas do conto:

O conto só adotou verdadeiramente o sentido de forma literáriadeterminada no momento em que os irmãos Grimm deram a umacoletânea de narrativas o título de Kinder-und Haussmärchen [Contos paraCrianças e Famílias]. (Jolles, 1976, p.181)

O autor explica que os irmãos Grimm reuniram nesta coletânea uma

diversidade de textos e lhes aplicaram um conceito unificado, que daria base

para todas as outras coletâneas escritas posteriormente.

Um ponto relevante para Jolles é a questão da oposição, quanto à forma

do conto, existente entre Achim von Arnim e Jacob Grimm. Ambos defendiam

que língua e poesia constituíam idéias distintas, porém Jacob Grimm fazia ainda

outra distinção, a sua favorita: a poesia erudita e a popular não eram constituídas

pela mesma natureza posto que, para ele:

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A poesia é aquilo que passa em estado de pureza e sem alteraçõesdo coração das palavras; por conseguinte, é algo que brotaincessantemente de um impulso natural e é captado por uma faculdadeinata; a poesia popular sai do coração do Todo; o que entendo por poesiaartística sai da alma individual. Por isso é que a poesia moderna assinalaseus autores, ao passo que a antiga não se sabe nome algum; ela não éproduzida por um, dois ou três, é a soma do Todo. (apud Jolles, 1976,p.182)

Tal explicação esclarece que a poesia artística ou erudita é uma

elaboração da poesia natural, uma vez que esta consiste em uma criação

espontânea, razão por que pode ser considerada uma forma simples de texto.

Por outro lado, Arnim sabe que, ao escrever, Jacob Grimm não

transcreveu exatamente suas narrativas e o contesta dizendo que a tarefa do

poeta consiste, evidentemente, em escrever partindo do povo ou em levar o povo

o que escreve. (id, p.184), ou seja, Arnim acredita que o que importa ao conto

não é a palavra inalterada, mas o sentido do todo.

A polêmica entre os dois autores se estendeu por algum tempo, cessou

por um período, mas nunca desapareceu por completo; no entanto, o que

interessa à pesquisa é a utilização das idéias dos dois autores para que André

Jolles definisse a sua teoria das Formas Simples e Formas Artísticas.

Inicialmente, Jolles tratou da linguagem presente nessas duas Formas, na Forma

Simples

(...) a linguagem permanece fluida, aberta, dotada de mobilidade e decapacidade de renovação constantes, e, sempre que uma Forma Simples éatualizada, avança em uma direção que pode levá-la à fixação definitivaque se observa, finalmente, na Forma Artística. (id, p. 195-196)

A atualização existente no campo da linguagem também pode ser

percebida em todos os constituintes do conto: personagens, lugares, incidentes,

3 Segundo Aurélio Buarque de Holanda, 1996, enigma popular.

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entre outros. Uma comprovação disso está explícita nesta citação, em que ele

afirma:

(...) dissemos que o universo transforma-se no Conto de acordo com oprincipio que somente rege e determina essa forma. Chamamos talprincípio a “disposição mental”, presente em todas as Formas Simples. (id,p.197)

Para o autor, as personagens e as aventuras próprias do conto não

trazem a impressão de serem verdadeiramente morais, mas proporcionam não

só satisfação pelo fato de irem de encontro à tendência de o leitor caminhar para

o maravilhoso, mas também por serem histórias contadas, de acordo com o

universo desejado pelo leitor.

Jolles defende a idéia de que tudo o que se passa no universo, de

acordo com a expectativa do homem, é fundamental para a forma do conto,

porque tal idéia é a disposição mental específica desta estrutura narrativa, pois o

que rege o universo são os acontecimentos e não os ajustes de contas que

acontecem ou que deixam de acontecer. Em tal universo, a disposição mental é

propriedade desta Forma Simples e produz dois efeitos, em que o trágico é, ao

mesmo tempo, proposto e abolido:

O Conto escolhe, de preferência, os estados e os incidentes quecontrariem o nosso sentimento de acontecimento justo; um moço recebemenos em herança que seus irmãos, é menor ou mais tolo que os que ocercam; crianças são abandonadas por seus pais ou maltratadas por umamadrasta; o noivo é separado de sua verdadeira noiva; homens ficamsujeitos a espíritos malfazejos, são obrigados a executar tarefas sobre-humanas, sofrem perseguição e têm de fugir; eis outras tantas injustiçasque são invariavelmente abolidas no decurso dos acontecimentos e cujodesfecho satisfaz nosso sentimento de acontecimento justo. Sevícias,desprezo, pecado, arbitrariedades, todas essas coisas só aparecem noConto para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eliminadas epara que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua.(id, 197)

A ação é outra propriedade desta Forma Simples, pois está centrada em

um lugar muito distante, ou que se passa há muito tempo, então o lugar pode ser

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qualquer lugar ou nenhum lugar, assim como acontece com as personagens que

têm nomes comuns e que, ao serem ouvidos, acabam com o fascínio do

maravilhoso e do imprescindível. A última das propriedades do conto está

centrada no uso de gestos verbais que estão cheios de trágico, de justiça e de

injustiças na acepção da moral ingênua.

A Teoria de Jolles se preocupa com a questão da atualização das

formas escritas, muito mais do que com a estética, historicidade e morfologia.

Explicamos essa postura pelo fato de a historicidade de determinada forma

possuir uma organização morfológica, que, depois de instaurada, irá de encontro

à estética.

Assim visto, relembramos que não é objetivo desta pesquisa fazer um

estudo especificamente literário, mas estudar algumas maneiras de como o

conto, gênero textual/discursivo é representado, em diferentes épocas e por

diferentes perspectivas.

A obra de Jolles vem ao encontro à teoria dos gêneros, postulada por

Bakhtin e, posteriormente, desenvolvida, entre nós, dentre outros, por Marcuschi,

pois, de certa maneira, estes estudiosos também trabalham com a questão da

atualização das formas, como estudaremos a seguir.

2.5 O conto, um gênero textual/discursivo secundári o

É comum estudar que cada gênero é único e permanece estático; no

entanto, a palavra gênero indica família, raça ou um conjunto de seres comuns

uns aos outros, desmistificando a idéia de individualidade. Marcuschi explica que

essa questão de individualidade não pode ser mais o ponto de partida para o

estudo dos gêneros, pois, na sua visão, os gêneros

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(...) são entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveisem qualquer situação comunicativa. No entanto, mesmo apresentando altopoder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto,os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da açãocriativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis,dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividadessócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que éfacilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuaishoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.Marcuschi (2002, p. 19)

Para ele (2003: 38), os textos se entrecruzam sob muitos aspectos e por

vezes constituem domínios mistos, por estarem vinculados às necessidades e às

atividades socioculturais, às quais estamos submetidos. Para identificar gêneros

textuais, Marcuschi utiliza graus, que dependerão do meio de produção ou da

concepção discursiva dos textos. Tais graus explicitados relacionam-se com as

idéias de Bakhtin, pois o lugar em que estamos inseridos, no momento do evento

comunicativo, definirá o caminho propício do gênero a ser proferido. (id, p. 39)

Todos os campos da atividade humana estão relacionados à utilização

da linguagem e apresentam-se nos mais diferentes modos, pois o emprego de

uma língua refletirá, em um discurso, a condição e finalidade para o que foi

proferido. Essas idéias são de Bakhtin e, nesse sentido, vêm de encontro ao que

foi falado sobre a atualização das formas, defendidas por Jolles.

Segundo Bakhtin, os gêneros textuais podem ser designados pelos

recursos lexicais ou composicionais e pelo conteúdo temático de determinado

texto, os quais caracterizarão um determinado discurso, ou seja, caracterizarão

os gêneros discursivos. (Bakhtin, 2003, p. 262)

Bakhtin, explica que os gêneros textuais podem ser primários ou

secundários. Os primários estão relacionados com as circunstâncias de

comunicação verbal espontâneas, tais como os diálogos, em que os aspectos da

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oralidade estão presentes nos seus mais variados usos. Nesse conjunto, não há

um planejamento prévio do que será abordado, visto acontecer por meio de

manifestações ligadas à fala. Exemplos desse tipo de gênero são as construções

de narrativas por meio da memória, pois as idéias nos vêm à mente de formas

distintas a cada vez que vamos mencionar a mesma história.

Os gêneros secundários são, portanto, mais complexos, no entanto, são

como uma interface dos gêneros primários e, por esse motivo, podem ser

considerados reconstruções da oralidade em determinado tempo e espaço, em

forma de texto escrito. Neste contexto, Machado (2005: 156) explica que

Do ponto de vista do dialogismo, a prosaica é a esfera mais ampladas formas culturais no interior das quais outras esferas sãoexperimentadas. Assim, Bakhtin distingue os gêneros discursivos primários(da comunicação cotidiana) dos gêneros discursivos secundários (dacomunicação produzida a partir de códigos culturais elaborados, como aescrita). Trata-se de uma distinção que menciona as esferas de uso dalinguagem em processo dialógico-interativo. Os gêneros secundários – taiscomo romances, gêneros jornalísticos, ensaios filosóficos – são formaçõescomplexas porque são elaborações da comunicação cultural organizadaem sistemas específicos como a ciência, a arte e a política. Isso não querdizer que eles sejam refratários aos gêneros primários: nada impede,portanto, que uma forma do mundo cotidiano possa entrar para a esfera daciência, da arte, da filosofia, por exemplo.

Bakhtin (2003) acredita que a questão da categorização dos gêneros é

uma questão muito difícil de ser resolvida, devido ao fato de que essas

categorizações transmutam constantemente e abarcam todas as relações

sociais, utilizadas pela comunicação no momento de interação, pois, para ele, os

gêneros são ricos e heterogêneos, mas possuem uma diferença primordial: os

gêneros secundários incorporam e reelaboram os primários. (id, p. 263)

(...)os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas,pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publísticos, etc.)surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo erelativamente muito desenvolvido e organizado (predominantementeescrito) – artístico, cientifico, sóciopolítico, etc. No processo de suaformação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários

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(simples) que se formaram nas condições da comunicação discursivaimediata.

Assim como Bakhtin explica que os gêneros primários são mais

imediatos, constituídos em um evento comunicativo simples e dão origem aos

gêneros secundários, mais complexos, produzidos em um ambiente, também

mais complexo, Jolles afirma que as formas simples advêm das primeiras

manifestações faladas e se transformam em formas artísticas, quando o autor se

propõe a elaborá-las de uma outra forma. Há, portanto, uma relação entre as

duas teorias.

Todo enunciado é único e carregado de significado. Na literatura, os

enunciados possuem características que os diferenciam entre si, como também

os diferenciam de outros gêneros textuais, pois ao estabelecer objetivos

comunicativos e aplicar determinado tipo de linguagem, o autor escolhe o qênero

que mais se aproxima de seus interesses.

Então, se cada enunciado é individual e desencadeia um determinado

estilo, forma, o que vem de encontro ao gênero: cada gênero possui uma função,

determinadas condições de comunicação discursiva e determinados tipos de

enunciados estilísticos, unidades temáticas e composicionais diferenciadas, mas

relativamente estáveis.

Os Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto, constituem textos

caracterizados como simples, conforme a classificação de Jolles (1976), ou seja,

um gênero discursivo de características secundárias, segundo Bakhtin,

denominado conto regionalista, por autores como Bosi, Candido e Moisés.

Conforme o que foi estudado, faz-se necessário um levantamento do

contexto histórico, em que o autor produziu seus contos, visto que, sua postura

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ao recriar uma forma narrativa simples está ligada ao fato de ter sido atualizada

de gênero discursivo primário para secundário.

2.6 O Conto regionalista pré-moderno: a figura de João Simões Lopes Neto

O Regionalismo de que falamos, é anterior ao movimento Modernista no

Brasil e desenvolveu-se a partir de transformações, existentes no Brasil do

século XIX: não foi somente um escape para o passado; aconteceu, quando o

autor vinculou, em suas histórias, o homem ao seu lugar, destacando sua

materialidade rural, ao contrário da temática que constituía o conto até então,

temática essa que estava baseada nos acontecimentos da corte, pois a

preocupação dos autores regionalistas desta fase era a de mostrar ao Brasil que

nem tudo em 1900 era bélle époque. Tinham o compromisso com a

(...) fidelidade ao meio a escrever: no que aprofundavam a linha realistaestendendo-a para a compreensão de ambientes rurais ainda virgens paraa nossa ficção.( Bosi, 2003, p. 207)

Esse gênero, visto no âmbito textual, baseou-se em tipos específicos

tradicionais, supervalorizou o pitoresco e a cor local, ao mesmo tempo em que

atribuiu valores à cultura de seu povo. Para Sodré (1969, p. 403),

(...) o Regionalismo, a rigor, começa a existir quando as característicastípicas se aprofundam e se generalizam, a ponto de surgirem, em zonas asmais diversas, manifestações a que o romantismo não poderia fornecerelementos característicos.

A maioria dos regionalistas pré-modernos são contistas, centram-se no

uso da linguagem e na conduta social das personagens, buscam o diferente, o

exótico e uma comprovação disso é a busca pela fala dotada de elementos

arcaicos, mantidos por gerações, por meio da oralidade. A preocupação com as

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elites urbanas pré-modernas não os caracteriza, pois se dedicam à

representação do folclore e ao uso da linguagem das províncias.

Chamá-los de pré-modernistas é aceitável no sentido mais restrito da

palavra, porque romperam com a rotina acadêmica da época. Nesse contexto,

Bosi (2003, p.212) diz que esses autores surgem dentro do quadro global do

regionalismo anti-modernista.

Os valores deste Regionalismo são importantes, pois, de acordo com

Foucault (2002, p. 45), é pela relação do autor com sua obra que um discurso é

autêntico, verdadeiro e recíproco com o momento histórico. Em diversas regiões

do país há exemplos de autores regionalistas, mas selecionamos, para análise,

um significativo nome da literatura sulina: João Simões Lopes Neto, cuja obra,

Contos Gauchescos, se constitui de contos que crescem harmonicamente

integrando a paisagem e os caracteres do entrecho. (Bosi, 2003, p. 213)

Sodré (1969) afirma que o gaúcho, nascido em Pelotas, no ano de 1865,

foi a grande figura do movimento sulino; traduziu os pequenos problemas da vida

do trabalhador do campo e das charqueadas. Viveu sempre na província, mesmo

em tempos, em que só a capital projetava os grandes autores. Apresentou aos

seus leitores um linguajar típico, bem como as minuciosas descrições de um local

muito conhecido por ele. Reproduziu histórias da tradição oral, sem ser apenas

folclórico e conservou o sentido histórico da realidade, as influências vocabulares

dos castelhanos e índios, de cenários, o sul e as batalhas ocorridas, e de

personagens, históricas como D. Pedro II e Bento Gonçalves. Retratou o homem

comum, Blau Nunes, um peão de estância, como seu herói.

Talvez ninguém no Brasil tenha conseguido uma identificação tãoprofunda com o espírito dos seus pagos, a tal ponto que o próprio JoãoSimões Lopes Neto, o pelotense culto e de família patrícia, inteiramente seapaga na sombra de Blau, o vaqueano. (Sodré,1969, p. 409)

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Em 1910, publicou o Cancioneiro Guasca; dois anos mais tarde,

escreveu os Contos Gauchescos e em 1913 as Lendas do Sul. Morreu em 1916

e deixou uma obra pronta, intitulada Casos do Romualdo, publicada em 1952.

A partir do Partenon Literário4, alguns autores iniciavam um movimento

literário voltado à sua realidade, designado regionalismo, que antecedeu e

motivou o modernismo. A literatura regionalista de João Simões Lopes Neto

reproduzia a ideologia dos estancieiros e enaltecia o gaúcho e seu passado

guerreiro, que seguia o seu destino: ser guardião da identidade, da dignidade e

da liberdade nacional.

A felicidade de Blau, personagem de todos os contos de Simões, não

apaga a lacuna que existe na sociedade a partir das diferenças de classes entre

ele, um simples peão, e os proprietários de terras, como, na vida real, entre a

família de Simões e seus empregados.

João Simões Lopes Neto tinha fascínio por suas origens, era coerente

com seu positivismo5, próprio do gaúcho republicano-federalista e maragato; via

seu semelhante como um herói e os castelhanos, como inimigos, ou seja, os anti-

heróis, sempre ridicularizados em sua obra.

Pertencente à elite da época, Simões contrapõe, às vezes, os padrões

da ordem e da paz exigidos pela concepção de liberdade e progresso, e isso se

dá por meio da personagem de Blau Nunes, que lembra seus tempos de

4 Movimento literário romântico do Rio Grande do Sul, em que alguns dos escritores da épocarefutavam a idéia imitar os modelos europeus e, assim como João Simões Lopes Neto, estavampreocupados em retratar a realidade de sua gente.5 O positivismo era a linha seguida pelos adeptos da monarquia chamados de caramurus oupica-paus, e eram contrários à linha republicano-ferderalista dos farrapos, que queriam aseparação do Rio Grande do resto do Brasil.

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guerreiro e de barbárie, reivindicando sempre os atributos do heroísmo, conforme

aponta Chiappini (1988, p. 292), ao dizer que:

Blau viaja sozinho, só e sem bagagem. É ele e seu corpo alheio: aguaiaca empanzinada de onças de ouro. O desnível entre o seudespojamento, a sua pobreza e o peso do capital, já aparece nestaprimeira fase.

