Toi qui, pour tous ceux qui m’écoutent, ne dois pas être une entité mais une femme, toi qui n’es rien tant qu’une femme, malgré tout ce qui m’en a imposé et m’en impose en toi pour que tu sois la Chimère.
André Breton
Para o Ricardo,esta falta,este excesso
2008 © Paula Glenadel
Produção editorial
Debora FleckIsadora TravassosMarília Garcia
Valeska de Aguirre
Editora-assistente
Larissa Salomé
Revisão
Laura Addor
Fotos
Sérgio Brenner
Viveiros de Castro Editora Ltda.R. Jardim Botânico 600 sl. 307 Rio de Janeiro RJ cep 22461-000
2008
[email protected] (21) 2540-0076
Cip-Brasil. Catalogação-na-fontesindicato nacional dos editores de livros, RJ
G469f
Glenadel, Paula, 1964- A fábrica do feminino / Paula Glenadel. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. 90p. : il.
Programa PETROBRAS Cultural ISBN 978-85-7577-538-7
1. Poesia brasileira. I. Programa Petrobras Cultural. II. Tí-tulo.
08-4131. CDD: 869.91 CDU: 821.134.3(81)-1
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O feminino é feito numa fábrica. O masculino é fabricado. Tudo o que é humano é feito à máquina. A fábrica é meio antiquada, escura. Contudo, entrevemos uma linha de montagem que produz e reparte andróides femininos e andróides masculinos em dois compartimentos distintos. Saem dali para o mercado, na cidade dos homens, onde catálogos, discursos promocionais já os esperam, onde vão ocupar sempre as mesmas prateleiras. Ver. Ouvir. Observar essas palavras que há milênios fabricam o mundo, suas formas. Falar com elas. Habitar a cidade fantasma.A fala, fábrica da fábrica.
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Pedra
Fabricou uma fêmea. Esculpida. Há muito tempo. De pedra. Mármore, talvez. Ou então é de marfim. Uma marfêmea. O cara é um artista, tira leite de pedra. Ficou fantástica, fabulosa, fenomenal! À imagem do seu criador, o escultor Pigmalião fez uma fêmea. Galatéia, mulher de leite. Enamorado dela ou de si mesmo, ego no espelho, Narciso na fonte, necessidade, fragilidade, rezou a Afrodite para que a transformasse em mulher de verdade, dando-lhe carne em lugar de marfim. Casou-se com ela ou consigo mesmo após a transformação.
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Mole
Escuta: aqueles rappers fabricaram uma fêmea chester. Foi obtida por modificações genéticas da galinha, ou da franga, a chamada fêmea fácil. É a fêmea plástica, com muito peito e miolo mole, inspirada na Marilyn Monroe, na Barbie, na irmã dos outros. Gostosa!... Poderia ser irmã nossa, essa boneca de plástico, essa fêmea inflável, pelo ar de família. Sagrada família. A Virgem Maria era mãe, santa e virgem, de onde se conclui, primeiramente, que toda mulher é vagabunda, e depois, que toda loura é burra.
Ave
Olha essa: mais uma fêmea fabricada. Uma fêmea cover, uma fêmea over, uma fêmea digna de se ver. Quantas plumas! E canta? Às vezes. Muitas dançam também... Por arte do travesti, ser de artifício, bem-te-vi no espelho, mais sedutor do que a própria sedução, figura do que queremos ver, revela-se o feminino como miragem, inclusive na fêmea. Ave traveca, Eva moleca!
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Queen
Este é para vocêsque me fizeram rainha do desertoou rainha diabaque me deixaram cantandoI will survive
o tango da legião
nesta wastelandonde se dilapida a sementeimponderávelda mínima prosperidade:um jardim, apenas.
Semente
Fabriquei uma fêmea-filha. Interativa, hiperativa, rebarbativa, pedaço de lixa, folha de urtiga. Nossa Senhora! Falta polir, dar acabamento. Será que um dia isso se acaba? Toda mãe saboreia espinhos. Toda filha passeia nos inferninhos. Ceres não queria, mas acabou tendo que dividir a filha Perséfone com Hades, deus do submundo. Toda filha tem passaporte para o inferno. Toda mãe tem seus meses de inverno, sua secura de sucos, sua recusa de dar flores e frutos.
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Trovão
Marte irritado conjunto a Plutãopromete trovoada e confusãofúria de quem quer colojá sendo todo calo
mas disso não se falaaté que o tapa estaleabrindo o clarão do espanto
Bárbara
Uma fêmea foi fabricada, lentamente. Foi fabricada, mas também fabrica. A feiticeira, parteira por proximidade, por concorrência foi afastada da função e acusada de fazer feitiços maléficos, de extrair forma do informe, de dar festas furiosas e de infernizar a vizinhança. Fabrica malefícios, cultiva barbaridades, transforma palavra em coisa, coisa em palavra. É uma usina, uma mina, uma turbina. Que máquina! Lua cheia, lua nova, lua crescente, lua minguante, uma para cada efeito; fora da cidade, nua na floresta, a feiticeira fala com as feras e fareja as folhas.
