Download - Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

Transcript
Page 1: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

1

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six

lettres sur les humanités scientifiques. Paris : La

Découverte.

Por Diogo Silva Corrêa

Como é possível ver na foto, acaba de ser publicada a tradução em português do

livro de Bruno Latour, Cogitamus: six letters sur les humantiés scientifiques, pela

editora 34 (http://www.editora34.com.br/detalhe.asp?id=911). Como se trata de

uma excelente obra cuja tradução eu entendo que deve ser saudada e muito bem-

vinda, resolvi publicar a resenha que escrevi pouco depois que o livro foi

publicado na França. Por isso, deixo claro que todas as citações são traduções

minhas e a paginação utilizada refere-se à versão francesa .

Page 2: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

2

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités

scientifiques. Paris : La Découverte.

Já em outros livros como Science en action, Petites leçons de sociologie des

sciences e Reassembling the Social, onde expunha as principais questões da sua

ANT – actor-network theory –, uma das fundamentais preocupações de Bruno

Latour sempre foi a exposição e a explicitação sistemática das questões e temas

tratados em seus livros e artigos mais técnicos anteriores. O livro Cogitamus deve

ser enquadrado como uma radicalização desse projeto, só que agora mais do que

nunca tornado acessível não apenas aos especialistas (filósofos, antropólogos,

sociólogos e afins), mas também ao leitor leigo.

O seu modo de apresentação é bem simples. Latour escreve seis cartas, todas elas

endereçadas a uma estudante alemã, muito provavelmente Dorothea Heinz, cujo

nome está presente nos agradecimentos e cujas iniciais aparecem na dedicatória

do livro. Cada carta, que se inicia com ilustrações extraídas de jornais cotidianos,

explora alguns dos pontos fundamentais da disciplina dada pelo próprio Latour

no Instituto de Estudos Políticos de Paris (IEP), intitulada Humanidades

Científicas.

Na primeira carta, o conceito de tradução é o carro chefe. Com ele, Latour visa

refletir sobre um primeiro paradoxo: “como se virar entre, de um lado, o senso

comum que nos diz (...) que as ciências são corpos estrangeiros e, de outro lado,

esse mesmo senso comum que multiplica os exemplos de sua ligação?” (p. 16). A

estratégia de Latour parece, portanto, ser dupla: de um lado, apontar a natureza

relacional das ciências e das técnicas com os demais saberes e, de outro, reinserir

os saberes no mundo.

Para isso, o autor volta à Grécia antiga e traz à baila a narrativa mítica de Plutarco,

presente em Vidas paralelas, a propósito do papel de Arquimedes no cerco feito

à cidade Siracusa. Simples assim: Hiéron, Rei de Siracusa, desejava executar o

seguinte curso de ação: proteger a sua cidade do cerco das tropas do general

romano Marcellus. Para que isso se tornasse possível, contudo, necessitava

passar por um desvio: as ideias de Arquimedes sobre a alavanca. Pediu então o

Rei ao sábio que este último aplicasse a sua invenção na prática, em uma situação

Page 3: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

3

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

concreta. Após a sua bem sucedida demonstração, diz-nos Latour que

Arquimedes promoveu “uma verdadeira inversão das relações de força: um velho

homem, Arquimedes, graças ao jogo de roldanas, torna-se mais forte do que uma

nau cheia de soldados e cargas” (p. 20). A mensagem é clara: tanto a ideia de

Arquimedes quanto a defesa da cidade de Syracusa só se tornaram realizáveis e

puderam perseverar graças à composição dos interesses do Rei e do sábio. Muito

embora, no final, Plutarco narre Arquimedes como “um espírito tão elevado e

profundo” que só consagrava seu esforço aos “objetos cuja beleza e excelência não

estavam misturadas com nenhuma necessidade material” (p. 23), a própria

história contada o contradiz. Latour aproveita essa contradição para explorar a

tese de que toda ideia só avança ao preço de múltiplos desvios e composições: “no

fim, a ação é tecida por esses encadeamentos e parece com uma multiplicidade de

camadas [feuilleté] de preocupações, de práticas, de línguas diferentes – às da

guerra, da geometria, da filosofia, da política” (p. 30).

Se assim é, eis uma das primeira tarefas das “humanidades científicas” proposta

por Latour: dar conta, na medida do possível, de todo o processo, e não apenas

do final, retraçando toda a cadeia de desvios e composições. Ora, se cada ideia

só se expande e persevera mediante essas múltiplas transformações, a

consequência natural dessa perspectiva é uma revisão da própria noção de

autoria: quem teria feito ou inventado, para utilizar um outro exemplo tratado

por Latour na primeira carta do livro, a pílula anticoncepcional? Trata-se de uma

questão secundária, já que o principal para o pesquisador seria retraçá-la como a

resultante das traduções imbricadas nos interesses de, ao menos, quatro

protagonistas: a militante feminista Margaret Sanger, a viúva herdeira da fortuna

de uma fabricante de tratores, Catherine Dexter McCormick, o químico notório,

Gregory Pincus, e, enfim, a família das moléculas chamadas de esteroides (p. 31)

Daí em diante, Latour ratifica esse duplo movimento. De um lado, o diretor

científico da SciencePo Paris mostra como as ciências e as técnicas não estão

separadas, mas encontram-se permanentemente em relação com outros saberes.

De outro lado, Latour ancora os saberes na vida e no universo da experiência. Daí

porque a ciência apenas interessa à medida que possui relação com outros cursos

de ação que não apenas aqueles dos cientistas em seus respectivos espaços

laboratoriais. Em outros termos, a ciência ganha seu valor e sentido apenas

Page 4: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

4

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

enquanto é capaz expandir-se e concernir os interesses de outras formas de vida.

E interesse, na acepção latouriana, faz-se preciso dizer, não significa uma

representação mental que existe de modo prévio à ação, mas uma combinação

particular que emerge do próprio processo de composição e de desvio dos cursos

de ação.

