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Gayeté (Moníaigne, Des livres)

Ex Libris José Mindl in

MACHADO, DE ASSIS

DA ACADEMIA BRAZILE1RA

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PAGINAS RECOLHIDAS • « Quelque diversité d'herbes qu'il y áyt, tovt s'enveloppe sous le notri dje salade >•. -,:

MONTAIODE, Essais, liv. I, chap. XLVI.

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H GARNIER, LIVREIRO-EDITOR

S, BUE DES SAINTS-PÈR/S, 6

P^RIS "li, RUE MOREIRA CEZAR, 71

RIO DE JANEIRO

MACHADO DE ASSIS DA ACADEMIA BRAZ1LEIRA

PAGINAS RECOLHIDAS • Quelque diversité d'herbes qu'il

y ayt, tout s'enveloppe sous le nom de salade ».

MONTAIGNE, Essais, liv. I, chap. XLVI.

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR

7 1 , RUA MOREIRA-CEZAR, 71

RIO DE JANEIRO

6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6

PARIS

PREFACIO

Montaigne explica pelo seu modo delle a variedade d'este livro. Não ha que repetir a mesma idéia, nem qualquer outro lhe daria a graça da expressão que vae por epigraphe. O que importa unicamente é dizer a origem destas paginas.

Umas são contos e novellas, figuras que vi ou imaginei, ou simples idéias que me deu na cabeça reduzir a linguagem. Sairam primeiro nas folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas d'entre muitas, por achar' que ainda agora possam interessar. Tam­bém vae aqui Tu só, tu, puro amor... comedia escripta para as festas centenárias de Camões, e representada por essa occasião. Tiraram-se delia cem exemplares numerados que se distri­buíram por algumas estantes e bibliothecas.

VIII PREFACIO

Uma analyse da correspondência deftenan com sua irmã Henriqueta, e um debuxo do nosso antigo senado foram dados na Revista Brasi­leira, tão brilhantemente dirigida pelo meu illustre e prezado amigo José Veríssimo. Sae também um pequeno discurso, lido quando se lançou a primeira pedra da estatua de Alencar. Emfim, alguns retalhos de cinco annos de chronica na Gazeta de Noticias que me parece­ram não destoar do livro, seja porque o objecto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espirito. Tudo é pretexto para recolher folhas amigas.

MACHADO DE ASSIS.

O CASO DA VARA

O caso da vara

Damião fugiu do seminário ás onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o anno; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o effeito que pro­duzia nos olhos da outra gente aquelle seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pae que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refugio, porque a saida estava determinada para mais tarde; uma circum-stancia fortuita a apressou. Para onde iria? Lem­brou-se do padrinho, João Carneiro, mas ò padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. Foi elle que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor :

— Trago-lhe o grande homem que hade ser, disse elle ao reitor.

O fíASO DA. VARA

— Venha, acudiu este, venha o grande homem, comtantó que seja também humilde e bom. A ver­dadeira grandeza é chan. Moço...

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refugio nem conselho ; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou :

— Vou pegar-me com Sinhá Rita ! Ella manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...

Sinhá Rita era uma viuva, querida de João Car­neiro ; Damião tinha umas idéias vagas d'essa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só d'ahi a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no largo do Capim.

— Santo nome de Jesus ! Que é isto ? bradou* Sinhá Rita, sentando-se na marqueza, onde estava-reclinada.

Damião acabava de entrar espavorido ; no mo­mento de chegar á casa, vira passar um padre, e deu um empurrão á porta, que por fortuna* não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar, espiou pela rotula, a ver o padre. Este não deu por elle e ia andando.

— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novari mente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui?

O CASO DA VARA

Damião, tremulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.

% — Descance, e explique-se. — Já lhe digo ; não pratiquei nenhum crime, isso

juro; mas espere. Sinhá Rita olhava para elle espantada, e todas as

crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadás de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Emquanto o rapaz tomava fôlego, orde­nou ás pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário ; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.

— Como assim ? Não posso nada. — Pôde, querendo. — Não, replicou ella abanando a cabeça ; não me

metto em negócios de sua familia, que mal conheço ; e então seu pae, que dizem que é zangado !

Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.

— Pôde muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquella casa.

Sinhá Rita, üsongeada com as supplicas do moço, tentou chamal-o a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ella; o tempo lhe

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mostraria que era melhor vencer as rcpognancias e um dia... Não, nada, nunca, redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo ; afinal pergunto-lhe por que não ia ter com o padrinho.

— Meu padrinho? Esse è ainda peior que papae; não me attende, duvido que attenda a ninguém...

— Não attende ? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se attende ou não.i.<

Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse á casa do Sr. João Carneiro chamal-o, já e já; e se não estivesse 'em casa, perguntasse onde podia ser en­contrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar immediatamente.

— Anda, moleque. Damião suspirou alto e triste. Ella, para mascarar

a autoridade com que dera aquellas ordens, explicou! ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjára-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como elle continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo :

— Ande íá, seu padréco, descance que tudo se ha de arranjar.

Sinhá Rita tinha quarenta annos na certidão? de baptismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada,! viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quiz alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco

O CASO DA VARA

ambos elles riam, ella contava-lhe anecdotas, e pedia-lhe outras, que elle referia com singular graça. Uma d'estas, esturdia, obrigada a tregeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marqueza, e amea­çou-a :

— Lucrecia, olha a vara! A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe,

mas o golpe não veiu. Era uma advertência; se á noitinha a tarefa não estivesse prompta. Lucrecia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricella, um fran-galho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze annos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surda­mente, afim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhal-a, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ella rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se ha culpa em ter chiste.

N'isto, chegou João Carneiro. Empallideceu quando viu alli o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moco do seminário, que elle não tinha vocação para a vida ecclesiastica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá 1'óra também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar

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O CASO DA VARA

durante os primeiros minutos; afinal, abriu a bocca e reprehendeti o afilhado por ter vindo incommodar « pessoas extranhas », e em seguida affirmou que o castigaria.

— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por que? Vá, vá falar a seu compadre!

— Não afianço nada, não creio que seja possível.*. — Ha de ser possível, afianço eu. Se o senhof

quizer, continuou ella com certo tom insinuativor

tudo se ha de arranjar. Peça-lhe muito, que elle cede. Ande, senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...

— Mas, minha senhora... — Vá, vá. João Carneiro não se animava a sair, nem podia

ficar. Estava entre um puxar de forças oppostas.Não lhe importava, em summa, que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou medico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse ; mas o peior é que lhe commettiam uma luta inerente com os sentimentos mais Íntimos do compadre, sem certeza do resultado;; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja ultima palavra era ameaçadora : « digo-lhe que elle não volta. » Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupilla des­vairada, a palpebra tremula, o peito oífegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de supplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Porque lhe não ordenava

O CASO DA VARA 9

que fosse a pé, debaixo de chuva, á Tijuca, ou Jaca-répaguá ? Mas logo persuadir ao compadre que mu­dasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah ! se o rapaz caísse alli, de repente, apopletico, morto! Era uma solução, — cruel, é certo, mas definitiva.

— Então ? insistiu Sinhá Rita. Elle fez-lhe um gesto de mão que esperasse.

Cocava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a egreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os trer-setes. Imaginai que o barbeiro de Na-poleão era encarregado de commandar a batalha de Austerlitz... Mas a egreja continuava, os seminá­rios continuavam, o afilhado continuava, cosido á parede, olhos baixos, esperando, sem solução apo-pletica.

— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.

Não teve remédio. O barbeiro metteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu á campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe d'esta vez o queixo.

— Ande jantar, deixe-se de melancolias. — A senhora crè que elle alcance alguma cousa ? — Ha de alcançar tudo, redarguiu Sinhá Rita

cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando. i .

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Apezar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espirito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caracter molle do padrinho. Comtudo, jan­tou bem; e, para o fim, voltou ás pilhérias da manhã. Á sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.

— Hão de ser as moças. Levantaram-se e passaram á sala. As moças eram

cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e alli ficavam até o cair da noite.

As discipulas, findo o jantar d'ellas, tornaram ás almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram echos tão mundanos, tão alheios á theologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por elles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizi­nhas certo acanhamento ; mas passou depressa. Uma d'ellas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando de­pressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anecdota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrecia.

—• Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.

Damião não teve remédio senão obedecer. Máu grado o annuncio e a expectação, que serviam a

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diminuir o chiste e o effeito, a anecdota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrecia e olhou para ella, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça mettida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; oú teria rido para dentro, como tossia.

Sairam as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo ? De instante a instante, ia espiar pela rotula, e voltava cada vez mais desani­mado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fel-o calar, mandou chamar dous negros, foi á poli­cia pedir um pedestre, e ahi vinha pegal-o á força e leval-o ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saida pelos fundos ; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quiz ainda saber se haveria modo de fugir para a rua da Valia, ou se era melhor falar a algum vizi­nho que fizesse o favor de o receber. 0 peior era a batina ; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um roda-que, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esqueci­mento de João Carneiro.

— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ella, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se ha de arranjar, descance.

Afinal, á boca da noite, appareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negocio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e

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quiz quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então met-tia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar á religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa d'elle.

Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra taboa de salvação, pensou elle, Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta..*» « Joãosinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos. » Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reani-mar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que soce-gasse, que aquelle negocio era agora d'ella.

— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!

Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrecia estava ainda á almofada, me-neando os bilros, já sem vêr; Sinhá Rita chegou-se" a ella, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.

0 CASO DA VARA l â

— Ah! malandra! — Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por

Nossa Senhora que está no céu. — Malandra! Nossa Senhora não protege vadias! Lucrecia fez um esforço, soltou-se das mãos da

senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atraz e agarrou-a.

— Anda cá! — Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha. — Não perdôo, não. Onde está a vara? E tornaram ambas á sala, uma presa pela orelha,

debatendo-se, chorando e pedindo ; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.

— Onde está a vara? A vara estava á cabeceira da marqueza, do outro

lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista :

— Sr. Damião, dê-me aquella vara, faz favor? Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem

passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadri­nhar a pequena, que por causa d'elle, atrazára o trabalho...

— Dè-me a vara, Sr. Damião! Damião chegou a caminhar na direcção da mar­

queza. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pae, por Nosso Senhor...

— Me acuda, meu sinhô moço! Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbu-

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galhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um accesso de tosse. Damião sentiu-se compungido ; mas elle precisava tanto sair do semi­nário ! Chegou á marqueza, pegou na vara e entre­gou-a a Sinhá Rita.

O DICGIONARIO

O Diccionario

Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Rernardino, o qual em cosmographia professava a opinião de que este mundo é um immenso tonei de marmellada, e em politica pedia o throno para a multidão. Com o fim de a pôr alli, pegou de um páo,. concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e acclamado, viu que o throno só dava para uma pessoa, e cortou a difíi-culdade sentando-se em cima.

— Em mim, bradou elle, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

0 primeiro acto do novo rei foi abolir a tanoaria,. indemnisando os tanoeiros, prestes a derrubal-o,. com o titulo de Magníficos. 0 segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Rernardino, Rernardão. Par­ticularmente encommendou uma genealogia a um grande doutor d'essas matérias, que em pouco mais-

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de uma hora o entroncou a um tal ou qual general; romano do século IV, Rernardus Tanoarius ; — nome que deu logar á controvérsia, que ainda dura, que­rendo uns que o rei Rernardão tivesse sido tanoeiro,^ e outros que isto não passe de uma confusão de­plorável com o nome do fundador da familia.; Já vimos que esta segunda opinião é a única verda-i deira.

Como era calvo desde verdes annos, decretou Ber-nardão que todos os seus subditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse acto em uma razão de ordem politica, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro acto em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no logar correspondente ao dedo minimo, dando assim aos seus subditos o ensejo de se parecerem com elle, que padecia de um callo. 0 uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma ophtalmia que affligiu a Bernardão, logo no segundo anno do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão^ porque, tendo-lhe dito um dos seus dous minis­tros, chamado Alpha, que a perda de um olho o fazia igual a Annibal, — comparação que o lisongeottj muito, — o segundo ministro, Omega, deu um* passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortezia foi uma revê-

O DICCIONARIO 1 9

lação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.

Tratava-se, cm verdade, de assegurar a dynastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrel-lada, bella, rica e illustre. Esta senhora, que culti­vava a musica e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel á dynastia decahida. Bernardão offereceu-lhe as cousas mais sumptuosas e raras, e, por outro lado, a familia bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o illustre Bernardão lhes acenava com o principado; que os thronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquillo. Estrellada, porém, resistia á seducção.

[ Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secre­tamente um poeta, declarou que estava prompta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor ma-drigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco (ie amor e confiado em s i : tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das ca­beças.

Concorreram ao certamen, que foi anonymo e se­creto, vinte pessoas. Um dos madrigaes foi julgado superior aos outros todos : era justamente o do poeta amado. Bernardão annullou por um decreto o con­curso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne machiavelismo, ordenou que

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não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos annos de idade. Nenhum dos concur-rentes estudara os clássicos : era o meio provável de os vencer.

Não venceu ainda assim, porque o poeta amado leu á pressa o que pode, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão annullou esse segundo con­curso; e, vendo que no madrigal vencedor as locu­ções antigas davam singular graça aos versos, de­cretou que só se empregassem as modernas e parti­cularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira victoria do poeta*amado.

Bernardão, furioso, abriu-se com os dous minis­tros, pedindo-lhes um remédio prompto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrellada, man­daria cortar trezentas mil cabeças. Os dous, tendo consultado algum tempo, voltaram com este ai-vitre :

— Nós, Alpha e Omega, estamos designados pelos nossos nomes para as cousas que respeitam á lin­guagem: A nossa idéia é que Vossa Sublimidade| mande recolher todos os diccionarios e nos encar­regue de compor um vocabulário novo que lhe dará a victoria.

Bernardão assim fez, e os dous metteranvse em casa durante trez mezes, findos os quaes depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro, a que chamaram Diccionario de Babel, porque era real­mente a confusão das lettras. Nenhuma locução- se

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parecia com a do idioma falado; as consoantes tre­pavam nas consoantes, as vogaes diluiam-se nas vogaes, palavras de duas syllabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, ne-nlíuma energia, nenhuma graça, uma lingua de cacos e trapos.

— Obrigue Vossa Sublimidade esta lingua por um decreto, e está tudo feito.

Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bella Estrellada. A confusão passou do diccionario aos espíritos; toda a gente andava attonita. Os far-çolas comprimentavam-se na rua pelas novas locu­ções : diziam, por exemplo, em vez de : Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propoz-lhe que fugissem; elle, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma cousa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigaes. 0 melhor d'elles, apezar da lingua barbara, foi o do poeta amado. Bernardão, allucinado, mandou cortar as mãos aos dous ministros, e foi a única vingança. Estrellada era tão admiravelmente bella, que elle não se atreveu a magoal-a, e cedeu.

Desgostoso, encerrou-se oito dias na bibliotheca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a ultima cousa que leu foi uma satyra do poeta Garção, e

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especialmente estes versos, que pareciam feitos de encommenda :

O raro Apelles, Rubens e Raphael, inimitáveis Não se fizeram pela côr das tintas; A mistura elegante os fez eternos.

UM ERRADIO

Um erradio

A porta abriu-se... Deixa-me contar a historia á laia de novella, disse Tosta á mulher, um mez depois de casados, quando ella lhe perguntou quem era o homem representado n'uma velha photographia, achada na secretária do marido. A porta abriu-se, e appareceu este homem, alto e serio, moreno, mettido n'uma infinita sobrecasaca côr de rape, que os ra­pazes chamavam opa.

— Ahi vem a opa do Elisiario. — Entre a opa só. — Não, a opa não pôde; entre só o Elisiario, mas,

primeiro hade glosar um mote. Quem dá o mote ? i Ninguém dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um alíaiate, que morava nos fun­dos com a familia; rua do Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia alli, a convite de um dos ra­pazes. Não podes ter idéia da sala e da vida. Ima­gina um município do paiz da Bohemia, tudo desor-

2 6 UM ERRADIO

denado e confuso; além dos poucos moveis pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, uma canas­tra, um cabide, um bahú de folha de Flandres, livros, chapéos, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas appareciam outros, e todos eram tudo, estu­dantes, traductores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava tempo para redigir uma folha politica e litteraria, publicada aos sabbados. Que longas pa­lestras que tínhamos! Solapávamos as bases da so­ciedade, descobríamos mundos novos, constellações novas, liberdades novas. Tudo era novíssimo.

— Lá vae mote, disse afinal um dos rapazes, e recitou :

Podia embrulhar o mundo A opa do Elisiario.

Parado á porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em fôrma de bolo, e re­citou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu, que não tinha idéia do que era improviso, cuidei a principio que a composição era velha e a scena um logro para mim. Elisiario despiu a sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triumphal, e foi pendural-a a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o chapéo ao tecto, apanhou-o entre as mãos, e foi pol-o em cima do aparador.

— Lugar para um! disse finalmente.

UM ERRADI0 2 7

Dei-me pressa em ceder-lhe o sophá; elle deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novi­dades havia.

— Que o jantar é duvidoso, respondeu o redactor principal do Cenaculo; o Chico foi ver se cobrava alguma assignatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o jantar da casa de pasto. Você já jantou ?

— Já e bem, respondeu Elisiario, jantei numa casa de commercio. Mas vocês porque é que não ven­dem o Chico? é um bonito creoulo. É livre, não ha duvida, mas por isso mesmo comprehenderá que, deixando-se vender como escravo, terão vocês com que pagar-lhe os ordenados... Dous mil réis chegam? Romeu, vê alli no bolso da sobrecasaca. Hade haver uns dous mil réis.

Havia só mil e quinhentos, mas não foram pre­cisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, tra­zendo um taboleiro com o jantar e o resto da assi­gnatura de um semestre. i — Não é possível! bradou Elisiario. Uma assi­gnatura! Vem cá, Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? Não é possível que fosse baixo; a acção é tão sublime que nenhum ho­mem baixo podia pratieal-a. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia altura. Confes­sas? Ainda bem ! Como se chama? Guimarães? Ra­pazes, vamos perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito que não lhe deste recibo, Chico.

— Dei, sim, senhor.

2 8 UM ERRADIO

— Recibo ! Mas a um assignante que paga não se dá recibo, para que elle pague outra vez; não se matam esperanças, Chico.

Tudo isto, dito por elle, tinha muito mais graça que contado. Não te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que não ria, um riso único, sem alterara face, nem mostrar os dentes. Essa feição era a me­nos sympathica; mas tudo o mais, a fala, as idéias, e principalmente a imaginação fecunda e moça, que se desfazia em ditos, anecdotas, epigrammas, ver­sos, descripções, ora serio, quasi sublime, ora fami­liar, quasi rasteiro, mas sempre original, tudo attrahia e prendia. Trazia a barba por fazer, o ca-bello á escovinha; a testa, que era alta, tinha gros­sas rugas verticaes. Calado, parecia estar pensando.: Voltava-se a miúdo no sophá, erguia-se, sentava-se, tornava a deitar-se. Lá o deixei, quando saí, ás nove horas da noite.