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Entre espécies
Eu era uma fêmea e você o meu filhote, tínhamos que fugir agachadas dos caçadores, eram caçadores de órgãos. Gelada de pavor, eu consegui achar uma passagem pelo meio do lamaçal, senti o cheiro do caminho.
Instantâneo
Zoé grávida olha o marna barriga, um aquáriouma linha se dilata
nada mais alémda linha do horizonte
lembra da Parca,a tesoura avara
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Fatal
Para Jorge Fernandes da Silveira
Fabricamos uma fêmea. Fizemos isso, todas e todos e cada qual: uma fêmea fatal. Perigosa. Ardilosa. Malfadada. Malfazeja. Mas assim mesmo desejada. Ou melhor, desejada para isso mesmo. Para dar figura às coisas escuras. Nós a encarregamos de carregar o destino no colo. É um perigo para ela e para os outros, bonitinha, mas ordinária, essa que vai fermosa e não segura, uma cantiga, minha senhor, um fado lusitano, uma fada Morgana trancafiando o velho Merlin seduzido, uma Sharon Stone, osso duro de roer, uma Salomé, uma Mata Hari, uma que embala e enterra, mãe negra e água que rega.
Sereia
Os homens que ameilevei ao reino das Mãesuns voltaram do portãojá outros, adoeceramum foi lá e ficou ricomas esse era marinheiro
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Espelho
Como é que se separaimagem de semelhançaum tempo para cada coisavacas magras e vacas gordas
ruminando dietas capas cartazessonhando celulose e superfíciemulheres de papel sem celulite
parcelando plásticasmastigando críticasmaquinando máscarasmaquiando cílios
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Cortar cabelo
Cabelo comprido, cabelo curto, Joana d’Arc, Iemanjá, qual das duas? A minha filha cortou o meu cabelo, uma droga, eu também cortava o das minhas bonecas, dava um nervoso, e depois aquela boneca ficava esquisita, mas especial, se vista de repente, feia, se olhada detidamente, bonita. Minha cobaia, minha vítima, minha falha, minha minha. Se pudesse, eu jogava na fogueira.
Desfecho
Digo doze ácidos anosdoze anos e muitos planosuma canção bem banalmas se nela você apostaa vida toda batidao par ou ímpar me desfaze já finda antes do fim
meu erro, meu ermo
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Menopausa
Pausa ou pára? Isso é que é eufemismo. Pausa que não retorna, botão definitivamente inativo, atalho para a, perdão, terceira idade. Contempla, ó Cleópatra, fêmea efêmera: do alto dessas pirâmides, quarenta anos de regras te esperam. Esperando o destino amadurecer, waiting for the sun, mas atenção, soleil cou coupé.
A fada madrinha
...e quando você for velhaterá a voz miúdapoeira de gramofonecornucópia de compotas
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Hora
após hora,ora
Arquetípico
o sola lua
a solo lua
entre (duas) línguasum horizonte neutro
o animus da anima a anima do animus
aqui o fábrica engasga
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Alguém dissevogais são femininasconsoantes masculinas
alguém falou de línguas meridionais suaveslínguas setentrionais vigorosas
alguém inventou um cravo bem coloridonotas e cores dispostasem resposta no teclado
ninguém acreditouninguém desacreditou
As sete unhas de Marli (mistérios bahianos)
As sete unhas de pé que perdiatrás do trio elétriconaquele carnaval tão porretacresceram novamentee viraram atração
sim, venham veras novas vieram azuisnaturalmente azuiscomo um poema sujoe até que mais bonitasdo que as antigastingidas de rosa lascado
agora quando me depilosinto até um calafriopois sei que podem nascer pêlos das sete cores do arco-íris
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Cores
A amarelo, de abre-alas,que eu quero passar.Chiquinha Gonzaganão era negra, não era branca.Cada época tem lá os seus mulatos.
E encarnado, de unhas pintadas.Tem homem que não gosta.Tem também quem maneje bemo linguajar das manicures.
I branco, de ideal,fina elegânciade uma linhana passarela.
O para olho fundoriscado de preto.Pisca inexpressivoà força de tanta expressão.
U verde, em forma de perainversa que não se visse por fora,ou nácar de pérola barrocacom acento dramático: útero, íntimo baú.