Na segunda carta, o conceito de prova assume o protagonismo da cena. Trata-se

de um problema de método: como analisar os desvios e as composições se, em

geral, eles são invisíveis ou, para retomar uma velha expressão da fenomenologia,

tidas por óbvias (taken for granted)? Ora, explica Latour, é no momento de prova

que se revela “o embotamento de desvios e de composições” (p. 45). Ainda que

exista outras modalidades de expressão da prova, a mais pedagógica, segundo

Latour, é mesmo a pane. A situação é por todos nós conhecida: tudo funciona

muito bem ao seu modo habitual e rotineiro até que, de repente, “paf, bug, gap,

crise, furor” (p. 45). O computador, um mero objeto técnico, se apresenta agora

enquanto um projeto sócio-técnico: “de simples, meu computador se tornou

múltiplo; de unificado, ele se tornou desarmônico; de imediato, ele se tornou

mediado; de rápido, ele se tornou lento (...)” (p. 47). E parte da rede e dos

elementos heterogêneos constitutivos que o mantinham funcionando em perfeito

estado, e agora falham, vem ao primeiro plano e tornam-se visíveis: “é quando as

coisas se complicam que procuramos analisar os seus elos (...)” (p. 16). Um

processo de investigação no sentido do filósofo pragmatista John Dewey se inicia.

Uma vez o computador levado à equipe de técnicos, a indeterminação inicial

começa a ser decifrada; a fonte da perturbação é encontrada e um problema se

revela progressivamente. Soluções e hipóteses são testadas, examinadas,

verificadas. Só então que, passado algum tempo, o problema é, enfim, reparado,

e o dono do computador pode usufruir de sua máquina, e retomar o seu curso de

ação... Uma vez concluído o processo, “e hop, o que há de verdadeiramente

original nas técnicas logo desaparece” (p. 55). Nesse sentido, a pane faz o objeto

– no caso, o computador – ser “redescoberto” não uma coisa inerte, parada, lá

fora, mas um fluxo mantido por uma série de desvios e composições: “ele bem

existe, mas ao modo de um corte no instante t. O objeto é uma parada sobre uma

imagem do filme do projeto” (p. 55).

Page 5: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

5

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

Desde suas reflexões de metafísica especulativa situada ao final do livro sobre

Pasteur, chamada Irreductions (1984), Latour não retomava o conceito de prova

de modo tão sistemático. Resgate do conceito esse que reverbera uma série de

discussões do que pode hoje ser chamado de “sociologia pragmática francesa”

(ver Corrêa e Castro, 2016) ou, como Cyril Lemieux a intitula, “sociologia das

provas”. Tanto se nos ativermos à pragmática dos julgamentos ordinários de Luc

Boltanski e Laurent Thévenot (1991), quanto à pragmática do senso de realidade

trabalhada por Francis Chateauraynaud e Christian Bessy, a noção de prova é

central, pois permite dar conta da incerteza inerente ao agir e ao mundo,

propondo uma via média entre o universo etnometodológico no qual a realidade

é permanentemente renegociada local e situacionalmente e um universo neo-

objetivista, no qual os elementos envoltos na ação estão determinados de forma

prévia mediante atualização de um passado incorporado nos corpos (habitus) e

objetivado nas coisas (campos). Como veremos na parte final da resenha, Latour

à discussão impõe seu próprio estilo.

Seguindo suas reflexões sobre a relevância dos dispositivos técnicos, Latour volta

à discussão a respeito da diferença entre homens e os macacos. Ao invés de

enfocar as propriedades da alma ou dos esquemas cognitivos altamente

especializados, Latour pensa, sobretudo, nos dispositivos sócio-técnicos. Através

deles, o antropólogo das ciências inverte a perspectiva tradicional do Ocidente

(seja em sua versão filosófica aristotélica ou religiosa judaico-cristã): os homens

não constroem ambientes mais sofisticados e aparelhados porque são mais

capacitados do que os outros animais; ao contrário, é porque os ambientes dos

humanos são mais aparelhados e bem equipados que as suas competências e

capacidades são mais complexas, quer dizer, mais mediadas, mais múltiplas e

mais plurais. Para exemplificar este argumento, Latour propõe o seguinte

exercício: desfaçam-se todos de seus objetos sóciotécnicos (avião, carro, bicicleta,

computador, caneta, lápis, cadernos, celular, etc) e pensem qual deles você

mesmo seria capaz de fazer por sua própria conta? Nenhum? Este é o universo

raso e permanentemente a ser recomposto da etnometodologia, mais

precisamente naquele do qual jamais saem os macacos.

Em contraposição às teorias críticas que vislumbram os dispositivos técnicos e à

ciência como redutores da ação – e da condição – humana à racionalidade

Page 6: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

6

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

instrumental, o ex-professor da École de Mines propõe uma tecnofenomenologia.

Em termos sintéticos, Latour apregoa com esta última que quanto mais dotados

de dispositivos técnicos somos, quanto maior é a cadeia de mediações pela qual

passamos, mais nos aproximamos do mundo e dele nos tornamos

íntimos. Quanto mais os aparelhos e os instrumentos nos permitem fazer do

invisível, visível, e do visível, legível, maior a nossa capacidade de interagirmos

de modo íntimo com o mundo.

Em seguida, Latour propõe um pequeno gráfico cujo escopo é apresentar uma

pequena história evolutiva das capacidades humanas e das coisas: indo das puras

interações às ferramentas, dos signos às técnicas, das sociedades à

artificialização, dos impérios às maquinas e das organizações às tecno-esferas, o

autor apresenta uma nova linha que se inicia na complexificação social e vai até,

digamos, a era da ecologia.

Duas são as narrativas que descrevem esse processo. De um lado, aquela que

aponta para uma progressiva emancipação e que nunca deixou de ser

exaustivamente propalada desde ao menos o Iluminismo. Grosso modo, é a

narrativa dos modernos. De outro, a narrativa em nome da qual Latour advoga,

que aponta para uma crescente multiplicação de vínculos e de implicações. Para

essa última, não existe um processo de emancipação, mas apenas uma

multiplicação dos vínculos e das associações, através de mais redes, mais objetos

sócio-técnicos, mais dispositivos, mais composições, mais desvios e mais

traduções.