Comecei a freqüentar a casa da rua do Lavradio, mas durante os primeiros dias não appareceu o Eli­siario. Disseram-me que era muito incerto. Tinha temporadas. Ás vezes, ia todos os dias; repentina-; mente, falhava uma, duas, três semanas seguidas, e mais. Era professor de latim e explicador de mathe-;

maticas. Não era formado em cousa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito, deixando em toda*s as faculdades fama de grande talento sem applicação. Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever vinte minutos seguidos; era poeta de im-

UM ERRADI0 29

proviso, não escrevia os versos, os outros é que os ouviam e trasladavam ao papel, dando-lhe copias, muitas das quaes perdia. Não tinha familia; tinha um protector, o Dr. Lousada, operador de algum nome, que devera obséquios ao pae de Elisiario, e quiz pagal-os ao filho. Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor-próprio, que não tolerava a me­nor picada. N"aquella casa era bonachão. Trinta e cinco annos; o mais velho dos rapazes contava ape­nas vinte e um. A familiaridade entre elle e os ou­tros era como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de liberdade.

No fim de uma semana, appareceu Elisario na rua do Lavradio. Vinha com a idéia de escrever um drama, e queria dictal-o. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta collaboração mental e ma­nual durou duas noites e meia. Escreveu-se um acto e as primeiras scenas de outro; Elisiario não quiz absolutamente acabar a peça. A principio disse que depois, mais tarde, estava indisposto, e falava de outras cousas; afinal, declarou-nos que a peça não prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excellente, e ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia cousa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Nós contestávamos; eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo —achaca

2.

3 0 UM ERRADIO

um crime não acabar o drama, que era de primeira! ordem.

— Não vale nada, dizia elle sorrindo para mim com sympathia, Menino, você quantos annos tem1!

— Dezoito. — Tudo é sublime aos dezoito annos. Cresça e

appareça. O drama não presta; mas, deixe estar que havemos de escrever outro d'aqui a dias. Ando com uma idéia.

— Sim? — Uma boa idéia, continuou elle com os olhos;

vagos; essa, sim, creio que dará um drama. Cinco actos; talvez faça em verso. O assumpto presta-se...

Nunca mais falou em tal idéia; mas o drama come­çado fez com que nos ligássemos um pouco mais intimamente. Ou sympathia, ou amor-próprio satis­feito, por ver que o mais consternado com a inter­rupção e condemnação do trabalho fui eu, — ou qualquer outra causa que não achei nem vale a pena buscar, Elisiario entrou a distinguir-me entre os outros. Quiz saber quem eram meus pães e o que fazia. Disse-lhe que não tinha mãe; meu pae era lavrador em Raturité, eu estudava preparatórios, inter-calando-os com versos, e andava com idéias de com­por um poema, um drama e um romance. Tinha já uma lista de subscriptores para os versos. Parece que, de envolta com as noticias litterarias, alguma cousa lhe disse ou elle percebeu acerca dos meus sentimentos de moço. Propoz-se a ajudar-me nos

UM ERRADI0 3 1

estudos com o seu próprio ensino, latim, francez, inglez, historia... Cheio de orgulho, não menos que de sensibilidade, proferi algumas palavras que elle gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente :

— Quero fazer de você um homem. Estávamos sós; eu nada contei aos outros, para

os não molestar, nem sei se elles perceberam d'ahi em deante alguma differença no trato do Elisiario, em relação a mim. É certo, porém, que a differença não era grande, nem o plano de « fazer-me um

' homem » foi além da sympathia e da benevolência. ; Ensinava-me algumas matérias, quando eu lhe pedia ' lições, e eu raramente as pedia. Queria só ouvil-o, ouvil-o, ouvil-o até não acabar. Não imaginas a elo­

qüência d'esse homem, callida e forte, mansa e doce, *as imagens que lhe brotavam no discurso, as idéias 'arrojadas, as fôrmas novas e graciosas. Muita vez ficávamos os dous sós na rua do Lavradio, elle fal-llando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vaga-imente que para os lados da Gamboa, mas nunca me convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente sonde era.

: Na rua era lento, direito, circumspecto. Nada faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, ie, se falava, eram poucas e meias palavras. Nos pri­meiros dias, encontrava-me sem alvoroço, quasi sem •prazer, ouvia-me attento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte; era icommum achal-o nos lugares mais distantes uns dos

3 2 UM ERRADIO

outros, Botafogo, S. Christovão, Andarahy. Quando lhe dava na veneta, mettia-se na barca e ia a Nithe-| roy. Chamava-se a si mesmo erradio.

— Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto.

Um dia encontrei-o na rua de S. José. Disse-lhe que ia ao Castello ver a egreja dos Jesuítas, que nunca vira. Pois vamos, disse elle. Subimos a ladeira^ achamos a egreja aberta e entramos. Em quanto eu mirava os altares, elle ia falando, mas em poucos| minutos o expectaculo era elle só, um expectaculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi os pri­meiros templos da cidade, os padres da companhia, a vida monastica e leiga, os nomes principaes e os factos culminantes. Quando saimos, e fomos até já muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Eli­siario fez-me viver dous séculos atraz. Vi a expe1

dição dos francezes, como se a houvesse comman-dado ou combatido. Respirei o ar da colônia, con­templei as figuras velhas e mortas. A imaginação evocativa era a grande prenda desse homem, que' sabia dar vida ás cousas extinctas e realidade ás inventadas.

Mas não era só do passado local que elle sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquella esta-tuasinha que alli tenho na parede? Sabes que é uma reducção da Venus de Milo. Uma vez, abrindo-rseía exposição das bellas-artes, fui visital-a; achei lá o meu Elisiario, passeando grave, com a sua immenSÈJ

JM ERRADIO 3 3

sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de esculptura, dei com os olhos na copia desta Venus. Era a primeira vez que a via. Soube que era ella pela falta dos braços.

— Oh ! admirável! exclamei. Elisiario entrou a commentar a bella obra ano-

nyma, com tal abundância e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de cousas me disse a pro­pósito da Venus de Milo, e da Venus em si mesma! Falou da posição dos braços, que gesto fariam, que attitude dariam á figura, formulando uma porção de hypotheses graciosas e naturaes. Falou da esthetica, dos grandes artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que alli me apparecia e transportava de uma rua estreita para deante do Parthenon. A opa do Elisiario transformou-se em chlamyde, a lingua devia ser a da Hellade, comquanto eu nada soubesse a tal res­peito, nem então, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem.

Saimos ; fomos até o Campo da Acclamação, que ainda não possuia o parque de hoje, nem tinha outra iroolicia além da natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiario, ao lado delle, que levava a cabeça baixa e os olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixi­nho :

i — Adeus, Yoyô !

3 4 UM ERRADIO

Era uma quitandeira de doces, uma creoula bahiana, segundo me pareceu pelos bordados e cri-vos da saia e da camisa. Vinha da Cidade Nova i atravessava o campo. Elisiario respondeu á sau­dação :

— Adeus, Zeferina. Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, de­

pois de alguns segundos : — Não se espante, menino. Ha muitas espécies

de Venus. 0 que ninguém dirá é que a esta lhe faltem braços, continuou olhando para os braços da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta e alva da camisa. Eu, de vexado, não achei resposta.

Não contei esse episódio na rua do Lavradio; podiam metter á bulha o Elisiario, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe não sei que veneração particular, que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos á jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos aú theatro. O que mais lhe custava no theatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atraz de si. Nas noites de enchente, em que eram precisas travessas na platéa, ficava afflicto com a idéia de não poder sair no meio de um acto, se quizesse. Naquella, acabado o terceiro acto (a peça tinha cinco), disse-me que não podia mais e que ia embora.

Fomos tomar chá ao botequim próximo, e deixei-

UM ERRADIO 3 5

ne estar, esquecido do expectaculo. Ficamos até o echar das portas. Tínhamos falado de viagens; eu ;ontei-lhe a vida do sertão cearense, elle ouviu e >rojectou mil jornadas ao sertão do Brazil inteiro, ior serras, campos e rios, de mula e de canoa. Co-heria tudo, plantas, lendas, cantigas, locuções, barrou a vida do caipira, falou de Enéas, citou Virgílio e Camões, com grande espanto dos criados, pie paravam boquiabertos.

— Você era capaz de ir daqui a pé, até S. Chris-íovão, agora? perguntou-me na rua.

— Pôde ser. — Não, você está cançado. — Não estou, vamos. — Está cançado, adeus; até depois, concluiu. Realmente, estava fatigado, precisava dormir.

Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se elle iria sosinho, aquella hora, e deu-me vontade de acompanhai-o de longe, até certo ponto. Ainda o apanhei na rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Acclamação, enfiou pela rua de S. Pedro e metteu-se pelo Aterrado acima. Eu, no Campo, quiz voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se esse erradio não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei d'esta re^ flexão, e quiz punir-me desandando; mas a curio­sidade levara-me o somno e dava-me vigor.ás per—

36 UM ERRADIO

nas. Fui andando atrás do Elisiario. Chegamos assim á ponte do Aterrado, enfiamos por ella, desemboca­mos na rua de S. Christovão. Elle algumas vezes parava, ou para accender um charuto, ou para nada. Tud<> deserto, uma ou outra patrulha, algum tilbury raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim1

chegamos ao cães da Igrejinha. Junto ao cács dor­miam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o Sacco do Alferes. Maré frouxa, apenas o resomnar manso da água. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo cami­nho, accordou os remadores de um bote, que de acaso alli dormiam, e propoz-lhes leval-o á cidade. Não sei quanto offereceu; vi que, depois de alguma reluctancia, acceitaram a proposta.

Elisiario entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a água, e lá se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e explicador de ma-thematicas. Também eu me achei perdido, longe da cidade e exhausto. Valeu-me um tilbury, que atra­vessava o Campo de S. Christovão, tão cançado como eu, mas piedoso e necessitado.

— Você não quiz ir commigo ante-hontem a S. Christovão ? Não sabe o que perdeu ; á noite estava j linda, o passeio foi muito agradável. Chegandéjao cáes da Igrejinha, metti-me n'um bote e vim desem­barcar no Sacco do Alferes. Era um bom pedaço até*i a casa; fiquei numa hospedaria do campo de Santa | Anna. Fui atacado por um cachorro, no cami

UM ERRADIO 3 7

do Sacco, e por dous na rua de S. Diogo, mas não senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um justo. E você que fez?

— Eu? Não querendo mentir, se elle me tivesse presen-

tido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi summariarfiente :

— Eu ? Eu também dormi como um justo. — Justus, justa, justum. Estávamos na casa da rua do Lavradio. Elisiario

trazia no peito da camisa um botão de coral, objecto de grande espanto e acclamação da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com jóias. Maior, porém, foi o meu espanto, depois que os rapazes sairam. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar sapatos, Elisiario saccou o botão de coral e disse que me fosse calçar com elle. Recusei energicamente, mas tive de acceital-o á força. Não o vendi nem em­penhei ; no dia seguinte pedi algum dinheiro adian­tado ao correspondente de meu pae, calçei-me de novo, e esperei que chegasse o paquete do Norte?

para restituir o botão ao Elisiario. Sevisses a cara de desconsolo com que o recebeu !

— *Mas o senhor não disse outro dia que lhe tinham dado este botão de presente? repliquei á proposta que me fez de ficar com a jóia.

— Sim, disse e é verdade ; mas para que me servem jóias ? Acho que ficam melhor nos outros.

3

3 8 UM ERRADIO

Bem pensado, como é presente, posso guardado botão. Deveras, não o quer para si?

— Não, senhor; um presente... — Presente de annos, continuou mirando a pedra

com o olhar vago. Fiz trinta e cinco. Estou velhoj meu menino; não tardo em pedir reforma e ir morrer em algum buraco.

Tinha acabado de repor o botão na camisa. — Fez annos, e não me disse. — Para que? Para visitar-me? Não recebo nesse

dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Louzada, que também faz o seu versinho, ás vezes, e outro dia brindou-me com um soneto im­presso em papel azul... Lá o tenho em casa; não é máu.

— Foi elle que lhe deu o botão... — Não, foi a filha... 0 soneto tem um verso

muito parecido com outro de Camões ; o meu velho Louzada possue as suas lettras clássicas, além de ser excellente medico... Mas o melhor delle é a alma...

Quizeram fazel-o deputado. Ouvi que dois amigos delle, homens políticos, entenderam que o Elisiario daria um bom orador parlamentar. Não se oppoz, pediu apenas aos inventores do projecto que lhe emprestassem algumas idéias políticas ; riram-se, e o projecto não foi adeante.

Quero crer que lhe não faltassem idéias, talvez as tivesse de sobra, mas tão contrarias uma ás outras que não chegariam a formar uma opinião. Pensava

UM ERRADIO 3 9

segundo a disposição do dia, liberal exaltado ou conservador corcunda. 0 principal motivo da recusa era a impossibilidade de obedecer a um partido, a um chefe, a um regimento de câmara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da sessão, uma de manhã, outra de noite, outra de madrugada, ao accaso da freqüência, sem ordem do dia, com direito de discutir o annel de Saturno ou os sonetos de .Petrarcha, o meu erradio Elisiario aceitaria o cargo, comtanto que não fosse obrigado a estar calado, nem a falar, quando lhe chegasse a vez.

Ahi tens o que era esse homem photographado em 1862. Em summa, boa creatura, muito talento, excellente conversador, alma inquieta e doce, des­confiada e irritadiça, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambições, um erradio. Se não quando... Mas é muito falar sem fumar um charuto... Con-sentes ? Em quanto accendo o charuto, olha para esse retrato, descontando-Ihe os olhos, que não sairam bem; parecem olhos de gato e inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a con­sciência. Não eram isso ; olhavam mais para dentro que para fora, e quando olhavam para fora derra­mavam-se por toda a parte.

Se não quando, uma tarde, já escuro, por volta das sete horas, appareceu-me na casa de pensão, o meu amigo Elisiario. Havia três semanas que o não •via, e, como tratava de fazer exames, e passava mais tempo mettido em casa, não me admirei da

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ausência nem cuidei delia. Demais, já me acostu­mara aos seus eclypses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisiario appareceu á porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao pé delle, perguntei-lhe por onde andara. Elisiario abraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada; abracei-o também, elle enxugou os olhos com o lenço, que de costume trazia fechado na mão, e suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosa­mente, porque enxugava os olhos de quando em, quando. Eu, cada vez mais assombrado, esperava que elle me dissesse o que tinha; afinal murmurei:

— Que é ? que foi ? — Tosta, casei-me sabbado...

•„, Cada vez mais espantado, não tive tempo de lhe pedir outra explicação, porque o Elisiario continuou logo, dizendo que era um casamento de gratidão, não de amor, uma desgraça. Não sabia que respon­desse á confidencia, não acabava de crer na noticia, e principalmente, não entendia o abatimento nem a dôr do homem. A figura do Elisiario, qual a recom-puz depois, não me apparecia por esse tempo com a significação verdadeira. Cheguei a suppôr alguma cousa mais que o simples casamento ; talvez a mu­lher fosse idiota ou tisica ; mas quem o obrigaria a desposar uma doente?

— Uma desgraça! repetia baixinho, falando para si, uma desgraça!

UM ERRADIO 41

- Como eu me levantasse dizendo que ia accender uma vela, Elisiario reteve-me pela aba do fraque.

— Não accenda, não me vexe, o escuro é melhor, para lhe expor esta minha desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que ella me não ame ; ao

•contrario, morria por mim ha sete annos. Tem vinte e cinco... Boa creatura ! Uma desgraça !

A palavra desgraça era a que mais vezes lhe tor­nava ao discurso. Eu, para saber o resto, quasi não respirava ; mas não ouvi grande cousa, pois o homem, depois de algumas palavras descosidas, suspendeu a conferência. Fiquei sabendo só que a mulher, era filha do Dr. Louzada, seu protector e amigo, a mesma que lhe dera o botão de coral. Elisiario calou-se de repente, e,depois de alguns instantes, como arrependido ou vexado, pediu-me que não referisse a pessoa alguma aquella scena delle commigo.

— 0 senhor deve conhecer-me... — Conheço, e porque o conheço é que vim aqui.

Não sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiança. Adeus, não lhe digo mais nada, não vale a pena. Você é moço, Tosta; se não tiver vocação para o casamento, não se case nunca, nem por gra­tidão, nem por interesse. Ha de ser um supplicio. Adeus. Não lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas não me procure.

Abraçou-me e saiu. Fiquei á porta do quarto. Quando me lembrei de acompanhai-o até á escada,

4 2 UM ERRADIO

era tarde; ia descendo os últimos degráos. 0 lam­pião de azeite allumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa, apoiada ao corrimão, cabeça baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste.

Só dez mezes depois tornei a ver o Elisiario. A primeira ausência foi minha; tinha ido ao Ceará, ver meu pae, durante as ferias. Quando voltei, soabe que elle fora ao Rio Grande do Sul. Um dia, almo­çando, li nos jornaes que chegara na véspera, e corri a buscal-o. Achei-o em Santa Thereza, uma casinha pequena, com um jardim, pouco maior que ella. Elisiario abraçou-me com alvoroço ; falamos de cousas passadas; perguntei-lhe pelos versos.

— Publiquei um volume em Porto-Alegre. Não foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ella mesma os copiou.,Tem alguns erros ; heide fazer aqui uma segunda edição.

Elisiario deu-me um exemplar do livro, mas não consentiu que lesse alli nada. Queria só falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma cousa, e ia continuar a leccionar, para ver se achava as impressões de outr'ora. Onde estavam os rapazes, da rua do Lavradio ? Recordava scenas antigas, noi­tadas, algazarra, grandes risotas, que me iam lem­brando cousas análogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando me despedi, pegou-me para jantar.

— Você ainda não viu minha mulher, disse elle. E indo á porta que dava para dentro : — Cintinha!.*

UAI ERRADIO 4 3

— Lá vou! respondeu uma voz doce. D. Jacintha chegou logo depois, com os seus vinte

3 seis annos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expressão boa e séria, grande quietação de maneiras. Quando elle lhe disse o meu nome, olhou fiara mim espantada.

— Não é um bonito rapaz ? Ella confirmou a opinião inclinando modesta­

mente a cabeça. Elisiario disse-lhe que eu jantava iom elles ; a moça retirou-se da sala.

— Boa creatura, disse-me elle ; dedicada, servi-jal. Parece que me adora. Já me não faltam botões ÍOS paletós que trago... Pena ! melhor que elles ;ram os botões que faltavam. A sobrecasaca de >utr'ora, lembra-se?

Podia embrulhar o mundo A opa do Elisiario.

,— Lembra-me. — Creio que me durou cinco annos. Onde vae

ílla! Heide fazer-lhe um epicedio, com uma epigraphe le Horacio...