O vaqueano Blau é trazido para uma esfera civilizada, por meio dalinguagem trabalhada de Simões Lopes Neto, utilizando-se de linguagemfalada poética, fluente e verossímil. Simões, pela voz de Blau, abriu espaçopara um falar que dá verdade ao mito, com um salto no espaço e notempo. (id, p. 344)

Os contos da obra são independentes, mas estão ligados por um fio

conduzido por Blau. A cada um dos contos, o narrador personagem supõe um

interlocutor, que pode ser uma nova personagem, ou o leitor. O pensamento,

seus monólogos ou os diálogos, presentes durante toda a obra, demonstram o

modo como acontece a manifestação da oralidade do peão e das outras

personagens que compõem essa obra regionalista.

Diante de tantas representações da fala, como os diálogos ou os

monólogos de Blau, instaura-se o desejo e o compromisso de averiguar a

especificidade da oralidade em tais manifestações, bem como de estudá-las,

enquanto parte do gênero textual/discursivo, designado conto.

Pela importância da autoria, explicitada por Foucault (2002, p. 46),

quando diz que a função do autor é, assim, característica do modo de existência,

de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma

sociedade, é que se torna relevante lembrarmos, ainda que brevemente, o

período histórico em que Simões Lopes Neto viveu e escreveu toda a sua obra.

2.7 O Rio Grande do Sul: cenário dos Contos Gauches cos

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A conquista do Rio Grande partiu do interesse de D. Pedro II, em ocupar

as margens do Rio da Prata e defender o comércio marítimo que, por mais de um

século, permanecia entregue às reduções jesuíticas castelhanas.

Vários episódios militares constituem o cenário de posse e de perda

dessa colônia. Enquanto portugueses e espanhóis brigavam por sua obtenção,

um fato estratégico, em 1684, acontecia: a fundação de Laguna, que serviria para

fortificar as forças lusitanas, abrindo caminhos que ligassem dois pontos

extremos, e fossem núcleos de ajuda e socorro mútuo. (Rodrigues, 1986, p. 22)

Em 1725, foi iniciado o movimento de povoamento definitivo do Rio

Grande e o primeiro a abrir um caminho real para as campanhas foi Francisco de

Sousa e Faria, em 1727. A terra, inicialmente dos charruas, minuanos, guaranis,

guaianás e tapes, chamou-se Continente de São Pedro do Rio Grande, e teve

seu início, no campo da linguagem, o aportuguesamento, ou seja, os povos

indígenas, paulatinamente, assimilam a língua portuguesa.

À medida que o tempo passava, a terra gerava mais entusiasmos e

cativava os muitos que nela depositavam seus destinos, pois o gaúcho primitivo

vai se insinuando e os primeiros colonos já fazem guerra à moda minuana, com

laços, bolas e lanças. (Rodrigues, 1986, p. 34)

O povo se alimentava, basicamente, de carne e pão. O churrasco, o

chimarrão e o cavalo são traços da cultura dessa região, em que se cultivava a

erva-mate, da qual fizeram um uso adaptado da cultura indígena. Os gaúchos

podem ser caracterizados pela destreza com que se movimentam em seus

cavalos e, por isso, estão ligados à liberdade e imensidão dos campos. Desses

costumes e traços, surgiu uma figura política diferente de qualquer outra já

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conhecida: a do monarca, um fruto lusitano de campos continentais; um chefe

que se impõe aos companheiros pela força, ideais, disciplina, determinação e

capacidade.

De 1762 a 1777, devido à aliança da França com Espanha e de Portugal

com a Inglaterra, instalou-se uma duplicidade política e foi, neste cenário, que as

infiltrações espanholas atingiram seu auge.

Foi somente, em 1801 que o Rio Grande tomou sua forma mais atual e

os dois colonizadores, portugueses e espanhóis, fundiram-se, deixando, cada

um, as marcas de seu contato na mais nova região da América portuguesa.

Passada a desordem, em 1808, o povo fazia ressurgir o crescimento. No

Continente do Rio Grande, outras atividades surgiam e a

(...) produção de charque estava se transformando em um grande negócio:na última década do Império, cerca de 300.000 cabeças de gado eramabatidas anualmente, apenas em Pelotas”, região de Simões Lopes Neto.(Love,1975, p. 17)

A secagem da carne e das peles era feita com a utilização de imensos

varais ao longo das propriedades. O português, José Pinto Martins, vindo do

Ceará, fixou residência no Rio Grande do Sul e desenvolveu, em 1837, a primeira

charqueada industrial às margens do arroio Pelotas.

Em 1834, os estancieiros que forneciam os principais produtos à

população, dentre eles o charque, estavam descontentes pelas altas taxas de

importação, pagas pelo produto gaúcho, ao passo que o charque espanhol

ganhava, a cada dia, mais espaço na alfândega brasileira. Esse

descontentamento gerou uma revolução, comandada pelo general

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republicano/federalista/farrapo6, Bento Gonçalves da Silva que, por dez anos,

criou estratégias militares contra os republicanos, fazendeiros positivistas, como

a família dos Neto. Daí em diante, os rebeldes tomam conta de Porto Alegre sob

a liderança de Bento Gonçalves da Silva (...), os farrapos proclamam a república

Rio-grandense em 11 de setembro de 1836. (Urbim, 1999, p.35)

Luís Alves de Lima e Silva tornou-se novo comandante de armas e abriu

caminho para negociações com os revoltosos que, por sua vez, aceitaram a paz

em 28 de fevereiro de 1845.

Em 1888, Gaspar Martins foi nomeado presidente da província, e

Gumercindo Saraiva, tenente coronel da Guarda Nacional. No ano de 1892, Júlio

de Castilhos, sucessor de Gaspar Martins e, portanto, o novo presidente da

província, controlou o Executivo, o Legislativo, os governos municipais e a

organização policial do Estado, o que deu origem a mais uma luta sangrenta.

Somente em 1894 que a revolução cessou,

(...) primeiro nas coxilhas do Carovi, para ir se apagando aos poucos semtodas as outras do Estado. Dez de agosto de 1894. Um calor que subiapelos pagos que ardiam queimando já mais de uma légua de campo. Osdois balaços mataram o caudilho maragato e atingiram a revolução nocoração. (Porto,1999, p. 65)

Gumercindo Saraiva foi desenterrado por Firmino de Paula, comandante

da Divisão Norte do mandato de Júlio de Castilhos, e exposto no alto de uma

coxilha, a fim de que todos vissem que o guerreiro estava, de fato, morto. Não

contente com a barbárie, Firmino de Paula decepou-o e enviou sua cabeça a

6 Os republicanos/federalistas/farrapos defendiam as mesmas idéias e divergiam dosmonarquistas/caramurus; enquanto estes eram a favor do governo imperialista, aquelesqueriam a república federativa e a separação do Rio Grande do Sul do restante do Brasil. Osprimeiros eram identificados pelo lenço vermelho e as roupas esfarrapadas, enquanto os últimoseram reconhecidos pelo uso do lenço branco e fardas de boa qualidade têxtil.

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Júlio de Castilhos, seu chefe, que desaprovou o ato, assim como todas as

atrocidades comuns da Revolução.

Em sua reflexão, Porto (id: 68) afirma: “a cabeça de Gumercindo morou

durante algum tempo embaixo de uma cama de hotel” e, em outras versões

populares, foi enterrada em sua casa, ou jogada em um terreno baldio, ou ainda,

atirada no Rio Guaíba.

Nesse cenário, com mentalidade republicana, Simões Lopes Neto

escreveu os Contos Gauchescos e, pela voz de Blau, mostrou, por meio da

linguagem, a postura do homem lutador, politizado e defensor do Continente de

São Pedro, e é por esse motivo que se faz necessário estudar, ainda que de

forma breve, a postura de João Simões Lopes Neto, enunciador.

2.8 João Simões Lopes Neto: um enunciador

É sabido que o discurso, na sua totalidade, é constituído pela

enunciação e é caracterizado como um ato individual, proferido de forma falada

ou escrita. A enunciação é, portanto, um ato único, pois, a cada vez que é

enunciada pelo mesmo enunciador, constitui um novo enunciado.

Com a literatura, modalidade de enunciação escrita, não é diferente, pois

o autor, para efetivar seu objetivo, isto é, comunicar-se com o leitor, constrói, pela

sua natureza autorial, outros discursos, portanto, outros enunciados. Dentre

tantas enunciações possíveis de serem realizadas pelo enunciador, no fazer

literário, existe a enunciação do autor, do co-autor e a da personagem.

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Na perspectiva de Fiorin (2002, p. 32-33), o enunciador deve possuir

competências enunciativas de várias ordens: lingüística, discursiva, textual,

interdiscursiva, pragmática e situacional.

João Simões Lopes Neto, nos Contos Gauchescos, utiliza-se de sua

competência lingüística, pelo fato de ser um bom conhecedor da gramática e do

léxico regional. O enunciatário, neste momento o seu leitor, aceita o enunciado

mais facilmente se houver, entre ambos, ou seja, enunciador e enunciatário, uma

intersecção de conhecimentos, conforme vemos no fragmento do conto Juca

Guerra (Neto, 2000, p. 159), no momento em que Blau Nunes está narrando que

Juca Guerra, juntamente com seu cavalo, tenta salvar o amigo Tandão, de um

touro enfurecido.

(...)A campeirada olhava, parada, vendo a desgraça vir...Mas nisto, justo, justo, quando o touro, balanceando no ar, pareceu

dar o pulo da carga, Juca Guerra esteve-lhe em cima! Em cima!Foi como o trovão e logo o raio... pois como um raio o gaúcho

carregou e atirou a montaria contra o touro!Oigalê! pecha’a a macota!O tostado arrebentou as duas paletas na encontrada e caiu,

sacudindo a cola, os olhos chispeando, de beiço enrugado e subido, dedor... Caiu, mas o touro, também.

Nesse fragmento, as palavras “estranhas” a alguns leitores não impedem

que o texto seja lido e compreendido, pois o que fica evidente é que Juca Guerra

investiu contra o touro, no final, os dois caíram, o touro e o cavalo. A vivacidade

da narrativa pode perder originalidade quando o leitor ou enunciatário não tem

um bom grau intersecção7 de conhecimentos com o enunciador, pois o autor, não

diz aquelas pessoas, mas campeirada, usa uma interjeição muito própria do sul,

onde “pecha’ a macota” quer dizer que aconteceu uma “pechada”, uma batida,

uma colisão e, depois quando o enunciador conta o estado como ficou o touro,

7 Fiorin explica que o ponto de intersecção é o ponto em comum, de entendimento, entre osenunciatários e, quanto mais pontos em comum, maior o entendimento.

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utiliza-se de um léxico muito próprio, como “tostado”, que é um tipo de cavalo

dentre tantos (ginete, tordilho, zaino...).

Quando enuncia, João Simões Lopes Neto lança mão de sua

competência discursiva, pois o autor é o enunciador que quiser ser, em

determinado espaço e tempo, (Fiorin, 2002) conforme apontam os fragmentos:

no primeiro, o enunciador apresenta o narrador Blau Nunes; no segundo, a voz

de João Simões Lopes Neto é emitida por Blau Nunes. Há discursos distintos, de

enunciadores aparentemente distintos, mas que se agrupam em uma só pessoa:

o autor.

No primeiro fragmento, no texto Apresentação, Neto (2000, p. 19), já na

primeira linha, diz: Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano. Após isso, o autor

insere uma longa digressão, que diz respeito aos lugares do Estado, pelos quais

ele havia andado e retoma, finalmente, a apresentação (id, p. 20-21):

(...) Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), eraBlau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e natemeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de umamemória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadoraloquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.

E, do trotar sobre tantíssimos rumos: das pousadas pelas estancias;dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoadosque atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lhevedadas ao singelo entendimento; do pêlo-a-pêlo com os homens, daserosões da morte e das eclosões da vida, entre Blau – moço militar – e oBlau – velho, paisano – ficou estendida uma longa estrada semeada derecordações – casos, dizia – que de vez em quando o vaqueano recontava,como quem se estende ao sol, para arejar roupas guardadas no fundo deuma arca.

Querido digno velho!Saudoso Blau!Patrício, escuta-o.

Esse fragmento, anterior à enunciação, acontece quando o autor lembra

do amigo Blau Nunes, e tais lembranças tornam-se evidentes com a utilização de

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verbos no pretérito como Blau... se aqueceu..., em que cantou..., dentre tantos

outros.

No enunciado a seguir, temos não mais a voz do enunciador João

Simões Lopes Neto, mas a voz de Blau Nunes, um co-enunciador do autor, o

qual aparece no conto Trezentas Onças (id, p. 23), já no primeiro parágrafo:

Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, coma guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim parar aqui neste mesmopasso, por em ficar mais perto da estância da Coronilha8, onde deviapousar...

Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado9 datroteada.

Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato,que está nos vendo, na beira do passo desencilhei e, estendido nospelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz umasesteada morruda. (...)

Blau conversa com o leitor, seu enunciatário, e a narrativa apresenta-se

em primeira pessoa, ora, deixa o leitor na expectativa dos acontecimentos, por

meio da utilização do verbo no tempo imperfeito “tropeava”, “viajava”, ora

interrompe, utilizando o pretérito perfeito, concluso “vim”, e volta de repente ao

imperfeito deixando novamente o leitor em situação de expectativa “devia

pousar”, também marcada pelo uso da pontuação reticente. O fato é que Blau é

uma personagem fictícia, criada pelo enunciador João Simões Lopes Neto, então

quem enuncia, na verdade, é o próprio Neto, representando a pessoa por ele

criada: Blau Nunes.

Ao fazer uso da lineariedade na modalidade da língua falada, João

Simões Lopes Neto utiliza sua competência textual, intertextual e interdiscursiva.

8 Coronilha, s. Árvore cuja madeira é muito resistente – em sentido figurado, indivíduo muitoforte, guapo, disposto, resistente, avarento. Cf. Nunes & Nunes. 2003, p. 129.9 Abombado, adj. Cansado, ofegante por efeito de trabalho ou de calor. (id, p.15)

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A competência intertextual, para Fiorim (2002, p. 33), se refere às

relações contratuais ou polêmicas que um texto mantém com outros ou mesmo

com uma maneira de textualizar, como ocorre, por exemplo, na estilização. Desta

forma, João Simões Lopes Neto, ao contar fatos, mantém a forma ficcional, mas,

subjacente a tal ficção, estão os fatores históricos do combate Farroupilha, nos

diferentes contos.

O conto O chasque do Imperador, (Neto, 2000, p. 81) admite os

seguintes intertextos: o cerco de Uruguaiana, devido à Guerra do Paraguai, a

presença da figura de D. Pedro II, que foi ao Rio Grande do Sul e pousou junto a

seu General, Duque de Caxias, conforme:

Quando foi o cerco de Uruguaiana pelos paraguaios em 65 e oimperador Pedro 2º veio cá, com toda a frota de sua comitiva, andei muitopor esses meios, como vaqueano, como chasque, como confiança dele;era eu que encilhava-lhe o cavalo, que dormia atravessado na porta doquarto dele, que carregava os papéis e as armas dele.

Começou assim: fui escalado para o esquadrão que devia escoltaraquele estadão todo.

Quando a força apresentou-se ao seu general Caxias, o velho olhou...olhou... e não disse nada. (...)

Em Duelo de Farrapos, Blau conta uma batalha de revolução farroupilha

e utiliza-se deste intertexto, bem como o da figura do general Farrapo, Bento

Gonçalves da Silva, ao enunciar: Já um ror de vezes tenho dito – e provo – que

fui ordenança do meu general Bento Gonçalves. (id, p. 141); outro intertexto de

guerra, o conto Os cabelos da china, (id, p. 33) diz respeito aos dois rivais das

inúmeras batalhas que ocorrem na revolução, durante dez anos; o enfrentamento

constante entre pica-paus e farrapos é evidente no episódio, em que o general

farrapo manda Blau e Juca Picumã buscarem a sua china, que havia fugido com

um general pica-pau:

- Olha, furriel Blau, tu e o velho Picumã vão jogar o pelego numaarriscada... Ele que te escolheu pra companheiro é porque sabe que éshomem...

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Há dois dias, como sabes, andamos nestes matos... mas não é tantopelo serviço militar, é mais por um vareio que quero dar... por minhaconta... Ouve. A minha china fugiu-me, seduzida pelo comandante destaforça... Vocês vão se apresentar a ele, como desertados e que se querempassar... Ele é um espalha-brasas; ela é dançadeira... arranja jeito de rufarnuma viola e abre o peito numas cantigas... Tendo farra estão eles comoquerem... E enquanto estiverem descuidados, eu caio-lhes em cima com anossa gente. Agora ... quando fechar o entrevero só quero que tu te botesao comandante... e que lhe passes os maneadores... quero-o armado...entendes? És capaz?... O Picumã ajuda... O resto... depois...

A competência interdiscursiva, presente neste fragmento, diz respeito à

heterogeneidade discursiva, visto que agora o enunciador é a personagem do

general Bento Gonçalves, e não o autor João Simões Lopes Neto ou o narrador

dos contos, Blau Nunes. Neste texto há um número grande de enunciadores: o

general Bento, baseado na personagem real do General Bento Gonçalves da

Silva, chefe dos maragatos, Blau, Juca Picumã, Rosa, os dois sentinelas, entre

outros de menor relevância.