0 x 0
A fêmea fálica quis virar o jogo mas virou piada. Eu sei uma piada. No jardim do Éden, sem ter nada para fazer, Adão vira-se para Deus e diz: Tem coisas que eu não entendo. Por que você fez a fêmea tão formosa, tão macia, tão cheirosa, tão perfeita? Deus diz: Para que você pudesse amá-la. Adão, insatisfeito, continua a questionar o Criador: Mas então, ó Deus, por que você a fez tão estúpida? E Deus: para que ela pudesse amar você! É uma piada androfóbica. Deus me livre! Só um pouco. Porco não. Eles também sofrem com a fabricação, fingem que não. Solo pátrio e língua materna. A libido é masculina. O falo não é o pênis. Gênero não é sexo. Atleta, cobra, serpente. O lagarto é um bicho, e a lagarta é outro diferente. O prato e a prata. O sapato e a sapata. Mulher fala demais. A minha chefe está na tpm. Mulher de bigode, nem o diabo pode. Isso é falta de homem. Não faz assim. Você está meio gorda. Foi bom para você? Fala baixo senão eu grito. Que foi, vai encarar? Fica comigo esta noite.
3�
Humano
Humano, sentidodado na mão que alisa a casaque escreve apagandonas rugas da colchasulcando um espaço estriado repassando o tempo vincado
mais-vida
o amor está aqui, embora magroe muitas vezes amargocansado da viagem
a barca é a concha da mãonas dobras e cantosda concha do ouvido
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Longímano
trançando veiaso amor acordaa mão segura segura a mão
ter, tecer, serosso e sonhotudo tramado
até a horadas sombras compridas
Crédito
Para Marcos Barreto
A quem pensa que uma coisasó tem um nome,venho comunicar que há a noite e a noite,ela me disse,
tem dias em que não consigo sair da noiteàs vezes sinto a noite estrelada dentro de mim
respondi, acredito,mas só a crédito
dúvida é dívida, arrematou a pérfida Nadja
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Teatro
Não me venha com segredos. E olha que não acredito em verdades. Mas o teatro do segredo me cansa. Segredos são como carvão em brasa na sola do meu pé. O teatro da verdade me cansa menos. Verdades são como a sola do sapato que cobre a sola do meu pé. Você só pensa que me dói a brasa na sola do pé, mas não vê a dor da brasa entre a sola do sapato e a sola do pé. Pulo, e logo penso: o logos, o fogo.
Economia
Na minha casapoupo energiajunto o que sobra peso palavraspenso receitas
e quando gastofaço um incêndioeu queimo aténão ficar nada
assim dispensotocar o fundodo que é sem fundo
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Três
No museu de cera e culturaum vândalo um dia talvez cortea cabeça do homem no escritóriodegole a dona-de-casasobre o seu fogãojogue fora o bebêcom a água do banho
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O homem das sombras
Para Sérgio Brenner
extremo mestre ao avessoexímio contra-exemplonão o exemplo do contra
o anti-exemplo em pessoa
o discreto Zé Clesiastesem preto & brancoou quem sabe em cinza
revelado contra a cortina
em dobras de mistérioou pânico do palcoquase invisível
o homem das sombras
Bem funda quem afundadiria o dito popularpleonasmo pleistocênicose isso fosse consensose aí houvesse sucessose ser não fosse um excesso
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A náusea
Para o Walter
Aí está, meu caro amigo, a náusea,viscosa e espessa, cheirando a gasolina.
Não faça nada –isso é pior do que estar triste.Abra o livro de palavras,bitte.A dura simplicidade desse idioma que te carregue.Se quandovocê se cansar dela, lembre-seque você também tem arcadas hispanas.Sob elas pode ser que haja abrigo.Como, quando e onde,quem saberá?
No meio disso você se formoue ainda está se formandohermosala escritura del dios.
Do caderninho de um filósofo
Na clareira, o bicho espera que lhe venha a claridade, mas não vê chegar nada: a floresta é negra e o homem ainda impera.
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Séries
a pedra, o sílexa pata, a mãoo pelo, o cabeloa garra, a unhaa fúria, a iraa fome, a fome
Calçada
infalível salto altocalça apertada modelopúbis de sagüi
garotas caminham
olhos de Anúbisriso de anzol
esperandoo gringo redentor que virátirá-las deste lugar
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Boris e o tambor
Para Olga Kempinska
Como acontecese Boris bateo seu tambore Leonyd contaas suas bombas
Nicolau vemda oficinaé o carnaval carnificina
então sabemosque se aproximao fim do ano leve Hiroshima
maré Chernobylabalando ao léusegundo as ondas do mais consumo
embora ao largose possa crer guardar o senso estar a salvo
se tudo sobrae tudo faltanão há abrigoanti-ceia
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Paradigma (a intuição do pedestre)
Pelo ronco do carro (motor) dá para sentir a sua vontade de mergulhar o pára-choque (metal) na minha carne (mole) (macia).