Agora chegamos à terceira carta, e nela, das provas passamos às controvérsias

científicas. Nessas últimas, segundo Latour, os enunciados transitam entre dois

extremos: a dúvida radical e a certeza inconteste. O ex-professor da École de

Mines explora a ideia de que “um enunciado que não precisa mais de aspas, de

nenhuma condicional, possui a particularidade de tornar-se impossível de se

distinguir do mundo” (p. 81-2). O enunciado inconteste (dictum), portanto, não

é um pleonasmo do mundo, mas pode se tornar dele indiscernível como resultado

provisório de uma longa controvérsia: “no início do exercício, o enunciado flutua;

no fim, deve-se descobri-lo solidamente ancorado em uma paisagem precisa (...)”

(p. 81). .

Page 7: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

7

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

Cabe responder onde então seria possível perceber, seguir e acompanhar esse

processo no qual o enunciado ontologiza-se progressivamente, ou seja, deixa de

ser uma mera frase flutuante e torna-se ele próprio uma mera redundância do

próprio mundo? Eis a importância das controvérsias. Sua exemplaridade consiste

justamente no fato de que, através do acompanhamento de suas transformações

imanentes, é possível ver, por exemplo, como um micróbio, até então mera

especulação do pensamento, torna-se uma coisa concreta, quer dizer, parte

integrante da experiência cotidiana dos atores.

Nessa lógica, a tarefa do pesquisador torna-se, então, “seguir, traçar ou

cartografar uma controvérsia” localizando “todos os seus movimentos” (p. 85),

todas as suas passagens, suas transformações e mudanças intensivas. Isso inclui,

portanto, acompanhar os enunciados ainda permeados de dúvidas e hesitações,

passando pelos estados intermédios como o “rumor”, a “opinião”, o “parecer”, a

“proposição” até a sua possível fase final, em que se tornam “descoberta” e “fato”,

quer dizer, inscrições nítidas e bem definidas, posteriormente encontradas em

artigos acadêmicos, sem a necessidade de aspas.

Em seguida, Latour critica a distinção entre a epideixis (a retórica), em geral

ligada ao mundo da política, e a apodeixis (a geometria), vinculada às ciências.

No lugar de uma antinomia entre um e outro, o autor propõe reuni-los em uma

mesma palavra, a eloqüência, definida como “a arte e a ciência do bem falar, mas

lembrando sempre o quanto é difícil bem falar das pessoas – e sobretudo das

coisas”. (p. 99). O ponto consiste justamente em explorar o fato de que, em uma

controvérsia, a relação entre ciência e política é indiscernível; no limite, uma

possível separação entre um e outro pode surgir como a resultante dos

desdobramentos temporais da dinâmica interna da própria controvérsia, e não

aquilo que já estava constituído de modo a ela prévio. Aproveitando essa reflexão,

Latour propõe uma nova definição do de sua disciplina: “Humanidades

científicas [...] consistem em seguir todas as provas capazes de produzir ou não

convicção, todas as engenhosidades, as montagens as astúcias, os achados, as

coisas graças às quais termina-se por tornar evidente uma prova de modo a fechar

uma discussão permitindo aos interlocutores mudar e opinião sobre o caso em

torno do qual eles se encontram reunidos” (p. 100) Pois se nada, se nem a mesmo

a própria evidência é evidente a priori, então resta todo o trabalho de repertoriar

Page 8: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

8

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

as modalidades de constituição de sua emergência. E isso sem fazer uso de uma

metafísica anterior aos processos controversos. Bem ao contrário, acompanhar a

controvérsia, para Latour, é bem descrever as formas pelas quais os próprios

atores edificam e, por vezes, modificam a evidência. Se evidência há, duas

condições se impõem à análise. Primeiro, que ela parta diretamente dos atores

e, segundo, que ela seja uma resultante de uma atividade conjunta. Em outros

termos, que a evidência seja sempre oriunda não mais de um cogito, mas de um

cogitamus.

Temos aí, com Latour, o esboço genérico das modalidades por meio das quais as

entidades ou fluxos que compõem o mundo adquirem uma espessura ontológica

e, para ser redundante, se realizam como real. O que também significa afirmar

que tudo aquilo que o senso comum trata como óbvio e indubitável possui,

portanto, uma história: as coisas nunca são dadas de antemão, mas são antes

efeitos de uma multiplicidade de controvérsias coletivas, hoje em dia mais do que

nunca sóciotecnicamente bem mediadas e equipadas. Toda verdade e todo

enunciado verdadeiro não advêm jamais de um eu encerrado em si mesmo, mas

sempre de um nós aberto e permanentemente afetado pela alteridade –

lembrando que esse nós inclui não apenas outros humanos, como também os

dispositivos e objetos sócio-técnicos, além de todas as modalidades de aparição

das entidades em geral, como os deuses, os espíritos, as plantas, os animais, etc.

Na quarta carta, Bruno Latour retoma o famoso livro de Alexandre Koyré, que

descreve a passagem do mundo fechado (antigo e aristotélico) para o mundo

infinito (moderno e pós-revolução científica). O seu alvo é descrever uma nova

passagem: a do mundo infinito ao multiverso complicado.

Para bem descrever e exemplificar essa transição, Latour apresenta um desenho

feito por Galileu em seu diário de viagem, no qual próprio autor italiano conjuga,

em uma mesma página, um desenho retratando as crateras da Lua, na parte de

cima, e o esboço de um horóscopo, em baixo. Diante disso, o antropólogo das

ciências descreve três posturas possíveis. A primeira, que seria suprimir o que

está em baixo (o horóscopo), apontando Galileu como um gênio e inventor da

astronomia. A segunda seria situá-lo na interface de dois mundos, a saber, o

moderno, representado pela astronomia e o antigo, expresso pela astrologia,

Page 9: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

9

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

tratada como um resquício do passado arcaico e místico. Por fim, uma terceira:

“seguir, durante um dado período, a lista de seres aos quais os sábios se sentem

vinculados e que eles se esforçam para recombinar com o intuito de levar em

conta a multiplicidade de injunções contraditórias que sua época parece lhe

impor.” (p. 117). Com essa terceira via, Latour visa impedir ao anacronismo que

tanto enxerga as pessoas do passado como precursoras de um futuro totalmente

a elas alheio e estranho quanto reduzir a parte de baixo da página do diário de

bordo de Galileu a um resquício pré-moderno.