Jantámos alegremente. D. Jacintha falou pouco; leixou que eu e o marido gastássemos o tempo em •elembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha iurtos de eloqüência, como outr'ora; a mulher era >ouca para ouvil-o. Elisiario esquecia-se de nós, ella le si, e eu achava a mesma nota antiga, tão viva e ;ão forte. Era costume delle concluir um discurso

4 4 UM ERRADIO

desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer? Continuava a mesma ordem de idéas? Deixava-se ir ainda pela musica da palavra? Não sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas occasiões a mu­lher calava-se também, a olhar para elle, não cheia de pensamento, mas de admiração. Succedeu isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita.

Elisiario disse-me, ao café, que viria commigo abaixo.

— Você deixa, Cintinha? D. Jacintha sorriu para mim, como se dissesse

que o pedido era desnecessário. Também ella falou no livro de versos do marido.

— Elisiario é preguiçoso; o senhor hade ajudar-me a fazer com que elle trabalhe.

Meia hora depois descíamos a ladeira. Elisiario confessou-me que, desde que casara, não tivera occa­sião da relembrar a vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que iríamos ao theatro.

— Mas você não avisou em casa... — Que tem? Aviso depois. Cintinha é boa, não

se zanga por isso. Que theatro hade ser? Não foi nenhum; falamos de outras cousas, e ás

nove horas, tornou para casa. Voltei a Santa The-reza poucos dias depois, não o achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, não tardaria.

— Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse. ella; hade gostar muito de o ver.

UM ERRADIO

Emquanto falava, ia fechando dissimuladamente um livro, e foi pol-o em uma mesa, a um canto. Tra­támos do marido; ella pediu-me que lhe dissesse o que pensava delle, se era um grande espirito, um grande poeta, um grande orador, um grande homem, em summa. As palavras não seriam propriamente essas, mas vinham a dar nellas. Eu, que o admi­rava, confirmei-lhe o sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforço que empreguei para dar á minha opinião a mesma emphasis.

— Faz bem em ser amigo delle, concluiu; elle sempre me falou bem do senhor; dizia que era um menino muito serio.

0 gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada cousa em seu logar, obra visível da mulher. D'ahi a.pouco entrou Elisiario, com a gravata no pescoço, o laço na frente, a barba rapada, correcto e em flor. Só então notei a differença entre este Elisiario e o outro. A incohe-rencia dos gestos era já menor, ou estava prestes a acabar inteiramente. A inquietação desapparecera. Logo que elle entrou, a mulher deixou-nos para ir mandar fazer café, e voltou pouco depois, com um trabalho de agulha.

— Não, senhora, vamos primeiro ao latim, bradou o marido.

D. Jacintha corou extraordinariamente, mas obe-8.

UM ERRADIO

deceu ao marido e foi buscar o livro, que estava lendo quando eu cheguei.

— Tosta é de confiança, continuou Elisiario, não vai dizer nada a ninguém.

E voltando-se para mim : — Não pense que sou eu que lhe imponho isto;

ella mesma é que quiz aprender. Não crendo o que elle me dizia, quiz poupar á

moça a licção de latim, mas foi ella própria que me dispensou o auxilio, indo buscar alegremente a, grammatica do padre Pereira. Vencida a vergonha,, deu a licção, como um simples alumno. Ouvia com attenção, articulava com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o inaridu quiz passar á licção de historia; mas foi ella, dessa vez, que recusou obedecer, para me não roubal-o a mim. Êu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava tão fora de propósito aquella escola dè latim con­jugai, que não alcançava explicação, nem ousava pedil-a.

Amiudei as visitas. Jantava com elles algumas vezes. Ao domingo ia só almoçar. D. Jacintha era um primor. Não imaginas a graça que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mãos, apezar do latim e da historia,que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os cabellos lisos e não trazia jóia alguma;' podia ser affectacão, mas tal era, a sinceridade que

UM ERRADIO 4 7

punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto.

Ao domingo, o almoço era no jardim. Já achava o Elisiario á minha espera, á porta, ancioso que eu chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as ílores e folhagens que tinham de adornar a mesa. Além disso e do mais, adornava cartões contendo a lista dos pratos, com emblemas poéticos e nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas po­diam entrar, elles não eram ricos, nem nós tão comilões; entravam as que podiam. Era ao almoço que Elisiario, nos primeiros tempos, mais geral­mente improvisava alguma cousa. Improvisava dé­cimas, — elle preferia essa estrophe a qualquer outra; mais tarde, foi diminuindo o numero dellas, e para deante não passava de duas ou de uma. D. Jacintha pedia-lhe então sonetos; sempre eram quatorze versos. Ella e eu copiávamos logo, a lápis, com rectificações que elle fazia, rindo : — « Para que •querem vocês isso? » Afinal perdeu o costume, com grande magoa da mulher, e minha também. Os ver­sos eram bons, a inspiração fácil; faltava-lhes só o calor antigo.

Um dia perguntei a Elisario porque não reim-primia o livro de versos, que elle dizia ter sahido, com incorrecções; eu ajudaria a ler as provas. D. Jacintha apoiou com enthusiasmo a proposta.

— Pois, sim, disse elle, um dia destes; começa­remos domingo.

4 8 UM ERRADIO

No domingo, D. Jacintha, estando a sós commigo, um instante, pediu-me que não esquecesse a revisão? do livro.

— Não, senhora, deixe estar. — Não enfraqueça, se elle quizer adiar o trabalho,

continuou a moça; é provável que elle fale em guar­dar para outra vez, mas teime sempre, diga que não, que se zanga, que não volta cá...

Apertou-me a mão com tanta força, que me deixou abalado. Os dedos tremiam-lhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o que disse, ella ajudou-me, e ainda assim gastamos meia hora antes que elle se dispuzesse ao trabalho. Afinal pediu-nos que espe­rássemos, ia buscar o livro.

— Desta vez, vencemos, disse eu. D. Jacintha fez com a bocca um gesto de descon­

fiança, e passou da alegria ao abatimento. — Elisiario está preguiçoso. Hade ver que não

acabamos nada. Pois não vê que não faz versos senão á força de muito pedido, e poucos? Podia escrever também, quando mais não fosse alguns daquelles discursos que costuma improvisar, mas os próprios discursos são raros e curtos. Tenho-me offerecido tantas vezes para escrever o que elle man­dar. Chego a preparar o papel, pego na penna e espero, elle ri, disfarça, diz um gracejo, e responde que não está disposto.

— Nem sempre estará. — Pois sim; mas então declaro que estou

UM ERRADIO 4 9

prompta para quando vier a inspiração, e peço-lhe que me chame. Não chama nunca. Uma ou outra vez .tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no mesmo. Entretanto, o livro que elle imprimiu em gorto-Alegre foi bem recebido, podia animal-o.

— Animal-o? Mas elle não precisa de animações; basta-lhe o grande talento que tem.

— Não é verdade? disse ella chegando-se a mim, com os olhos cheios de fogo. Mas é pena! tanto talento perdido!

— Nós o acharemos; hei-de tratal-o como se elle fosse mais moço que eu. 0 mau foi deixal-o cair na ociosidade...

Elisiario tornou com um «xemplar do livro. Não trazia tinta nem penna; ella foi buscal-as. Come­çamos o trabalho da revisão; o plano era emendar, não só os erros de imprensa, mas o próprio texto. A novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas. Verdade é que a maior parte do tempo era interrompido com a his­toria das poesias, a noticia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das composições era dedicada a amigos ou homens públicos. Natural­mente fizemos pouco : não passamos de vinte pagi­nas. Elisiario confessou que estava com somno, adia­mos o trabalho, e nunca mais pegamos nelle.

D. Jacintha chegou a pedir ao marido que nos dei­xasse a nós a tarefa de emendar o livro; elle veria

5 0 UM ERRADIO

depois o texto emendado e prompto. Elisiario res-. pondeu que não, que elle mesmo faria tudo, que esperássemos, não havia pressa. Mas, como disse,, nunca mais pegamos no livro. Já raro improvisava, e, como não tinha paciência para compor escre­vendo, os versos iam escasseando mais. Já lhe saíam frouxos; o poeta repetia-se. Quizemos ainda assim propor-lhe outro livro, recolhendo -o que ha­via, e antes de o propor, tratamos de compilal-o. 0 todo precisava de revisão; Elisiario consentiu em fazel-a, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os próprios discursos iam acabando. 0 gosto da palavra morria. Falava como todos nós fa­lamos ; não era já nem sombra daquella catadupa de idéias, de imagens, de phrases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem falava; já me recebia sem enthusiasmo, ainda que cordialmente^ Afinal vivia aborrecido.

Com poucos annos de casada, D. Jacintha tinha no marido um homem de ordem, de socego, mas sem inspiração nem calor. Ella própria foi mudando também. Não instava já pela composição de versos novos, nem pela correcção dos velhos. Ficou tão desinteressada como elle. Os jantares e os almoços eram como os de qualquer pessoa que não cuide de lettras. D. Jacintha buscava não tocar em tal as­sumpto que era penoso ao marido e a ella; eu imi­tava-os. Quando me formei, Elisiario compoz um soneto em honra minha; mas já lhe custou muito,

UM ERRADIO 5 1

e, a falar verdade, não era do mesmo homem de ou­tro tempo.

D. Jacintha vivia então, não direi triste, mas des­encantada. A razão não se comprehenderá bem, se não sabendo as origens da affeição que a levara ao casamento.

Pelo que pude colher e observar, nunca essa moça amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisiario acreditou que sim, é o disse, porque o pae delia pensava que era deveras um amor como os outros. A verdade, porém, é que o sentimento de D. Jacintha era pura admiração. Tinha uma paixão intellectual por esse homem, nada mais, e nos pri­meiros annos não pensou em casar com elle. Quando Elisiario ia á casa do Dr. Louzada, D. Jacintha vivia as melhores horas da vida, escutando-lhe os versos, novos ou velhos, — os que trazia de cór e os que improvisava alli mesmo. Possuía boa copia delles. Más, ainda que não fossem versos, contentava-se em ouvil-o para admiral-o. Elisiario, que a conhe­cia desde pequena, falava-lhe como a uma irmã mais moça. Depois viu que era intelligente, mais do que o commum das mulheres, e que havia nella um sentimento de poesia e de arte que a faziam supe­rior. 0 apreço em que a tinha era grande, mas não

, passava disso.

Assim se passaram annos. D. Jacintha começou a .pensar em um acto de pura dedicação. Conhecia a , vida de Elisiario, os dias perdidos, as noitadas, a

5 2 UM ERRADIO

incoherencia e o desarranjo de uma existência que ameaçava acabar na inutilidade. Nenhum estimulo, nenhuma ambição de futuro. D. Jacintha acreditava no gênio de Elisiario. Muitos eram os admiradores; nenhum tinha a fé viva, a devoção calada e profunda daquella moça. O projecto era desposal-o. Uma vez casados, ella lhe daria a ambição que não tinha, o estimulo, o habito do trabalho regular, methodicoj e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspiração em cousas futeis ou conversas ocio­sas, comporia obras de fôlego, nas boas horas, e para elle quasi todas as horas eram excellentes. 0 grande poeta affirmar-se-hia perante o mundo. As­sim disposta, não lhe foi difficil obter a collabora-ção do pae, sem todavia confessar-lhe o motivo se­creto da acção; seria dizer que se casava sem amor. O que ella disse foi que o amava deveras.

Que haja nisso uma nota romanesca, é verdadtj mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admiração, e podia ser um sacrifício. Talvez mais de um tentasse casar com ella. D. Jacintha não pensou em ninguém, até que lhe surdiu a idéia generosa de seduzir o poeta. Já sabes que este casou por obediência. ,

O resultado foi inteiramente opposto ás esperan^ ças da moça. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapuça na cabeça, e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem lia já obras de arte. D. Jacintha padeceu grandemente;

UM ERRADIO 5 3

viu esvair-se-lhe o sonho, e, se não perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquella lingua sublime em que cuidou falar ás ambições de um grande espirito. A conclusão a que chegou foi ainda um desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilisára uma inspiração que só tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, além de não achar as doçuras do casamento na união com Elisiario, perdeu a única vantagem a que se propuzera no sa­crifício.

Errava naturalmente. Para mim Elisiario era o mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era também um talento de pouca dura; tinha de acabar, ainda que não casasse. Não foi a ordem que lhe tirou a inspiração. Certamente, a desordem ia mais com elle que tanto tinha de agitado, como de solitário; mas a quietação e o methodo não dariam

jcabo do poeta, se a poesia nelle não fosse uma grande febre da mocidade... Em mim é que não pas­sou de ligeira constipação da adolescência. Pede-me tu amor, que o terás; não me peças versos, que desaprendi ha muito, concluiu Tosta, beijando a

i mulher.

ETERNO!

# # # # # # # # # # # # # #

Eterno !

— Não me expliques nada, disse eu entrando no quarto ; é o negocio da baroneza.

Norberto enxugou os olhos e sentou-se na cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma ca­deira, pousei a barba no dorso, e proferi este breve discurso :

— Mas, meu pateta, quantas vezes queres que te diga que acabes com essa paixão ridícula e humi­lhante? Sim, senhor, humilhante e ridícula, porque ella não faz caso de t i ; e demais, é arriscado. Não? Verás se o é, quando o barão desconfiar que lhe arrastas a aza á mulher. Olha que elle tem cara de maus bofes.

Norberto metteu as unhas na cabeça, desesperado. Tinha-me escripto cedo, pedindo que fosse confor-tal-o e dar-lhe algum conselho ; esperára-me na rua, até perto de uma hora da noite, defronte da casa de pensão em que eu morava; contava-me na carta que

5 8 ETERNO!

não dormira, que recebera um golpe terrível, falava em atirar-se ao mar. Eu, apezar de outro golpe que também recebera, acudi ao meu pobre Norberto. Éramos da mesma idade, estudávamos medicina, com a differença que eu repetia o terceiro anno, qu&, perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; não me cabendo igual fortuna, por havel-os perdido, vivia de uma mezada que me dava um tio da Bahia, € das dividas que o bom velho pagava semestral­mente. Pagava-as, e escrevia-me logo uma porção de cousas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse estudando até ser doutor. Doutor, para* que? dizia commigo. Pois se nem o sol, nem alua, nem as moças, nem os bons charutos Villegas eram doutores, que necessidade tinha eu de o ser? E toei a rir, a folgar, a deixar correr semanas e credores.

Falei de um golpe recebido. Erà uma carta do tio, vinda com a do Norberto, naquella mesma ma­nhã. Abri-a antes da outra, e li-a com pasmo. Já me não tuteava ; dizia ceremoniosamente : « Sr. Simeão Antônio de Barros, estou farto de gastar á toa o meu dinheiro com o senhor. Se quizer concluir os estu­dos, venha matricular-se aqui, e morar commigoj Senão, procure por si mesmo recursos ; não lhe dou mais nada. » Amarrotei o papel, finquei os olhos n'uma lithographia muito ruim do visconde de Se-petiba, que já achei pendente de um prego, no meu quarto de pensão, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco para baixo. Bradei que podia guardar o

ETERNO! 59

seu dinheiro, que eu tinha vinte annos, — o pri­meiro dos direitos do homem, anterior aos tios e ou­tras convenções sociaes.

A imaginação, madre amiga, apontou-me logo uma infinidade de recursos, que bastavam a dispensar os magros cobres de um velho avarento ; mas, passada essa primeira impressão, e relida a carta, entrei a ver que a solução era mais árdua do que parecia. Os recursos podiam ser bons e até certos; mas eu estava tão afeito a ir á rua da Quitanda receber a pensão mensal e a gastal-a em dobro, que mal podia adoptar outro systema.'

Foi n'este ponto que abri a carta do amigo Nor­berto e corri á casa d'elle. Já sabem o que lhe disse; viram que elle metteu as unhas na cabeça, desespe­rado. Saibam agora que, depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de mim outros con­selhos.

— Quaes ? Não me respondeu. — Que compres uma pistola ou uma gazúa ? al-

smm narcótico ? — Para que estás- caçoando commigo ?

| — Para fazer-te homem. • Norberto deu de. hombros, com um laivosinho de íscarneo ao canto da bocca. Que homem? Que era ser homem, senão amar a mais divina -creatura do nundo e morrer por ella ?

A baroneza de Magalhães, causa d'aquella de-

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mencia, viera pouco antes da Bahia, com o marido, que antes do baronato, adquirido para satisfazer a noiva, era Antônio José Soares de Magalhães. Vi­nham casados de fresco; a baroneza tinha menos trinta annos que o barão; ia em vinte e quatro, Realmente era bella. Chamavam-lhe, em familia, Yayá Lindinha. Como o barão era velho amigado pai de Norberto, as duas famílias uniram-se desde logo.

— Morrer por ella? disse eu. j Jurou-me que sim; era capaz de matar-se. Mulheí

mysteriosá! A voz d'ella entrava-lhe pelos ossos.j, E, dizendo isto, rolava na cama, batia com a cabeça,' mordia os travesseiros. Ás vezes, parava, arque-, jando; logo depois tornava ás mesmas convulsões, abafando os soluços e os gritos, para que os não ouvissem do primeiro andar. I

Já acostumado ás lagrimas do meu amigo, desdea vinda da baroneza, esperei que ellas acabassem, mas não acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a elle, bradei-lhe que era uma criançada, e despedi-me; Norberto pegou-me na mão, para que ficasse, não me tinha dito ainda o principal.

— É verdade; que é ? — Vão-se embora. Estivemos lá hontem, e ouvi

que embarcam sabbado. — Para a Bahia ? — Sim. — Então, vão commigo.

ETERNO! 61

Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao pé delle. Norberto escutou-me alvoroçado. Na Bahia? Iríamos juntos; éramos íntimos, os pais não recu­sariam este favor á nossa joven amizade. Confesso que o plano pareceu-me excellente, e demo-nos a elle com affinco. A mãe, apezar de muita lagrima que teria de verter, ao despegar-se do filho, cedeu mais promptamente do que suppunhamos. O pae é que não cedeu nada. Não houve rogos nem empenhos; o próprio barão, que eu tive a arte de trazer ao nosso propósito, não alcançou do velho amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa e velar por elle. 0 pai foi inflexível.

Podem imaginar o desespero do meu amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa d'ella, com a fa­milia, até onze horas; mas, com o pretexto de passar commigo a ultima noite da minha estada aqui, veiu realmente chorar tantas e taes lagrimas, como nunca as vi chorar jamais, nem antes nem depois. Não podia descrer da paixão, nem presumir consolál-a; era a primeira. Até então, ambos nós só conhecia-mos os trocos miúdos do amor; e, por desgraça d'elle a primeira moeda grande que achara, não era ouro nem prata, senão ferro, duro ferro, como a do velho Lycurgo, forjada com o mesmo amargo vi­nagre.

Não dormimos. Norberto chorava, arrepellava-se, pedia a morte, construía planos absurdos ou terri-

i

62 ETERNO

veis. Eu, arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma cousa que o consolasse; era peior, era como se fa­lasse de dança a uma perna dolorida. Consegui que fumasse um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os ás dúzias, sem acabar nenhum. Ás três horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro, — não logo, mas d'ahi a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa idéia da cabeça unicamente no interesse d'elle próprio.

— Ainda se fosse útil, vá; disse-lhe eu; mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na porta, porque a mulher, se não gosta de ti, e te vè lá, é capaz de perceber logo o motivo da tua viagem, * não te recebe.