O autor faz, a todo momento na obra, o reconhecimento do povo gaúcho

de forma positiva, pois deixa transparecer a idéia de que os gaúchos sempre

zelaram pela segurança do continente, devido a inúmeras batalhas, pelas quais

passaram e, principalmente, pela honra que sempre demonstraram ter na sua

obra. Com isso, o enunciador utiliza-se de sua competência pragmática, ao

relatar as batalhas, exaltando o caráter do povo sul-rio-grandense.

Novamente, no conto Trezentas onças (Neto, 2000, p.28-29), bem no

final, depois de Blau Nunes voltar à estância de seu patrão para lhe dizer que

perdera as onças de ouro, cujo destino seria o pagamento do gado comprado,

ele percebe que seus patrícios encontraram a guaiaca10 e trouxeram-na de volta,

enaltecendo assim, a dignidade do povo gaúcho, quando Blau Nunes diz que a

sua gente é boa, justa e confiável:

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E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minhaculpa, tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna, para mim. Não sabiacomo explicar o sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar das cousas.Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso – tirando umasleiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores – vender atropilha dos colorados... e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e casomermasse a conta... enfim, havia de se ver o jeito a dar... Porém matar-seum homem, assim, no mais... e chefe de família... isso, não!

(...)Ao dobrar a esquina do cercado, enxerguei luz na casa; a cachorrada

saiu logo, acoando. O zaino relinchou alegremente, sentindo oscompanheiros; do potreiro, outros relinchos vieram.

Então fui para dentro: na porta dei o Louvado seja Jesus-Cristo; boanoite! – e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia unsquantos paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria oamargo.

Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como umajararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com astrezentas onças dentro.

- Louvado seja Jesus-Cristo, patrício! Boa Noite! Entonces, que tal foide susto?...

E houve uma risada grande, de gente boa.Eu também fiquei-me rindo, olhando para a guaiaca e para o

guaipeva11, arrodilhadito aos meus pés.

O fragmento, em estudo, mostra que na sociedade gaúcha havia um

sentimento de zelo pelos conterrâneos, pois, ao chegar e ver o dinheiro, Blau

Nunes é surpreendido pelas brincadeiras de um dos patrícios, que lhe pergunta

como passou de susto, e mais do que isso, encontra todos os homens da

comitiva de seu patrão esperando-o para lhe darem a boa notícia. A

solidariedade, o respeito e a honra são demonstradas pelo autor e relevantes ao

enunciado e ao uso da competência pragmática, presentes no enunciador. Com

isso, o enunciador regionalista cumpre com seu objetivo maior no evento

comunicativo, qual seja, enunciar os feitos e os modelos sociais de uma

sociedade real, de maneira fictícia.

10 Guaiaca, s. Cinto largo de couro macio, às vezes de couro de lontra ou de camurça,ordinariamente enfeitado com bordados ou com moedas de prata ou ouro, que serve para oporte de armas e para guardar dinheiro e pequenos objetos. (id, p. 235)11 Guaipeva. S. o mesmo que gauipeca, s. cão pequeno, cusco, cachorrinho de pernas tortas,cãozinho ordinário, vira-lata, sem raça definida. (id, p. 235)

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A satisfação está no esforço enão apenas na realização final.

(Gandhi)

___CAPÍTULOIII – As marcas de oralidade nos ContosGauchescos_________________________________________ ______________

Neste trabalho, como já foi dito na introdução, o corpus é constiuído por

três contos, selecionados da obra Contos Gauchescos, de João Simões Lopes

Neto.

Partindo dos pressupostos teóricos apresentados no capítulo I, serão

analisados, em cada um dos três contos, o tópico discursivo e as digressões,

quando presentes, os turnos conversacionais, os marcadores conversacionais e

os pares adjacentes.

3.1 Texto 1: O mate do João Cardoso

Neste conto, serão examinados apenas os trechos em que há dois

interlocutores claramente expressos: João Cardoso e o escravo; João Cardoso e

o visitante.

O texto é o resultado de um trabalho cooperativo, conforme ressalta

Rodrigues, (2001, p. 20) e inicia-se com a voz do locutor Blau Nunes reclamando,

a um suposto interlocutor que, nesse momento, pode ser o próprio leitor, a

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demora de uma fritada de ovos. Essa reclamação apresenta-se, a partir do

primeiro parágrafo do texto, (ls 1-6):

1 A la fresca!... que demorou tal fritada! Vancê reparou?Quando nos apeamos era o pino do meio-dia... e são três horas

largas!... Cá pra mim esta gente esperou que as franguinhas se pusessemgalinhas e depois botassem, para apanhar os ovos e só

5 então bater esta fritada encantada, que vai nos atrasar a troteada, obra deduas léguas... de beiço!...

No entanto, deixaremos de lado as falas de Blau Nunes, enquanto

narrador, e estudaremos apenas os diálogos.

3.1.1 O tópico discursivo

Para estudar o tópico discursivo, é imprescindível delimitar os diálogos

do conto, que vão da linha 19 à linha 58 do texto, conforme o fragmento:

- Olá! amigo! apeie-se, descanse um pouco! Venha tomar um amargo!20 É um instantinho... Crioulo?!...

O andante, agradecido à sorte, aceitava... menos algum ressabiado, já sevê.

- Então, que há de novo? (E para dentro de casa, com sua voz de trovão,ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

25 E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava asque sabia; ria-se, metia opiniões , aprovava umas cousas, ficava buzina comoutras...

E o tempo ia passando. O andante olhava para o cavalo, que já tinha serefrescado; olhava para o sol, que subia ou descambava... e mexia o

30 corpo para levantar-se. - Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...

- Espera, homem! É um instantinho! Oh! crioulo , olha esse mate!E retomava a chalra. Nisto o crioulo já calejado e sabido , chegava-se-lhe

manhoso e cochichava-lhe no ouvido:35 - Sr., não tem mais erva!...

- Traz dessa mesma! Não demores, crioulo!E o tempo ia correndo como água em sanga cheia. Outra vez o

andante se aprumava:- Seu João Cardoso, vou me tocando... Passe bem!

40 - Espera homem de Deus! É enquanto a galinha lambe a orelha!... Oh!

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crioulo!... olha esse mate, diabo!E outra vez o negro, no ouvido dele:- Mas, sr.!... não tem mais erva!- Traz dessa mesma, bandalho!

45 E o carvão sumia-se largando sobre o paisano uma riscada do brancodos olhos, como escarnicando... Por fim o andante não agüentava mais e paravapatrulha:

- Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista!- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

50 - Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!- Pois sim... porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo

neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!Porém o outro já dava de rédeas, resolvido a retirada.E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e

55 ainda teimava:- Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está

sempre pronto! Boa viagem! Se quer esperar... olhe que é um instantinho... Oh!crioulo!...

ST, “O mate do João Cardoso”, é o assunto mais abrangente sobre

o que se fala no conto; T 1 consiste no fato de João Cardoso querer saber das

“novas notícias trazidas pelo viajante”, linhas 19 à 24, desenvolvido apenas por

João Cardoso, pois não está presente, nesta parte do texto, a fala do viajante.

- Olá! amigo! apeie-se, descanse um pouco! Venha tomar um amargo!20 É um instantinho... Crioulo?!...

O andante, agradecido à sorte, aceitava... menos algum ressabiado, já sevê.

- Então, que há de novo? (E para dentro de casa, com sua voz de trovão,ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

Ao perceber que o mate não vinha e que o velho João Cardoso

falava demais, o visitante tenta ir embora pela primeira vez, o que caracteriza T 2

“a tentativa de ir embora”; tal tentativa é “cortada” por João Cardoso, que grita

com o escravo, pedindo que traga o chimarrão.

Ao gritar, João Cardoso dá origem a uma digressão D, “o pedido pela

preparação do mate”. Essa digressão é baseada no enunciado porque está

topicamente ligada ao fato de João Cardoso ter convidado o viajante para

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descansar e oferecer-lhe o mate. É João Cardoso quem introduz a digressão,

mas o escravo a desenvolve; por fim, João a retoma e fecha-a; a reinserção do

tópico é feita pelo visitante, que repete querer ir embora (l. 39).

Relembrando o esquema de Andrade (2001, p.74) temos, para delimitar

D:

1ª etapa : retirada de um tópico (T 2) - Bueno! são horas, seu JoãoCardoso; vou marchando!... (l.31 – originado pelo visitante)

2ª etapa : introdução de um tópico (D) - Espera, homem! É uminstantinho! Oh! crioulo , olha esse mate! (l.32 – iniciado por JoãoCardoso)

3ª etapa : retirada do tópico (D) - Sr., não tem mais erva!... (l.35 –fechada pelo escravo)

4ª etapa : reintrodução do tópico (T 2) - Seu João Cardoso, vou metocando... Passe bem! (l.39 – inserido pelo viajante)

Esta estrutura da reinserção do tópico T 2 não é imediatamente

desenvolvida no texto, pois cada vez que o visitante tenta ir embora, João repete

a mesma digressão, o que não permite que T 2 seja desenvolvido, isto acontece

entre as linhas 31 e 39, conforme explicamos e, mais duas vezes até o final do

texto, entre as linhas 39 e 47 e entre as linhas 48 e 51.

T 2 é retomado mais duas vezes, assim como acontece com a

digressão já referida, o que torna o conto circular. No fragmento do texto, que

compreende o diálogo entre João e o viajante, temos:

(T 2)- Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...(D)- Espera, homem! É um instantinho! Oh! crioulo , olha esse mate!E retomava a chalra. Nisto o crioulo já calejado e sabido , chegava-se-lhe

manhoso e cochichava-lhe no ouvido:35 - Sr., não tem mais erva!...

- Traz dessa mesma! Não demores, crioulo!E o tempo ia correndo como água em sanga cheia. Outra vez o

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andante se aprumava:(T 2)

- Seu João Cardoso, vou me tocando... Passe bem!(D)

40 - Espera homem de Deus! É enquanto a galinha lambe a orelha!... Oh!crioulo!... olha esse mate, diabo!

E outra vez o negro, no ouvido dele:- Mas, sr.!... não tem mais erva!- Traz dessa mesma, bandalho!

45 E o carvão sumia-se largando sobre o paisano uma riscada do brancodos olhos, como escarnicando... Por fim o andante não agüentava mais e paravapatrulha:

(T 2)- Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista! (D)- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

50 - Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!(T 2)- Pois sim... porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo

neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!Porém o outro já dava de rédeas, resolvido a retirada.E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e

55 ainda teimava:- Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está

sempre pronto! Boa viagem! Se quer esperar... olhe que é um instantinho... Oh!crioulo!...

Na linha 51 do texto há o único momento em que T 2 é desenvolvido,

pois ao retomar a palavra, João Cardoso entende que o visitante quer seguir

viagem e se desculpa novamente, pelo mate que não veio, desejando-lhe boa

viagem. Esse desenvolvimento de T 2 segue da linha 51 à 57, em que, como

última tetativa, o anfitrião pede para o escravo, mais uma vez, o mate.

- Pois sim... porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargoneste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!

Porém o outro já dava de rédeas, resolvido a retirada.E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e

55 ainda teimava:- Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está

sempre pronto! Boa viagem! Se quer esperar...

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Diante destes levantamentos, e com base nos estudos de Fávero,

(2002), relacionados ao tópico discursivo, mostrado no capítulo I desta

dissertação, preenchemos quadro tópico.

Figura 5: Quadro tópico – O mate do João Cardoso

Explicado por:

ST – Supertópico – “o mate do João Cardoso”, título do texto, ou seja, o

assunto mais abrangente tratado no conto.

T 1 – “o pedido de novas notícias” por parte de João Cardoso ao

viajante.

T 2 – “a tentativa do viajante em ir embora”, tópico que é “cortado” pela

digressão D, momento em que João pede ao escravo, o mate que não vem.

D – “o pedido pela preparação do mate”, instaurada por João e finalizado

pelo escravo, repetida nos diálogos do texto.

Todavia, uma questão carece de observação. Durante o desenrolar do

diálogo, como já foi dito, João Cardoso grita, seguidas vezes, o nome do escravo

pedindo o mate, e este responde, ao seu ouvido, que a erva acabou; João,

ignorando-o retruca que traga dessa mesma.

ST – O mate do João Cardoso

T 1 T 2 T 1

DD D

T 1

D

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Nesse ponto, há uma seqüência repetitiva, que, de certa forma, desvia-

se do que está sendo falado, (em T 1 e T2), entre João Cardoso e o visitante.

Compondo um diagrama, a título de esclarecer e complementar o quadro tópico,

para melhor visualizar a estrutura digressiva, que se repete em D, temos:

Figura 6: Estrutura Digressiva

3.1.2 Os turnos conversacionais

Os turnos conversacionais constituem-se pela a alternância da

conversação que, especificamente neste estudo, estão presentes, possivelmente

em um número menor, do que existiriam em um diálogo espontâneo, visto que a

passagem de um turno para outro aconteceria de forma mais significativa, nos

diálogos face a face, o que não se aplica à literatura, textos em que os diálogos

são construídos.

O conto apresenta assimetria nas falas que o constituem. Há um número

muito maior de falas proferidas por João Cardoso, do que as proferidas pelo

viajante, que se manifesta apenas três vezes para dizer a mesma coisa, que vai

embora; e pelo escravo, que diz apenas uma frase: não tem erva, e, conforme o

seguinte trecho, e retomando os estudos de Fávero, Andrade & Aquino (1999, p.

34-35), no item “c”: ocorrências com mais de um falante por vez são comuns,

mas breves;

João Cardoso O escravo diz João Cardoso grita para o que não tem pede que traga escravo pedindo erva dessa mesma o mate.

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- Olá! amigo! apeie-se, descanse um pouco! Venha tomar um amargo!20 É um instantinho... Crioulo?!...

O andante, agradecido à sorte, aceitava... menos algum ressabiado, já sevê.

- Então, que há de novo? (E para dentro de casa, com sua voz de trovão,ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

25 E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava asque sabia; ria-se, metia opiniões , aprovava umas cousas, ficava buzina comoutras...

E o tempo ia passando. O andante olhava para o cavalo, que já tinha serefrescado; olhava para o sol, que subia ou descambava... e mexia o

30 corpo para levantar-se. - Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...

- Espera, homem! É um instantinho! Oh! crioulo , olha esse mate!E retomava a chalra. Nisto o crioulo já calejado e sabido , chegava-se-lhe

manhoso e cochichava-lhe no ouvido:35 - Sr., não tem mais erva!...

- Traz dessa mesma! Não demores, crioulo!E o tempo ia correndo como água em sanga cheia. Outra vez o

andante se aprumava:- Seu João Cardoso, vou me tocando... Passe bem!

40 - Espera homem de Deus! É enquanto a galinha lambe a orelha!... Oh!crioulo!... olha esse mate, diabo!

E outra vez o negro, no ouvido dele:- Mas, sr.!... não tem mais erva!- Traz dessa mesma, bandalho!

45 E o carvão sumia-se largando sobre o paisano uma riscada do brancodos olhos, como escarnicando... Por fim o andante não agüentava mais e paravapatrulha:

- Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista!- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

50 - Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!- Pois sim... porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo

neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!Porém o outro já dava de rédeas, resolvido a retirada.E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e

55 ainda teimava:- Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está

sempre pronto! Boa viagem! Se quer esperar... olhe que é um instantinho... Oh!crioulo!...

O primeiro turno do texto é de João Cardoso e está instaurado pelo

cumprimento “olá”, que vai da linha 19 à 30, onde só ele, o anfitrião, fala:

(1)

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- Olá! amigo! apeie-se, descanse um pouco! Venha tomar um amargo!20 É um instantinho... Crioulo?!...

O andante, agradecido à sorte, aceitava... menos algum ressabiado, já sevê.

- Então, que há de novo? (E para dentro de casa, com sua voz de trovão,ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

25 E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava asque sabia; ria-se, metia opiniões , aprovava umas cousas, ficava buzina comoutras...

E o tempo ia passando. O andante olhava para o cavalo, que já tinha serefrescado; olhava para o sol, que subia ou descambava... e mexia o

30 corpo para levantar-se.

Adiante, na fala do viajante (l. 31) ocorre um assalto de seu turno, por

parte de João Cardoso (l. 32), da mesma maneira que acontece nas suas outras

tentativas de ir embora, (linhas 40-41 e depois, nas linhas 48-49), pois o andante

se despede, utilizando a expressão “passe bem”, e “até a vista!”, finalizando o

seu turno.

(2)

1ª. Tentativa do viajante em ir embora, quando seu turno é assaltado (ls.

31-32):

- Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...- Espera, homem! É um instantinho! Oh! crioulo , olha esse mate!

(3)

2ª. Tentativa do viajante em ir embora, primeira vez que seu turno é

finalizado (ls. 39-41):

- Seu João Cardoso, vou me tocando... Passe bem!40 - Espera homem de Deus! É enquanto a galinha lambe a orelha!... Oh!

crioulo!... olha esse mate, diabo!

(4)

3ª. Tentativa do viajante em ir embora, Segunda vez que o viajante

finaliza seu turno (ls. 48-49):

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- Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista!- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

Uma mudança de turno é instaurada no momento da digressão D,

quando o falante inicial é João Cardoso e o escravo é o ouvinte. No momento em

que João finaliza seu turno, o crioulo se pronuncia, ao dizer que não há mais

erva, e então, a fala de João, que diz: -Traz desta mesmo.