Em lugar de propor uma repetição mítica que condena a história a sempre ecoar

uma descontinuidade radical (ou uma ruptura epistemológica) entre um mundo

antigo (ilusório) e um mundo moderno (esclarecido), Bruno Latour advoga pela

passagem do universo ao multiverso (retomando, aqui, a expressão cunhada pelo

filósofo pragmatista William James). Se não há mais essa descontinuidade

radical, o próprio sentido da palavra revolução muda. No sentido promulgado de

ruptura com todos os elos do passado, o autor diz que se trata de “um termo de

guerra na boca dos combatentes que procuram tornar irreversíveis

transformações que correriam o risco, sem isso, de voltar rápido demais” (p. 119).

Na esteira do pensador alemão Peter Sloterdijk, Latour propõe pensar os

processos de mudança e transformação não como Revolução ou Emancipação,

mas Explicitação. Jamais rompendo com o passado, a história “torna explícito

sempre mais elementos com os quais nos é preciso aprender a viver, elementos

que tornam-se compatíveis ou incompatíveis com os que já estavam lá” (p.

120). Oferecendo uma alternativa de escape à perspectiva dos modernizadores,

Latour nos convida a uma nova “política epistemológica”. Nela, a tarefa do

pesquisador deixa de ser, nos termos modernos, conhecer a realidade por

dessubjetivação (como diria Viveiros de Castro), e passa a ser a de descrever “o

agenciamento de todos os seres que uma cultura particular liga em conjunto em

formas de vida prática” (p. 121). Mas tanto para fugir ao anacronismo quanto ao

encerramento das entidades em uma “cosmologia coerente”, o antropólogo das

ciências utiliza o conceito de “cosmogramas”. Para retraçá-los, propõe a descrição

das “associações de conveniência, de coexistência, de oposição e de exclusão entre

os seres humanos ou não humanos cujas condições de existência são pouco a

pouco tornadas explícitas nas provas das disputas”. (p. 117). “Traçar os

Page 10: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

10

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

cosmogramas, [diz-nos Latour], é se tornar sensível às listas de associações e de

duelos lógicos sem recorrer à distinção entre o racional e o irracional, o moderno

e o arcaico, o sistemático e o bricolé” (p. 123). Com isso, o autor propõe aos

pesquisadores que eles se tornem capazes de descrever as possíveis associações e

dissociações e o surgimento de novos seres que pululam e surgem “da imensa

circulação dos mercados e do comércio, das inovações do ateliê, dos achados que

saem dos estúdios dos artistas, das guerras e dos infortúnios dos tempos, sem

esquecer dos ratos, dos micróbios e das pestes, mas também, em parte, o que não

é desprezível, dos lugares que chamamos laboratórios, cuja importância e

ubiquidade não fazem senão crescer desde o século XVII.” (p. 123).

Na parte seguinte da mesma carta, Latour desenvolve uma breve história dos

laboratórios, cuja descendência ele vincula ao ateliê, lugar por excelência no qual

as entidades são testadas, verificadas, postas à prova, mudando assim, por vezes,

de qualidade. Os escritórios, tratados como o lócus em que se forjam “tecnologias

intelectuais” (p. 125-6), também por Latour são postos na origem dos

laboratórios. Daí porque estes últimos seriam, na verdade, um emaranhado de

entidades materiais (a maioria das quais em estado “quente”!) e de técnicas

intelectuais. Seriam, portanto, o lugar por excelência em que, através da

mediação de instrumentos, se forjam não apenas “novas capacidades mentais”,

mas também o recinto no qual as coisas falam por si próprias ou, em outros

termos, “falariam caso elas falassem”. Ainda na história dos laboratórios, Latour

apresenta duas de suas origens. De um lado, situa sua origem em Galileu, cuja

invenção de dois dos elementos basilares do laboratório ainda permanece atual:

1) a redução do fenômeno às condições ideais (o exemplo usado é a exclusão do

atrito para a explicação queda dos corpos); 2) a capacidade de compatibilizar o

universo da experiência com a linguagem de descrição da geometria e da álgebra.

A outra origem dos laboratórios, segundo Latour, teria ocorrido com Robert

Boyle. O fundamental aqui seria a reprodução experimental e artificial de um

fenômeno dentro do espaço laboratorial, apenas com o auxílio de instrumentos e

dispositivos. De modo a complementar essa rápida genealogia dos laboratórios,

Bruno Latour introduz a própria academia, enquanto comunidade constituída de

pares que discutem e debatem ideias e experiências, e que mantêm relativa

autonomia frente às demandas de outras comunidades.

Page 11: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

11

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

Depois de mencionar o livro de Dava Sobel, em que a autora relata como a

mensuração da longitude tornou-se possível, Latour sublinha a importância de

que não fiquem os instrumentos e “invenções” restritos ao espaço controlável do

laboratório e sejam confrontados pelas coisas do mundo. Para ser bem sucedida,

a invenção deve, ela própria, sair dos espaços fechados e protegidos e ir à campo,

suportando assim as transformações e variações que bem articulam as suas

hipóteses de saída com a reação efetiva das coisas mesmas em sua chegada no

mundo. Daí decorre uma crítica à noção de aplicação, a qual deixa de lado ou ao

menos oblitera o fator experiencial de uma ideia, quer dizer, a “série de testes, de

provas mais ou menos públicas, cujo fracasso pode colocar fim à experiência” (p.

140). Não é senão após contínuas verificações e testes que uma elaboração

científica pode ter “efeitos práticos” e assim ter um efetivo êxito.

Mas por qual razão a noção de aplicação teria sido tão influente e feito, por tanto

tempo e para tantas pessoas, sentido? Latour retorna seu arsenal para um de seus

principais oponentes: a noção de res extensa de Descartes, esse espaço abstrato

que prescinde das múltiplas dobras e curvas do espaço concreto. Historicamente,

ela é tratada por Latour como uma astúcia epistêmica forjada pela ciência

moderna com o intuito de produzir uma relação de continuidade entre o espaço

abstrato, inteligível e calculável e o espaço concreto, inapreensível e imprevisível.