— Que sabes tu ? — Pôde receber-te, mas não ha certeza, acho eu,

Crês que ella goste de ti ? — Não digo que sim, nem que não. Contou-me episódios, gestos, ditos, cousas ambí­

guas ou insignificantes; depois vinha uma reticência de lagrimas, murros no peito, clamor de angustia, a dôr ia-se-me communicando ; padecia com elle, a razão cedia á compaixão, as nossas naturezas fun­diam-se em uma só lastima. D'ahi esta promessa que lhe fiz.

— Tenho uma idéia. Vou com elles, já nos conhe­cemos, é provável que freqüente a casa; eu então farei uma cousa : sondo-a a teu respeito." Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses

ETERNO! 6 3

em outra cousa; mas se achar alguma inclinação, pouca que seja, aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca.

Norberto aceitou alvoroçado a proposta : era uma esperança. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que a observaria bem, sem temor, e, pela sua parte, ju­rou-me que não hesitaria um instante. E teimava commigo que não perdesse nada ; que, ás vezes, um indicio pequeno valia muito, uma palavrinha era um livro; que, se pudesse, alludisse ao desespero em que o deixava. Para peitar a minha sagacidade, af-firmou que o desengano matal-o-hia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na morte e na eternidade. Não achei bocca para replicar-lhe que isto era o mesmo que obrigar-me a só mandar boas noti­cias. N'aquella occasião, apenas sabia chorar com elle.

A aurora registrou o nosso pacto immoral. Não consenti que elle fosse a bordo despedir-se. Parti. Não falemos dá viagem... Ó mares de Homero, íla-gellados por Euros, Roreas e o violento Zephyro, mares épicos, podeis sacudir Ulysses, mas não lhe daes as afflicções do enjôo. Isso é bom para os mares de agora, e particularmente para aquelles que mè levaram d'aqui à Rahia. Só depois de chegar ante a cidade, ousei apparecer á nossa dona magnífica, tão senhora de si, como se acabasse dè dar um passeio apenas longo.

— Não tem saudades do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de introito.

6 4 ETERNO!

— Certamente. O barão veiu indicar-me' os logares que a gente

via do paquete, — ou a direcção de outros. Offere •ceu-me a casa d'elle, no Bomfim. Meu tio veiu a bordo, e, por mais que quizesse fazer-se tetrico, sen­ti-lhe o coração amigo. Via-me, único filho da irmã finada, — e via-me obediente. Não podia haver para mim melhores impressões de entrada. Divina juven­tude ! as cousas novas pagavam-me em dobro as •cousas velhas.

Dei os primeiros dias ao conhecimento da cidade; mas não tardou que uma carta do meu amigo Nor­berto me chamasse a attenção para elle. Fui ao Bomfim. A baroneza — ou Yayá Lindinha, que era ainda o nome dado por toda a gente, — recebeu-mf| •com tanta graça, e o marido era tão hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular commissão que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o deses­pero do meu amigo, e a necessidade de consolal-o ou desesenganal-o era superior a qualquer outra con­sideração. Confesso até uma singularidade; agora que estavam separados entrou-me na alma a espe­rança de que ella não desgostasse d'elle, — justa­mente o que eu negava antes. Talvez fosse o desejo| de o ver feliz; podia ser uma instigação da vaidade que me acenasse com a victoria em favor do des­graçado.

Naturalmente, conversámos do Rio de Janeiro. Eu •dizia-lhe as minhas saudades, falava das cousas que

ETERNO! i 6 5

estava acostumado a ver, das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras de todos os dias, das casas, das affeições... Oh! as affeições eram os laços mais apertados. Tinha amigos : os pais de Nor­berto... f — Dous santos, interrompeu a moça; meu ma­rido, que conhece o velho desde muitos annos, conta d'elle cousas curiosas. Sabe que casou por uma paixão fortíssima ? y —• Adivinha-se. O filho é o fructo expressivo do amor dos dous. Conheceu bem o meu pobre Nor­berto?

— Conheci; ia lá á casa muitas vezes. — Não conheceu. Yayá Lindinha franziu levemente a testa. — Perdoe-me se a desminto, continuei com viva-

cidade. Não conheceu a melhor alma, a mais pura e a mais ardente que Deus creou. Talvez que ache par­cial por ser amigo. A verdade é que ninguém me prende mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Nor­berto ! Não imagina que homem talhado para dous officios ao mesmo tempo, archanjo e heróe, — para dizer á terra as delicias do céu, e para escalar o céu, se fòr preciso ir lá levar as lamentações humanas...

Só no fim d'esta fala comprehendi que era ridí­cula. Yayá Lindinha, ou não a entendeu assim, ou disfarçou a opinião; disse-me somente que a minha amizade era enthusiasta, mas que o meu amigo pa­recia boa pessoa. Não era alegre, ou tinha crises

4.

66 ETERNO!

melancólicas. Disseram-lhe que elle estudava muito., — Muito. I Não insisti para não atropellar os acontecí

mentos Que o leitor me não condemne sem remis­são nem aggravo. Sei que o papel que eu fazia não era bonito; mas já lá vão vinte e sete annos. Confio do Tempo, que é um insigne alchimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, elle o restitue em diamantes;' quando menos, em cascalho. Assim é que, se um homem de Estado escrever e publicar as suas me­mórias, tão sem escrúpulo, que lhes não falte nada, nem confidencias pessoaes, nem segredos do go­verno, nem até amores, amores particularissimos e inconfessáveis, verá que escândalo levanta o livro. Dirão, e dirão bem, que "o auctor é um cynico, indigno dos homens que confiaram n'elle e das mu­lheres que o amaram. Clamor sincero e legitimo, porque o caracter publico impõe muitos resguardos; os bons costumes e o próprio respeito ás mulheres amadas constrangem ao silencio...

... Mas deixai pingar os annos na cuba de ura século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico, psychologico, anecdotico. Hão de lel-o a frio; estudar-se-ha n'elle a vida intima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os minis­térios e déital-os abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam eleições e gaianteios, se eram usados chalés ou capas,;

que vehiculos tínhamos se os relógios eram trazidos)

ETERNO! 67

á direita ou á esquerda, e multidão de cousas inte­ressantes para a nossa historia publica e intima. I)'ahi a esperança que me fica, de não ser condem-nado absolutamente pela consciência dos que me lèm. Já lá vão vinte e sete annos ! v Gastei mais de meio em bater á porta d'aquelle coração, a vèr se lá achava o Norberto; mas nin­guém me respondia de dentro, nem o próprio ma­rido. Não obstante, as cartas que mandava ao meu pobre amigo, se não levavam esperanças, também iião levavam desenganos. Houve-as até mais espe-" rançosas que desenganadas. A affeição que lhe tinha e o meu amor-próprio conjugavam as forças todas para espertar n'ella a curiosidade e a seducção de um mysterio remoto e possivel.

Já então as nossas relações eram familiares. Visi­tava-os a miúdo. Quando lá não ia três noites segui­das, vivia afflicto e inquieto; corria a vêl-os na quarta noite, e era ella que me esperava ao portão da chácara, para dizer-me nomes feios, ingrato, pre­guiçoso, esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa não deixava de estar alli á espera, com a mão prestes a apertar a minha, — ás vezes, tremula, — ou seria a minha que tremia; não sei.

— Amanhã não posso vir, dizia-lhe algumas noites, á despedida, baixo, no vão de uma janella.

— Por que? '*• Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma obri­gação de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de pro-

6 8 ETERNO!

messa, mas ficava desconsolada. Comecei a escrever,:; menos ao Norberto e a falar pouco de Yayá Lin­dinha, como quem não ia á casa d'ella. Tinha for­mulas differentes : « Hontem encontrei o barão no largo do Palácio; disse-me que a mulher está boa.» Ou então : « Sabes quem vi ha três dias no theatro? A baroneza. » Não relia as cartas, para não encarar a minha hypocrisia. Elle, pela sua parte, também ia •escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moça não apparecia mais o nome de Norberto; con­vencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste defunto sem galas mortuarias.

Beirávamos o abysmo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula celeste, — incongruência para os que não andam namorados. A morte resolveu o problema, levando comsigo o barão, por meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e três de março de 1861, ás seis horas da tarde. Era um excellente homem, a quem a viuva pagou em preces o que lhe não dera em amor.

Quando eu lhe pedi, três mezes depois, que, aca­bado o luto, casasse commigo, Yayá Lindinha não cxtranhou nem me despediu. Ao contrario, res­pondeu que sim, mas não tão cedo; punha uma con­dição : que concluísse primeiro os estudos, que me formasse. E disse isto cem os mesmos lábios, que pareciam ser o único livro do mundo, o livro uni­versal, a melhor das academias, a escola das escolas. Appellei d'ella para ella; escutou-me inflexível/

ETERNO! 69

A razão que me deu foi que meu tio podia receiar que, uma vez casado, interromperia a carreira.

— E com razão, concluiu. Ouça-me : só me caso com um doutor.

» Cumprimos ambos a promessa. Durante algum tempo andou ella pela Europa, com uma cunhada e o marido d'esta; e as saudades foram então as minhas disciplinas mais duras. Estudei paciente­mente; despeguei-me de todas as vadiações antigas. Recebi o capello na véspera da benção matrimonial; e posso dizer, sem hypocrisia, que achei o latim do padre muito superior ao discurso acadêmico.

Semanas depois, pediu-me Yayá Lindinha que viéssemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido, con­fesso que um pouco atordoado. Cá viria achar o meu amigo Norberto, se é que elle ainda residia aqui. Ia em mais de três annos que nos não escrevíamos ; já antes d'isso as nossas cartas eram breves e sem inte­resse. Saberia do nosso casamento? Dos prece­dentes ? Viemos; não contei nada a minha mulher.

Para que? Era dar-lhe noticia de uma aleivosia occulta, dizia commigo. Ao chegar, puz esta questão a mim mesmo, se esperaria a visita d'elle, se iria visital-o antes; escolhi o segundo alvitre, para avisal-o das cousas. Engenhei umas circumstancias especiaes, curiosas, acarretadas pela Providencia, cujos fios ficam sempre occultos aos homens. Não me ria, note-se bem; minha imaginação compunha tudo isso com seriedade.

70 ETERNO!

No fim de quatro dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio Comprido; estava casado. Tanto, melhor. Corri a casa d'elle. Vi no jardim uma pretas amamentando uma criança, outra criança de annoe meio, que recolhia umas pedrinhas do chão, acoco-* rada.

— Nhõ Bertinho,, vai dizer a mamai que está aqui um moço procurando papai.

O menino obedeceu; mas, antes que voltasse, che­gava de fora o meu velho amigo Norberto. Conheci-o logo, apezar das grandes suissas que usava; lan-, çámo-nos nos braços um do outro.

— Tu aqui? Quando chegaste? — Hontem. — Estás mais gordo, meu velho! Gordo e bonito:

Entremos. Que é? continuou elle inclinando-se para Nhõ Bertinho, que lhe abraçava uma das pernas.

Pegou d'elle, alçou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco menos; depois, tendo-o num braço, apontou para mim.

— 'Conheces este moço? Nhõ Bertinho olhava espantado, com o dedo na

bocca. O pai contou-lhe então que eu era um amigo, de papai, muito amigo, desde o tempo em que vovô e vovó eram vivos...

— Teus pais morreram? Norberto fez-me signal que sim, e acudiu ao filho,:,

que com as mãosinhas espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois, foi á criança,

ETERNO! 71

que mamava, não a tirou do regaço da ama, mas disse-lhe muitas cousas ternas, chamou-me para vêl-a; era uma menina. Revia-se n'ella, encantado. Tinha cinco mezes por ora; mas se eu voltasse alli quinze annos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos gordos ! Não podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a.

— Entra, anda vèr minha mulher. Jantas com-nosco. , — Não posso. í — Mamai está espiando, disse Nhõ Rertinho.

Olhei, vi uma moça á porta da sala, que dava para o jardim; a porta estava aberta, ella esperava-nos. Subimos os cinco degraus; entrámos na sala. Nor­berto pegou-lhe nas mãos, e deu-lhe dous beijos. A moça quiz recuar, não pôde, ficou muito córada.

— Náo te vexes, Carmella, disse elle. Sabes quem é este sujeito? É aquelle Barros de quem te falei muitas vezes, um Simeão, estudante de medicina... •A propósito, por que é que me não respondeste á participação do casamento ? . — Não recebi nada, respondi. 7 * — Pois affirmo que foi pelo correio.

Carmella ouvia o marido com admiração; elle -tanto fez, que foi sentar-se ao pé d'ella, para lhe reter a mão, ás escondidas. Eu fingia não vèr nada; falava dos tempos acadêmicos, de alguns amigos, da politica, da guerra, tudo para evitar que elle me perguntasse se estava ou não casado. Já me arre_

72 ETERNO!

pendia de ter ido alli; que lhe diria, se elle tocassí no ponto e indagasse da pessoa? Não me falou era nada; talvez soubesse tudo.

A conversação prolongou-se; mas eu teimei em sair, e levantei-me, Carmella despediu-se de mim com muita affabilidade. Era bella; os olhos pareciam) dar-lhe um resplendor de santa. Certo é que o ma­rido tinha-lhe adoração.

— Viste-a bem? perguntou-me elle á porta do-jardim. Não te digo o sentimenio que nos prende; estas cousas sentem-se, não se exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente criança. Creio que sim ; criança eterna, como é eterno o meu amor.

Entrei no tilbury, promettendo ir lá jantar uni d'aquelles dias.

— Eterno! disse commigo. Tal qual o amor que elle tinha a minha mulher.

E, voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe. — O que é eterno? — Com perdão de V S., acudiu elle, mas eu acho

que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que, se lhe não quebro a cara um d'estes dias, a minha alma se não salve. Pois o maroto parece eterno no logar; tem ahi não sei que compadres... Outros dizem que... Não me metto n'isso... Lá quebrar-lhe a cara...

Não ouvi o resto; fui mergulhando em mim. mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na rua da Gloria. O demônio conli-

ETERNO! 73

nuava a falar; paguei, e desci até á praia da Glo­ria, metti-me pela do Russell e fui sair á do Fla­mengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e puz-me a olhar para as ondas que vinham alli bater e morrer. Cá dentro, resoava, como um trecho mu­sical, a pergunta que fizera ao cocheiro : O que é eterno? As ondas, mais discretas que elle, não me contaram os seus particulares, vinham vindo, mor­riam, vinham vindo, morriam.

Cheguei ao hotel de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e per­guntei-lhe :

— 0 que eterno, Yayá Lindinha? Ella, suspirando : — Ingrato! é o amor que te tenho. Jantei sem remorsos; ao contrario, tranquillo e

jovial. Cousas do Tempo! Dá-se-lhe um punhado de lodo, elle o restitue em diamantes...

MISSA DO GALLO

Missa do eallo

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, ha muitos annos, contava eu desesete, ella trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um visinho irmos á missa do gallo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordal-o á meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Menezes, que fora casado, em primeiras nupcias com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Ja­neiro, mezes antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquíllo, naquella casa assobradada da rua do Se­nado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A familia era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Ás dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; ás dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao theatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Menezes que ia

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ao theatro, pedi-lhe que me levasse comsigo. Nessas occasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam á socapa; elle não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o theatro era um euphemismo em acção, Menezes trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a principio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acustumára-se, e acabou achando que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe « a santa », e fazia jus ao titulo, tão facilmente supportava os esqueci­mentos do marido. Em verdade, era um tempera­mento moderado, sem extremos, nem grandes lagrimas, nem grandes risos. No capitulo de que trato, dava para mahometana; acceitaria um lia­rem, com as apparencias salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nella era attenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa sympathica. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pôde ser até que não soubesse amar.

Naquella noite de Natal foi o escrivão ao theatro. Era pelos annos de 1861 ou 1862. Eu já devia eslar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver « a missa do gallo na Corte ». A familia recolheu-se á hora do costume; eu metti-me na sala da frente, vestido e prompto. Dalli passaria ao cor-

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redor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.

— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.

— Leio, D. Ignacia. Tinha commigo um romance, os Três Mosque­

teiros, velha traducção creio do Jornal do Com­mercio. Sentei-me á mesa que havia no centro da sala, e á luz de um candieiro de kerozene, emquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavallo magro de D'Artagnan e fui-me ás aventuras. Dentro em pouco estava completamente ebrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrario do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quasi sem dar por ellas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veiu acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas á de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar á porta da sala o vulto de Con­ceição.

— Ainda não foi? perguntou ella. — Não fui; parece que ainda não é meia-noite. — Que paciência! Conceição entrou na sala, arrastando as chinelli-

nhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ella foi sentar-se na

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cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza :

— Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da affirmativa. Os

olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no somno. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espirito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não affligir ou aborrecer. Já disse que ella era boa, muito boa.

— Mas a hora já hade estar próxima, disse eu. — Que paciência a sua de esperar acordado, em-

quanto o visinho dorme! E esperar sosinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.

— Quando ouvi os passos extranhei; mas a senhora appareceu logo.

— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.

— Justamente : é muito bonito. — Gosta de romances? — Gosto. — Já leu a Moreninlia ? — Do Dr.Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. — Eu gosto muito de romances, mas leio pouco,

por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?

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Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Con­ceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as palpebras meio-cer-radas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a lingua pelos beiços, para humedecel-os. Quando acabei de. falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos, Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre elles pousar o queixo, tendo os cotovellos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

— Talvez esteja aborrecida, pensei eu. E logo alto : — D. Conceição, creio que vão sendo horas, e

eu... — Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o

relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, per­dendo a noite, é capaz de não dormir de dia ?

— Já tenho feito isso. — Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia

estou que não posso, e, meia hora que seja, heide passar pelo somno. Mas também estou ficando velha.

— Que velha o quê, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir.

De costume tinha os gestos demorados e as atti-tudes tranquillas; agora, porem, ergueu-se rapida­mente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janella da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra em-

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bora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distincta como naquella noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objecto no apa-rador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o circulo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar accordado; eu repeti-lhe o que ella sabia, isto é, que nunca ouvira missa do gallo na Corte, e não queria perdel-a.

— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

— Acredito; mas aqui ha de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João. não digo, nem Santo Antônio...

Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cq-tovellos no mármore da mesa e mettera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as man­gas, cairam naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam suppor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse commum; naquelle momento, porém, a impressão que tive foi grande. As^veias eram tão azues, que apezar da pouca claridade, podia contal-as do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo á bocca. Falava

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emendando os assumptos, .sem saber porquê, va­riando delles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazel-a sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos eguaesinhos. Os olhos delia não eram bem negros, mas escuros; o nariz, secco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ella reprimia-me :

— Mais baixo! mamãe pôde accordar. E não saía daquella posição, que me enchia de

gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichá­vamos os dous. eu mais que ella, porque falava mais; ella, ás vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cançou; trocou de alti­tude e de lugar. Deu volta á mesa e veiu sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinellas; mas foi só o tempo que ella gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Con­ceição disse baixinho :

— Mamãe está longe, mas tem o somno muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pe­gava no somno.