Borda
Na cidade dos mortostudo é muito simplesleito de pedra, pá de cal
em preto e brancoo osso do tempoa cinza das horas
o pó dos pobrescom o resto dos ricosse mistura
entre a cidade dos mortos e o bairro dos vivosuma borda invisível mas densa
mais forte do que a morteé a minha ignorância
mudando de bairroa fênix renasce mas a cada vez um pouco menor
mais miúda
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A máquina precária
Guarda la macchina ereza ao anjo da guarda.
JaguarPumaImpala
animais automóveis
ronquem os motorestoquem as buzinas
cornetas bisnetasdos chifres de carneiro.
Extintaa mansidão sacrificial,Jericó atropeladacomo um cão.
Mulher no volante,perigo constante.
Mulher na direção,perene amolação.
Mulher guiando,eu saio voando.
Mulher quando se pinta,vai a três vezes trinta.
Madame motorista,narinas de cadáver.
Mulher chofer,melhor Lúcifer.
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Apocalipse utilitário
A Charles Baudelaire
Belzebu, cascos de caoso cão sinônimo do cãoo nome do nome que não se diza oculta logomarcapede carona na estradaa Babilônia, meretriz
sempre tem lugar para mais umainda que seja legiãoele embarca na encruzilhada
o apocalipse é utilitárioo bode expiatório cabe na peruae o deserto élogo ali
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Agônica
Ao Walter, o outro
A cada domingo meridiano e pós-meridiano
retorno acidental ao nada pulmão pneu vazio
uma linha agônica dando a volta do planeta
perdido o norte post mortem
você virou poeira matéria de poesia
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Se eu lhe disser que hojearranquei um poema de vocênão sei se isso quer dizerque você é a minha musaou que é minha masmorra
lei, asa ou tecladoeu deixo isso com vocêe já que comeceidevo dizer que ignoroquem ou o que diabos é você
Eufemismo
eu, fé, mesmo, não tenhomas não deixo de fazer
eu fiz mesmo, não nego,mas queria não ter feito
eu disse, mas, se pudesseretirava o dito, o cujo,
se existisse um eu, um faz, um diz que não fosse
o calo da mentirao travo da blasfêmia
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Prosa para Chico Science
Graça é nome. Desgraça é apelido. O próprio sente a própria falta. Vitrines são aquários multicoloridos onde peixes fantasmas nadam nas cinzas do futuro enquanto os demais habitantes, hesitantes, se retiram. Os visitantes dispõem de alguns instantes para fotografar seus apelidos: Besouro, Moderno, Ezequiel, Candeeiro, Seca Preta, Labareda, Azulão, Arvoredo, Quina-Quina, Bananeira, Sabonete, Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco, Volta Seca, Jararaca, Cajarana, Viriato, Jitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê.
Ou então
Para Masé Lemos
Graça é nomedesgraça é apelido
o próprio sentea própria falta
Vitrines são aquáriosmulticoloridosonde peixes fantasmas nadam nas cinzas do futuroenquanto
os demais habitantes, hesitantesse retiram
os visitantes dispõem de algunsinstantespara fotografar seus apelidos
Besouro, Moderno, EzequielCandeeiro, Seca Preta, Labareda, Azulão Arvoredo, Quina-Quina, Bananeira, SaboneteCatingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco Volta Seca, Jararaca, Cajarana, ViriatoJitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê
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Fogo
Mesmo levando em escrupulosa consideração parâmetros consagrados pela história da ergonomia do fogo desde o tempo das Vestais, não há meio seguro para determinar o melhor modo de estar diante do fogo de uma alegria que se acende, labareda de palavras, figura em chamas.
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Roubei uma hora de versoao diatomei o meu tempobem como o dos outros
pilhei ritmos, roí palavrassubtraí sinaisalheios, distantes, distintos
tudo isso amontoeienfurnei na toca
para os dias de carestiapara o inverno inexistente por aquiroubei o inverno também
Atributos
De um cavalo, ele tinhaa extrema energiaa pressa o medo a maniao salto sobre a barreirao trote o tropeço
Do mar, a massaem que toda gota iguala uma gota,havia o anonimatoaonde devolvê-lo
�0 �1
A voz (poema enfarinhado)
Enquanto eu fazia um boloconfusa entre verso e boloo verso solouo bolo acabou
se outrora se faziaverso com fermentoe em outro mais outrorao verso tinha receita
agora o que seja versojá nasce soladoa voz chega ázimaescarpada e caprina
mas olhando bem agorinha mesmoverso já nem nasce verso
e agora, Maria?