Não seria isso um grande problema não fosse o fato de a res extensa ter sido

confundida com a ontologia das próprias coisas: “notem bem, (...) malgrado essa

pequena palavra res, não se trata de uma coisa, um domínio da realidade, mas de

uma ideia, e mesmo uma ideia produzida por essa ‘louca da casa’, que é a

imaginação” (p. 142). Daí porque, uma vez mais, Latour propõe uma inversão:

“na narrativa Cogitamus, são os laboratórios que aparecem em primeiro plano

com todos os seus desvios e suas composições, seus cosmogramas coloridos, e é

a res extensa que aparece como uma continuidade artificial, idealista, quase

supérflua” (p. 144). Ora, no mundo dos multiversos a res extensa torna-se apenas

mais um dos universos possíveis – muito útil, é verdade, para tornar certos

espaços calculáveis e para facilitar e tornar possível a comunicação em certos

casos, mas não para, digamos, refletir (sobre) a ontologia das coisas.

A quinta carta começa por colocar em questão a antiga separação entre

especialistas, de um lado, e leigos, de outro. Pois, no momento mesmo em que os

Page 12: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

12

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

próprios especialistas dão frequentes e públicas demonstrações de desacordo e

divergências, naturalmente a distinção, tão simples e dicotômica de outrora, se

complexifica. Como agora defender a separação entre fatos indiscutíveis e valores

indefinidamente disputados se os próprios porta-vozes dos fatos não possuem

consenso a respeito do que eles realmente são? Ora, sem um princípio de

transcendência (Deus, na Idade Média, e a Razão, para os modernos) capaz de

validar a existência de uma realidade cujo modo de existência encontra-se fora

de toda e qualquer discussão, como sustentar a antiga demarcação que separava

os porta-vozes dos fatos e da realidade objetiva dos porta-vozes dos valores e de

suas próprias impressões subjetivas? Se isso não é mais possível, como explicar a

autoridade exercida por essa transcendência, a Razão? Afirma Latour que “a

autoridade conferida à Razão transcendente não era, de fato, agora disso nós nos

apercebemos, senão o resultado imprevisto e frágil da unanimidade sonhada

pelos especialistas sobre questões esotéricas e de pouco impacto prático” (p. 163).

Depois do Climagate em Compenhage, onde mesmo os mais elementares matters

of fact se mostram em sua condição de matterns of concern, afirma Latour que

“o papel dado aos especialistas se tornou um papel insustentável e que é preciso

que esses últimos encontrem outros apoios e os façam entrar em outras

combinações” (p. 166). Que papel seria esse? Qual seria essa nova tarefa? Ora, se

não podemos mais nos garantir na distinção entre ciência e política, entre o

universo (da res extensa) em contraponto às diferentes visões das pessoas, o que

fazer? Novamente o conceito de cosmograma é retomado, posto que, nesse caso,

cabe ao pesquisador fazer cosmogramas capazes de explicitar a emergência

contínua de novas entidades e associações do cosmos, quer dizer, novas formas

de composição do mundo. Não mais, como descreve bem Viveiros de Castro,

epistemologias variáveis para uma ontologia comum; bem ao contrário, na

proposição latouriana as ontologias variáveis devem não apenas ser liberadas,

com o fim dos antigos “Grandes Divisores”, bem como retraçadas na forma de

cosmogramas. Retomando Isabelle Stengers, Latour propõe levar a sério e às

últimas consequências uma política que faça jus à palavra cosmos ou

simplesmente uma cosmopolítica.

Sem um princípio de transcendência norteador (Deus ou Razão), Latour parece,

enfim, aderir ao pensamento pragmatista. Aos atores e também aos especialistas

Page 13: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

13

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

“é preciso confiar na démarche hesitante das provas e dos momentos de prova,

do tateamento e da hesitação, da precaução e da exploração coletiva.” (p. 171). Se

a metafísica existe, que ela seja agora no plural e venha, parta e emerja

diretamente dos atores. A questão da representação, seja dos homens (pelos

políticos), seja das coisas (pelos cientistas), agora é deixada ao encargo desse

caldeirão cosmológico do qual pululam as entidades relacionais humanas e não

humanas. A boa ou má representação é apenas uma resultante desse imenso e

complexo processo. Ao pesquisador, resta apenas a tarefa de acompanhar e seguir

esses processos e transformações complexas, cheias de desvios e composições.

Na carona dessa indefinição, Latour volta à questão das controvérsias e do sítio

de internet criado por ele e por seus alunos e colaboradores em que apresentam

“cartografias de controvérsias” (p. 174). O escopo é partir de um assunto

controvertido e tentar, em torno dele, reunir o maior número de opiniões e de

pontos de vistas possíveis – sem esquecer de apontar e explicitar as suas variações

ao longo do tempo. Com isso, a verdade sobre um determinado tema deixa de ser

dada por um princípio transcendente e anterior à controvérsia, mas é

reconfigurada permanentemente ao longo da confrontação do público (no

sentido de John Dewey) envolvido no processo de definição do objeto ou questão

em jogo. Os enunciados flutuantes e as entidades mobilizadas podem ter sua

cadeia de associações retraçadas. Mas é preciso que uma ressalva seja feita:

acompanhar uma controvérsia não é apenas congregar distintas opiniões em

torno de uma questão, mas, mais do que isso, é apontar como um mundo, todo

um cosmos se revela, emerge e se reconfigura na confrontação de ontologias. As

diferenças existentes em uma controvérsia não são da ordem da opinião e não se

restringem a visões de mundo diferentes. Mais do que isso, as diferenças de

opiniões que abundam nas controvérsias são antes sintomas de diferenças

ontológicas. Os atores discordam não porque suas visões de mundo são

divergentes; antes, como ficou claro no famoso debate entre Ulrich Beck e Bruno

Latour, é porque são os mundos dos atores diferentes que eles discordam. A

aposta do professor da Science Po é que com essa nova metodologia proposta para

retraçar controvérsias seja possível “calcular a multiplicidade de pontos de vista

e de seguir a dinâmica de suas transformações” (p. 181). Com essas ferramentas

de numeração de palavras e argumentos, Latour pretende tornar possível e

Page 14: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

14

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

comensurável uma dinâmica que seja integralmente interna à controvérsia e

capte as suas variações intensivas imanentes. E que, assim, se torne factível o

projeto de analisar a “composição progressiva do mundo” pelos “atores eles

mesmos”, sem a intervenção de nenhum princípio a eles externos.