— Eu também sou assim. — 0 que? perguntou ella inclinando o corpo para

ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do

canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência;

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também ella tinha o somno leve; éramos três somnos leves.

— Ha occasiões em que sou como mamãe; acor­dando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, á toa, levanto-me, accendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.

— Foi o que lhe aconteceu hoje. — Não, não, atalhou ella. Não entendi a negativa ; ella pôde ser que também

não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com ellas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma historia de sonhos, e affirmou-me que só tivera um pesadelo, em creança. Quiz saber se eu os tinha.; A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ella inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, • > reprimia-me :

— Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes,

pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem somno nem fadiga, como se ella os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. | Ha impressões dessa noite, que me apparecem trun-

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cadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa occasião, ella, que era apenas sympathica, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ella, quiz levantar-me; não consentiu, pôz uma das mãos no meu hombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dalli relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapér

falou de duas gravuras que pendiam da parede. — Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a

Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do-

principal negocio deste homem. Um representava « Cleopatra »; não me recordo o assumpto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquelle tempo não me pareciam feios.

— São bonitos, disse eu. — Ronitos são; mas estão manchados. E depois

francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

— Mas imagino que os freguezes, em quanto es­peram, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista delles com figuras bo-

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nitas. Em casa de familia é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita cousa assim exquisita. Seja o que fôr, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha ma­drinha, muito bonita; mas é de esculptura, não se pôde pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.

A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lem­brou-me que podia ser tarde e quiz dizel-o. Penso que cheguei a abrir a bocca, mas logo a fechei para ouvir o que ella contava, com doçura, com graça,;

com tal molleza que trazia preguiça á minha almae fazia esquecer a missa e a egreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anecdotas de baile, uns casos de passeio, re-miniscencias de Paquetá, tudo de mistura, quasi sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canceiras de fa­milia, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete annos.

Já agora não trocava de lugar, como a principio, e quasi não sairá da mesma attitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar á toa para as paredes.

— Precisamos mudar o papel da sala, disse dahi a pouco, como se falasse comsigo.

Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de somno magnético, ou o que quer que era

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que me tolhia a lingua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para ar-redar os olhos delia, e arredava-os por um senti­mento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos ouy-a vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silencio era completo.

Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor lunico e escasso, era um roer de comondongo no .gabinete, que me acordou daquella espécie de som-jnolencia ; quiz falar delle, mas não achei modo. Con­ceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janella, do lado de fora, e uma voz que bradava : « Missa do gallo! missa do gallo! » • — Ahi está o companheiro, disse ella levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordal-o, elle é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. 1 — Já serão horas? perguntei.

— Naturalmente. r— Missa do gallo! repetiram de fora, batendo. — Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha.

Adeus; até amanhã. f E com o mesmo balanço do corpo, Conceição en­fiou pelo corredor dentro, pizando mansinho. Saí á rua e achei o visinho que esperava. Guiamos dalli para a egreja. Durante a missa, a figura de Con­ceição interpoz-se mais de uma vez, entre mim e o í-

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padre; fique isto á conta dos meus desesete annos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do gallo e da gente que estava na egreja sem excitai$i curiosidade de Conceição. Durante o dia, achelf como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Anno-Bom' fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Ja­neiro, em março, o escrivão tinha morrido de apo-, plexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

IDÉIAS DE CANÁRIO

Idéias de canário

Um homem dado a estudos de ornithologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu credito. Alguns chegam a suppor que Macedo virou o juizo. Eis aqui o resumo da narração.

No principio do mez passado, — disse elle, — indo por uma rua, succedeu que um tilbury á disparada, quasi me atirou ao chão. Escapei saltando para den­tro de uma loja de belchior. Nem o estrepito do cavallo e do vehiculo, nem a minha entrada fez "levantar o dono do negocio, que cochilava ao fundo, sentado n'uma cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba côr de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não 'achara comprador. Não se adivinhava nelle nenhuma historia, como podiam ter alguns dos objectos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desen-ganada das vidas que foram vidas.

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A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que <$ ordinário se acham em taes casas, tudo naquella meia desordem própria do negocio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panellas sem tampa, tampas sem panella. botões, sapatos, fecha­duras, uma saia preta, chapéos de palha e de pello, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de velludo, dous cabides, um bodoque, um thermometro, cadeiras, um retrato lithographado pelo finado Sisson, um gamão, duas mascaras de arame para o carnaval que ha de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas immediações da porta, escostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, domi­nando os objectos grandes, commodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escu­ridão.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vasia. Não estava vasia. Dentro pulava um canário. A côr, a animação e a graça do passarinho davam aquelle amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o ultimo passageiro de algum naufrá­gio, que alli foi parar integro e alegre como d'antes.

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Logo que olhei para elle, entrou a saltar mais, abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se íquizesse dizer que no meio d'aquelle cemitério brin­cava um raio de sol. Não attribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente rhetorica; em verdade, elle não pensou em cemitério nem sol, se­gundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquella vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

— Quem seria o dono execrável d'este bichinho, que teve animo de se desfazer d'elle por alguns pares de nickeis? Ou que mão indifferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniella?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trillou isto :

— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juizo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imagi­nações de pessoa doente ; vai-te curar, amigo...

— Como? interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol ?

— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os caná­rios que tens visto usam do primeiro desses nomes,

IDÉIAS DE CANÁRIO

tanto melhor, porque é bonito, mas estou que con- fundes. -,

— Perdão, mas tu não vieste para aqui á toaj sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquelle homem que alli está sentado.

— Que dono? Esse homem que ahi está é meü creado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os ser­viços, não seria com pouco; mas os canários não pagam creados. Em verdade, se o mundo é proprie­dade dos canários, seria extravagante que elles pagas-] sem o que está no mundo. ^

Pasmado das respostas, não sabia que mais admi­rar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trillos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado ; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e humida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...

— Mas caro homem, trillou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito ? {

— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo ? '3

— O mundo, redarguiu o canário com certo arde professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego ; o canário é senhor da gaiola que habita e

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a loja que o cerca. Fora dahi, tudo é illusão e mentira. Nisto acordou o velho, e veiu a mim arrastando os

és. Perguntou-me se queria comprar o canário, idaguei se o adquirira, como o resto dos objectos ue vendia, e soube que sim, que o comprara a um arbeiro, acompanhado de uma collecção de navalhas. — As navalhas estão em muito bom uso, con-

luiu elle. j?.— Quero só o canário. Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola

asta, circular, de madeira e arame, pintada de ranço, e ordenei que a puzessem na varanda da linha casa, d'onde o passarinho podia vêr o jardim, repuxo e um pouco do ceu azul. Era meu intuito fazer um longo estudo do pheno-

leno, sem dizer nada a ninguém, até poder assom-raro século com a minha extraordinária descoberta, iomecei por alphabetar a lingua do canário, por studar-lhe a estructura, as relações com a musica, s sentimentos estheticos do bicho, as suas idéias e eminiscencias. Feita essa analyse philologica e psy-hologiea, entrei propriamente na historia dos cana-ios, na origem delles, primeiros séculos, geologia e lora das ilhas Canárias, se elle tinha conhecimento ta'navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu screvendo as notas, elle esperando, saltando, tril-ando.

Não tendo mais familia que dous criados, orde-lava-lhes que não me interrompessem, ainda por

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motivo de alguma carta ou telegramma urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas occupações scientificas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos,

Não é mister dizer que dormia pouco, accordava duas e três vezes por noite, passeava á toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, accrescentar, emendar. Rectifiquei mais de uma observação, — ou por havel-a entendido mal, ou porque elle não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma dellas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

— O mundo, respondeu elle, é um jardim assaz largo com repuxono meio, flores e arbustos, alguma: gramma, ar claro e um pouco de azul por cima : o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, d'onde mira-o resto. Tudo o mais é illusão e mentira. ?

Também a linguagem soffreu algumas rectif| cações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda •escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e. ás universidades allemães, não porque faltasse matéria, mas para accumular primeiro todas as observações e ratificai-, as. Nos últimos dias, não saía de casa, não respon­dia a cartas, não quiz saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados

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tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo scientifico. Também o serviço era o mais summario ^o mundo; o creado não era amador de pássaros.

Um sabbado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doiam-me. O medico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava 'na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias ; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o creado a tratar d'elle, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o creado; a indignação suffocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cui­dado, o passarinho é que fugira por astuto...

— Mas não o procuraram ? — Procuramos, sim, senhor; a principio trepou

ao telhado, trepei também, elle fugiu, foi para uma arvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde hontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, 'e com algumas horas pude sair á varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, annunciei, e nada. Tinha ja recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incom­pleta, quando me succedeu visitar um amigo, que occupa uma das mais bellas e grandes chácaras dos

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arrabaldes. Passeiavamos n'ella antes de jantar, quando ouvi trillar esta pergunta :

— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desappareceu ?

Era o canário ; estava no galho de uma arvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. 0 meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos ? Falei ao canário t

com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a con­versação, naquelle nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...

— Que jardim ? que repuxo ? — O mundo, meu quprido. — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes

de professor. O mundo, concluiu solemnemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse credito, o mundo era tudo ; até já fora uma loja de belchior...

— De belchior? trillou elle ás,bandeiras despre-gadas. Mas ha mesmo lojas de belchior?

LAGRIMAS DE XERXES

Lagrimas de Xerxes

Supponhamos (tudo é de suppor) que Julieta e Romeo, antes que Frei Lourenço os casasse, travavam com elle este dialogo curioso :

JULIETA. — Uma só pessoa? FREI LOURENÇO. — Sim, filha, e, logo que eu

houver feito de vós ambos uma só pessoa, nenhum outro poder vos desligará mais. Andai, andai, vamos ao altar, que estão accendendo as velas... {Saem da cella e vão pelo corredor.)

ROMEO. — Para que velas? Abençoai-nos aqui mesmo. (Pára diante de uma janella.) Para que altar e velas ? O céu é o altar : não tarda que a mão dos anjos accenda alli as eternas estrellas; mas, ainda sem ellas, o altar é este. A igreja está aberta; podem descobrir-nos. Eia, abençoai-nos aqui mesmo.

FREI LOURENÇO. — Não, vamos para a igreja; d'aqui a pouco estará tudo prompto. Curvarás a

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1 0 2 LAGRIMAS DE XERXES

cabeça, filha minha, para que olhos extranhos, se alguns houver, não cheguem a reconhecer-te...

ROMEO. — Vã dissimulação; não ha, em toda Verona, um talhe igual ao da minha bella Julieta, nenhuma outra dama chegaria a dar a mesma im­pressão que esta. Que impede que seja aqui? 0 altar não é mais que o céu.

FREI LOURENÇO. — Mais efficaz que o céu. ROMEO. — Como? FREI LOURENÇO. — Tudo o que elle abençoa perdura.

As velas que lá verás arder hão de acabar antes dos noivos e do padre que os vai ligar; tenho-as visto morrer infinitas; mas as estrellas...

ROMEO. — Que tem ? arderão ainda, nem alli nas­ceram senão para dar ao céu a mesma graça da terra. Sim, minha divina Julieta, a via-lactea é como o pó luminoso dos teus pensamentos; todas as pedrarias e claridades altas e remotas, tudo isso está aqui perto e resumido na tua pessoa, porque a lua plácida imita a tua indulgência, e Venus, quando scintilla, é com os fogos da tua imaginação. Aqui mesmo, padre. Que outra formalidade nos pedes tu? Nenhtima formalidade exterior, nenhum consentimento alheio. Nada mais que amor e vontade. O ódio de outros separa-nos, mas o nosso amor conjuga-nos.

FREI LOURENÇO. — Para sempre. JULIETA. — Conjuga-nos, e para sempre. Que mais

então ? Vai a tua mão fazer com que parem todas as horas de uma vez. Em vão o sol passará de um céu

LAGRIMAS DE XERXES 1 0 3

a outro céu, e tornará a vir e tornará a ir, não levará comsigo o tempo que fica a nossos pés como um tigre domado. Monge amigo, repete essa palavra amiga.

FREI LOURENÇO. — Para sempre. JULIETA. — Para sempre! amor eterno! eterna

vida! Juro-vos que não entendo outra lingua senão essa. Juro-vos que não entendo a lingua de minha mãe.

FREI LOURENÇO. — Pode ser que tua mãe não enten­desse a lingua da mãi d'ella. A vida é uma Rabel, filha ; cada um de nós vale por uma nação.

ROMEO. —Não aqui, padre; ella e eu somos duas províncias da mesma linguagem, que nos alliamos 'para dizer as mesmas orações, com o mesmo alphabeto e um só sentido. Nem ha outro sentido que tenha algum valor na terra. Agora, quem nos ensinou essa linguagem divina não o sei eu nem ella; foi talvez alguma estrella... Olhai, pode ser que fosse aquella primeira que começa a scintillar no espaço. } JULIETA. — Que mão celeste a terá accendido? Raphael, talvez, ou tu, amado Romeo. Magnífica estrella, serás a estrella na minha vida, tu, que marcas a hora do meu consórcio. Que nome tem ella, padre?

FREI LOURENÇO. — Não sei de astronomias, filha. JULIETA. — Has de saber por força. Tu conheces

as lettras divinas e humanas, as próprias hervas do chão, as que matam e as que curam... Dize, dize...

1 0 4 LAGRIMAS DE XERXES

FREI LOURENÇO. — Eva eterna! JULIETA. — Dize o nome d'essa tocha celeste, que

vai allumiar as minhas bodas, e casai-nos aqui mesmo. Os astros valem mais que as tochas da terra.

FREI LOURENÇO. — Valem menos. Que nome tem aquelle? Não sei. A minha astronomia não é como as dos outros homens. (Depois de alguns instantes de reflexão.) Eu sei o que me contaram os ventos, que andam cá e lá, abaixo e acima, de um tempo a outro tempo, e sabem muito, porque são testemunhas de tudo. A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietação a constância.

ROMEO. — E que vos disseram elles? FREI LOURENÇO. — Cousas duras. Herodoto conta

que Xerxes um dia chorou ; mas não conta mais nada. Os ventos é que me disseram o resto, porque elles lá estavam ao pé do capitão, e recolheram tudo... Escutai; ahi começam elles a agitar-se ; ouviram-nos falar e murmuram... Uivai, amigos ventos, uivai como nos jovens dias das Termopylas.

ROMEO. — Mas que te disseram elles ? Contai, contai depressa.

JULIETA. — Fala a gosto, nós te esperaremos. FREI LOURENÇO. — Gentil creatura, aprende com

ella, filho, aprende a tolerar as demasias de um velho lunático. O que é que me disseram? Melhor fora não repetil-o ; mas, se teimais em que vos case aqui mesmo, ao clarão das estrellas, dir-vos-hei a origem d'aquella, que parece governar todas as outras...

LAGRIMAS DE XERXES 1 0 5

Vamos, ainda é tempo, o altar espera-nos... Não? teimosos que sois... Contar-vos hei o que me disse­ram os ventos, que lá estavam em torno de Xerxes, quando este vinha destruir a Hellade com tropas innumeraveis. As tropas marchavam diante d'elle, a poder de chicote, porque esse homem crú amava particularmente o chicote e empregava-o a miúdo, sem hesitação nem remorso. 0 próprio mar, quando ousou destruir a ponte que elle mandara construir, recebeu em castigo trezentas chicotadas. Era justo ; mas para não ser somente justo, para ser também abominável, Xerxes ordenou que decapitassem a todos os que tinham construído a ponte e não soube­ram fazel-a imperecivel. Chicote e espada ; pancada e sangue. Í JULIETA. —r Oh! abominável!

FREI LOURENÇO. — Abominável, mas forte. Força vale alguma cousa ; a prova é que o mar acabou acei­tando o jugo do grande persa. Ora, um dia, á mar­gem do Hellesponto, curioso de contemplar as tropas que alli ajuntara, no mar e em terra, Xerxes trepou a um alto morro feitiço, donde espalhou as vistas para todos os lados. Calculai o orgulho que elle sentiu. Viu alli gente infinita, o melhor leite mugido á vacca asiática, centenas de milhares ao pé de centenas de milhares, varias armas, povos diversos, cores e vestiduras differentes, mescladas, baralhadas, flexa e gladío, tiara e capacete, pelle de cabra, pelle de cavallo, pelle de panthera, uma algazarra infinita de

1 0 6 LAGRIMAS DE XERXES

cousas. Viu e riu; farejava a victoria. Que outro poder viria contrastal-o ? Sentia-se indestructivel. E ficou a rir e a olhar com longos olhos ávidos e felizes| olhos de noivado, como os teus, moço amigo...

ROMEO. — Comparação falsa. O maior déspota do universo é um miserável escravo, se não governa os mais bellos olhos femininos de Verona. E a prova é que, a despeito do poder, chorou.

FREI LOURENÇO. — Chorou, é certo, logo depois, tão depressa acabara de rir. A cara embruscou-se-lhe de repente, e as lagrimas saltaram-lhe grossas e irreprimíveis. Um tio do guerreiro, que alli estava, interrogou-o espantado; elle respondeu melancoli-, camente que chorava, considerando que de tantos milhares e milhares de homens que alli tinha diante de si, e ás suas ordens, não existiria um só ao cabo de um século. Até aqui Herodoto; escutai agora os ventos. Os ventos ficaram attonitos. Estavam justa­mente perguntando uns aos outros se esse homem feito de ufania e rispidez teria nunca chorado em sua vida, e concluíam que não, que era impossivel, que elle não conhecia mais que injustiça e crueldade; não a compaixão. E era a compaixão que alli vinha lacrimosa, era ella que soluçava na garganta do tyranno... Então elles rugiram de assombro,; depois pegaram das lagrimas de Xerxes... Que farias tu d'ellas ?

ROMEO. — Seccal-as-hia, para que a piedade humana não ficasse deshonrada.

LAGRIMAS DE XERXES 1 0 7

FREI LOURENÇO. — Não fizeram isso : pegaram das igrimas todas e deitaram a voar pelo espaço fora, radando às constellações : Aqui estão! olhai! olhai! qui estão os primeiros diamantes da alma barbara! lodo o Armamento ficou alvoroçado ; pôde crer-se ue, por um instante, a marcha das cousas parou, [enhum astro queria acabar de crer nos ventos, [erxes! Lagrimas de Xerxes eram impossíveis; tal lanta não dava em tal rochedo. Mas alli estavam lias; elles as mostravam, contando a sua curiosa listoria, o riso que servira de concha a essas pérolas, s palavras delle, e as constellações não tiveram re-aedio, e creram finalmente que o duro Xerxes hou­vesse chorado. Os planetas miraram longo tempo ssas lagrimas inverosimeis; não havia negar que raziam o amargo da dôr e o travo da melancolia. 5 quando pensaram que o coração que as brotara de i tinha particular amor ao estalido do chicote, leitaram um olhar oblíquo á terra, como pergun-ando de que contradicções era ella feita. Um delles lisse aos ventos que devolvessem as lagrimas ao larbaro, para que as engolisse; mas os ventos res­ponderam que não e detiveram-se para deliberar. *íão cuideis que só os homens dissentem uns dos mtros. [ JULIETA. — Também os ventos ?