Lenda
Em algum sistema solar imemorialStar system ou batalha das galáxiasnum espaço-tempo nebulosodesde há muito tempo atrás
uma face de mármore encaraa máscara de Greta Garboos olhos de Bette Davislançam farpas ao crepúsculo
a farsa arcaica entorta a mímica mallarmaicaa falácia da potência vem a sero exílio da poesia
o desgosto da velha atrizcom o ego em ponto de balacom a bile em pé de guerraa quem ninguém pede bis
�5
Da falta, ou do excesso: fabricar o poéticoAna Luísa Amaral*
The Road of Excess leads to the Palace of WisdomWilliam Blake
O excesso é o meu limite
Yvette K. Centeno
A Fábrica do Feminino – é este o título do último livro de poemas de Paula Glenadel. Um título estranho, de ressonâncias complexas, onde parecem entrecruzar-se duas acepções de “construção”: uma relacionada com a manufactura, e ligada a um certo tipo de espaço e a um certo tempo (o moderno), outra relacionada com o que é também socialmente construído: a ideia de femi-nino. Mas porquê “fábrica”? E porquê “feminino”, se o “feminino” não é senão um estereótipo? Que sentido faz falar em “feminino”, sobretudo dentro do universo simbólico da construção deliberada que é a poiesis?
Começo pela segunda parte do título. Se distin-guir uma “arte feminina” de uma “arte masculina” é, como dizia a poeta portuguesa Irene Lisboa, “coisa bem temerária e difícil”, não é menos verdade que as condi-ções materiais que informam a ideologia dominante, ao terem contribuído para uma divisão sexual de papéis e funções, e ao afastarem as mulheres da abertura à cria-tividade e à capacidade de realização, incluindo a poéti-
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ca, não apaga gestos ancestrais que só há muito pouco tempo as mulheres têm vindo a desafiar, não só ao lerem os poetas e ao escreverem poesia, mas ao escreverem-se como mulheres poetas. Voltarei a este ponto mais à frente e passo à segunda acepção de “construção” presente no título pela presença da palavra “fábrica”.
“Fabricar” sugere labor; e fábrica é, como sabemos, o espaço onde se conservam e transformam matérias-primas, ou onde se convertem produtos semi-finais em produtos finais. E isto pode aqui ter aplicação, se pen-sarmos no efeito alquímico (ou de fuga) que informa a linguagem poética. Mas talvez seja menos inocente a escolha da palavra por Paula Glenadel. Professora e es-pecialista em Literatura Francesa, e grande conhecedo-ra das poéticas da modernidade e da filosofia francesa contemporânea, é-lhe familiar a formulação deleuziana segundo a qual “o inconsciente não é um teatro”, “mas uma fábrica”, visto o teatro implicar sempre representa-ção e esta pressupor a existência de um original, ao passo que a produção, por ser caótica, implica linhas de fuga.
Adicionalmente, penso que os sentidos com que Paula Glenadel aqui investe o termo vão mais longe, prendendo-se também com a asserção de Foucault de que, nas sociedades disciplinares, as fábricas se asseme-lham às prisões. Por isso se lê, no poema em prosa que abre o livro e que antecede as três partes que o compõem (“A fábrica do feminino”, “A cidade dos homens” e “A cidade fantasma”): “Tudo o que é humano é feito à má-quina”; por isso se tem uma entrevisão de “uma linha de montagem que produz e reparte andróides femininos e andróides masculinos”, que dali “saem para o merca-
do, na cidade dos homens, onde catálogos, discursos promocionais já os esperam, onde vão ocupar sempre as mesmas prateleiras”. Ao sujeito de enunciação pouco mais resta senão “[v]er. Ouvir. Observar essas palavras que há milénios fabricam o mundo, suas formas. Falar com elas. Habitar a cidade fantasma.” Reconhecendo a sua própria condição de simulacro, visto “a fala” ser, ela própria, “fábrica da fábrica”. Ao mundo dos andróides parece contrapor-se “a cidade dos homens”; mas a cidade dos homens que aqui se oferece é, à semelhança de The Waste Land, de T. S. Eliot, também ela, vazia e despida de emoções: mera cidade, sem gente, fantasma – ou com ecos, gente e repetições em demasia. Este poema situa-nos no tempo que é o nosso, dominado pelo capitalismo liberal, em que o ser humano se transforma em máquina e a máquina reproduz, por ele e para ele, os gestos que o irão tornar vítima de um sistema cego (e cruelmente fluido); nesse tempo, que dilacera igualmente mulhe-res e homens, as palavras entendem-se, então, também como simulacros. Mas será igualmente a consciência de que elas assim são que as pode, de alguma forma, inves-tir de possibilidade de sabotagem da tradição e torná-las capazes de agenciamento e de abertura ao devir.