Na sexta carta, Latour inicia com quatro definições do que, em geral, é tido por

“científico”. Uma primeira faz referência às qualidades ou modos de ser de uma

pessoa: controle das emoções, neutralidade, capacidade de calcular, etc. Uma

segunda diz respeito à realidade mesma, quer dizer, ao mundo sem mediação da

subjetividade (a res extensa desencantada e vazia de sentido). Uma terceira

vincula-se à ideia de que o científico é o que é comprovável e embasado em dados

concretos, que faz referência a um conjunto de instituições e dispositivos capazes

de validar algo como real. Enfim, uma quarta: “dizer que um resultado é

cientifico, é nos levar na direção de um laboratório (no sentido amplo) onde se

recai sobre um conjunto de testemunhos reunidos em torno de um instrumento

que permite abarcar os testemunhos de um outro conjunto de entidades

submetidas às provas, graças às quais elas vão poder participar de um modo ou

de outro do que se diz sobre elas” (p. 189). Nesse último, é como se as coisas

falassem por si próprias, só que mediadas pelos homens ou, para retomar as

palavras do autor, tudo se passa como se “a linguagem articulada dos humanos

assumisse a linguagem articulada do mundo” (p. 189).

Essa última definição interessa a Latour porque ela impõe ao universal, ao

extensível, ao contínuo e ao indiscutível uma dimensão temporal. Tudo depende

da existência de um trabalho contínuo e permanente, cujos resultados, embora

por vezes universalizáveis, nunca deixam de ser provisórios.

Em seguida, Latour enfim chega ao problema da Natureza, com N maiúsculo. Pra

isso, invoca uma antiga anedota de Lévi-Strauss, retrabalhada por Eduardo

Viveiros de Castro, na qual o ex-professor do Collège de France descreve, de um

lado, a controvérsia entre Las Casas e Sepúlveda em torno da presença ou não de

alma nos índios e, de outro, os métodos empregados pelos índios para saber se os

espanhóis eram ou não dotados de um corpo. Segundo os Ocidentais, existiria

uma continuidade dos corpos (a realidade material é a mesma para todos) em

contraposição a uma descontinuidade de visões (nem todos a enxergam da

Page 15: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

15

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

mesma maneira). Com o índios, o inverso se daria: a princípio, todos os seres

seriam dotados de alma, sendo o corpo o fator diferenciante. O corpo, sendo

entendido não como uma entidade biológica ontologicamente destacada do

ambiente, mas como um conjunto de afecções e capacidades em um fluxo

dinâmico e ininterrupto, não seria o princípio universal subjacente às almas, mas

aquilo que gera diferentes perspectivas. Esse exemplo, para Latour, possui um

valor pedagógico, pois, ao propor não mais um multiculturalismo, mas um

multinaturalismo, Viveiros de Castro conseguiria colocar em xeque a noção de

uma natureza una, lá fora, em direção a qual a ciência, pelo estabelecimento de

leis, desvelaria os princípios de seu funcionamento.

Nesse caso, a antiga Natureza, a da res extensa, torna-se então um dos casos

possíveis de ligação e associação de seres múltiplos e heterogêneos, um modo

particular de construção da continuidade de entidades a princípio radicalmente

diferentes umas das outras. Trata-se tão somente de um modo arbitrário de se

estabelecer continuidades extensivas ali onde vigem diferenças intensivas. Por

isso, Latour novamente fala de multiverso em oposição ao universo. O objetivo é

“deixar aberta a questão dos meios pelos quais se unifica ou não se unifica a

diversidade do cosmos” (p. 195). Os cosmogramas aqui ganham o seu sentido

maior: eles visam seguir, acompanhar e descrever o trabalho de unificação, antes

pressuposto em conceitos gerais como o de sociedade ou de natureza,

empreendido pelos seres para construir um mundo comum. Em poucas palavras,

os cosmogramas bem retraçados permitem explicitar o que antes era tido como o

princípio da explicação das coisas e do mundo.

De modo a melhor apresentar o mundo do espaço curvo e permeado por

diferenças intensivas, o qual se opõe à desencantada “visão científica do mundo”,

Bruno Latour invoca dois autores. O primeiro deles, apresentado como o “santo

patrono do multiverso” (p. 198), é Charles Darwin. O segundo é von Uexküll. Do

primeiro, Latour extrai a riqueza com que o autor sabe bem mostrar como, a cada

geração, é necessário uma multiplicidade de infinitesimais invenções e

adaptações para que a vida persevere. Do último, a Unwelt, um conceito forjado

para dar conta de um nível da realidade que capte um ambiente-para-um-

organismo, e faça portanto referência a um sentido que advenha dessa relação

constitutiva e transacional. Nas palavras do próprio Latour, “em Darwin, é a

Page 16: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

16

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

pequena invenção singular que permite a adaptação e a transformação dos

viventes, sem nenhum sentido superior para guiá-los. Em von Uexküll é a ideia

de Unwelt, por oposição a de ‘entorno’, noção abstrata, inventada por pura

comodidade para designar esse envelope universal que seria destinado a envolver

todos os viventes”.