FREI LOUSENÇO. — Também elles. O aquilão queria ionvertel-as em tempestades do mundo, violentas 3 destruidoras, como o homem que as gerara; mas^

1 0 8 LAGRIMAS DE XERXES

os outros ventos não aceitaram a idéia. As tempes­tades passam ligeiras ; elles queriam alguma cousa que tivesse perennidade, um rio, por exemplo, ou um mar novo; mas não combinaram nada e foram ter com o sol e a lua. Tu conheces a lua, filha.

ROMEO. — A lua é ella mesma ; uma e outra são a plácida imagem da indulgência e do carinho; é o que ou te disse ha pouco, meu bom confessor.

JULIETA. — Não, não creias nada do que elle disser, freire amigo; alua é a minha rival, é a rival que allumia de longe o bello rosto do galhardo Romeo, que lhe dá um resplendor de opala, á noite, quando! elle vem pela rua...

FREI LOURENÇO. — Terão ambos razão. A lua e Julieta podei» ser a mesma pessoa, e é por isso que querem o mesmo homem. Mas, se a lua és tu, filha, 1 deves saber o que ella disse ao vento.

JULIETA. — Nada, não me lembra nada.

FREI LOURENÇO. — Os ventos foram ter com ella, perguntaram-lhe o que fariam das lagrimas de Xerxes, e a resposta foi a mais piedosa do mundo. Crystali-semos essas lagrimas, disse a lua, e façamos d'ellas uma estrella que brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir todos aquelles que deixarem a terra, para achar alli a per-petuidade que lhes escapou.

JULIETA. — Sim, eu diria a mesma cousa, (olhando pela janella). Lume eterno, berço de renovação,

LAGRIMAS DE XERXES 1 0 9

mundo do amor continuado e infinito, estávamos ouvindo a tua bella historia.

FREI LOURENÇO. — Não, não, não.

JULIETA. — Não ?

• FREI LOURENÇO. — Não, porque os ventos foram também ao sol, e tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe as lagri­mas, contaram a origem d'ellas e o conselho do astro da noite, e falaram da belleza que teria essa estrella nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu que sim, que crystalisassem as lagrimas e fizessem d'ellas uma estrella; mas nem tal como o pedia a lua, nem para igual fim. Ha de ser eterna e brilhante, disse elle, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcissima poesia. Não; essa estrella feita das lagrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará p mdente do céu como o astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as cousas construídas fim desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ella fará descer um dos seus raios, lagrima de Xerxes, para escrever a palavra da extincção, breve, total, irremissivel. Toda epiphania receberá esta nota de sarcasmo. Não quero melancolias, que são as rosas pallidas da lua e suas congêneres; — ironia, sim, uma dura bocca, gelada e sardonica...

ROMEO. — Como? Esse astro esplendido... FREI LOURENÇO. — Justamente, filho; e é por isso

7

1 1 0 LAGRIMAS DE XERXES

que o altar é melhor que o céu; no altar a benta vela arde depressa e morre ás nossas vistas.

JULIETA. — Conto de ventos ! FREI LOURENÇO. — Não, não.

JULIETA. — Ou ruim sonho de lunático. Velho lunático disseste ha pouco ; és isso mesmo. Vão sonho ruim, como os teus ventos, e o teu Xerxes, e as tuas lagrimas, e o teu sol, e toda essa dança de figuras imaginárias.

FREI LOURENÇO. — Filha minha... JULIETA. — Padre meu, que não sabes que ha,

quando menos, uma cousa immortàl, que é o meu amor, e ainda outra, que é o incomparavel Romeo, Olha bem para elle; vê se ha aqui um soldado de Xerxes. Não, não, não. Viva o meu amado, que não estava no Hellesponto, nem escutou os desvarios dos ventos nocturnos, como este frade, que é a um tempo amigo e inimigo. Sê só amigo, e casa-nos. Casa-nos onde quizeres, aqui ou alem, diante das velas ou debaixo das estrellas, sejam ellas de ironia ou de piedade; mas casà-nos, casa-nos, casa-nos..

PAPEIS VELHOS

Papeis velhos

Brotero é deputado. Entrou agora mesmo em casa, ás duas horas da noite, agitado, sombrio, res­pondendo mal ao moleque, que lhe pergunta se quer isto ou aquillo, e ordenando-lhe, finalmente, que o deixe só. Uma vez só, despe-se, enfia um chambre e vai estirar-se no canapé do gabinete, com os olhos no tecto e o charuto na bocca. Não pensa tranquillamente ; resmunga e estremece. Ao cabo de algum tempo senta-se; logo depois levanta-se, vai a uma janella, passeia, pára no meio da sala, batendo com o pé no chão ; emfim resolve ir dor­mir, entra no quarto, despe-se, mette-se na cama, rola inutilmente de um lado para outro, torna a vestir-se e volta para o gabinete.

Mal se sentou outra vez no canapé, bateram três horas no relógio da casa. O silencio era profundo; e, como a divergência dos relógios é o principio funda­mental da relojoaria, começaram todos os relógios

11 i PAPEIS VELHOS

da vizinhança a bater, com intervallos desiguaes, uma, duas, três horas. Quando o espirito padece, a cousa mais indifferente do mundo traz uma intenção recôndita, um propósito do destino. Rrotero começou, a sentir esse outro gênero de mortificação. As três pancadas seccas, cortando o silencio da noite, pare­ciam-lhe as vozes do próprio tempo, que lhe bradava: Vai dormir. Emfim, cessaram ; e elle pôde ruminar, resolver, e levantar-se, bradando :

— Não ha outro alvitre, é isto mesmo. Dito isso, foi á secretária, pegou da penna e de

uma folha de papel, e escreveu esta carta ao presi­dente do conselho de ministros :

« Excellentissimo senhor,

« Ha de parecer oxtranho a V. Ex. tudo o que vou dizer n'este papel; mas, por mais extranho que lhe pareça, e a mim também, ha situações tão extra­ordinárias que só comportam soluções extraordiná­rias. Não quero desabafar nas esquinas, na rua do Ouvidor, ou nos corredores da câmara. Também não quero manifestar-me na tribuna, amanhã ou depois, quando V Ex. fòr apresentar o programma do seu ministério ; seria digno, mas seria aceitar a cumpli­cidade de uma ordem de cousas, que inteiramente repudio. Tenha um só alvitre : renunciar a cadeira de deputado e voltar á vida intima.

« Não sei se, ainda assim, V. Ex. me chamará despeitado. Se o fizer, creio que terá razão. Mas

PAPEIS VELHOS 1 1 5

rogo-lhe que advirta que ha duas qualidades de des­peito, e o meu é da melhor. ; « Não pense V. Ex. que recuo diante de certas deputações influentes, nem que me senti ferido pelas intrigas do A... e por tudo o que fez o B... para ,metter o C... no ministério. Tudo isso são cousas mínimas. A questão para mim é de lealdade, já não digo politica, mas pessoal ; a questão é com V. Ex. Foi V. Ex. que me obrigou a romper com o ministé­rio dissolvido, mais cedo do que era minha intenção, e, talvez, mais cedo do que convinha ao partido. Foi V. Ex. que, uma vez, em casa do Z... me disse, a uma janella, que os meus estudos de questões diplomáticas me indicavam naturalmente a pasta de estrangeiros. Ha de lembrar-se que lhe respondi então ser para mim subir indifferente ao ministério, uma vez que servisse ao meu paiz. V Ex. replicou : g- É muito bonito, mas os bons talentos querem-se no ministério.

« Na câmara, já pela posição que fui adquirindo, já pelas distincções especiaes de que era objecto, dizia-se, acreditava-se que eu seria ministro na primeira occasião; e, ao ser chamado V. Ex. hontem para organisar o novo gabinete, não se jurou outra cousa. As combinações variavam, mas o meu nome figurava em todas ellas. É que ninguém ignorava as finezas de V Ex. para commigo, os bilhetes em que me louvava, os seus reiterados convites, etc. Con­fesso a V Ex. que acompanhei a opinião geral.

1 1 6 PAPEIS VELHOS

« A opinião enganou-se, eu enganei-me ; o minis­tério está organisado sem mim. Considero esta ex­clusão um desdouro irreparável, e determinei deixar a cadeira de deputado a algum mais capaz, e, prin­cipalmente, mais dócil. Não será difficil a V. Ex. achal-o entre os seus numerosos admiradores. Sou, com elevada estima e consideração,

De V. Ex. desobrigado amigo,

BROTERO.

Os verdadeiros políticos dirão que esta carta é só verosimil no despeito, e inverosimil na resolução. Mas os verdadeiros politicos ignoram duas cousas, penso eu. Ignoram Boileau, que nos adverte da pos­sível inverosimilhança da verdade, em matérias de arte, e a politica, segundo a definiu um padre da nossa lingua, é a arte das artes ; e ignoram que um outro golpe feria a alma dó Brotero n'aquella occa­sião. Se a exclusão do ministério não bastava a explicara renuncia da cadeira, outra perda a ajudava. _ Já têm noticia do desastre político ; sabem que houve • crise ministerial, que o conselheiro*** recebeu do Imperador o encargo de organisar um gabinete, e que a diligencia de um certo B... conseguiu metter n'elle um certo C... A pasta d'este foi justamente a de estrangeiros; e o fim secreto da diligencia era dar um logar na galeria do Estado á viuva Pedroso. Esta senhora, não menos gentil que abastada, ele­gera dias antes para seu marido o recente ministro.

PAPEIS VELHOS 1 1 7

Tudo isso iria menos mal, se o Brotero não cobiçasse ambas as fortunas, a pasta e a viuva ; mas, cobiçal-as, cortejal-as e perdel-as, sem que ao menos uma viesse consolal-o da perda da outra, digam-me francamente se não era bastante a explicar a renun­cia do nosso amigo ?

Brotero releu a carta, dobrou-a, encapou-a, so-brescriptou-a; depois atirou-a a um lado, para re-mettel-a no dia seguinte. 0 destino lançara os dados. César transpunha o Rubicon, mas em sentido in­verso. Que fique Roma com os seus novos cônsules e patrícias ricas e volúveis ! Elle volve á região dos obscuros; não quer gastar o aço em pelejas de appa-rato, sem utilidade nem grandeza. Reclinou-se na cadeira e fechou o rosto na mão. Tinha os olhos vermelhos quando se levantou; e levantou-se, por­que ouviu bater quatro horas, e recomeçar a procis­são dos relógios, a cruel e implicante monotonia das pêndulas. Uma, duas, três, quatro...

Não tinha somno ; não tentou sequer metter-se na cama. Entrou a andar de um lado para outro, pas­seando, planeando, relembrando. De memória em memória, reconstruiu as illusões de outro tempo, comparou-as com as sensações de hoje, e achou-se roubado. Voluptuoso até na dôr, mirou afincada-mente essas illusões perdidas, como uma velha con­templa as suas photographias da mocidade. Lem­brou-se de um amigo que lhe dizia que, em todas as difficuldades da vida, olhasse para o futuro. Que

7.

1 1 8 PAPEIS VELHOS

futuro? Elle não via nada. E foi-se achegando da secretária, onde tinha guardadas as cartas dos amigos, dos amores, dos co-religionarios políticos, todas as cartas. Já agora não podia conciliar o somno ; ia reler esses papeis velhos. Não se relêem livros antigos?

Abriu a gaveta; tirou dois ou três maços e desa­tou-os. Muitas das cartas estavam encardidas do tempo. Posto nem todos os signatários houvessem morrido, o aspecto geral era de cemitério ; d'onde se pôde inferir que, em certo sentido, estavam mortos e enterrados. E elle começou a relel-as, uma a uma, as de dez paginas e os simples bilhetes, mergulhando-nesse mar morto de recordações apagadas, negócios, pessoaes ou públicos, um expectaculo, um baile, dinheiro emprestado, uma intriga, um livro novo, um discurso, uma tolice, uma confidencia amorosa. Uma das cartas, assignada Vasconcellos, fel-o estre­mecer :

« A L... a, dizia a carta, chegou a S. Paulo, ante-hontem. Custou-me muito e muito obter as tuas car­tas ; mas alcancei-as, e d'aqui a uma semana estarão comtigo; levo-as eu mesmo. Quanto ao que me dizes na tua de H... estimo que tenhas perdido a tal idéia fúnebre ; era um despropósito. Conversaremos á vista. »

Esse simples trecho trouxe-lhe uma penca de lembranças. Brotero atirou-se a ler todas as cartas do Vasconcellos. Era um companheiro dos primeiros^

PAPEIS VELHOS 119

annos, que n'aquelle tempo cursava a academia, e agora estava de presidente no Piauhy. Uma das cartas, muito anterior aquella, dizia-lhe :

« Com que então a L... a, agarrou-te deveras? Não faz mal; é boa moça e socegada. E bonita, ma-ganão ! Quanto ao que me dizes do Chico Souza, não acho que devas ter nenhum escrúpulo ; vocês não são amigos; dão-se. E depois, não ha adultério. Elle devia saber que quem edifica em terreno devo-luto... »

Treze dias depois : « Está bom, retiro a expressão terreno devoluto ;

direi terreno que, por direito divino, humano e dia­bólico, pertence ao meu amigo Rrotero. Estás satis­feito ? »

Outra, no fim de duas semanas : « Dou-te a minha palavra de honra que não ha

no que disse a menor falta de respeito aos teus sen­timentos ; gracejei, por suppor que a tua paixão não 'era tão seria. O dito por não dito. Custa pouco mudar de estylo, e custa muito perder um amigo, como tu... *»

Quatro ou cinco cartas referiam-se ás suas effu-sões amorosas. N'esse intervallo, o Chico Souza farejou a aventura e deixou a L....a; e o nosso amigo narrou o lance ao Vasconcellos, contente de a 'possuir sosinho. O Vasconcellos felicitou-o, mas -fez—lhe um reparo.

... Acho-te exigente e transcendente. A cousa

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mais natural do mundo é que essa moça, perdendo um homem a quem devia attenções e que lhe dera certo relevo, recebesse com alguma dôr o golpe. Saudade, infidelidade, dizes tu. Realmente, é demais. Isso não prova senão que ella sabe ser grata aos benefícios recebidos. Quanto á ordem que lhe deste de não ficar com um só traste, uma só cadeira, um pente, nada do que foi do outro, acho que não a entendi bem. Dizes-me que o fizeste por um senti­mento de dignidade ; acredito. Mas não será também um pouco de ciúme retrospectivo ? Creio que sim. Se a saudadeé uma infidelidade, o leque é um beijo; e tu não queres beijos nem saudades em casa. São maneiras de vèr... »

Brotero ia assim relendo a aventura, um capitulo inteiro da vida, não muito longo, é verdade, mas callido e vivo. As cartas abrangiam um período:! de dez mezes; desde o sexto mez começaram os arrufos, as crises, as ameaças de separação. Elle era ciumento ; ella professava o aphorismo de que o ciúme significa falta de confiança; chegava mesmo a repetir esta sentença vulgareenigmática : « zelos,; sim, ciúmes, nunca. » E dava de hombros, quandof o amante mostrava uma suspeita qualquer, ou lhe fazia alguma exigência. Então elle excedia-se; e ahi vinham as scenas de irritação, de reproches, de ameaças, e por fim de lagrimas. Brotero ás vezes deixava a casa, jurando não voltar mais; e voltava logo no dia seguinte, contricto e manso. Vascon,

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cellos reprima-o de longe ; e, em relação ás deixadas e tornadas, dizia-lhe uma vez : « Má politica, Bro­tero; ou lê o livro até o fim, ou fecha-o de uma vez; abril-o e fechal-o, fechal-o e abril-o, •'• máu, porque traz sempre a necessidade de reler o capitulo ante­rior para ligar o sentido, e livros relidos são livros eternos. » A isto respondia o Brotero que sim, que elle tinha razão, que ia emendar-se de uma vez, tanto mais que agora viviam como os anjos no céu.

Os anjos dissolveram a sociedade. Parece que o anjo L...a, exhausto da perpetua antiphona, ouviu cantar Daphnis e Chloé, cá em baixo, e desceu a ver o que é que podiam dizer tão melodiosamente as duas creaturas. Daphnis vestia então uma casaca e uma commenda, administrava um banco, e pinta­va-se; o anjo repetiu-lhe a licção de Chloé; adivi­nha-se o resto. As cartas de Vasconcellos neste periodo eram de consolação e philosophia. Brotero lembrou-se de tudo o que padeceu, das imprudências que praticou, dos desvarios que lhe trouxe aquella evasão de uma mulher, que realmente o tinha nas mãos. Tudo empregara para rehavel-a e tudo falhara. Quiz ver as cartas que lhe escreveu por esse tempo, e que o Vasconcellos, mais tarde, pôde alcançar d'ella em S. Paulo e foi á gaveta onde as guardara com as outras. Era um maço atado com fita preta. Brotero sorriu da fita preta; deslaçou o maço e abriu as cartas. Não saltou nada, data ou vírgula; leu tudo, explicações, imprecações, supplicas, promessas de

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amor e paz, uma phraseologia incoherente e humi­lhante. Nada faltava a essas cartas ; lá estava o infi­nito, o abysmo, o eterno. Um dos eternos, escripto na dobra do papel, não se chegava a lèr, mas sup-punha-se. A phrase era esta : « Um só minuto do teu amor, e estou promplo a padecer um supplicio et... » Uma traça bifara o resto da palavra ; comeu o eterno e deixou o minuto. Não se pôde saber a que attribuir essa preferencia, se á voracidade, se á philosophia das traças. A primeira causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem muito.

A ultima carta falava de suicídio. Brotero, ao reler esse tópico, sentiu uma cousa indefinivel; chamemos-Ihe o « calafrio do ridículo evitado. » Realmente se elle se houvesse eliminado, não teria o presente des­gosto político e pessoal; mas o que não diriam d'elle nos pasmatorios da rua do Ouvidor, nas conversa­ções á mesa? Viria tudo á rua, viria mais alguma cousa; chamar-ihe-iam frouxo, insensato, libidinoso, e depois falariam de outro assumpto, uma opera, por exemplo.

— Uma, duas, três, quatro, cinco, principiaram a dizer os relógios.

Brotero recolheu as cartas, fechou-as uma a uma, emmaçou-as, atou-as o metteu-as na gaveta. Em-quanto fazia esse trabalho, e ainda alguns minutos depois, deu-se a um esforço interessante : rehaver a sensação perdida. Tinha recomposto mentalmente

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episódio, queria agora recompol-o cordialmente; e fim não era outro senão cotejar o effeito e a causa, saber se a idéia do suicídio tinha sido um producto aturai da crise. Logicamente, assim era; mas Bro-ro não queria julgar atravéz do raciocínio e sim da msação. [ Imaginai um soldado a quem uma bala levasse o iriz, e que, acabada a batalha, fosse procurar no impo o desgraçado appendice. Supponhamos que o ;ha entre um grupo de braços e pernas; pega d'elle, vanta-o entre os dedos, — mira-o, examina-o, é seu próprio... Mas é um nariz ou um cadáver de iriz? Se o dono lhe puzer diante os mais finos •rfumes da Arábia, receberá em si mesmo a sen-,ição do aroma? Não : esse cadáver de nariz nunca ais lhe transmittirá nenhum cheiro bom ou máu ; ,ide leval-o para casa, preserval-o, embalsamal-o ; o mesmo. A própria acção de assoar o nariz, em-

,'ira elle a veja e comprehenda nos outros, nunca •ais ha de podel-a comprehender em si, não che­ira a reconhecer que effeito lhe causava o contacto i ponta do nariz com o lenço. Racionalmente, sabe .que é; sensorialmente, não saberá mais nada. " — Nunca mais? pensou o Brotero... Nunca mais Dderei...