A dimensão política deste livro fica assim esboça-da. Ou talvez seja preferível dizer complementada, pela anterior presença das duas epígrafes que o abrem. A pri-meira, extraída de Nadja, de André Breton, prenuncia a desmontagem dos estereótipos daquilo que se entende por “feminino”: no passo escolhido desse romance surre-alista, instituído como radical experiência da linguagem, o narrador/personagem Breton faz a distinção entre a
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“mulher” e a “Quimera”, entre o mito e a realidade, situ-ando, porém, essa distinção numa zona limítrofe e am-bígua. A segunda epígrafe (no caso, também uma dedi-catória) abre caminho para uma proposta não normativa de dizer e ver as coisas. Aí, pode ler-se: “Para o Ricardo, / esta falta / este excesso”. Ora, o que permite ao limite abrir-se ao ilimitado é também o seu iminente desapare-cimento como limite. Aproveitando justamente a noção de fuga, ou linhas de fuga, que enunciei acima, atrevo-me a sugerir que estas duas ideias, a de que a poesia, tão tangente ao mundo secular quanto ao inconsciente, fun-ciona tanto como fábrica como enquanto teatro, e a de que o dicotómico é sempre falsamente simétrico – são aqui fundamentais. Escapar, pois, às dicotomias, propor a sua ultrapassagem, isto dito a partir de um sujeito de enunciação “nómada”, figuração, como em Donna Ha-raway, para o tipo de sujeito que abandonou qualquer desejo, ideia, ou nostalgia pela fixação – ou uma identi-dade feita de transições, de mudanças sucessivas.
Não será por acaso que, no excelente prefácio ao anterior livro de poemas de Paula Glenadel, Quase uma arte (2005), o também poeta Marcos Siscar insiste no que julgo poder ser isolado como três grandes linhas de força: as tensões, a convivência dos contrários e, não me-nos importante, a “prosódia intranquila”. Uma intran-quila prosódia está também particularmente presente neste livro que agora se apresenta, até na coexistência de poemas em verso e poemas em prosa, ou na exercitação (desafiadoramente irregular) de diversas formas poéticas, como a redondilha, ou o tetrassílabo. “I cannot dance upon my Toes / No Man instructed me –“, escrevia, em
meados do século XIX, a poeta norte-americana Emily Dickinson. Esses versos são o início de um poema seu sobre o poder e a anarquia, sobre o consensualmente reservado ao poético e o que o não é, sobre o domínio da técnica e a aparente ausência de mestria, orgulhosa-mente exibida. Mas é o acto mesmo de falar, a própria exercitação da palavra que constituem um acto de desa-fio, nessa poesia que, como tenho vindo a defender, se organiza a partir do excesso. Uma idêntica pulsão pode ser encontrada nestes poemas de Paula Glenadel. Em “A voz (poema enfarinhado)”, um dos poemas finais do li-vro, podemos ler: “Enquanto eu fazia um bolo / confusa entre verso e bolo / o verso solou / o bolo acabou // se outrora se fazia / verso com fermento / e em outro mais outrora / o verso tinha receita // agora o que seja verso / já nasce solado / a voz chega ázima / escarpada e ca-prina // mas olhando bem / agorinha mesmo / verso já nem nasce verso // e agora, Maria?” A voz, teatralmente, desmontando a coerência autoral, parece fazer coincidir texto e mundo – o que lhe é possível pela exploração do que aparentemente é não poético: o doméstico. Traba-lhando uma alternância desigual de ritmos e rimas, nes-te poema revêem-se pelo menos três séculos de tradição poética ocidental (os dominados pela estética neo-clás-sica e pela estética romântica, pela imitação das formas “puras” e pela inspiração), para se concluir da presença agora de uma subjectividade debilitada. Esta questão de uma subjectividade enfraquecida não parece ser novidade na poesia produzida nos tempos que correm. O que me parece inovador aqui é o facto de, a par dela, assistirmos à convocação de universos outros (o da cozinha, o dos
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bolos e fermentos), ou ainda a exploração de um aparente confessionalismo, logo desmentido pela voz que, autori-zada no título, discorre – instância deflectida de um su-jeito de enunciação. Finalmente, o verso final, dialogante com o conhecido poema de Drummond “E agora, José”, recentra a questão no sujeito-mulher por detrás da voz que fala o poema, numa irresolvida ambiguidade.
É também a convivência dos contrários, do excesso e da falha, relacionada com essa forte presença de tensões que permite à autora convocar mitos ou figuras míticas diversos (Ceres, Perséfone, Hades, Sereias, as Parcas, Marte, Plutão), fazer dialogar autores vários (como Ben-jamin, aqui familiarmente tratado por Walter) e referên-cias musicais diversas: que não seja surpresa ver Chico Science não longe das vestais, ou The Doors ao lado de Aimé Cesaire... Como se a habitação momentânea da fa-lha (que é o espaço do não canónico) pudesse ser, como se quer na epígrafe, uma via para o excesso.