Na última fala com o viajante, momento em que esse dispensa

definitivamente o mate (l. 50), há o desejo, por parte de João Cardoso em reparar

a falta do chimarrão, justificando a insistência de João Cardoso para que o

visitante ali permaneça (l. 56-58):

- Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista!- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

50 - Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!- Pois sim... porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo

neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!Porém o outro já dava de rédeas, resolvido a retirada.E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e

55 ainda teimava:- Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está

sempre pronto! Boa viagem! Se quer esperar... olhe que é um instantinho... Oh!crioulo!...

Alguns dos turnos destacados apontam um diálogo entre as três

personagens do conto, mas não podemos dizer que as falas constituem um

trílogo, conforme estudou Fávero, (2002), visto não haver uma dinâmica entre os

três falantes e sim uma dinâmica entre o primeiro par – João e o visitante – e o

segundo par – João e o escravo.

3.1.3 Os marcadores conversacionais

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No conto, há marcadores conversacionais que mostram o léxico

regional, produzindo os mesmos efeitos dos marcadores estudados por

Marcuschi. (1991)

A primeira fala de João Cardoso consiste no estabelecimento do diálogo,

é marcada, como já dissemos, pelo cumprimento “olá!”, na linha 19, e

caracteriza-se por ser um marcador verbal de convergência, como “pois não” e

ainda, por ser uma marcador que inicia a unidade comunicativa, equivalendo ao

marcador verbal “então”, citado por Marcuschi. (1991, p.68)

(5)

- Olá! amigo! apeie-se, descanse um pouco! Venha tomar um amargo!20 É um instantinho... Crioulo?!...

No trecho (6), a seguir, percebendo que o viajante não lhe responde de

forma eficaz, João Cardoso insere, na conversa com o viajante, o marcador

“então” (l.23), no intuito de reiniciar a unidade comunicativa.

(6)

Então , que há de novo? (E para dentro de casa, com sua voz de trovão,

ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

O visitante, percebendo que a espera pelo mate estava demorada, inicia

seu turno utilizando um marcador pré-posicionado, na linha 31, fazendo uso do

marcador “Bueno”, equivalente a “bom”, ou “bem”, iniciando o seu turno

conversacional. Esse marcador pode ser caracterizado por ser divergente das

idéias de seu interlocutor e, desta forma, tal marcador, verbal simples, introduz

T2, a tentativa da despedida:

(7)

- Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...(fala do viajante, l.31)

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Outros marcadores pré-posicionadas são encontrados nas falas tanto de

João Cardoso como nas do viajante:

(8)- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!(fala de João Cardoso, l.47)

(9)- Pois sim ... porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo

neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!(fala de João Cardoso, l.51)

Há ainda marcadores de início do turno, indicando a divergência do

escravo, linha 43:

(10)

- Mas, sr.!... não tem mais erva!(fala do escravo, l.43)

Os marcadores, divergentes por parte do visitante, ocorrem mais

algumas vezes, porém, agora existe um marcador no final do turno do viajante,

equivalente a “certo”, ou “entendeu”.

(11)

- Seu João Cardoso, vou me tocando... Passe bem !

Há sinais que são produzidos tanto pelo falante quanto pelo ouvinte, que

se alternam entre João Cardoso, o visitante e o escravo, de forma explícita.

3.1.4 Pares adjacentes

Os pares adjacentes são seqüências coordenadas, cooperativas que

seguem um padrão quanto à sua estruturação. A primeira estrutura de pares

adjacentes no conto é:

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1. Pergunta/resposta – Este par não acontece como um todo, pois há a

pergunta de João para o visitante, mas não há a sua resposta explícita, pois

quem responde é o narrador, indicando que a conversa acontecia, no entanto

não há, aqui, o discurso direto, mas há a justificativa para o par

pergunta/resposta, conforme (ls23-27):

(12)

- Então, que há de novo? (E para dentro de casa, com sua voz de trovão,ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

25 E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava asque sabia; ria-se, metia opiniões , aprovava umas cousas, ficava buzina comoutras...

2. Ordem/execução – Este par existe no fragmento, em que João

Cardoso chama o escravo e lhe ordena que traga o mate, embora saiba que falta

erva; o escravo volta para o interior da casa, como se fosse encontrá-la:

(13)

- Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...- Espera, homem! É um instantinho! Oh! crioulo , olha esse mate! (ordem)E retomava a chalra. Nisto o crioulo já calejado e sabido , chegava-se-lhe

manhoso e cochichava-lhe no ouvido:35 - Sr., não tem mais erva !... (execução)

- Traz dessa mesma! Não demores, crioulo! (nova ordem)

No fragmento (19), existe a ordem, pelo pedido do mate, por parte de

João Cardoso e a execução, por parte do escravo; está implícito que o escravo

vai à procura da erva e não a encontra. Ao tentar executar a ordem do patrão e

não conseguir, João Cardoso retoma a ordem que, por sua vez, nunca é

executada.

3. Convite/aceitação/recusa – Neste par, o convite inicial é de João

Cardoso para que o visitante fique, seguido de uma aceitação inicial, verificada

pela expressão o andante aceitava. A seguir, o convite do mesmo João Cardoso

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é seguido da recusa do viajante, quando este diz: Não! Não mande vir, obrigado!

Pra volta:

(14) Convite/aceitação:

- Olá! amigo! apeie-se, descanse um pouco! Venha tomar um amargo ! Éum instantinho... Crioulo?!...

O andante, agradecido à sorte, aceitava ... menos algum ressabiado, já sevê.

(15) Convite/recusa:

- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!50 - Não! não mande vir , obrigado! Pra volta!

Os tópicos discursivos, turnos conversacionais, pares adjacentes e

marcadores conversacionais, presentes no conto O mate do João Cardoso,

representam as quatro propriedades constitutivas da fala, presentes na escrita. A

análise comprovou o entendimento de que fala e escrita caminham de mãos

dadas, podendo interagir entre si.

3.2 Texto 2 : Deve um queijo!...

Esse texto aponta a insatisfação dos gaúchos, retratados na obra de

Simões Lopes Neto, sempre como homens de bem, ao contrário dos

castelhanos, argentinos ou uruguaios, retratados de forma pejorativa, pelo fato

de, durante o período de fundação e fixação do território gaúcho, serem os

responsáveis por inúmeras invasões e atrocidades.

Ocorre que um castelhano, caracterizado como sujo e fanfarrão, recebe

o velho Lessa, em uma venda de campanha, exigindo-lhe o pagamento de um

queijo. O velho, calmamente e com poucas palavras, pede o queijo, corta-o em

pedaços e oferece a todos os outros homens que estão na venda. Nenhum dos

freqüentadores aceita a oferta, somente o castelhano, que come até se fartar e,

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depois de satisfeito, é obrigado a comer o resto, ameaçado, pelo velho Lessa,

munido de seu facão. O texto é finalizado, quando o castelhano já não

agüentando mais, de tanto comer, decide fugir.

Nas notas de rodapé, escritas pelo professor Aldyr Garcia Schlee à obra

Contos Gauchescos (2000), encontramos que a figura do velho Lessa foi

inspirada em Catão Bonifácio, considerado um homem muito justo, tolerante e de

poucas palavras, pai de João Simões Lopes Neto.

3.2.1 O tópico discursivo

Blau Nunes começa a narrativa, lembrando do velho Lessa, personagem

que ancora o texto. Como supertópico, ST, deste conto, temos “o queijo”; o

assunto de T 1 é “cobrança do queijo”, pelo castelhano, ao velho Lessa, que vai

da linha 33 à linha 42.

- Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então, vem de Canguçu, ou vai?...Antes que o cumprimentado falasse, o castelhano intrometeu-se:- ¡ Ah! ¿es usted de Canguçu?... Entonces... ¡debe um queso!...

35 O paisano abriu um ligeiro claro de riso e com toda a pachorra aindarespondeu:

- Ora, amigo... os queijos andam vasqueiros...- Si, pa nosotros... ¡pero Canguçu pagará queso, hoy!...O vendeiro farejou catinga agourenta, no ar, e quis ladear o

40 importuno; o velho Lessa coçou a barbinha do queixo, coçou o cocuruto,relanceou os olhinhos pelos assistentes, e mui de manso pediu ao empregado dobalcão...

A introdução de T 2, “o pagamento do queijo pedido”, acontece quando o

velho Lessa, para se livrar do castelhano, paga-lhe o queijo, da linha 43 à 59.

- ’Stá bem!... Che dê-me aquele queijo!...

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E apontou para um rodado de palmo e meio de corda, que estava na 45prateleira, ali à mão.

O gadelhudo refestelou-se sobre um surrão de erva, chupou os dentes eainda enticou:

- ¡Oigalé!... ¡bailemos, que queso hay!55 -Chê!... pronto! Sirva-se...

O terceiro tópico discursivo, T 3, consiste no “brinde do castelhano, pela

vitória pelo recebimento do queijo”, quando este diz, na linha 58, que o queijo

está pago.

O castelhano levantou-se, endireitou as armas e chegando-se para o

prato, repetiu o invite, a provocação:

- ¿Entonce?... !está pago, paisanos!...E às talhadas começou a comer.

Quando o castelhano se sente satisfeito e pára de mastigar, está

instaurado T 4, “a obrigatoriedade para que o castelhano coma o queijo”, pois, o

velho Lessa, vai obrigá-lo comer todo o queijo que pediu. (ls, 68-90)

Aí pelas seis talhadas o clinudo parou de mastigar.- Bueno... ¡buenazo!... ¡pero no puedo más!...

70 Mas o velho, com o facão espetou uma fatia e of’receu-lhe:- Esta, por mim!- Si, justo: por usted ¡vaya!...E às cansadas remoeu o pedaço.E mal que engoliu o último bocado, já o velho apresentava-lhe outra

75 fatia, na ponta do ferro:- Outra, à saúde de Canguçu!...- Pero...- Não tem pero nem pêra... Come...- Pe...

80 - Come, clinudo!...E no mesmo soflagrante, de plancha, duro e chato, o velho Lessa derrubou-

lhe o facão entre as orelhas, pelas costelas, pelas paletas, pela barriga, , pelasventas... seguido, e miúdo, como quem empapa d’água um couro lanudo. E comesta sumanta levou-o sobre o mesmo surrão de erva,

85 pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do queijo e gritou-lhe nos ouvidos: - Come!...

E o roncador comeu... comeu até os farelos... mas, de repente,empanzinado, de boca aberta, olhos arregalados, meio sufocado, todo sevomitando, pulou porta fora, se foi a um matungo e disparou para a barranca

90 do passo... e foi-se a la cria!...

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O reclamador da panela desbeiçada deu uma risada e chacoteou, para orastro:

- ‘Orre, maula!... quebraram-te o corincho!...

O quadro tópico deste conto é construído da seguinte maneira:

Figura 7: Quadro tópico – Deve um queijo

Onde:

ST – “queijo”

T 1 – “a cobrança do queijo”, pelo castelhano.

T 2 – “o pagamento do queijo”, por Lessa.

T 3 – “o brinde do castelhano”, pelo recebimento do queijo.

T 4 – “a obrigatoriedade do velho Lessa”, para que o castelhano coma

todo o queijo que pediu.

Os tópicos do conto são considerados elementos essenciais na

produção da fala, segundo os estudos de Galembeck (2005, p. 278), pois

trabalham com a objetividade dos assuntos, permitindo que as idéias do autor

façam sentido para o leitor.

3.2.2 Turnos conversacionais

O primeiro turno é instaurado pelo dono da venda e se faz perceptível

pelo uso do nome do interlocutor e pelo questionamento dirigido a ele, Nico

(Lessa), na linha 31, mas é assaltado pelo Castelhano, na linha 33 conforme em:

S T – Queijo

T 1 T 2 T 3T 4

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(1)

- Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então, vem de Canguçu, ou vai?... Antes que o cumprimentado falasse, o castelhano intrometeu-se:

- ¡ Ah! ¿es usted de Canguçu?... Entonces... ¡debe um queso!...

A intromissão do castelhano é explícita, pois não foi chamado à

conversa, mas mesmo assim se faz presente.

Em seguida temos a tomada de turno de Lessa, tentando explicar ao

castelhano que os queijos estavam escassos (l.37) e consiste em outro assalto

ao seu turno, no qual o castelhano toma novamente a palavra e exige ao

paissano o alimento (l.38).

(2)

35 O paisano abriu um ligeiro claro de riso e com toda a pachorra aindarespondeu:- Ora, amigo... os queijos andam vasqueiros...- Si, pa nosotros... ¡pero Canguçu pagará queso, hoy!...

Lessa entende a provocação do castelhano e concorda em pagar-lhe um

queijo, o que é mostrado pela aceitação, na sua fala (ls 43-45):

(3)

- ’Stá bem!... Che dê-me aquele queijo!...E apontou para um rodado de palmo e meio de corda, que estava na 45

prateleira, ali à mão.

O castelhano, feliz pela conquista, toma novamente a sua vez de falar

(l.48):

(4)

- ¡Oigalé!... ¡bailemos, que queso hay!

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Então, Lessa recebe o queijo nas mãos e o oferece a todos (l.53) e em

seguida, após a recusa do queijo, pelas outras pessoas que estavam na venda,

Lessa diz ao castelhano que se sirva. (l.55)

(5)

-São servidos?Ninguém topou; agradeceram; então disse ele ao cobrador.

55 -Chê!... pronto! Sirva-se...

Quando o castelhano percebe que o velho Lessa é de paz e se dá por

vencido (l. 58) fala:

(6)

- ¿Entonce?... !está pago, paisanos!...

A partir deste momento, cada locutor espera a sua vez de falar e

desenvolve seu pensamento porque existe a colaboração de ambos, o que não

aconteceu nas primeiras falas do castelhano, que podem ser explicadas pela

euforia e macheza com que este chegou para cobrar o queijo, ao passo que,

quando Lessa lhe paga o que deseja, a conversa passa a ser simétrica.

No final do conto, quando o castelhano não agüenta mais comer o

queijo, há outro exemplo de assimetria constituída pela descontinuidade no fluxo

da fala (cf. Fávero, Andrade & Aquino, 1999), especificamente, de assalto ao

turno, por Lessa e, por duas vezes, evidenciado no diálogo do fragmento (7), no

qual o castelhano tenta pedir permissão ao velho para deixar de comer. O

diálogo assimétrico está definido pela seqüência (ls 78-80):

(7)

Aí pelas seis talhadas o clinudo parou de mastigar.- Bueno... ¡buenazo!... ¡pero no puedo más!...

70 Mas o velho, com o facão espetou uma fatia e of’receu-lhe:- Esta, por mim!- Si, justo: por usted ¡vaya!...

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E às cansadas remoeu o pedaço.E mal que engoliu o último bocado, já o velho apresentava-lhe outra

75 fatia, na ponta do ferro:- Outra, à saúde de Canguçu!...- Pero...- Não tem pero nem pêra... Come...- Pe...

80 - Come, clinudo!...

Na finalização da narrativa, existem mais algumas mudanças de turno: a

primeira, de Lessa, no fragmento 8 (l.86), obrigando o castelhano comer, a

segunda, do reclamador da panela achando ótimo que o castelhano tenha sido

desbancado, no fragmento 9 (l.93) e a última, novamente pelo velho Lessa, ao

indagar sobre o seu almoço, no fragmento 10 (l. 96):

(8)

- Come!...

(9)

- ‘Orre, maula!... quebraram-te o corincho!...

(10)

- Os ovos... a lingüiça... o café?..

A troca de falantes ocorre ou pelo menos recorre (Fávero, Andrade &

Aquino, 1999, p.35-36) nos turnos conversacionais, deste conto. Tais turnos

estão presentes tanto na simetria quanto na assimetria das falas exemplificadas,

embora estas, em número menor do que aquelas; contudo, há poucas

sobreposições de turnos, como na linha 79, pois ainda que o escritor desejasse,

seria muito difícil reproduzi-las, visto não existir, no texto escrito, uma interação

face a face de forma espontânea.

3.2.3 Os marcadores conversacionais

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O primeiro marcador conversacional aparece no conto, quando o dono

da venda instaura a atividade comunicativa pelo uso da expressão “então”, vem

de Canguçu ou vai?..., (l.31), na qual ele deixa uma abertura para que o Lessa

lhe responda, evidenciada no conto, pelo uso das reticências.

(11)

- Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então , vem de Canguçu, ou vai?...

A seguir temos o turno do velho Lessa assaltado pelo castelhano (l. 3),

pois o que esperávamos era a resposta da pergunta do vendeiro pelo Lessa e

não a fala do gadelhudo; no entanto, nesta fala, o locutor insere o marcador

“entonces” que indica o início da sua atividade comunicativa com o velho, que se

efetiva:

(12)

- ¡Ah! ¿Es usted de Canguçu?... Entonces ... ¡debe um queso!.. = então

Ao dar continuidade à atividade comunicativa, o velho Lessa (l.37) insere

um marcador que indica o início de seu turno:

(13)

- Ora, amigo ... os queijos andam vasqueiros... = veja

Logo a seguir, o castelhano demonstra um sinal de convergência com a

fala de Lessa, quando responde que os queijos só são escassos para os outros.