' Não podendo obter a sensação extinta, cogitou se ,'ão aconteceria o mesmo á sensação presente, isto 1 se a crise politica e pessoal, tão dura de roer gora, não teria algum dia tanto valor como os

1 2 4 PAPEIS VELHOS

velhos diários, em que se houvesse dado a noticiando novo gabinete e do casamento da viuva. Brotero acreditou que sim. Já então a arraiada vinha cla­reando o céo. Brotero ergueu-se; pegou da carta que escrevera ao presidente do conselho, e chegou-aS vela; mas recuou a tempo. •;.

— Não, disse elle comsigo ; juntemol-a aos outro papeis velhos; inda ha de ser um nariz cortado.

A ESTATUA DE JOSÉ DE ALENCAR

A estatua de José de Alencar

DISCURSO PROFERIDO NA CEREMONIA DO LANÇAMENTO

DA PRIMEIRA PEDRA DA ESTATUA DE JOSÉ DE ALENCAR

Senhores,

- Tenho ainda presente a eça em que, por algumas horas ultimas, pousou o corpo de José de Alencar. Creio que jamais o expectaculo da morte me fez tão angular impressão. Quando entrei na adolescência, tilgiam os primeiros raios daquelle grande enge->ho; vi-os depois em tanta copia e com tal esplen-lor que eram já um sol, quando entrei na moci-lade. Gonçalves Dias e os homens do seu tempo sstavam feitos; Alvares de Azevedo, cujo livro era a loa-nova dos poetas, fallecera antes de revelado ao nundo. Todos elles influíam profundamente no aiimo juvenil que apenas balbuciava alguma cousa ; nàs a acção crescente de Alencar dominava as ou-ras. A sensação que recebi no primeiro encontro

1 2 8 A ESTATUA DE JOSÉ DE ALENCAR

pessoal com elle foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada, contentando-me de fital-o com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu como trato do homem e do artista. D'ahi o espanto da morte. Não podia crer que o autor de tanta vida estivesse alli, dentro de um feretro, mudo e inhabil por todos os tempos dos tempos. Mas o mysteriçll a realidade impunham-se; não havia mais que en-terral-o e ir conversal-o em seus livros.

Hoje, senhores, assistimos ao inicio de outro mo­numento, este agora de vida, destinado a dar á ci­dade, á patriá e ao mundo a imagem daquelle que um dia acompanhamos ao cemitério. Volveram an­nos ; volveram cousas; mas a consciência humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugi­dios, subsiste a flor da poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande escriptor o robusto e vivaz representante da littera-tura brasileira.

Não é aqui o lugar adequado á narração da car­reira do autor de Iracema. Todos vós sabeis que foi rápida, brilhante e cheia; podemos dizer que elle saiu da Academia para a celebridade. Quem o lê agora, em dias e horas de escolha, e nos livros que mais lhe aprazem, não tem idéia da fecundidade ex­traordinária que revelou tão depressa entrou na vida. Desde logo poz mãos á chronica, ao romance, á cri tica e ao theatro, dando a todas essas formas do pen-

A ESTATUA DE JOSÉ DE ALENCAR 1 2 9

samento um cunho particular e desconhecido. No romance que foi a sua forma por excellencia, a pri­meira narrativa, curta e simples, mal se espaçou da segunda e da terceira. Em três saltos estava o Gua-rany diante de nós; e d'ahi veiu a successão cre­scente de força, de explendor, de variedade. 0 espi­rito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a matta e o pampa, fixando-as em suas paginas, compondo assim com as differenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra.

Nenhum escriptor teve em mais alto gráo a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado as-sumptos nossos. Ha um modode ver e de sentir, que dá a nota intima da nacionalidade, independente da face externa das cousas. 0 mais francez dos trá­gicos francezes é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre allemão, quando recompõe Fi­lippe II e Joanna d'Arc. O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assumptos, tirados da vida ambiente e da historia local. Outros o fizeram tam­bém ; mas a expressão do seu gênio era mais vigo­rosa e mais intima. A imaginação que sobrepujava nelle o espirito de analyse, dava a tudo o calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. 0 talento descriptivõ, a riqueza, o mimo e a originalidade do estylo completavam a sua physionomia litteraria.

Não lembro aqui as lettras políticas, os dias de governo e de tribuna. Toda essa parte de Alencar

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fica para a biographia. A gloria contenta-se da outra; parte. A politica era incompatível com elle, alma so­litária. A disciplina dos partidos e a natural sujei­ção dos homens ás necessidades e interesses com* muns não podiam ser acceitas a um espirito queem outra esphera, dispunha da soberania e da liberdade. Primeiro em Athenas, era-lhe difficil ser segurou ou terceiro em Roma. Quando um illustre homem de Estado respondendo a Alencar, já então apeado do Governo, comparou a carreira politica á do soldado, que tem de passar pelos serviços Ínfimos e ganhar os postos gradualmente, dando-se a si mesmo como exemplo dessa lei, usou de uma imagem feliz e ver­dadeira, mas inintelligivel para o autor das Minas de Prata. Um ponto ha que notar, entretanto, na­quelle curto estádio político. O autor do Gancho ca­recia das qualidades necessárias á tribuna, mas quiz ser orador, e foi orador. Sabemos que se bateu ga? lhardamente com muitas das primeiras vozes do parlamento.

Desenganado dos homens e das cousas, Alencar volveu de todo ás suas queridas lettras. As lettras são boas amigas; não lhe fizeram esquecer inteira­mente as amarguras, é certo; senti-lhe mais de uma vez a alma enojada e abatida. Mas a arte, que é a liberdade, era a força medicatriz do seu espirito. Emquanto a imaginação inventava, compunha e po­lia novas obras, a contemplação mental ia vencendo

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as tristezas do coração, e o misanthropo amava os •homens.

Agora que os annos vão passando sobre o óbito do escriptor, é justo perpetual-o, pela mão do nosso •illustre estatuario nacional. Concluindo o livro de Iracema, escreveu Alencar esta palavra melancólica: «A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro, mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra. » Senhores, a philosophia do "livro não podia ser outra, mas a posteridade é aquella jandaia que não deixa o coqueiro, e que ao contra­rio da que emmudeceu na novella, repete e repetirá o nome da linda tabajara e do seu immortàl autor. Nem tudo passa sobre a terra.

HENRIQUETA RENAN

Henriqueta Renan

Um spartano, convidado a ouvir alguém que imi­tava o canto do rouxinol, respondeu friamente : Já ouvi o rouxinol. O mesmo dirás tu, se leste Henri­queta Renan, a quem quer que se proponha falar desta senhora que tamanha influencia teve no autor da Vida de Jesus. A differença é que aqui ninguém te convida a ver imitar o inimitável. Renan é o pró­prio rouxinol; ninguém poderá dizer nada depois do estylo incomparavel e da grande emoção daquellas paginas. Assim é que não venho contar o que leste ou podes ler nessa lingua única, mas trazer somente, com os subsídios posteriores, um esboço da amiga pia e discreta, intelligencia fina e culta, vontade forte e longa, capaz de esforços grandes para cum­prir deveres altos, ainda que obscuros. Os renanis-tas da nossa terra são como todos os devotos de um espirito eminente, não lhe amam só os livros e actos públicos, mas tudo o que a elle se refere, seja goso

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intimo ou tristeza particular. De um sei eu, que talvez por vir também do seminário, é o mais abso­luto de todos. Esse se estivesse agora na antiga Byblos, iria até á aldêa de Amschit, onde descan-çam os restos da irman querida do mestre. Sentar-se-ia ao pé das palmeiras para evocar a sombra daquella nobre creatura. A memória lhe traria nova­mente os passos de uma vida feita de sacrifício e de trabalho, começada em uma cidadesinha da Bretanha, •continuada em Pariz, na Polônia e na Itália, e aca­bada no recanto modesto de um pedaço da Ásia.

A vida de Henriqueta Renan completa-se pelas •cartas trocadas entre os dois irmãos, ella nos confins da Polônia, elle na provincia e em Paris. Destas me servirei principalmente. A impressão original do opusculo de Renan, feita em 1862, não foi divul­gada : cem exemplares bastaram para recordar Hen­riqueta ás pessoas que a tinham conhecido. No pró­logo dos Souvenirs d'enfance et de jeunesse, Renan declara que não queria profanar a memória da irman juntando aquelle opusculo a este livro. « In­serindo essas paginas em um volume posto á venda, andaria tão mal como si levasse o retrato delia a um leilão. » Não obstante, autorizou a reimpressão depois •delle morto. A reimpressão fez-se integralmente cm 189S, trazendo os retratos de ambos. Não imagi­nes, se não viste o delia, que é uma formosa creatura moça. Aos dezenove annos, segundo o irmão, fora <em extremo graciosa, de olhos meigos e mãos finis-

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simas. O retrato representa uma senhora edosa, com a sua touca de folhos, atada debaixo do queixo, um vestido sem feitio; mas a doçura que elle tanto louva lá se lhe vê na gravura, copia da photogra­phia. Conta o próprio irmão que, em 1850, voltando da Polônia, Henriqueta estava inteiramente mudada ; trazia as rugas da velhice prematura, « não lhe res­tando da graça antiga mais que a deleitosa expres­são de sua ineffavel bondade. »

Camões, mestre em figuras poéticas, disse do filho de Semeie, que era nascido de duas mães, — e não dá o próprio nome de Baccho sinão por allusão aquelle que traz a perpetua mocidade no rosto. De Renan, eterno moço, se pôde dizer egual cousa; mas aqui a imagem pagan e graciosa, não menos''que atrevida, é uma austera e doce verdade. Henriqueta, mais velha que elle doze annos, dividiu com a mãe de ambos a maternidade do irmãosinho. « Uma das tuas mães », escreve-lhe ella em 28 de fevereiro de 1845, dia em que elle fazia vinte e dois annos. Já antes (carta de 30 de outubro de 1842) havia-lhe dito que era seu filho de adopção. Os primeiros tempos da infância de Ernesto são deliciosos sem alegria, unicamente pela affeição reciproca, pela docilidade daquella moça, que deixava de ir ter com as amigas, para não affligir o pequeno que a queria só para si. Henriqueta é que o leva á egreja, agaza-lhadinho em sua capa, quando era inverno. Um dia, como o visse disfarçar envergonhado o casaquinho

8.

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surrado pelo uso, não pode reter as lagrimas. Já então haviam perdido o pae, — naufrago ou suicida, — que não deixara de si mais que dividas e sau­dades. Um mez inteiro gastaram a esperar alguma noticia ou o cadáver. Parece que esses dramas são communs na costa bretan; lembrai-vos do pescador da Islândia e das angustias da pobre Maud, á espera que voltem Yann e o seu barco, e vendo que todos voltam, menos elles.

— Já vieram todos os de Tréguier e Saint-Brieuc, diz á pobre Maud uma das mulheres que também iam esperar á praia.

Tréguier é justamente a cidadesinha em que nas­ceu Renan. O navio do pae voltou, ao envez da Leo^\ poldine de Yann, mas voltou sem o dono, e só de­pois de longos dias é que o cadáver foi arrojado á praia entre Saint-Brieuc e o cabo Fréhel. Os porme-nores e o quadro são outros; da invenção de Loti-resultou um livro; da realidade de 1828 nasceu e cresceu a nobre figura de Henriqueta. Ella enfrentou com o trabalho, disposta a resgatar as dividas do pae e acudir ás necessidades da familia. Rejeitou um casamento rico,, unicamente pela condição que trazia' de deixar os seus. Abriu uma escola, mas foi obri­gada a fechal-a, e pouco depois aceitou emprego em uma pensão de meninas em Pariz. Renan diz que as suas estréas na capital foram horríveis, e pinta o contraste da provinciana, e particularmente da bre­tan, com aquelle mundo novo para ella, feito de

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« sequidão, de frieza e de charlatanismo. » Henri-queta aceitou a direcção de outro collegio, onde tra­balhou descommunalmente sem prosperidade, mas onde fez crescer a sua própria instrucção, que chegou a ser excepcional; é a palavra do irmão. Este viera

•então a Pariz, a chamado delle, para entrar no semi­nário dirigido por Dupanloup, e continuar os estudos começados em um collegio de padres da cidade na­tal : era em 1838. Dois annos depois, não podendo tirar da vida de mestra em Pariz os meios necessá­rios para liquidar as dividas do pae, contratou Hen­riqueta os seus serviços de professora em casa de uma familia polaca, e começou novo exilio, mais

. longo (dez annos) e mais remoto, em um castello da Polônia, a sessenta léguas de Varsovia.

Aqui entra naturalmente a correspondência (Let-tres intimes), publicada agora em volume, uma col­lecção que vai de 1842 a 1845. Ha outras cartas (1845-1848), dadas mais recentemente em uma re­vista franceza; não as li. A correspondência que tenho á vista mostra, ainda melhor que a narração de Renan, o sentimento raro, a affeição profunda, e a dedicação sem apparato daquella boa e grave Hen­riqueta. As cartas desta senhora são a sua própria alma. Escrevem-se muitas para o prelo, alguma para a posteridade; nenhum desses destinos podia attrail-a. Fala do irmão ao irmão. Raro trata de si, e quando o faz é para completar um conselho ou uma reflexão. Também não conta o que se passa em torno delia.

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Comquanto a vida fosse solitária, algum incidente interior, alguma observação do meio em que estava, podia cair no papel, por desabafo sequer, não digo por malícia ; nada disso. Uma vez falará de dinheiro pedido ao pae das educandas, para explicar a demora •de uma remessa. Outra vez, em poucas linhas, dirá do camponio polaco que é o mais pobre e embrute-cido que se possa imaginar, e notará os excessos de fanatismo e de ódio religioso entre os judeus que enchem as cidades e os christãos, e entre os próprios dissidentes do christianismo. Pouco mais dirá na longa correspondência de quatro annos. A distancia era tamanha que não dava tempo a desperdiçar papel com assumpto alheio. Todo elle é pouco para tratar somente do irmão. Henriqueta aperta as linhas e as letras, aproveita as margens das folhas para não aca­bar de lhe falar. « Custa-me deixar-te » coriclue a primeira carta impressa. Era inútil dizel-o; todas as seguintes fazem sentir que mui difficilmente Henri­queta suspende a mão do papel. São verdadeira| mente cartas intimas, medrosas de apparecer, receio-sas de violação. Desde logo revelam a força do affect e a gravidade do espirito. Nenhum floreio de rheto-rica, nenhum arrebique de sabichona, mais um ali­nho natural, muita simpleza de arte, fino estylol commoção sincera. As expressões de ternura são intensas e abundantes. Meu filho, meu amado, meu querido, meu bom e mil vezes querido, são umas de tantas palavras inspiradas por um amor único.

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Henriqueta Renan é melancólica. Segundo o irmão, herdou essa disposição do pae; a mãe era vivaz e alegre. A tristeza, em verdade, resumbra das suas cartas. 0 meio em que vive era apropriado a iaggravar essa inclinação de nascença. Nem o interior do castello nem as temporadas de Varsovia podiam trazer-lhe a alegria que não vinha delia. Querendo dar idéia da terra em que habita, fala de « immensas e monótonas planícies de areia que fariam pensar na Arábia ou na África, se intermináveis pinhaes, inter-rompendo-as, não viessem lembrar a vizinhança do norte. » Junta a isso a extranheza das gentes, as saudades dos seus, maiores que as da terra natal; não esqueças a distancia no espaço, que é enorme, e no tempo que parece infinito, e comprehenderás que em toda a correspondência de Henriqueta não haja o reflexo de um sorriso. O sentimento que tem da vida, aos trinta annos, aqui o dá ella ao irmão, uma vez que fala de o ver feliz : « Feliz! Quem é, feliz nesta terra de dores e desassocegos ? E, sem contar os lances da sorte e as acções dos homens, não é certo que em nosso coração ha uma fonte perenne de agitações e de misérias? » Entretanto, a melancolia de Henriqueta não lhe abate as forças, não é daquella espécie que faz da alma uma simples expectadora da vida. Henriqueta não se contenta de gemer; a queixa não parece que seja a sua voz natural. Acon­selha ao irmão que lute e que conte com ella para ajudal-o. Exhorta-o a ser homem. Um dia, achando-

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lhe resolução, louva a força de vontade, « sem a qual não passamos de creançolas. » Henriqueta tira do sentimento do dever, não menos que do amor, a energia necessária para amparar Renan, primeiro nas duvidas, depois nos estudos e na carreira nova.

Ha um ponto na narrativa de Renan, que as cartas de Henriqueta completam e explicam : é o que se refere aos laços de affeição e estima existentes entre ella e a familia do conde Zamosky com quem contratara os seus serviços de preceptora; taes laços que lhe faziam esquecer a tristeza da posição e o rigor do clima. As cartas de Henriqueta não deixam tão simples impressão. Se a queixa não parece ser a sua voz natural, alguma vez, como na carta de 12 de março de 1843, referindo-se ás faculdades de cada um, e á liberdade interior, confessa que só com grande luta se consegue fazer crer aquelles que pagam que ha coisas de que só se dão contas a Deus e á consciência. Foi nessa mesma carta que falou do dinheiro pedido ao pae das educandas, a que alludi acima; era para mandal-o á mãe, e não conhecfe outra pessoa. O conde demorou-se em satisfazel-s£ por fim ausentou-se e ainda não voltara « sem má intenção » acrescenta; o que não a impede de excla­mar : « Deus meu ! Porque é que os grandes não pensam naquelles que só tem o fruto do seu trabalho, e que este lhes é preciso receber regularmente! » E conclue com esta máxima, que porventura resgatará o que achares banal naquella exclamação : « É que

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o homem não pôde comprehender senão as penas que já padeceu ; tudo o mais não existe para elle. » N'outro lugar, respondendo a um reparo do irmão, concorda que a vida para muitos é passada no meio >de pessoas com quem só ha relações de fria polidez, e « nem tu nem eu somos desses a quem taes relações bastem. « Uma organização dessas pode­ria conquistar a estima da familia, e mui provavel-dnente a affeição das educandas, mas não esquecia tão de leve a tristeza do officio nem a aspereza dos ares. 'Henriqueta ia de um lado para outro sem levar saudades; é que tudo lhe era extranho no campo e na cidade, e bem pôde ser que quasi tudo lhe fosse aborrecido. A paixão grande e real estava fora d'alli. Assim se explicam os dez annos de exilio para con­cluir a obra contratada com outros e com a sua cons­ciência.