Por vezes, mais do que convocar, Paula Glenadel revisita e subverte os mitos – o da maternidade, um mito também. E fá-los conviver. São, neste aspecto, particu-larmente significativos poemas como “Cortar cabelo”, ou “Semente”. No primeiro, Iemanjá, o mito, e Joana d’Arc, a mitificada mártir, são pretexto para falar da rela-ção entre mãe e filha, em que os papéis surgem curiosa-mente invertidos: “A minha filha cortou o meu cabelo, uma droga”, lê-se, para depois se assistir ao acto encena-do do avesso, em tempo, o sujeito de enunciação confes-sando “eu também cortava o das minhas bonecas”. Mãe e boneca sujeitas a um ritual de iniciação, fundamento para exercitar outra forma de olhar, outra forma de ver,
de “[o]bservar (…) palavras que há milénios fabricam o mundo”, como se dizia no poema de abertura. A partir daí, tudo é possível: a boneca, tornada cobaia e vítima (como vítima e cobaia é a mãe às mãos da filha), e, pelo processo que Carlos de Oliveira designava por “atrac-ção vocabular”, ou jogo de palavras, a boneca vista não como “minha filha”, como seria esperado, mas como “minha falha, minha minha”, desejavelmente, se isso fosse possível, “jogada na fogueira” – sacrificada, mas também purificada, também motivo para uma espécie de futuro micro-mito. “Semente”, o segundo poema, abre com o sujeito poético a declarar: “Fabriquei uma fêmea-filha. Interativa, hiperativa, rebarbativa, pedaço de lixa, folha de urtiga”. A sabotagem do registo emo-tivo continua na exclamação humorística, referência à cobiçada chegada à maturidade: “Nossa Senhora! Fal-ta polir, dar acabamento. Será que um dia isso acaba? Toda mãe saboreia espinhos. Toda filha passeia nos inferninhos.” E o mito de Ceres e Perséfone, central no mundo antigo ao ciclo anual das colheitas, e re-centemente tão recorrente em textos de teoria e crítica feministas, emerge aqui actualizado, tornado espaço cómico de tensão: “Toda filha tem passaporte para o inferno. Toda mãe tem seus meses de inverno”.
Explorando tensões, trabalhando a presença de opostos, penso que este livro desenvolve, ampliando e intensificando, o que estava já presente em Quase uma arte: uma poética de extremos, ou de excessos, que, mesmo na sua consciência teórica, tem de reconhecer que o lado oficinal da escrita é somente uma das múlti-
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plas possibilidades que ela abre – melhor, que a poesia é a possibilidade por excelência. Já no final do livro, num poema sem título, surge uma figura de musa, problemática, protagonizada na figura do outro, mas não de um outro que inspira, senão de um outro “de quem” se arranca um poema. “Musa” ou “masmorra”, assim é esse outro, inspiração ou castigo. Por isso se deci-de escolher a não escolha: “lei, asa, ou teclado / eu deixo isso com você /”, afirma o sujeito poético, para depois continuar: “e já que comecei / devo dizer que ignoro / quem ou o que diabos é você”. Despida da sua condição de inspiradora, a poesia, mesmo assim, faz sentir a sua presença, inescapavelmente, aproximando-se da formu-lação da própria autora, quando, em depoimento, afir-ma que a poesia se lhe afigura como “uma espécie de alforria, um modo de naufragar bem, (…) de entrar no não-saber da coisa toda, de sustentar o vício da dúvida entre perceber e conhecer, tudo isso na certeza visceral de que pensar pesa”.
“Na minha casa / poupo energia / junto o que sobra / peso palavras / penso receitas / e quando gasto / faço um incêndio / eu queimo até / não ficar nada” – pode ler-se no poema “Economia”. Escrevi uma vez, num ensaio conjunto com Maria Irene Ramalho: “O desejo impossível de subir até ao ar rarefeito e supostamente libertador da torre tem cada vez mais consciência da sua própria impossibilidade. A linguagem diz o mun-do quando se diz, e mesmo a pura limpidez do ‘grito lírico’ tem as suas fundas raízes no mundo que ‘inter-rompe’”. Interrupções, tensões, nomadismos, intran-
quilidades de sentir e de dizer, contrários que se não resolvem e todavia convivem, a “polis” e a “poiesis” em conjugações, ou “tocar o fundo do que é sem fundo” – de tudo isto trata, de forma exemplar, A Fábrica do Feminino de Paula Glenadel.