Mesmo as máquinas, tidas como reduto e exemplo maior do mundo mecânico e

desencantado pós-revolução científica, são por Latour apresentadas sob uma

nova perspectiva. Ao invés da visão imaginária de peças integradas em um

funcionamento linear e retilíneo, Latour propõe reintegrá-las ao mundo e

explicitá-las em seu modo de existência concreto. Enquanto máquinas-no-

mundo, duas seriam a sua modalidade de aparição. De um lado, no espaço

bidimensional do desenho no papel, no qual todos os deslocamentos parecem não

implicar qualquer modificação ou transformação; de outro, fora do papel, onde

“será preciso às máquinas todo um meio ativo, vivo, complexo, toda uma ecologia

frágil para que elas cheguem a funcionar duravelmente” (p. 203)

Latour, em seguida, volta à questão da relatividade em Einstein. Aqui talvez seja

necessário abrir um parêntese e explicar uma confusão comum entre

relatividade, relativismo e relativização. Em primeiro lugar, Latour não advoga

pelo relativismo, este entendido a partir da velha tese do senso comum segundo

a qual “cada um tem um gosto diferente” ou, ainda, em sua modalidade neo-

kantiana, de que cada cultura ou sociedade disporiam de filtros categorias que

refratariam diversamente o modo de acesso às coisas. Segundo, a relativização

pode ser entendida, como no livro De la Justification de Luc Boltanski e Laurent

Thévenot, como uma capacidade de que dispõem as pessoas de se distanciarem

de um ponto de vista, quer dizer, de colocá-lo como uma possibilidade dentre

outras possíveis. Feitas as considerações e ressalvas, assim explica o autor a noção

de relatividade: “O que é a relatividade senão o esforço para restituir entre cada

ponto e o seguinte a pequena descontinuidade que vai permitir de, literalmente,

colocar os pêndulos na hora, e de assegurar assim, no final das contas, a

continuidade das leis da natureza em todos os pontos? Ainda aí, o continuo é,

sim, obtido, mas com condição de levar em conta a descontinuidade bem real,

neste caso do tempo, que coloca o sinal para passar de um ponto ao outro, e o

trabalho igualmente real pelo qual um observador mede o tempo superpondo os

Page 17: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

17

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

ponteiros grande e pequeno do relógio.” (p. 208). A relatividade é, portanto, não

uma forma de reduzir a realidade das coisas a mera construção. Bem ao contrário,

como disse certa vez Viveiros de Castro, não importa a relatividade da verdade,

mas a verdade do relativo. Nesse sentido, advogar pela relatividade é um modo

de tentar, no limite do possível, lidar com as mudanças intensivas e qualitativas,

sem reduzi-las a deslocamentos extensivos e quantitativos. Em oposição a

epistemologia dos geômetras, a relatividade pretende restituir ao mundo sua

ontologia, seus Unwelts, seu fluxo, seu devir, suas curvas e suas dobras. Em suma,

ela pretende restituir à noção abstrata de massa a matéria e a energia viva de que

ela é composta. Com essa discussão na qual Latour se apresenta como dentro da

tradição da relatividade einsteiniana, que o sociólogo francês encerra o livro.

Com relação aos livros anteriores, Cogitamus representa três grandes avanços.

Primeiro, ele verdadeiramente consegue reintegrar toda a trajetória intelectual

de Bruno Latour em uma sensibilidade comum – que, indo além da própria auto-

definição autor, podemos chamar de pragmatista. Ainda que isso possa ser efeito

de uma narrativa retrospectiva que faz tudo concorrer para a sua preocupação

mais recente voltada para os “modos de existência”, o esforço nos parece legítimo

e consistente.

Segundo, a ênfase na noção de prova e de controvérsia reverbera questões

centrais da sociologia francesa pós-bourdieusiana. Ainda que Latour possa ser

legitimamente lido como integrante da sociologia pragmática francesa, cuja

caraterística maior tem se pautado pela ênfase nas situações de prova, nos

momentos coletivos incerteza, nos grandes affaires públicos e controvérsias, isso

não o impede de apresentar e impor um estilo particular nos seus trabalhos.

Diferentemente da pragmática dos julgamentos ordinários de Luc Boltanski e

Laurent Thévenot que, em uma versão neo-kantiana da noção de prova,

sublinham as operações categoriais engendradas pelos princípios morais

mobilizados pelos atores submetidos a um imperativo de justificação, Latour

enfoca sobretudo as operações de ordem ontológica – aproximando-se, nesse

sentido, da abordagem de Francis Chateauraynaud e Christian Bessy no livro

Experts et Faussaires (1995). Quer dizer, importa a Latour a descrição da forma

como os próprios atores, em situação controversa, fazem emergir novos

instrumentos, entidades, objetos, etc, enfim, uma nova composição do mundo. O

Page 18: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

18

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

escopo é analisar a atuação dos atores e dos dispositivos técnicos nas situações

em que a realidade, com o perdão da redundância, se faz real, a diferença se faz

diferente e o novo se faz novidade. A questão dos cosmogramas e das cartografias

é apenas uma ampliação dessa problemática das provas, agora extensíveis às

discórdias duráveis, quer dizer, aos momentos críticos irredutíveis às situações

de curta duração. Mesmo que na sociologia pragmática francesa mais recente

abundem exemplos de propostas de acompanhamento de crises coletivas

duráveis, Bruno Latour, juntamente com Francis Chateauraynaud e Daniel Cefaï,

é o que parece ter melhor forjado instrumentos para seguir esses processos.

Dentre esses, Latour é o autor cuja reflexão parece mais amadurecida quanto às

implicações ontológicas de um processo controverso, o que o leva à postura

bastante corajosa de propor uma cosmopolítica. É o ex-professor da École de

Mines, portanto, que melhor explora a ideia de que, em uma controvérsia, os

atores não renegociam diferentes visões ou versões acerca do mundo, mas, antes,

experimentam a própria diferença existente em seus respectivos mundos. Como

afirmamos acima, os atores, para Latour, discordam não tanto porque as suas

respectivas visões de mundo divergem, mas suas perspectivas divergem porque

seus respectivos mundos são diferentes. A epistemologia se encontra a reboque

da ontologia. Dito isso, é preciso imediatamente acrescentar que a ontologia não

é mais de um princípio metafísico da filosofia, mas uma espécie de metaontologia

oriunda da própria confrontação das ontologias dos atores-eles-mesmos (ver a

resenha de Patrice Maniglier [2012] do livro de Latour sobre os modos de

existência). Trata-se da pior metafísica do mundo, exceto todas as outras: se

antes, na filosofia, a metafísica era uma metafísica do eu, sempre idêntica a si

mesmo, agora ela é uma metafísica experimental do nós, em constante processo

de mudança e de transformação.