Ainda na mesma fala, o mesmo locutor também utiliza um marcador pós-

posicionado, quando diz “hoy”, equivalente a entendeu? (l.38)

(14)

- Si, pa nosotros... ¡pero Canguçu pagará queso, hoy!... Sinal de convergência = sim marca o fim da unidadecomunicativa

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O velho Lessa utiliza o marcador “’Stá bem”, (l.48) equivalente a “sim”,

orientando o castelhano, de forma convergente:

(15)

- ’Stá bem !... Che dê-me aquele queijo!...Sinal de convergência = sim

O castelhano fica feliz com a convergência de Lessa e usa a expressão

que exprime admiração (l.48), alegria pelo ato do velho e marca o início de seu

turno.

(16)

- ¡Oigalé!... !bailemos, que queso hay!Marcação de início do turno e convergência

A seguir, Lessa ordena ao castelhano que coma, usando a expressão

che, (l.55) que significa você, tu, mas que no texto, está colocada como “está

certo” ou “o queijo já chegou” e agora você pode comer.

(17)

-Chê!... pronto! Sirva-se...= está certo, marcando o início de outra unidade comunicativa, agora o

castelhano deixa de falar e passa a comer o queijo.

Finalmente, o castelhano se dirige aos seus comparsas, pois, no início

do conto, o leitor tem a informação de que são vários os sujeitos que o

acompanham (l.58):

(18)

- ¿Entonce?... ¡está pago, paisanos!...= então, que converge com o “chê” do velho Lessa, dito na fala anterior.

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Quando não consegue mais comer (l.69), o castelhano insere um

marcador que inicia o seu turno e também serve como um sinal para orientar o

ouvinte, no caso, Lessa, de que ele já está satisfeito com o queijo:

(19)- Bueno... ¡buenazo !... ¡pero no puedo más!...

= já está bom, chega então

Neste ponto do texto, o velho Lessa obriga o castelhano a comer o resto

do queijo, de forma a não o deixar sequer falar:

(20 - l.72)

- Esta , por mim!= a agora veja, vais comer por mim, marcação para mostrar o início da

atividade comunicativa que o Lessa insere.

(21 - l.73)

- Si, justo : por usted !vaya!...= a bom, por você(Lessa) sim. Esta expressão orienta o ouvinte(Lessa) pelo

uso do sinal de convergência.

(22 - l.76)

- Outra , à saúde de Canguçu!...=agora, veja, deves comer à saúde de Canguçu. Neste contexto o velho

Lessa continua a obrigar o outro a comer.

(23 - l.77)

- Pero...= um sinal de divergência, pois o castelhano não agüenta mais, mas seu

turno é assaltado conforme mostram as reticências.

(24 - l.78)

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- Não tem pero nem pêra... Come...Mais um sinal de divergência, por parte de Lessa.

(25 - l.79)

- Pe... Outra vez o castelhano tenta falar, divergindo das idéias do outro, mas nãoconsegue.

É importante observar que o conto possui marcadores conversacionais

verbais, iniciais e finais na atividade comunicativa, quer originados pelo falante

quer pelo ouvinte.

3.2.4 Pares adjacentes

1. pergunta/resposta – Neste par ocorre a pergunta sob forma de

discurso direto (l.53), porém, o narrador orienta o leitor para que perceba a

negação dos homens ali presentes (l.54), quanto à oferta do velho Lessa:

(26)

Com a mesma santa paciência o velho encomendou então o seu50 almoço – ovos, um pedaço de lingüiça, café – e depois pegou a partir o

queijo, primeiro ao meio, em duas metades e depois uma destas em fatias, comoumas oito ou dez; acabando, ofereceu a todos:

-São servidos? Ninguém topou; agradeceram; então disse ele ao cobrador

2. ordem/execução – Este par fica evidente quando o velho Lessa

obriga o castelhano a comer (ls 71-86):

(27) ordem de Lessa.

- Esta, por mim!

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(28) execução do castelhano

- Si, justo: por usted ¡vaya!...

(29) ordem de Lessa.

- Outra, à saúde de Canguçu!...

(30) tentativa de não execução do castelhano

- Pero...

(31) novas ordens de Lessa.

- Não tem pero nem pêra... Come...- Pe...

80 - Come, clinudo!...E no mesmo soflagrante, de plancha, duro e chato, o velho Lessa derrubou-

lhe o facão entre as orelhas, pelas costelas, pelas paletas, pela barriga, , pelasventas... seguido, e miúdo, como quem empapa d’água um couro lanudo. E comesta sumanta levou-o sobre o mesmo surrão de erva,

85 pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do queijo e gritou-lhe nos ouvidos: - Come!...

Ao contrário dos pares adjacentes trabalhados anteriormente, os pares

cumprimento/cumprimento, defesa/revide e desculpa/perdão não ocorrem.

Assim visto, as propriedades constitutivas da fala estão presentes no

desenrolar do texto e são relevantes ao conto, uma vez que ancoram o conteúdo

da obra, por meio da oralidade simulada entre personagens que habitaram o Rio

Grande do Sul do final do século XIX, as quais ganharam vida pela voz do autor.

3.3 Texto 3: Os cabelos da china

Este conto não apresenta um tom humorístico, mas dramático, por tratar

da história de um cabresto tecido com os cabelos de uma mulher. O narrador

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Blau Nunes é jovem e participa da história, portanto, trata-se de um texto escrito

em primeira pessoa, diferentemente dos contos O mate do João Cardoso e Deve

um queijo...

A personagem feminina é Rosa, uma linda moça, filha de Juca Picumã,

que deixa seu homem, um capitão farroupilha, para viver com um comandante

legalista. O capitão farrapo descobre-a no acampamento legalista e, ao vê-la, fica

nervoso e tenta matá-la, mas acaba morto pelo pai da moça, ficando preso aos

cabelos dela. Para libertá-la, o pai corta rente à cabeça, os cabelos da filha e

deles tece uma mordaça de montaria, que dá ao seu companheiro Blau Nunes,

sem que ele saiba como a mordaça foi feita.

No leito de morte, muitos anos após o acontecido, Juca Picumã, pai de

Rosa, chama Blau e lhe conta a origem do buçalete (cabresto); pede ao amigo

que o traga de volta antes de sua morte. Blau, em função do tempo não

consegue entregar o cabresto ao amigo, mas guarda o presente, até saber da

morte de Rosa e devolve à cova da moça, o que sempre lhe pertenceu.

3.3.1 O tópico discursivo

A unidade mais abrangente deste texto, delimitado como “a traição de

Rosa”, constitui o ST.

T1 inicia-se quando Blau Nunes pergunta a Juca Picumã o que ele faz

das onças que ganha (ls.38-45) e Juca responde que manda para Rosa, sua

filha, então, T 1 é “Rosa”:

Um dia perguntei-lhe o que é que este fazia das balastracas ebolivianos, e meia-doblas e até onças de ouro, que ganhava...

40 Esteve muito tempo me olhando e depois respondeu, todo num prazer,como se tivesse um pedaço do céu encravado dentro do coração:

- Mando pra Rosa... Tudo! E é pouco, ainda!- Que Rosa é essa?

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- É a minha filha! Linda como os amores! Mas não é pra o bico de45 qualquer lombo sujo, como eu...

A conversa ficou por aí.

Adiante, no texto, a inserção de T2, “Blau, o tocador de viola”, indica que

o assunto foi mudado, pois agora o capitão que leva a guarda adiante, precisa se

infiltrar no acampamento oposto, então quer saber se um dos soldados seus toca

viola, para que a chegada no acampamento seja surpresa; ter violeiros que se

infiltrem antes de sua chegada, será imprescindível para que conquiste o

território inimigo. Diante do questionamento do capitão, Juca Picumã indica Blau

Nunes para a missão. (ls. 85-90)

Num campestrinho paramos; o capitão mandou apear, rédea na mão, tudopronto ao primeiro grito. Depois acolherou-se com o Juca Picumã e meteram-seno mato e aí boquejaram um tempão. Depois voltaram.

85 Então o capitão correu os olhos pelos rapazes e disse:- Preciso de um, que toque viola...Mas o Picumã xeretou logo:- Tem aí esse pisa-flores, o furriel Blau...- Esse gurizote?...

90 - Sim, senhor, esse: é cruza de calombo!...

T 3, “o acampamento chimango”, é instaurado (ls. 95-105), quando Juca

Picumã e Blau Nunes seguem para o acampamento; no entanto, após

identificarem que o seu destino está próximo, pela presença do churrasco gordo,

percebida olfativamente pelo chiru Picumã (l.99), está presente o sbt 1 de T 3

(ls.103-105), no momento em que ambos resolvem botar o torniquete nos

cavalos e tirar suas esporas, parecendo que não são inimigos ou mesmo,

guerrilheiros:

95 Fomos andando... parando... farejando... escutando... Em certa altura oPicumã, sem se voltar levantou o braço, de mão aberta e parou. O capitão parou,e eu.

O chiru disse, baixo:- Está perto... ali!... E o churrasco é gordo!...

100 E levantava e mexia o nariz, tal e qual como um cachorro, rastreando...E apeamos.- Vamos botar um torniquete nos cavalos, para não relincharem...

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Fizemos, com o fiel do rebenque.105 - Tiramos as esporas, por causa dalguma enrediça... Tiramos.

- Bom; agora o capitão diz como há de ser o serviço...

T 4, identificado pelas “ordens do capitão farrapo”, acontece quando o

capitão encontra os dois soldados no caminho e lhes diz o que tem de ser feito.

O capitão os mandou ao acampamento para resgatar sua china, que se mudou

para o acampamento do inimigo, com a finalidade de viver com o capitão de lá, o

qual é chamado de ruivo, explicitado da linha 123 à 149:

- Mas... não é pra defuntear o homem... amarrado?...- Não! Acoquiná-lo, só...

125 - A tal pinguacha, também não é pra... lonquear?...- Não! Desfeiteá-la, só...- Então vou. Mas quem fala é o Picumã... – eu, nem mentindo digo que sou

desertor...- Estás te fazendo muito de manto de seda!... Cuidado!...

130 - Seu capitão é oficial... nada pega... e eu sou um pobre soldado quequalquer pode mandar jungir nas estacas...

Aí o Picumã meteu a colher:- Seu capitão, o mocito é sonso, não! Deixe estar, patrãozinho, tudo é

comigo... vancê só tem é que atar o gangino...135 Depois os dois se abriram e ainda estiveram de cochicho, rematando suas

tramas.O capitão montou.- Bueno!... Vejam o que fazem; eu vou buscar a gente, e, conforme chegar,

carrego. Vocês devem-se junto da carreta, pra eu saber.140 Blau!... não cochiles: o ruivo não é trigo limpo!...

E desandou por entre as árvores.Quando não se ouvia mais nada o chiru convidou.

- Vamos: nos apresentamos como passados, que já andamos entocados aqui háuns quantos dias. Deixe estar, que eu falo... estes

145 caramurus são uns bolas... Vai ver como passamos o buçal!... logo nos aceitam!Vamos! Ah! meta dentro da camisa uma cana de rédea... é para a maneia dohomem... Os companheiros depois nos levam os mancarrões, a cabresto...

E metemos a cabeça no mato, ele adiante, a rumo do cheiro, dizia.

Ao seguirem viagem, Blau e Picumã, avistam as sentinelas do

acampamento inimigo, o que constitui T 5, “encontro com as sentinelas”; neste

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tópico os parceiros conversam com as sentinelas, Marcos e João Antônio,

dizendo que querem se juntar a eles. (ls. 151-197)

Andamos mais de seis quadras; nisto o chiru pegou a cantar umas coplas,devagar, meio baixo, como quem anda muito descansado, de propósito para irchamando o ouvido de algum bombeiro, se houvesse...

Ora... dito e feito! Com duas quadras mais, um vulto junto duma155 caneleira morruda, gritou, no sombreado das ramas:

- Quem Vai lá!- É de paz!- Alto! Quem é?- É gente pra força, patrício! Andamos campeando vocês desde já

160 hoje...- Hã! Pra quê?- Ora pra quê?... Pra escaramuçar os farrapos!... E queremos jurar bandeira

com o ruivo...- Ah! vancês conhecem o comandante?

165 - Ora... ora! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se conheço... Então,seguimos?

- Passem. Vão por aqui... até topar um sangradouro... aí tem outrasentinela; diga que falou comigo, o Marcos..

- Tá bom... Quando render, vá tomar um mate comigo!...170 Fomos andando, até a sanga dita; aí topamos com a outra sentinela; o chiru

nem esperou o grito, ele é que falou, ainda longe:- Oh... sentinela!- Quem vai lá?..- Foi o Marcos que nos mandou; andávamos extraviados... ele nos

175 conhece... vamos levar um aviso ao comandante... É dos farrapos que andavamontem por aqui... foram corridos...

- Hã! Pois passem...- Sim... Pois é... foram-se à ramada do Guedes... com um couro na cola, os

trompetas!... Tem aí cavalhada de refresco?180 - Que nada! A reiunada está entransilhada... A gente a custo se mexia... E

pra mal dos pecados ainda o comandante traz uma china milongueira, numacarreta toldada, que só serve para atrapalhar a marcha... A china é lindaça... masé o mesmo... sempre é um estorvo!...

Aqui o Picumã se acoc’rou, tirou uma ponta de trás da orelha e pediu-185 me:

- Dá cá os avios, parceiro...E bateu fogo. Reparei que a respiração do chiru estava a modo entupida...

Mas pegou outra vez:- É o Marcos disse-me que o comandante é mui rufião...

190 - É mesmo; mal empregada, a cabocla; qualquer dia ele mete-lhe ospés... é o costume... Ora!...

- É... assim, é pena... Vamos, parceiro. Até logo. Como é a sua graça?- João Antônio, seu criado... E a sua, inda que mal pergunte?

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195 - Juca, patrício... Juca no mais... Quando render, espero a sua pessoapara um amargo!...

- ‘Stá feito!... Vá em paz!...E outra vez nos mexemos

T 6, a “identificação final para a chegada no acampamento inimigo”,

acontece no momento em que Juca e Blau adentram pelo acampamento e o

assunto, diz respeito à identificação dos dois, que, após se apresentarem, são

liberados para seguirem viagem. (ls. 215-226)

215 O chiru foi andando como cancheiro, e eu, na cola, dele. Nisto umsujeito, deitado nos arreios, gritou-nos:

- Chê! Aspa-torta! Então isto aqui é quartel de farrapos?... não se dásatisfações à ninguém?...

- Foi o Marcos que nos mandou...220 - Que Marcos?

- O Marcos, que está de sentinela... e o João Antônio... sim, senhor, parafalar com o comandante...

- Isso é outro caso... O comandante está sesteando... Se quiseremesperem ali, junto da carreta. Já comeram?

225 - Já, sim senhor.- Pois então!... Vão!

Ao chegarem onde queriam, os dois homens instauram um novo tópico,

T 7, a “entrada no acampamento” o qual possui desdobramentos em subtópicos:

Sbt1 (ls – 255-260): avistam a china do capitão farrapo que correu para

o acampamento chimango;

Nisto a pinguancha alçou a panela e voltou pra carreta.255 O chiru então, com a cara de lado, soprou-me de leve:

- Ela não se arpistou quando me viu?...- Não... nem nos benzeu com um olhado... É uma cabocla enfestada!...- Cale a boca... Apronte-se que o fandango não tarda.

260 - Eu preferia bailar com a morena...

Sbt2 (ls. 267-278): a invasão dos farrapos para o resgate da moça;

- Os farrapos! Os farrapos! Mataram o João Antônio!...Estrondou um tiro... zuniu uma bala... um legal vitou, pataleando.E pipocou a fuzilaria em cima da camelada!

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270 Eu, pulei logo para o recavém da carreta, para me botar ao ruivo; mas antesde chegar já ele tinha descido... e se foi ao cavalo, que montou de pulo e mesmosem freio maneado, tapeando-o no mais, tocou picada fora.

E berrou à gente:- Pra o rincão! Pra o rincão!

275 E com a folha da espada tocou o flete, que pelo visto era mestre naquelasarrancadas.

Mesmo assim eu ia ver se segurava o homem, mas o chiru gritou-me:- Deixe! Deixe! Agora é tarde!...

Sbt3 (ls. 285-293): o momento em que a china é capturada por Juca

Picumã, seu pai (o tata) pede para que ele a solte;

285 - Larga, desgraçado!...E olhou, entonada... mas conheceu o chiru e ficou abichornada, pateta...- O tata! O tata!...- Cachorra!... Laço, é o que mereces!...

290 - Me largue, tata!...- Primeiro hei de cair-te de relho... pra não seres a vergonha da minha

cara...

Sbt4 (ls. 293-303): quando a moça é pega pelo capitão farrapo, seu

antigo companheiro, e pede-lhe perdão, mas o capitão furioso tenta matá-la.

Nesse instante, fulo de raiva, o nosso capitão manoteou-a pelo outro braço.295 - Ah! mencê... perdão!... Nunca mais!... Eu... Eu...

- Eu é que vou dar-te sesteadas com o ruivo, guincha desgraçada!

E furioso, piscando os olhos, com as veias da testa inchadas, largou obraço da morena mas agarrou-lhe os cabelos, a trança quase desmanchada,

300 fechando na mão duas voltas; agarrou curto, entre os ombros, pertinho da nuca...e puxou para trás a cabeça da cabocla... Com a outra mão pelou a faca, afiada,faiscando e procurou o pescoço da falsa...

Sbt5 (ls. 304-306): Juca Picumã percebe a intenção de seu capitão e

mata-o primeiro.

Ao perceber que o capitão farrapo mataria a moça, Juca revelou-lhe que elaera sua filha

- Isso não!... é minha filha! – disse.