* Ana Luísa Amaral é Professora na Faculdade de Letras do Porto. Tem um doutoramento sobre a poesia de Emily Dickinson e publicações (em Portugal e no estrangeiro) nas áreas de Literatura Inglesa, Literatura Norte-Americana, Lite-ratura Comparada e Estudos Feministas. Integra a Direcção do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Or-ganizou, com Ana Gabriela Macedo, o Dicionário de Crítica Feminista (2005). Co-traduziu para inglês poemas de Xana-na Gusmão (Mar Meu/My Sea of Timor, 1998) e traduziu para português Emily Dickinson e Eunice de Sousa (Poemas Es-colhidos, 2001). Está representada em antologias portuguesas e estrangeiras, traduzida para várias línguas, como castelha-no, inglês, francês, árabe, alemão, holandês, russo, húngaro, búlgaro, romeno, polaco e croata. Tem feito leituras dos seus poemas em vários países, como Estados Unidos, Brasil, Fran-ça, Alemanha, Irlanda, Espanha, Holanda, Roménia, Polónia, Rússia, República Popular da China, Colômbia ou Argentina. Editada no Brasil pela Gryphus, terá livros seus brevemente editados também em Itália, em Espanha e na Suécia.
Publicou os livros de poesia: Minha Senhora de Quê (1990, reed. 1999); Coisas de Partir (1993, reed. 2001); Epo-peias (1994); E Muitos Os Caminhos (1995); Às Vezes o Para-íso (1998, reed. 2000); Imagens (2000); Images (2000), trad. Catherine Dumas; Imagias (2002); A Arte de ser Tigre (2003); A Génese do Amor (2005), Prémio de Poesia Casino da Pó-
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voa/Correntes d’Escritas e Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi, publicado no Brasil como A Gênese do Amor (2007) e selecio-nado para o Prémio Portugal Telecom, 2007; Poesia Reuni-da, 1990-2005 (2005); Entre Dois Rios e Outras Noites, 2007 (Grande Prémio de Poesia da APE -Associação Portuguesa de Escritores). Publicou os livros infantis Gaspar, o Dedo Diferen-te e Outras Histórias (1999) e A História da Aranha Leopoldina (2000), adaptado para a RTP1 e RTP2.
Sobre a autora
Aleixo, Ricardo. Uma poesia sem pai nem. http://jaguadar-te.zip.net/arch2006-08-27_2006-09-02.html
Carpeggiani, Schneider. A ilustre desconhecida Paula Gle-nadel. Recife, Jornal do Commercio, 12/09/2006.
Carvalho, Luiz Fernando Medeiros de. Modulações do con-tratempo. Prefácio ao livro A vida espiralada.
____. & Brasileiro, Cristiane. As metamorfoses do luto. RJ, Jornal do Brasil, caderno Idéias, 10/12/2005. Resenha do livro Quase uma arte.
Lima, Manoel Ricardo de. Nem todas as coisas ditas. RJ, Jornal do Brasil, caderno Idéias, 02/06/2005.
Machado, Carlos. Quase uma arte. www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet138.htm
Müller, Adalberto. A arte do nada. Brasília, Correio Brazi-liense, 30/07/2005. Resenha do livro Quase uma arte.
Torres, Maximiliano. As incursões de Eros no cenário da poesia carioca contemporânea: Christina Ramalho, Pau-la Glenadel, Sylvia Cintrão, Ângela Montez, Ângela Maria Carrocino, Maria Dolores Wanderley, Denisis Trindade. In: Além do cânone: vozes femininas cariocas estreantes na poesia dos anos 90. Org. Helena Parente Cunha. RJ: Edições Tempo Brasileiro, 2004.
Siscar, Marcos Antonio. O animal que se desconhece. Pre-fácio ao livro Quase uma arte.
Sumário
[O feminino é feito uma fábrica] 6
A fábrica do feminino Pedra 11Mole 12Ave 13Queen 14Semente 15Trovão 16Bárbara 17Entre espécies 18Instantâneo 19Fatal 20Sereia 21Espelho 22Cortar cabelo 24Desfecho 25Menopausa 26A fada madrinha 27Hora 28Arquetípico 29[Alguém] 30As sete unhas de Marli (mistérios bahianos) 31Cores 320 x 0 33
A cidade dos homensHumano 37Longímano 38
Crédito 39Teatro 40Economia 41Três 42O homem das sombras 44[Bem funda] 45A náusea 46Do caderninho de um filósofo 47Séries 48Calçada 49Boris e o tambor 50Borda 52Paradigma (a intuição do pedestre) 53A máquina precária 54[Mulher] 55Apocalipse utilitário 56
A cidade fantasmaAgônica 61[Se eu lhe disser] 62Eufemismo 63Prosa para Chico Science 64Ou então 65Fogo 66[Roubei uma hora] 68Atributos 69A voz (poema enfarinhado) 70Lenda 71
Posfácio [Ana Luísa Amaral] 75
Sobre a autora 85
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