Ainda nesse ponto, é interessante notar como Bruno Latour se aproxima das

reflexões de antropólogos contemporâneos como Philippe Descola, Eduardo

Viveiros de Castro e Tim Ingold. Esses três antropólogos produzem uma

detalhada crítica da ontologia naturalista das sociedades Ocidentais, cuja

formatação seria dada por um multiculturalismo mantido ao preço de um

uninaturalismo. Mas se Viveiros de Castro Viveiros de Castro e Tim Ingold

colocam em questão esse divisor Natureza/Cultura(s), pelo viés da ontologia

Page 19: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

19

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

animista, Latour mantém certa originalidade, pois parte de dentro da própria

ontologia naturalista, para colocá-la em xeque. Não podemos esquecer que o fato

de sua antropologia das ciências ter sempre se voltado para os centros de

produção de verdade e de realidade das sociedades Ocidentais, como,

primeiramente, a ciência, mas também, em seguida, o direito, a arte, a religião,

etc. Nesse sentido, pode-se dizer que a sociologia de Bruno Latour é, na verdade,

uma endo-antropologia (ver Candea, 2011).

O terceiro ponto que merece destaque, por fim, refere-se ao aprofundamento

apresentado por Latour de uma dimensão até então negligenciada por sua teoria

do ator-rede. Em sua excessiva ênfase nas redes de associações heterogêneas, as

quais eram redutíveis a um universo plano, carecia à teoria latouriana uma

dimensão que, por falta de melhor termo, chamo de fenomenológica. Refiro-me

a um plano a partir do qual os pontos interligados no mundo pudessem ser

relacionados ou mesmo ancorados no próprio mundo. Esse é, inclusive, o

principal ponto da muito bem trabalhada crítica à ANT feita por Tim Ingold em

sua obra, também recém traduzida para o português, Being Alive (2011). O

antropólogo inglês propõe “não uma rede (network) de pontos conectados, mas

uma malha (meshwork) de linhas entrelaçadas”, sendo as linhas vistas não como

“linhas abstratas e geométricas”, mas “linhas reais de vida – de movimento e

surgimento”. Ainda em confrontação com o paradigma das redes, e brincando

com o acrônimo ANT (formiga), Ingold propõe a SPIDER (aranha) e sublinha que

a “ANT defende que os eventos são efeitos de uma agência que é extensamente

distribuída na rede de actantes, comparável à teia da aranha. Mas a teia (...) não

é realmente uma rede nessa acepção. Suas linhas não conectam; antes, elas são

as linhas ao longo das quais ela [a SPIDER] percebe e age”. De modo a dar conta

desse problema, Latour, na discussão em que traz à tona a Unwelt de Uexküll,

parece se referir a um nível da realidade em que há tanto um ambiente-para-um-

organismo quanto um organismo-para-um-ambiente. Assim, acha-se uma

modalidade do existente que reenvia tanto a uma dimensão de sensibilidade

fenomenológica quanto pragmatista, desde que nos atenhamos às considerações

de John Dewey sobre a relação transacional do organismo e o ambiente. O

universo plano das ANTs parecem, enfim, ter readquirido alguma densidade e

uma espessura ontológica variável. Depois de ter afastado o domínio da natureza

Page 20: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

20

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

una, lá fora e desencantada, Latour parece se reconciliar com a dimensão do

mundo que reencontra um multiverso. Claro, não mais o mundo infinito do

universo de Koyré, mas o mundo complicado do pluriverso.

Ao terminarmos a leitura, fica a sensação de que Cogitamus é um livro de

maturidade. Para além da brincadeira entre as palavras cogito e cogitamos, talvez

essa seja efetivamente a única semelhança com as Meditações Metafísicas de

Descartes: assim como o filósofo francês em suas famosas meditações, desde o

início de Cogitamus Latour parece bem saber de onde vai partir e em que lugar

ele quer chegar... Seria enganoso pensar que por se tratar de um texto

introdutório e escrito em linguagem simples e clara, Cogitamus nada seria além

de uma mera vulgarização de trabalhos e textos anteriores. Ao contrário,

justamente por ser um livro de síntese de temas já amadurecidos, pode-se dizer

que ele não apenas se permite avançar em temáticas até pouco tempo evitadas,

como realiza um belo exercício de filosofia especulativa bem temperada com uma

concreta antropologia das ciências e das técnicas. Sem dúvida, uma admirável

síntese dos elementos heterogêneos da longa trajetória de Bruno Latour.

Referências bibliográficas:

Boltanski, Luc & Thévenot, Laurent. De la justification: Les économies de la

grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

Candea, Matei. “Endo/Exo.” Common Knowledge 17, no. 1: 146–50, 2011.

Cefaï, Daniel. Pourquoi se mobilise-t-on ? Les théories de l'action collective, La

Découverte, coll. "Bibliotheque du Mauss", 2007.

Chateauraynaud, Francis & Bessy, Christian. Experts et Faussaires: Pour une

sociologie de la perception. Paris: Métaillé, 1995.

Corrêa, Diogo Silva & Dias, Rodrigo de Castro. A crítica e os momentos

críticos: De la justification e a guinada pragmática na sociologia francesa. Mana

[online]. 2016, vol.22, n.1, pp.67-99. ISSN 0104-

9313. http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132016v22n1p067.

Page 21: Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les … · 2019. 3. 14. · Resenha: Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris

21

Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]

Dewey, John. Logic: The Theory of Inquiry. Holt, Rinehart and Winston, New

York, 1938.

Ingold, Tim. Being alive: Essays on movement, Knowledge and description.

London: Routledge, 2011.

Maniglier, Patrice. "Un tournant métaphysique", Critique , n°786, p. 916-932,

2012.

Viveiros de Castro, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América

indígena, In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.

São Paulo: Cosac & Naify, 2002