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T8 “revelação de Juca a Blau, sobre Rosa, sua filha” é instaurado

quando Juca revela a Blau que a moça traidora é sua filha, Rosa, soltando-a, no

momento em que ela foge para o mato. (ls. 323-327)

- Cachorra!... vai-te!... rugiu o chiru, limpando o ferro na manga da japona.E olhando o corpo do capitão, cuspiu-lhe em cima, resmungando:

325 - Vancê vai dar parte de mim?- Esta á a Rosa, a tua filha?- Sim, senhor, que eu criei com tanto zelo!...

T9, “o buçalete”, acontece quando três meses depois, Juca dá a Blau um

buçalete. (ls.344-348)

- Vim trazer-te um presente; é um traçado feito por mim; e há de ficar345 mui bem no tordilho, porque é preto...

E ajeitou na cabeça do cavalo um buçalete e cabresto preto, de cabelo,trancado na perfeição. Nunca passou-me pela cabeça coisa nenhuma a respeito...

O último tópico do conto, T 10, o “leito de morte de Juca e a revelação

sobre o buçalete” acontece quando, tempos depois, Juca baleado e prestes a

morrer, chama o amigo Blau e lhe pede o Buçalete de volta, revelando ao amigo

que ele fora tecido com os cabelos de Rosa, no momento em que ele, Juca os

cortara da cabeça da filha para salva-la da morte. (ls. 361-369)

- Então, Picumã... homem afloxa o garrão?E ele falou tremendo a voz:Estou... com um crivo... Eram oito... em cima... de mim... só pude...

estrompar... cinco! Vancê... ainda... tem aquele buçalete?365 - Tenho sim, meio estragado, mas tu ainda hás de compô-lo, não é?

- Não... eu queria... eu queria... lhe... lhe pedir... ele, outra vez... pra...pra mim...

- Pois sim, dou-te! Amanhã trago-te!- É do... cabelo da Rosa... a trança... lembra-se?...

Diante disto, é apresentado o quadro tópico do conto, Os cabelos da

china:

ST- Os cabelos da china

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Figura 8: Quadro tópico – Os cabelos da china

onde:

T 1 – Rosa;

T 2 – Blau, o tocador de viola;

T 3 – o acampamento chimango;

Sbt 1 – tirada do torniquete dos cavalos e das esporas;

T 4 – as ordens do capitão farrapo;

T 5 – o encontro com as sentinelas;

T 6 – a identificação final para a chegada no acampamento;

T 7 – a entrada no acampamento;

Sbt1 – avistaram a china;

Sbt2 – a invasão e resgate de Rosa;

Sbt3 – a captura da china, por Juca Picumã;

Sbt4 – a tentativa do capitão farrapo, de matar a moça;

Sbt5 – a morte do capitão farrapo, por Juca.

T 8 – a revelação a Blau, de que Rosa é filha de Juca;

T 2

T 3T 4 T 5 T 6 T 7

T 8

T 1

T 9

T 10

Sbt 1 Sbt 1

Sbt 2

Sbt 5

Sbt 4

Sbt 3

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T 9 – o buçalete, presente Juca a Blau;

T 10 – o leito de morte de Juca Picumã e a revelação sobre o buçalete.

3.3.2 Os turnos conversacionais

Nos primeiros turnos, há uma ocorrência simétrica entre a conversa de

Juca e Blau, sobre Rosa, (ls. 42-45) ou seja, cada participante, em qualquer

turno, fala de cada vez (Fávero, Andrade & Aquino, 1999):

(1)

40 Esteve muito tempo me olhando e depois respondeu, todo num prazer,como se tivesse um pedaço do céu encravado dentro do coração:

- Mando pra Rosa... Tudo! E é pouco, ainda!- Que Rosa é essa?- É a minha filha! Linda como os amores! Mas não é pra o bico de

45 qualquer lombo sujo, como eu...

Outra incidência simétrica ocorre a seguir, na fala entre o capitão e

Juca, quando o superior deste lhe diz que precisa de um homem que toque viola

(ls. 86-90):

(2)

85 Então o capitão correu os olhos pelos rapazes e disse:- Preciso de um, que toque viola...Mas o Picumã xeretou logo:- Tem aí esse pisa-flores, o furriel Blau...- Esse gurizote?...

90 - Sim, senhor, esse: é cruza de calombo!...

No momento em que o capitão está dando as instruções de como o Juca

Picumã e Blau Nunes devem agir no acampamento legalista, ocorrem os turnos

seguintes, representados pelos diálogos desenvolvidos entre o capitão e Blau,

mas com uma intervenção de Juca (ls.123-134) :

(3)

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125

- Mas... não é pra defuntear o homem... amarrado?...- Não! Acoquiná-lo, só...

125 - A tal pinguacha, também não é pra... lonquear?...- Não! Desfeiteá-la, só...- Então vou. Mas quem fala é o Picumã... – eu, nem mentindo digo que sou

desertor...- Estás te fazendo muito de manto de seda!... Cuidado!...

130 - Seu capitão é oficial... nada pega... e eu sou um pobre soldado quequalquer pode mandar jungir nas estacas...

Aí o Picumã meteu a colher:- Seu capitão, o mocito é sonso, não! Deixe estar, patrãozinho, tudo écomigo... vancê só tem é que atar o gangino...

Adiante, há outra disposição simétrica, entre Juca Picumã e as

sentinelas pelas quais ele e Blau passam. (ls. 156-183)

(4)

- Quem Vai lá!- É de paz!- Alto! Quem é?- É gente pra forca, patrício! Andamos campeando vocês desde já

160 hoje...- Hã! Pra quê?- Ora pra quê?... Pra escaramuçar os farrapos!... E queremos jurar bandeira

com o ruivo...- Ah! vancês conhecem o comandante?

165 - Ora... ora! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se conheço... Então,seguimos?

- Passem. Vão por aqui... até topar um sangradouro... aí tem outrasentinela; diga que falou comigo, o Marcos..

- Tá bom... Quando render, vá tomar um mate comigo!...170 Fomos andando, até a sanga dita; aí topamos com a outra sentinela; o chiru

nem esperou o grito, ele é que falou, ainda longe:- Oh... sentinela!- Quem vai lá?..- Foi o Marcos que nos mandou; andávamos extraviados... ele nos

175 conhece... vamos levar um aviso ao comandante... É dos farrapos que andavamontem por aqui... foram corridos...

- Hã! Pois passem...- Sim... Pois é... foram-se à ramada do Guedes... com um couro na cola, os

trompetas!... Tem aí cavalhada de refresco?180 Que nada! A reiunada está entransilhada... A gente a custo se mexia... E pra

mal dos pecados ainda o comandante traz uma china milongueira, numacarreta toldada, que só serve para atrapalhar a marcha... A china élindaça... mas é o mesmo... sempre é um estorvo!...

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Todos os turnos verificados, e os restantes até o final do conto, se

apresentam de forma simétrica; razão porque acreditamos não ser relevante

transcrever os restantes. Neste conto, não aparecem assimetrias nos turnos,

como o assalto ao turno, por exemplo, talvez pelo fato de as personagens

envolvidas estarem em uma relação de subordinação entre si, e , por esse

motivo, esperarem a sua vez de falar.

3.3.3 Os marcadores conversacionais

O conto apresenta sinais verbais do falante, que orientam o ouvinte, e

estão situados no início do turno; dentre eles, especificamente, os que estão

contidos nas falas entre Blau Nunes, Juca Picumã e o capitão farrapo:

(5) Juca Picumã

- Está perto ... ali!... E o churrasco é gordo!... (l.99)= a olha, veja.

(6) Juca Picumã

- Bom ; agora o capitão diz como há de ser o serviço... (l. 106)= marcador que inicia a atividade comunicativa. (cf. Marcuschi, 2001, p.61)

(7) Capitão

- Olha , furriel Blau, tu e o velho Picumã vão jogar o pelego numaarriscada... (l. 110)

= a veja, entenda, descrito por Marcuschi. (id)

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127

(8) Blau Nunes

- Mas... não é pra defuntear o homem... amarrado?... (l.123)= a então, descrito por Marcuschi. (id)

Diferentemente das análises realizadas nos outros dois contos, este

possui dois marcadores não lexicalizados, conforme mostra Marcuschi (2001, p.

61), e um marcador lexicalizado, aparecendo, quando Juca Picumã fala com a

primeira sentinela, Marcos:

(9) – não lexicalizado:

- Hã! Pra quê? (l.161) = o que?

(10) – não lexicalizado:

- Ah ! vancês conhecem o comandante?(l. 164)= equivalente a sim.

(11) – lexicalizado:

- Ora... ora ! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se conheço... Então,seguimos? (l. 165) = equivalente a ahã.

Os seguintes exemplos, quanto aos marcadores pós-posicionados, são:

(12)

- Ora... ora! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se conheço... Então,seguimos? (l.165)

= a de acordo? O que também finaliza atividade comunicativa.

(13)

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128

- Hã! Pois passem ... (l.177)= a certo, sinal convergente, podem passar.

(14)

- É mesmo; mal empregada, a cabocla; qualquer dia ele mete-lhe os pés...é o costume... Ora!... (l.190)

= é o costume né? Não é?

(15)

- Eu é que vou dar-te sesteadas com o ruivo, guincha desgraçada ! (l.296)aqui, guincha é o mesmo que mulher desonesta, por isso podemos entender como= entendeu Rosa?

(16)

-Tenho sim, meio estragado, mas tu ainda hás de compô-lo, não é?(l.365) =a certo? Não é? Né? O marcador constitui a entrega de turno, cf. Marcuschi

Quanto aos sinais do ouvinte, orientadores do falante, apresentam-se

como convergentes:

(17)

- Hã! Pois passem... (l. 177)

(18) - Sim... Pois é... foram-se à ramada do Guedes... com um couro nacola, os trompetas!... Tem aí cavalhada de refresco?(l. 178)

E marcadores que orientam o ouvinte, em sinal de divergência, temos:

(19)

-Não... nem nos benzeu com um olhado... É uma cabocla enfestada!...(l.257)

(20)

- Isso não!... é minha filha! – disse. (l.306)

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129

E ainda, como indagativos:

(21) - Então, Picumã... homem afloxa o garrão ? (será?) (l. 361)

(22) - É do... cabelo da Rosa... a trança... lembra-se?... (l.369)

O conto em estudo contém um número significativo de exemplos de

marcadores conversacionais, os quais sustentam o turno, preenchem pausas e

monitoram a organização do ouvinte, assim como orientam o falante. (Marcuschi,

id. p. 66)

3.3.4 Pares adjacentes

1. pergunta/resposta – Estes pares aparecem, enquanto Juca Picumã

pergunta ao amigo Blau Nunes se este ainda tem o cabresto que lhe dera, e a

resposta é identificada pela afirmativa de Blau (ls. 363-365):

(23)

- Estou... com um crivo... Eram oito... em cima... de mim... só pude...estrompar... cinco! Vancê... ainda... tem aquele buçalete?

365 - Tenho sim, meio estragado, mas tu ainda hás de compô-lo, não é?

2. ordem/execução – Este par apresenta, como ordem, da própria Rosa

que grita ao pai que a solte, entretanto o pai bate na filha, ou seja, a execução da

ordem de Rosa não é realizada (ls.290-292) :

(24)

290 - Me largue, tata!...- Primeiro hei de cair-te de relho... pra não seres a vergonha da minha

cara...

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3. convite/aceitação/recusa – Do par, convite/aceitação, existem

exemplos significativos, porém não foram constatados exemplos de pares

indicando convite/recusa. Os pares que dizem respeito ao convite e aceitação

estão localizados entre as linhas 85 e 90:

(25)

85 Então o capitão correu os olhos pelos rapazes e disse:- Preciso de um, que toque viola... (convite)Mas o Picumã xeretou logo:- Tem aí esse pisa-flores, o furriel Blau... (aceitação)- Esse gurizote?...

90 - Sim, senhor, esse: é cruza de calombo!... (confirmação da aceitação)

4. cumprimento/cumprimento – Este par possui ocorrências que

podem ser vistas no momento em que há o cumprimento típico, entre as

sentinelas do acampamento chimango e os soldados farrapos Blau e Juca, pois,

conforme sabemos, em tempos de guerra os soldados precisavam saber

cumprimentar os outros e a expressão “É de paz”, indica que os farrapos querem

se juntar aos chimangos. (ls.156-160):

(26)

- Quem Vai lá!- É de paz!- Alto! Quem é?- É gente pra força , patrício! Andamos campeando vocês desde já

160 hoje...

5. desculpa/perdão – Este par não ocorre em sua totalidade, pois, o

conto em estudo apresenta o pedido de desculpas de Rosa para o capitão, mas

não o perdão (l.295-296):

(27)

295 - Ah! mencê... perdão !... Nunca mais!... Eu... Eu...(pedido de desculpas)- Eu é que vou dar-te sesteadas com o ruivo, guincha desgraçada ! (pedido

que não é aceito, pela expressão desgraçada, usada pelo capitão)

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Durante a análise dos pares adjacentes não foram detectados, neste

conto, dentre aqueles apontados por Marcuschi, exemplos dos pares

defesa/revide.

Considerando, como fazem muitos lingüistas, a linguagem como um

fenômeno sócio-interacional (ver primeiro capítulo desta dissertação), podemos

entender que a língua, enquanto instituição de um povo, não deve nem pode ser

tratada como um fenômeno que dissocia fala e escrita, Marcuschi (2003). Neste

caso, o estudo do corpus selecionado mostrou que em um texto escrito,

elaborado e corrigido inúmeras vezes, estão presentes diversos aspectos de

oralidade.

___CONCLUSÃO___________________________________________________

Ao término desta dissertação, são tecidas algumas considerações, que

compreendem a revisão dos objetivos, e a apresentação de novas perspectivas.

No que se refere aos objetivos específicos temos:

1) examinar as manifestações da língua falada na obra regionalista

Contos Gauchescos de João Simões Lopes Neto.

Este objetivo foi cumprido, pois, com referência à primeira leitura dos

textos, constatamos um relevante número de diálogos, bem como inúmeras

expressões orais e regionais.

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2) analisar o corpus por meio dos estudos referentes às propriedades

constitutivas da fala.

O cumprimento deste objetivo permitiu mostrar que a fala possui

características diferentes da escrita, no entanto, não podem ser vistas de maneira

dicotômica, pois as quatro propriedades constitutivas da fala permearam os contos

analisados.

3) descrever de que maneira as manifestações da modalidade falada da

língua permeiam os textos selecionados.

Este objetivo foi cumprido, na medida em que as propriedades

constitutivas da fala - tópico discursivo, turno conversacional, marcadores

conversacionais e pares adjacentes - foram mostradas por meio da análise dos

diálogos, contidos nos contos. Assim sendo, a manifestação da oralidade no texto

escrito decorre da competência do autor, no momento em que este produz, no seu

texto, uma simulação do falar espontâneo.

Com relação às propriedades constitutivas da modalidade de língua

falada, o tópico discursivo ocorreu em todos os contos analisados, já as

digressões, só não aparem no conto Deve um Queijo!... e foram utilizadas para

ilustrar as narrativas.

Quanto à ocorrência de turno, verificamos que, por serem analisados

textos de um mesmo gênero, o turno é outro fator que permeia todos os contos.

Com isso, o autor busca uma aproximação do processo literário à realidade da

conversação. Verificamos que tal sensação, de naturalidade da conversação, é

possibilitada pelo fato de o contista intencionalmente eliminar as marcas literárias,

que caracterizam o texto escrito e lhe atribuir marcas de oralidade.

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Nesta análise, constatamos que os turnos conversacionais apresentam-

se, em maior número, nos dois últimos textos, visto que há uma produção maior

no volume de diálogos.

A alternância de turnos, nos textos, em que o diálogo se faz presente,

acontece, assim como na conversação real, e se desenvolve durante toda a

narrativa, em que as personagens interagem entre si. Não foram constatadas a

presença de trílogos ou polílogos, pois as altenâncias de turno sempre acontecem

em diálogos de uma personagem com a outra, ou seja, sempre em duplas.

Ainda, examinando as ocorrências das propriedades da fala, constatamos

que os marcadores conversacionais estão presentes de diversas maneiras nos

textos, o que indica que o fato de o conto pertencer a um gênero textual/discursivo

literário não constitui um obstáculo para que o autor lance mão desta

característica, própria da oralidade, para compor o seu texto e configure uma

simulação da realidade da fala espontânea com seus escritos. Os marcadores

estão presentes em índices significativos tanto os que partem do falante quanto os

que partem do ouvinte, pré ou pós posicionados, convergentes, indagativos e

divergentes.

Os pares adjacentes, última das propriedades analisadas, ocorreram,

também, em quase a totalidade de sua tipologia e carregam uma grande

responsabilidade na manutenção da conversação espontânea, simulada nos

contos analisados. Com isso, mais uma vez, temos, por parte do autor do texto

literário, a tentativa da aproximação de seu texto escrito à fala explícita.

Esta dissertação não se quer conclusiva com seus resultados obtidos e,

por essa razão, propicia a abertura de novas perspectivas para o estudo do conto

regionalista, enquanto gênero textual/discursivo. Entendemos que essa tarefa

poderá ser cumprida na medida em que sejam desenvolvidos estudos relativos a

esse tema.

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___ESCLARECIMENTO______________________________________________

As versões em Inglês e Espanhol do resumo desta Dissertação são do tradutor

Israel Villa Fernandez, da empresa Master Traduções.

Endereço: Rua Itapeva, 366 12º andar, cj 124, Bela vista - cep:01332-900

Telefone: 3171-2140

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ANEXOS

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___ TEXTO 1_______________________________________________________

O mate do João Cardoso

1 A la fresca!... que demorou tal fritada! Vancê reparou?Quando nos apeamos era o pino do meio-dia... e são três horas largas!...

Cá pra mim esta gente esperou que as franguinhas se pusessem galinhas edepois botassem, para apanhar os ovos e só então bater esta

5 fritada encantada, que vai nos atrasar a troteada, obra de duas léguas... debeiço!...

Isto até faz-me lembrar um caso... Vancê nunca ouviu falar do JoãoCardoso? ... Não?... É pena.

O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo10 da Maria Gomes12, bom velho, muito estimado, mas chalrador como trinta e

que dava um dente por dois dedos de prosa, e mui amigo de novidades.Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se ouvia e se contava ia

de boca em boca, de ouvido para ouvido. Eu, o primeiro jornal que vi na minhavida foi em Pelotas mesmo, aí por 1851.

15 Pois, como dizia: não passava andante pela porta ou mais longe oumais distante, que o velho João Cardoso não chamasse, risonho, e renitente comomosca de ramada; e aí no mais já enxotava a cachorrada, e puxandoo pito detrás da orelha, pigarreava e dizia:

- Olá! amigo! apeie-se, descanse um pouco! Venha tomar um amargo!20 É um instantinho... Crioulo?!...

O andante, agradecido à sorte, aceitava... menos algum ressabiado, já sevê.

- Então, que há de novo? (E para dentro de asa, com sua voz de trovão,ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

25 E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava asque sabia; ria-se, metia opiniões , aprovava umas cousas, ficava buzina comoutras...

E o tempo ia passando. O andante olhava para o cavalo, que já tinha serefrescado; olhava para o sol, que subia ou descambava... e mexia o

30 corpo para levantar-se. - Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...

- Espera, homem! É um instantinho! Oh! crioulo , olha esse mate!E retomava a chalra. Nisto o crioulo já calejado e sabido , chegava-se-lhe

manhoso e cochichava-lhe no ouvido:35 - Sr., não tem mais erva!...

- Traz dessa mesma! Não demores, crioulo!E o tempo ia correndo como água em sanga cheia. Outra vez o

andante se aprumava:

12 Passo da Maria Gomes – sobre o Rio Piratini, na desembocadura do arroio da Maria Gomes. Orio Piratini, na época, separava os municípios de Piratini e Jaguarão e era limite norte do 4º.subdistrito da freguesia de Arroio Grande.

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Seu João Cardoso, vou me tocando... Passe bem!40 - Espera homem de Deus! É enquanto a galinha lambe a orelha!... Oh!

crioulo!... olha esse mate, diabo!E outra vez o negro, no ouvido dele:- Mas, sr.!... não tem mais erva!- Traz dessa mesma, bandalho!

45 E o carvão sumia-se largando sobre o paisano uma riscada do brancodos olhos, como escarnicando... Por fim o andante não agüentava mais e paravapatrulha:

- Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista!- Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

50 - Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!- Pois sim... porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo

neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!Porém o outro já dava de rédeas, resolvido a retirada.E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e

55 ainda teimava:- Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está

sempre pronto! Boa viagem! Se quer esperar... olhe que é um instantinho... Oh!crioulo!...

Mas o embuçalado já tocava a trote largo.60

Os mates do João Cardoso criaram fama... A gente daquele tempo, até,quando iam dizer que uma cousa era tardia, demorada, maçante, embrulhona,dizia – está como o mate do João Cardoso!

A verdade é que em muita casa e por muitos motivos, ainda às vezes65 parece-me escutar o João Cardoso, velho de guerra, repetir ao seu crioulo:

- Traz dessa mesma, diabo, que aqui o sr. Tem pressa!...

- Vancê já não tem topado disso?...

_______________

Amigo – tratamento campeiro usado na conversação com desconhecidos.Buzina – quente como buzina de roda de carreta, brabo.Bueno – interjeição do espanhol platino usada comumente na campanha em vezde bom ou bem.Chalra – charla, conversa.Carvão – aqui: pejorativo de negro.Escarnicando – zombando.Parar patrulha – perder a paciência.Dar de rédea – (fig) levantar-se.Embuçalado – enganado.

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___TEXTO 2_______________________________________________________

Deve um queijo!...

1 O velho Lessa era um homem assinzinho... nanico, retaco, ruivote, corado,e tinha os olhos vivos como azougue... Mas quanto tinha pequeno o corpo tinhagrande o coração.

E sisudo; não era homem de roer corda, nem de palavra esticante,5 como couro de cachorro. Falava pouco, mas quando dizia , estava dito; pra ele,

trato de boca valia tanto – e até mais – que papel de tabelião. E no mais, era –pão, pão; queijo, queijo! –

E por falar nisto:Duma feita no Passo do Centurião13, numa venda grande que ali

10 havia, estava uma ponta de andantes, tropeiros, gauchada teatina, peonada e tal,quando descia um cerro alto e depois entrava na estrada, ladeada de butiazeiros,que se estendem para os dois lados, sombreando o verde macio dos pastos,quando troteava de escoteiro, o velho Lessa.

De ainda longe um dos sujeitos já o havia reconhecido e dito quem15 era e donde; e logo outro – passou voz que aí no mais todos iriam comer um

queijo sem nada pagar...Este fulano era um castelhano alto, gadelhudo, com uma pêra enorme, que

ele às vezes, por graça ou tenção reservada, costumava trançar, como para darmote a algum dito, e ele retrucar, e, daí nascer uma

20 cruzada de facões, para divertir, ao primeiro coloreado...

Sossegado da sua vida o velho Lessa aproximou-se, parou o cavalo e muidelicadamente tocou a aba do sombreiro:

- Boa tarde, a todos!25 E apeou-se.

Maneou o mancarrão, atou-lhe as rédeas ao pescoço e dobrou os pelegos,por causa da quentura do sol.

Quando ia entrar na venda, sai-lhe o castelhano pelo lado de laçar... A 30este tempo o negociante saudava o velho, dizendo:

- Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então, vem de Canguçu, ou vai?...Antes que o cumprimentado falasse, o castelhano intrometeu-se:- ¡ Ah! ¿es usted de Canguçu?... Entonces... ¡debe um queso!...

35 O paisano abriu um ligeiro claro de riso e com toda a pachorra aindarespondeu:

- Ora, amigo... os queijos andam vasqueiros...- Si, pa nosotros... ¡pero Canguçu pagará queso, hoy!...O vendeiro farejou catinga agourenta, no ar, e quis ladear o

13 Passo do Centurião – sobre o rio Jaguarão, na fronteira do Brasil com o Uruguai.

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40 importuno; o velho Lessa coçou a barbinha do queixo, coçou o cocuruto,relanceou os olhinhos pelos assistentes, e mui de manso pediu ao empregado dobalcão...

- ’Stá bem!... Che dê-me aquele queijo!...E apontou para um rodado de palmo e meio de corda, que estava na 45

prateleira, ali à mão.O gadelhudo refestelou-se sobre um surrão de erva, chupou os dentes e

ainda enticou:- ¡Oigalé!... ¡bailemos, que queso hay!

Com a mesma santa paciência o velho encomendou então o seu50 almoço – ovos, um pedaço de lingüiça, café – e depois pegou a partir o

queijo, primeiro ao meio, em duas metades e depois uma destas em fatias, comoumas oito ou dez; acabando, ofereceu a todos:

-São servidos?Ninguém topou; agradeceram; então disse ele ao cobrador.

55 -Chê!... pronto! Sirva-se...O castelhano levantou-se, endireitou as armas e chegando-se para o prato,

repetiu o invite:- ¿Entonce?... !está pago, paisanos!...

E às talhadas começou a comer.60

O velho Lessa – ele tinha pinta de tambeiro mas era touro cupinudo... –pegou a picar o naco; sovou uma palha; enrolou o baio; bateu os avios; acendeu ecomeçou a pitar, sempre calado, e moneando, gastando um tempão...

65Lá na outra ponta do balcão um freguês estava reclamando sobre uma

panela reiúna, que lhe haviam vendido com o beiço quebrado...Aí pelas seis talhadas o clinudo parou de mastigar.- Bueno... ¡buenazo!... ¡pero no puedo más!...

70 Mas o velho, com o facão espetou uma fatia e of’receu-lhe:- Esta, por mim!- Si, justo: por usted ¡vaya!...E às cansadas remoeu o pedaço.E mal que engoliu o último bocado, já o velho apresentava-lhe outra

75 fatia, na ponta do ferro:- Outra, à saúde de Canguçu!...- Pero...- Não tem pero nem pêra... Come...- Pe...

80 - Come, clinudo!...E no mesmo soflagrante, de plancha, duro e chato, o velho Lessa derrubou-

lhe o facão entre as orelhas, pelas costelas, pelas paletas, pela barriga, , pelasventas... seguido, e miúdo, como quem empapa d’água um couro lanudo. E comesta sumanta levou-o sobre o mesmo surrão de erva,

85 pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do queijo e gritou-lhe nos ouvidos: - Come!...

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E o roncador comeu... comeu até os farelos... mas, de repente,empanzinado, de boca aberta, olhos arregalados, meio sufocado, todo sevomitando, pulou porta fora, se foi a um matungo e disparou para a barranca

90 do passo... e foi-se a la cria!...O reclamador da panela desbeiçada deu uma risada e chacoteou, para o

rastro:- ‘Orre, maula!... quebraram-te o corincho!...E o velhito, com toda a sua pachorra indagou pelo almoço, e já estava

95 pronto...- Os ovos... a lingüiça... o café?..

___________

Retaco – baixo e atarracado.Roer a corda – fugir a um compromisso.Ponta – conjunto, grupo.Aí no mais – logo.Castelhano – uruguaio ou argentino.Cruzada de facões ... ... ao primeiro coloreado – diversão brutal: duelo defacões que só termina quando um dos contendores sangrasse.Lado de laçar – o lado direito do cavalo, cujo lado esquerdo é o de montar.Vasqueiros – raros, escassos.Chê – vocativo correspondente a tu ou usted, de uso generalizado na fronteira rio-grandense; pronuncia-se tchê.Rodado – queijo em forma de roda.Corda – aqui: largura.Oigalé – interjeição que exprime admiração ou alegria e é característica do falargaúcho, em português: oigalê.Cupinudo – (fig.) brabo.Moneando – macaqueando.Reiúna – (fig.) de má qualidade.De plancha – com o lado da lâmina.Roncador – fanfarrão.Ir-se a la cria – ir embora, desaparecer.Maula – aqui: covarde, medroso; mas pode significar também mau, ruim (além deindolente, negligente).

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___TEXTO 3_______________________________________________________

Os cabelos da china

1 Vancê sabe que eu tive e me servi muito tempo dum buçalete e cabrestofeitos de cabelos de mulher?... Verdade que fui inocente no caso.

Mais tarde soube que a dona dele morreu; soube, galopeei até onde elaestava sendo velada; acompanhei o enterro... e quando botaram a

5 defunta na cova, então atirei lá pra dentro aquelas peças, feitas do cabelo dela,cortado quando era moça e tafulona... Tirei um peso de cima do peito: entreguei àcriatura o que Deus lhe tinha dado.

Eu conto como foi.Quem me ensinou a courear uma égua, a preceito, estaquear um

10 couro, cortar, lonquear, amaciar de mordaça, o quanto, quanto... e depois tirar ostentos, desde os mais largos até os fininhos, como cerda de porco, e menos;quem me ensinou a trançar foi um tal Juca Picumã, um chiru já madurázio, e quetinha mãos de anjo para trabalhos guasqueiro, desde fazer um sovéu campeiro atéo mais fino preparo para um recau de luxo,

15 mestraço, que era, em armar qualquer roseta, bombas, botões e tranças de milfeitios.

Este índio Juca era homem de passar uma noite inteira comendo carne emateando, contando que estivesse acoc’rado em cima quase dos tições, curtindo-se na fumaça quente... Era até por causa desta catinga que

20 chamavam-lhe picumã.Pra mais nada prestava; andava sempre esmolambado, com uns

caraminguás mui tristes; e nem se lavava, o desgraçado, pois tinha cascão grossono cogote.

Comia como um chimarrão, dormia como um lagarto, valente como25 quê.. e ginete, então, nem se fala!...

Pra montar, isso sim!... fosse potro cru ou qualquer aporreado, caborteiro ouvelhaco – o diabo que fosse! – ele enfrenava e bancava-se em cima, quieto comovancê ou eu, sentados num toco de pau!... Podia o bagualesconder a cabeça, berrar, despedaçar-se em corcovos, que o chiru velho

30 batia o isqueiro e acendia o pito, como qualquer dona acende a candeia em cimada mesa! Às vezes o ventana era traiçoeiro e lá se vinha de lombo, boleando-se,ou acontecia planchar-se: o coronilha escorregava como um gato e mal que osotreta batia a alcatra na terra ingrata, já lhe chovia entreas orelhas o rabo-de-tatu, que era uma temeridade!...

35 Voltear o caboclo, isto é que não!E bastante dinheiro ganhava; mas sempre despilchado, pobre como rato de

igreja.Um dia perguntei-lhe o que é que este fazia das balastracas e

bolivianos, e meia-doblas e até onças de ouro, que ganhava...40 Esteve muito tempo me olhando e depois respondeu, todo num prazer,

como se tivesse um pedaço do céu encravado dentro do coração:

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- Mando pra Rosa... Tudo! E é pouco, ainda!- Que Rosa é essa?- É a minha filha! Linda como os amores! Mas não é pra o bico de

45 qualquer lombo sujo, como eu...14

A conversa ficou por aí.Passaram os anos. Eu já tinha meu bigodinho.Rebentou a guerra dos farrapos; eu me apresentei, de minha vontade;

50 e com quem vou topar, de companheiro? Com o Juca Picumã.

Duma feita, andávamos tocados de perto pelos caramurus...Tínhamos saído em piquete de descoberta e aconteceu que depois devararmos um passo, os legalistas nos cortaram a retirada e vieram nos

55 apertando sobre outra força companheira, como para comer-nos entre duasqueixadas...

E não nos davam alce; mal boleávamos a perna para churrasquear umpedaço de carne e já os bichos caíam em cima...

Na guerra a gente às vezes se vê nestas embretadas, mesmo sendo60 o mais forte, como éramos nós, que bem podíamos até correr a pelego aqueles

camelos... mas são cousas que os chefes é que sabem e mandam que se asagüente, porque é serviço...

Ora bem; havia já dois dias e duas noites que vivíamos neste apuro;arrinconados nalgum campestre dava-se verdeio aos cavalos; os homens

65 cochilavam em pé; nisto um bombeiro assobiava, outro respondia e o capitão, emvoz baixa e rápida, mandava:

- Monta gente!E o Juca Picumã, que era o vaqueano, tomava a ponta e metia-nos

por aquela enredada de galhos e cipós, e lá íamos, mato dentro, roçando70 nos paus, afastando os espinhos e batendo a mosquitada que nos carneava...

Ninguém falava. A rapaziada era de dar e tomar, e – sem desfazer em vancê, queestá presente – eu, era do fandango... e devo dizer, que nesse tempo, fuimondongo meio duro de pelar...

75 Dessa vereda o vaqueano foi pendendo para a esquerda; de repentebatemos na barranca do arroio, e ele, sem dizer palavra meteu n’água o cavalo e,devagarzinho fomos encordoando de atrás e varando, de bolapé.

Seguimos um pedaço, sempre sobre s esquerda, e mui adiante tornamos avarar o arroio para o lado que tínhamos deixado. Tínhamos feito

80 uma marcha em roda, que íamos agora fechar saindo na retaguarda doacampamento dos legalistas.

Num campestrinho paramos; o capitão mandou apear, rédea na mão, tudopronto ao primeiro grito. Depois acolherou-se com o Juca Picumã e meteram-seno mato e aí boquejaram um tempão. Depois voltaram.

85 Então o capitão correu os olhos pelos rapazes e disse:

14 Como eu… - essa expressão não faz muito sentido. É provável que na primeira edição tenhahavido uma troca de letras (t por e) na composição tipográfica, e que o coreto seja como tu...

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- Preciso de um, que toque viola...Mas o Picumã xeretou logo:- Tem aí esse pisa-flores, o furriel Blau...- Esse gurizote?...

90 - Sim, senhor, esse: é cruza de calombo!... E deu rédea, com cara de sono. O capitão acompanhou-o, mandou que eu

seguisse; e eu segui-o quente de raiva, pelo pouco caso com que ele chamou-me– gurizote. Se não fosse pelas divisas, eu dava-lhe o – gurizote!...

95 Fomos andando... parando... farejando... escutando... Em certa altura oPicumã, sem se voltar levantou o braço, de mão aberta e parou. O capitão parou,e eu.

O chiru disse, baixo:- Está perto... ali!... E o churrasco é gordo!...

100 E levantava e mexia o nariz, tal e qual como um cachorro, rastreando...E apeamos.- Vamos botar um torniquete nos cavalos, para não relincharem...Fizemos, com o fiel do rebenque.

105 - Tiramos as esporas, por causa dalguma enrediça... Tiramos.- Bom; agora o capitão diz como há de ser o serviço...

O oficial encruzou os braços e assim esteve um pedaço, alinhavando aidéia; depois, como falando mais pra mim do que pra o outro, disse:

110 - Olha, furriel Blau, tu e o velho Picumã vão jogar o pelego numaarriscada... Ele que te escolheu pra companheiro é porque sabe que és homem...

Há dois dias, como sabes, andamos nestes matos... mas não é tanto peloserviço militar, é mais por um vareio que quero dar... por minha conta...

115 Ouve. A minha china fugiu-me, seduzida pelo comandante desta forca... Vocêsvão se apresentar a ele, como desertados e que se querem passar... Ele é umespalha-brasas; ela é dançadeira... arranja jeito de rufar numa viola e abre o peitonumas cantigas... Tendo farra estão eles como querem... E enquanto estiveremdescuidados, eu caio-lhes em cima com a

120 nossa gente. Agora... quando fechar o entrevero só quero que tu te botes aocomandante... e que lhe passes os maneadores... quero-o armado... entendes? Éscapaz?... O Picumã ajuda... O resto... depois...

- Mas... não é pra defuntear o homem... amarrado?...- Não! Acoquiná-lo, só...

125 - A tal pinguacha, também não é pra... lonquear?...- Não! Desfeiteá-la, só...15

- Então vou. Mas quem fala é o Picumã... – eu, nem mentindo digo que soudesertor...

- Estás te fazendo muito de manto de seda!... Cuidado!...130 - Seu capitão é oficial... nada pega... e eu sou um pobre soldado que

qualquer pode mandar jungir nas estacas...

15 Não! Desfeiteá-la, só… - como na primeira e segunda edições e como nas edições críticas deAurélio Buarque de Holanda, de 1949, e Lígia Chiappini, de 1988. Em algumas outras edições,esta frase aparece deslocada, parágrafos adiante, prejudicando o sentido do texto.

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Aí o Picumã meteu a colher:- Seu capitão, o mocito é sonso, não! Deixe estar, patrãozinho, tudo é

comigo... vancê só tem é que atar o gangino...135 Depois os dois se abriram e ainda estiveram de cochicho, rematando suas

tramas.O capitão montou.- Bueno!... Vejam o que fazem; eu vou buscar a gente, e, coforme chegar,

carrego. Vocês devem-se arrinconar junto da carreta, pra eu saber.140 Blau!... não cochiles: o ruivo não é trigo limpo!...

E desandou por entre as árvores.Quando não se ouvia mais nada o chiru convidou.

- Vamos: nos apresentamos como passados, que já andamos entocados aqui háuns quantos dias. Deixe estar, que eu falo... estes

145 caramurus são uns bolas... Vai ver como passamos o buçal!... logo nos aceitam!Vamos! Ah! meta dentro da camisa uma cana de rédea... é para a maneia dohomem... Os companheiros depois nos levam os mancarrões, a cabresto...

E metemos a cabeça no mato, ele adiante, a rumo do cheiro, dizia.150

Andamos mais de seis quadras; nisto o chiru pegou a cantar umas coplas,devagar, meio baixo, como quem anda muito descansado, de propósito para irchamando o ouvido de algum bombeiro, se houvesse...

Ora... dito e feito! Com duas quadras mais, um vulto junto duma155 caneleira morruda, gritou, no sombreado das ramas:

- Quem Vai lá!- É de paz!- Alto! Quem é?- É gente pra forca, patrício! Andamos campeando vocês desde já

160 hoje...- Hã! Pra quê?- Ora pra quê?... Pra escaramuçar os farrapos!... E queremos jurar bandeira

com o ruivo...- Ah! vancês conhecem o comandante?

165 - Ora... ora! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se conheço... Então,seguimos?

- Passem. Vão por aqui... até topar um sangradouro... aí tem outrasentinela; diga que falou comigo, o Marcos..

- Tá bom... Quando render, vá tomar um mate comigo!...170 Fomos andando, até a sanga dita; aí topamos com a outra sentinela; o chiru

nem esperou o grito, ele é que falou, ainda longe:- Oh... sentinela!- Quem vai lá?..- Foi o Marcos que nos mandou; andávamos extraviados... ele nos

175 conhece... vamos levar um aviso ao comandante... É dos farrapos que andavamontem por aqui... foram corridos...

- Hã! Pois passem...- Sim... Pois é... foram-se à ramada do Guedes... com um couro na cola, os

trompetas!... Tem aí cavalhada de refresco?

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180 - Que nada! A reiunada está entransilhada... A gente a custo se mexia... Epra mal dos pecados ainda o comandante traz uma china milongueira, numacarreta toldada, que só serve para atrapalhar a marcha... A china é lindaça... masé o mesmo... sempre é um estorvo!...

Aqui o Picumã se acoc’rou, tirou uma ponta de trás da orelha e pediu-185 me:

- Dá cá os avios, parceiro...E bateu fogo. Reparei que a respiração do chiru estava a modo entupida...

Mas pegou outra vez:- É o Marcos disse-me que o comandante é mui rufião...

190 - É mesmo; mal empregada, a cabocla; qualquer dia ele mete-lhe ospés... é o costume... Ora!...

- É... assim, é pena... Vamos, parceiro. Até logo. Como é a sua graça?- João Antônio, seu criado... E a sua, inda que mal pergunte?

195 - Juca, patrício... Juca no mais... Quando render, espero a sua pessoapara um amargo!...

- ‘Stá feito!... Vá em paz!...E outra vez nos mexemos, agora sobre o acampamento dos legais.

Começamos a ouvir o falaraz dos homens, assobios, risadas, picamento de200 lenha, uma rusga de cachorros.

Mais umas braças. Cegamos. No meio do campestre uma fogueira grande,rodeada de espetos onde o churrasco chiava, pingando o fartum da gordura; nasbrasas, umas quantas chocolateiras, fervendo; armas dependuradas, botassecando, japonas abertas, e ponchos, nos galhos.

205 Deitados nos pelegos, nas caronas, muitos soldados ressonavam; outros,em mangas de camisa, pitavam, mateavam.

Do outro lado da sombra uma carreta toldada. Num fueiro, pendurado, umporongo morrudo, tapado com um sabugo; vestidos de mulher arejando, diziamlogo o que aquilo era. Pertinho, outro fogão, também com churrasco,

210 uma chaleira aquentando e uma panela cozinhando algum fervido... Umafumaça mui azul, cerrava tudo, alastrando-se na calmaria da ressolana.

Dois cavalos à soga, e um outro, bem aperado, maneado, pastando.Mal que desembocamos do mato vimos tudo... e tudo com jeito de

acampamento relaxado.215 O chiru foi andando como cancheiro, e eu, na cola, dele. Nisto um

sujeito, deitado nos arreios, gritou-nos:- Chê! Aspa-torta! Então isto aqui é quartel de farrapos?... não se dá

satisfações à ninguém?...- Foi o Marcos que nos mandou...

220 - Que Marcos?- O Marcos, que está de sentinela... e o João Antônio... sim, senhor, para

falar com o comandante...- Isso é outro caso... O comandante está sesteando... Se quiserem

esperem ali, junto da carreta. Já comeram?225 - Já, sim senhor.

- Pois então!... Vão!E apontou.

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Arrolhamo-nos na sombra da carreta, junto da roda, encostando a230 cabeça na maça. Eu estava como em cima de brasas... não era para

menos...Cuna!... Se descobrissem, nos carneavam vivos!...O Picumã cochilava... mas estava alerta, porque às vezes eu bem via

fuzilar o branco dos olhos, na racha das pálpebras, entre o sombreado das235 pestanas...

A milicada começou a retirar os churrascos, já prontos e foi se arranchandoem grupos, para comer.

Nisto, por cima de nós, dentro da carreta, ouvimos falar, depois uma risadamoça, e logo uma mulher desceu, barulhando anáguas.

240 O chiru, que estava com os braços encruzados por cima dos joelhos,quando sentiu a mulher, afundou a cabeça pra diante, escondendo a cara... e ochapéu ainda ficou imprensado entre a testa e a curva do braço... Então passoupela nossa frente a cabocla... viu um como dormindo e o outro, que era eu, muiderreado e bocó... E foi-se à panela, mirou-a, apertando os olhos

245 provia da fumaça e do mormaço do brasido.Por Deus e um patacão!...Era um chinocão de agalhas!... Seiúda, enquartada, de boas cores, olhos

terneiros... e com uma trança macota, ondeada, negra, lustrosa, que caía meiodesfeita, pelas costas, até o garrão!...

250 Por que seria que este diabo largou meu capitão, para se acolherar comeste tal ruivo? Isto de chinas e gatos... quem animar causa de um cavalo que elagabou e ele regalou-lhe... e até..a até por enfarada do outro... Ora vão lá saber!...

Nisto a pinguancha alçou a panela e voltou pra carreta.255 O chiru então, com a cara de lado, soprou-me de leve:

- Ela não se arpistou quando me viu?...- Não... nem nos benzeu com um olhado... É uma cabocla enfestada!...- Cale a boca... Apronte-se que o fandango não tarda.

260 - Eu preferia bailar com a morena...- Aqueles dois do mate convidado não vêm mais...- Os sentinelas?- Sim; com certeza o capitão enxugou-os... Está me palpitando que a gente

está desabando aí...265 Palavras não eram ditas, que saiu do mato um milico, pondo a alma pela

boca, e balançando, de cansaço e medo, mascou a nova:- Os farrapos! Os farrapos! Mataram o João Antônio!...Estrondou um tiro... zuniu uma bala... um legal vitou, pataleando.E pipocou a fuzilaria em cima da camelada!

270 Eu, pulei logo para o recavém da carreta, para me botar ao ruivo; mas antesde chegar já ele tinha descido... e se foi ao cavalo, que montou de pulo e mesmosem freio maneado, tapeando-o no mais, tocou picada fora.

E berrou à gente:- Pra o rincão! Pra o rincão!

275 E com a folha da espada tocou o flete, que pelo visto era mestre naquelasarrancadas.

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Mesmo assim eu ia ver se segurava o homem, mas o chiru gritou-me:- Deixe! Deixe! Agora é tarde!...Naturalmente de dentro da carreta a china viu o entrevero, e que o

280 negócio estava malparado; e pulou pra fora, pra disparar e ganhar o mato. Masquando pisou o pé em terra a mão do Juca Picumã fechou-lhe o braço, como umagarra de tamanduá...

A cabocla não estava tão perdida de susto, porque ainda deu um safanãoforte e gritou braba:

285 - Larga, desgraçado!...E olhou, entonada... mas conheceu o chiru e ficou abichornada, pateta...- O tata! O tata!...- Cachorra!... Laço, é o que mereces!...

290 - Me largue, tata!...- Primeiro hei de cair-te de relho... pra não seres a vergonha da minha

cara...Nesse instante, fulo de raiva, o nosso capitão manoteou-a pelo outro braço.

295 - Ah! mencê... perdão!... Nunca mais!... Eu... Eu...- Eu é que vou dar-te sesteadas com o ruivo, guincha desgraçada!

E furioso, piscando os olhos, com as veias da testa inchadas, largou obraço da morena mas agarrou-lhe os cabelos, a trança quase desmanchada,

300 fechando na mão duas voltas; agarrou curto, entre os ombros, pertinho da nuca...e puxou para trás a cabeça da cabocla... Com a outra mão pelou a faca, afiada,faiscando e procurou o pescoço da falsa...

Chegou a riscar... riscar, só, porque o chiru velho, o Juca Picumã, foi maisligeiro: mandou-lhe o facão, de ponta, bandeando-o de lado a lado,

305 pela altura do coração!...- Isso não!... é minha filha! – disse.O capitão revirou os olhos e deu um suspiro rouco... depois respirou forte,

espirrou uma espumarada de sangue e afrouxou os joelhos... e logo caiu, pesado,com uma mão apertada, sem largar a faca, com a outra mão

310 apertada, sem largar a trança.E a china, assim presa, rodou por cima dele, lambuzando-se na sangueira

que golfava pelo rasgão do talho, que bufava na respiração do morrente...Vendo isso, o Picumã quis soltar a pinguancha e forçou abrir a mão

315 do capitão: qual! Era um torniquete de ferro; tironeou... nada! Então, sem perdertempo, com o mesmo facão matador cortou a trança, rente, entre a mão do mortoe a cabeça da viva... Foi – ra... raaac! – e a china viu-se solta, mas sura datrança, tosada, tosquiada, como égua chucra que se cerdeia a talhos brutos, pontaabaixo, ponta acima...

320 E mal que sentiu-se livre sacudiu a cabeça, azonzada, relanceou os olhosassombrados, arrebanhou as anáguas e disparou mato a dentro, como uma anta...

- Cachorra!... vai-te!... rugiu o chiru, limpando o ferro na manga da japona.E olhando o corpo do capitão, cuspiu-lhe em cima, resmungando:

325 - Vancê vai dar parte de mim?- Esta á a Rosa, a tua filha?- Sim, senhor, que eu criei com tanto zelo!...

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E mais não pudemos dizer, porque o entrevero rondou para o nosso lado...e tivemos que fazer pela vida!... No meio do berzabum o Picumã

330 ainda achou jeito de atirar uns quantos tições pra dentro da carreta... e daí apouco o fogo lavorava forte naquele ninho de amores... A la fresca!... que ninho!...

Alguém gritou: o capitão ‘stá morto!... vamos embora!...Um de a cavalo atravessou-o no lombilho e fomos retirando,

335 tiroteando sempre.Mas a trança não ia mais na mão do morto.

Passaram-se três meses largos; em muita correria andamos, surpresas,tiroteios, combates sérios.

340 Um dia um estancieiro regalou-me um pingo tordilho, pequeninate, mas muimimoso. Quando eu ia sentar-lhe as garras, apareceu-me o Picumã, sempreesfrangalhado e com cara de sono e disse-me, desembrulhando um pano sujo:

- Vim trazer-te um presente; é um traçado feito por mim; e há de ficar345 mui bem no tordilho, porque é preto...

E ajeitou na cabeça do cavalo um buçalete e cabresto preto, de cabelo,trancado na perfeição. Nunca passou-me pela cabeça coisa nenhuma a respeito...

O meu esquadrão marchou para a fronteira; depois andamos de350 Herodes para Pilatos, até que no combate das Tunas... fomos topar com os

antigos companheiros de divisão. Brigamos muito, nesse dia. Aí ganhei as minhasbatatas de sargento.

Não sei como ele soube, mas noute um fulano procurou-me dizendo que osoldado Juca Picumã, um chiru velho, que estava muito ferio, pedia

355 para eu não deixá-lo morrer sem vê-lo.Lá fui. Estava o chiru deitado nas caronas e todo reatado de panos, pela

cabeça, nas costelas, nas pernas.O coitado gemia surdo, de boca fechada; e às vezes cuspia preto...

Quando me viu, à luz de uma candeia de barro fresco, quis mexer os ossos360 e não pôde...

- Então, Picumã... homem afloxa o garrão?E ele falou tremendo a voz:- Estou... com um crivo... Eram oito... em cima... de mim... só pude...

estrompar... cinco! Vancê... ainda... tem aquele buçalete?365 - Tenho sim, meio estragado, mas tu ainda hás de compô-lo, não é?

- Não... eu queria... eu queria... lhe... lhe pedir... ele, outra vez... pra... pramim...

- Pois sim, dou-te! Amanhã trago-te!- É do... cabelo da Rosa... a trança... lembra-se?...

370 Levantei-me, como se levasse um pregaço no costilhar... O buçalete erafeito do cabelo da china?!... E aquele chiru de alma crua... E quando firmei a vistado índio, ele arregalou os olhos, teve uma ronqueira gargalejada e finou-se, nunsesticões...

Nessa mesma madrugada fui mandado num piquete de375 reconhecimento, de forma que não soube nem como foi enterrado o Picumã,

porque o meu desejo era atirar-lhe pra cova aquele presente agourento...

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Agourento... agourento não digo, porque afinal enquanto usei aquelebuçalete nunca fui ferido... e ganhei de uma a quatro divisas...

Tem é que dobrei a prenda, reatei-a com um tento e soquei-a pro380 fundo da maleta, até ver...

Até que um dia, como lhe disse, soube que a Rosa morreu e então... ah!...já lhedisse também: atirei para a cova da china os cabelos daquela trança... doutro jeito,é verdade... mas sempre os mesmos!...

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Buçalete – espécie de buçal, compreendendo apenas testeira, cabeçadas e meiafocinheira.Tafulona – sedutora.Chiru – caboclo.Sovéu – laço muito forte.Recau – recado, apero de montaria.Caraminguás – badulaques.Chimarrão – aqui: cachorro selvagem.Coronilha – forte, resistente – como a coronilha – Scutia buxiflora.Rabo-de-tatu – relho grosso.Bolivianos – antigas moedas de prata.Meias-doblas – antigas moedas portuguesas.Camelos – depreciativo: imperiais.Verdeio – ato de verdear, pastar.Bombeiro – aquele que bombeta – observados, vigia.De bolapé – a vau.Boquejaram – conversaram.Pisa-flores – pretensioso, afetado.Gagino – depreciativo: galinho, galo com pernas de galinha.Caneleira – árvore dos nossos campos – Ocotea pulchella.Fueiro – suporte.Cuna! – interjeição de origem platina; o mesmo que aicuna! – ah, hijo de una...De agalhas – aqui: vistosa.Farromeiro – fanfarrão.Arpistou – desconfiou.Abichornada – aqui: envergonhada.Tata – papai.Pequeninate – muito pequeno.