Durante metade desse prazo, Renan freqüentou os seminários de Issy e de Saint-Sulpice. Daquelle, aliás dependência deste, data a primeira carta da col­lecção respondendo a outra da irman, que não vem nella. Comquanto o livro dos Souvenirs nos conte abreviadamente a estada em ambos os seminários, é

_ certo que melhor se sentem na correspondência as hesitações e duvidas do autor da Vida de Jesus em relação á carreira ecclesiastica e ao próprio fundador da igreja. As cartas acompanham o movimento psy-chologico do homem, fazem-nos assistir ás alterações de um espirito destinado pela familia ao serviço do

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altar e á gloria catholica ao mesmo tempo que nos mostram a influencia de Henriqueta na alma do seu querido Ernesto. « Minha irman (Souvenirs) cuja razão era desde annos como a columna luminosa ca­minhando ante mim, animava-me do fundo da Polô­nia com suas cartas cheias de bom senso. » Não ha propriamente iniciativa ou tentação da parte delia. j& certo que nunca desejou vel-o padre; assim o declara mais tarde (28 de fevereiro de 1845), quando as con­fissões de Renan estão quasi todas feitas; diz-lhe então que previra as duvidas que ora o assediam, e accrescenta que ninguém a quiz ouvir, e não podk! resistir, sosinha. Mas então, como antes, como de­pois, a arte que emprega é tal que antes parece ir ao encontro dos novos sentimentos do irmão que sug-gerir-lh^s.

A este respeito as duas cartas de 15 de setembro e 30 de outubro de 1842 são cheias de interesse. Renan conta naquella os effeitos do primeiro anno de philosophia e mathematicas. A primeira destas disciplinas fal-o julgar as cousas de modo diverso que antes, e troca-lhe uma porção de suppostas ver­dades em erros e preconceitos; ensina a ver tudo e claro. Assim disposto á reflexão, e com o socegoê» liberdade de espirito que lhe dá o seminário, Renan pensou em si e no seu futuro. Fala demoradamente da influencia que tem sobre este os actos iniciaes da vida; não se arrepende dos seus, e, se tivesse de escolher novamente uma carreira, não escolheria

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outra senão a ecclesiastica. Mas, em seguida, confessa os inconvenientes desta, que declara immensos; cousas ha que metteram na cabeça do clero, e que jamais entrarão na delle; allude também á frivoli-dade, á duplicidade, ao caracter cortezão de alguns « seus futuros collegas », e finalmente á submissão a uma autoridade por vezes suspicaz, á qual não poderia obedecer. Taes inconvenientes encontral-os-ia em qualquer carreira, e ainda maiores que esses, verdadeiras impossibilidades; louva o retiro, a inde­pendência, o estudo, e affirma a execração que tem á vida social com as suas futilidades. Não fala assim por zelo de devoção espiritual, diz elle... « Oh! não! é defeito que já não tenho; a philosophia é bom re­médio para cortar excessos, e, se ha nella que receiar, será antes uma violenta reacção. » Emfim, chega a conclusão inesperada em um seminarista : « ainda que o christianismo não passasse de um devaneio, o sacerdócio seria divino. » Mais uma vez lastima que o sacerdócio seja exercido por pessoas que o rebaixam, e que o mundo superficial confunda o homem com o ministério; mas logo reduz isto a uma opinião, « e, graças a Deus, creio estar acima da opi­nião. » Parece que esta palavra é definitiva? Não é; na parte seguinte, e final da carta declara á irman que continua a. pensar naquelle grave negocio a ver se esclarece, e pede que não escreva á mãe sobre as suas hesitações.

Ha duas explicações para esse vae-vem de idéias e

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de impressões, — ou hesitação pura ou calculo. Mas ha uma terceira, que é talvez a única real. Creio» juntamente na hesitação e no calculo. Uma parte da alma de Renan vacilla deveras entre a vida mundana, que lhe não offerece as delicias intimas, e a vida ecclesiastica, onde a condição terrena não corres­ponde muita vez ao seu ideal christão. A outra parte calcula de modo que a confissão lhe não saia tão accentuada e decisiva que destoe do espirito geral do homem, e desminta a compostura do seminarista. Ao, cabo, é já um esboço de renanismo. Entretanto, se examinarmos bem as duas tendências alternadas, veremos que a negação para a vida ecclesiastica é mais forte que a outra; falta-lhe vocação. Também-se sente que a duvida relativamente ao dogma co-' meça de ensombrar a alma do estudante de philo—,* sophia. Renan confessa a Henriqueta « gostar muito dos seus pensadores allemães, posto que um tanto scepticos e pantheistas. » Recommenda-lhe que, se fôr a Kõnigsberg, faça por elle uma visita ao túmulo de Kant. O pedido de nada dizer á mãe, repetido em outras cartas, é porque a mãe conta vel-o padre,"e vive dessa esperança velha.

Que esses dous espíritos eram irmãos vê-se bem na carta que Henriqueta escreve a Renan, em 30 de outubro, respondendo á de 15 de setembro. Também ella, sem dizer francamente que não deseja vel-o, padre, sabe insinual-o ; menos ainda que insinual-o,; parece apenas repetir o que elle balbuciou. A carta

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delia tem a mesma ondulação que a delle. Henriqueta declara estremecer ao vel-o tratar tão graves ques­tões em edade geralmente descuidosa; entretanto, gosta que elle encare com seriedade o que outros fazem leviana ou apaixonadamente. Concorda que as estréas da vida influem no resto delia, e insinua que « ás vezes de modo irreparável. » Tem para si que elle não deve precipitar nada; não quer aconselhal-o para que lhe fique a liberdade de escolha. Quando allude á vida retirada e independente, diz-se mais que ninguém capaz de entendel-o; mas pergunta logo onde encontral-a? Crê que a raros caiba, e não pôde esperar que o irmão a encontre numa sociedade hie-rarchica, onde já antevê a autoridade suspicaz. Tam-ella acha «uspicaz a autoridade, mas acrescenta que 0 mesmo se dá com todas as profissões; e quando parece que esta fatalidade de caracter deva enfra­quecer qualquer argumento contra o ministério eccle-siastico, lembra interrogativãmente o vinculo per­petuo do juramento. Quer que elle pense por si, que escolha por si, appela para a razão e a consciência do irmão. Insiste em lhe não dar conselhos ; mas já lhe tem dito que, se uma parte do clero é pessoal e ambiciosa, elle Renan, pôde vir a ser a mesma cousa. A phrase em que o diz é velada e cautelosa : « o nu­mero, e o costume não levarão atraz de si a minoria e o dever ? » Essa pergunta, todas as demais per­guntas que lhe faz pela carta adiante, trazem o fim evidente de evocar uma idéia ou attenuar outra, e

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porventura crear-lhe novos casos e motivos de re­pugnância á milícia da igreja. É uma serie de sug-gestões e de esquivanças.

A differença de um a outro espirito é que Henri­queta, insinuando as desvantagens que o irmão possa achar na carreira ecclesiastica, entre palavras dúbias e alternação de pensamentos, aceital-o-ia sacerdotef senão com egual prazer, certamente com egual dedi­cação. Nem lhe quer impor o que julga melhor, nem lhe doerá a escolha do irmão", se fôr contraria aos seus sentimentos, uma vez que o faça feliz. Certo é, porém, que as preferencias de Renan, que ora vemos a meio século de distancia, á vista da carta impressa! elle mesmo as sentiria lendo a carta manuscripta-,3 Com effeito, por mais que equilibre os sentimentos, Renan está inclinado á vida leiga. Não importa que a situação se prolongue por vinte mezes. Em 1844, Renan communica á irman (16 de abril) que havia dado o primeiro passo na carreira ecclesiastica. Hesi­tou até á ultima hora, e ainda assim não se decidmj senão porque o primeiro passo não era irrevogável; exprimia a intenção actual. Parte dessa epístola é destinada a explicar o ajuste entre o sentimento e o acto, entre o alcance deste e a liberdade effectiva. Não fazia mais que renunciar ás frivolidades do mundo. A 11 de julho escreve-lhe que deu um passo mais na carreira, menos importante que o primeircvsem vin­culo novo, pelo que não lhe custou muito; é um complemento daquelle, — um annexo, como lhe

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chama. O terceiro, o subdiaconato, é que seria defi­nitivo, mas, como o prazo era longo, um anno mais tarde, a anciedade era menor. Durante esse tempo, o seminarista entrega-se aos estudos hebraicos, ás línguas orientaes, e, mais tarde, á lingua alleman. Pelos fins de 1844, é encarregado de leccionar hebreu, porque o professor effectivo não podia com os dous cursos; aceitou a posição, já pela vantagem scienti-fica que lhe trará, já « porque pôde leval-o a alguma cousa. » Assim começara o então professor da Sor-bonna.

Três mezes depois, a 11 de abril de 1845, escreve Renan a carta mais importante da situação. Resolveu não atar naquelle anno o laço indissolúvel, o sub­diaconato, e solta a palavra explicativa : não crê bastante para ser padre. Expõe assim, e mais lon­gamente, o estado em que se acha ante o catholi-cismo eos seus dogmas, dos quaes fala com respeito, proclamando que Jesus será sempre o seu Deus; mas, tendo procedido ao que chama « verificação racional do christianismo » descobriu a verdade. Descobriu também um meio termo, que exprime a natureza moral do futuro exegeta : o christianismo não é falso, mas não é a verdade absoluta. Não re-pareis na contradicção do seminarista, para quem o sacerdócio era divino, ha vinte mezes, ainda que o christianismo fosse um devaneio, e agora encontra na meia verdade da egreja razão bastante para deixal-a. Ou reparai nella, com o único fim de entender a for-

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mação intellectual do homem. Contradicção aqui é sinceridade,

Não ha espanto da parte de Henriqueta, quando Renan lhe faz a confissão de 11 de abril. Tinha sole­trado a alma delle, á medida que lhe recebia as letras, assim como tu e eu podemos lel-a agora de vez e integralmente. Também não ha no primeiro momento nenhuma manifestação de alegria, que alguns pos­sam dizer impia. A alma desta senhora conserva-se fundamentalmente religiosa, cheia daquella caridade do Evangelho que falava ao coração de RousseauJ Demais, além de conhecer o estado moral do irmão, foi ella própria que o aconselhou a adiar o sub-dia-•conato. Não sabe, — pelo menos não lh'o contou elle nas cartas do volume, — não sabe da scena que occorreu no seminário de Issy, muito antes da con­fissão de 11 de abril, que e datada de Saint-Sulpice,; Foi após uma das argumentações latinas, que o pro­fessor Gottofrey, desconfiando das inclinações de Renan, em conversação particular, á noite, concluiu por estas palavras que o aterraram : « Vós não sois christão! » (Souvenirs). Já antes disso sentia Renan em si mesmo a negação do espiritualismo; mas elle explica a conservação do christianismo, apezar da concepção positiva de mundo que ia adquirindo « por ser moço, inconseqüente e falho de critica » (Sou­venirs). De resto, a confissão á irman não foi única; escreveu por esse tempo outras cartas a vários, uma ao seu director, apenas designado por ***, em 6 de

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setembro de 1845, outra a um de seus companheiros, Cognat, que mais tarde tomou ordens, em 24 de agosto, ambas datadas da Rretanha. Henriqueta, ao que se pôde suppor, teve as primicias da confissão; foi para ella que elle rompeu, antes que para extra-nhos, os véus todos da incredulidade mal encoberta. Ficou entendido que occultariam á mãe a resolução nova e ultima. Trataram dos meios de acudir á neces­sidade presente, se aceitar um lugar de preceptor na Allemanha, se adoptar estudos livres; o fim era pro­ceder de modo que a renuncia da carreira ecclesias­tica se fizesse cautelosamente sem dôr para a mãe nem escândalo publico. Ha aqui uma divergência de datas em que não vale a pena insistir; segundo a carta de Renan de 13 de outubro de 1845, á irman, foi na noite de 9 que elle deixou o seminário para ir morar na hospedaria próxima; segundo o livro dos Souvenirs foi a 6 (1).

A alma delicada de Henriqueta manifesta-se vivamente no que respeita ao dinheiro. Henriqueta custeia as despezas todas da vida e dos estudos do

(1) É mais interessante citar uma coincidência. Na carta que Renan escreveu ao collega Cognat, datada de 12 de novembro de 1845, c na que escreveu á irman em data de 13 de outubro, a narração da chegada e saida do seminário de Saint-Sulpice é feita com as mesmas palavras, pouco mais ou menos (Conf. Lettres intimes, e Souvenirs, appendice). É mais que coinci­dência, é repetição de textos. O sentimento final é expresso em ambos os lugares com este mesmo suspiro : Que de liens, mon ami (ma bonne amie) rompus en quelques heures!

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irmão. A vida deste, antes da saida do seminário, quasi não passa dos livros; mas, depois da saida, é preciso alojamento e alimentação, é preciso que elle ande « vestido como toda gente, » e Henriqueta não esquece nada. Não esquecer é pouco; um coração daquelle melindre tem cuidados que escapariam á previsão'commum. « Espero de Varsovia uma letra de cambio de mil e quinhentos francos; mandal-a-hei a Pariz a uma pessoa de confiança, que acreditarii que esta somma é só tua... » Em que é que podia vexar ao irmão esse auxilio pecuniário? Henriqueta quer poupar-lhe até a sombra de algum acanha- \ mento. Conhecendo-lhe a nenhuma pratica da vida, a absorpção dos estudos, a mesma indole da pessoa, desce ás minúcias derradeiras, ao modo de entrar na posse do valor da letra, por bimestre ou trimestre^ segundo as necessidades; é o orçamento de um anno. Manda-lhe outras sommas por intermédio do outro irmão, a quem incumbe também da tarefa de comprar a roupa em Saint-Malo, por conta delia ; a razão é a inexperiência de Ernesto. Mas ainda aqui prevalece o respeito á liberdade; se este preferir compral-a em Pariz, Henriqueta recommenda que lhe seja entreguei mais um tanto em dinheiro. Que te não enfadem estas particularidades, grave leitor amigo; aqui as tens ainda mais ínfimas. Henriqueta desce á indicação da côr e forma do vestuário, uma sobrecasaca escura, o resto preto, é o que lhe parece mais adequado. Ao pé disto não ha falar de conselhos sobre hospedagens

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e tantas outras miudezas, intercaladas de expressões tão d'alma, que é como se víssemos uma joven mãe ensinando o filhinho a dar os primeiros passos.

A influencia da Henriqueta avulta com o tempo e as necessidades da carreira nova. O zelo cresce-lhe na mesma proporção. Pelo outro irmão, por uma amiga de Pariz, Mlle. Ulliac, e pelas cartas, Henri­queta governa a vida de Renan, e não cuida mais que de lhe incutir confiança e de lhe abrir caminho. O que lhe escreve sobre o bacharelado, Escola Normal, estudo de línguas orientaes e o resto é apoiado pela •amiga. Uma e outra suscitam-lhe protecções e auxi-liares de boa vontade. Renan faz daquella amiga da irman excellente juizo; não o diz só nas cartas do tempo, mas ainda no opusculo de 1862. Era uma senhora bella, virtuosa e instruída. Com grande arte, ao que parece, insinuou-lhe ella que lhe era preciso relacionar-se com alguma senhora boa e amável. « Ri-me, escreve Renan a Henriqueta, mas não por mofa. » E confessando que não é bom que o homem esteja só, pergunta se alguém está só. tendo uma irman (carta de 31 de outubro de 1845). Henriqueta é-lhe necessária á vida moral é intellectual. De no­vembro em diante insta com a irman para que volte da Polônia. A amiga falou-lhe da saúde de Henriqueta como estando muito alterada, e deu-lhe noticias que profundamente o affligiram; « desvendou-lhe o mys­terio » é a expressão delle. Foi na noite de 3 de novembro que Mlle. Ulliac abriu os olhos a Renan,

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confiando-lhe Henriqueta tivera grandes padecimen-tos, dos quaes nem elle nem a mãe souberam nada. Não se deduz bem do texto se eram moléstias recentes, se antigas; sabe-se que eram caladas, e por isso ainda mais tocantes. As cartas do volume não passam de 25 de dezembro daquelle anno ; as instâncias re­petem-se, um longo silencio da irman assusta o irmão; afinal vimos que ella só voltou da Polônia Í cinco annos depois, em 1850. Trazia-uma laryngite . chronica. Tudo, porém, estava pago.

Os sacrifícios éque não estavam cumpridos. Ávida desta senhora tinha de continuar com elles, e acabar ;

por elles. O maior de todos foi o casamento do irmão, Quando Renan resolveu casar, Henriquera recebeu . um grande golpe e quiz separar-se delle. Essa irman e mãe tinha ciúmes de esposa. Renan quiz desfazer; o casamento; foi então que o coração de Henriqueta cedeu, e consentiu em vel-o feliz com outra. A dôr não morreu; o irmão confessa que o nascimento do seu primeiro filho é que lhe enxugou a ella todas as lagrimas, mas foi só dias antes de morrer que, por algumas palavras delia, reconheceu haver a ferida cicatrizado inteiramente. As palavras seriam talvez estas, transcriptas no opusculo : « Amei-te muito; cheguei a ser injusta, exclusiva, mas foi porque te amei como já sejião ama, como talvez ninguém deva amar. » Viveram juntos os três; juntos foram em 1860 para aquella missão da Phenicia, a que o im­perador Napoleão convidou Renan. A esposa deste

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regressou pouco depois ; Renan e Henriqueta conti­nuaram a jornada de explorações e de estudos, durante a qual ella padeceu largamente, trabalhando longas horas por dia, curtindo violentas dores nevrálgicas, até contrair a febre perniciosa que a levou deste mundo. As paginas em que Renan conta a viagem, a doença ea morte de Henriqueta são das mais bellas que lhe sairam das mãos. Morreu trabalhando ; os últimos auxílios que prestou ao irmão foi copiar as laudas da Vida de Jesus, á medida que elle as ia escrevendo, em Cazhir.

Renan confessa que lhe deveu muito, não só na orientação das idéias, mas ainda em relação ao estylo, e explica porque e de que maneira. Antes da missão da Phenicia trabalhavam juntos, em matéria de arte e de archeologia; além disso, ella compunha traba­lhos para jornaes de educação; mas os seus melhores

. escriptos diz elle que eram as cartas. Moralmente, • tinham ambos alcançado as mesmas vistas e o mesmo sentimento; ainda ahi porém reconhece Renan alguma superioridade nella.

Que impressão final deixa a correspondência da-quelles dois corações? O de Henriqueta, mais exclu­sivo, era também mais terno e o amor mais pro­fundo. As cartas de Henriqueta são talvez únicas, como expressão de sentimento fraternal. Mais de uma vez lhe diz que a vida delle e a sua felicidade são o seu principal cuidado, e até único. Não temos aqui o que escreveu á mãe; mas não creio que a nota

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fosse mais forte, nem talvez tanto. Renan ama a irman, é-lhe gratíssimo, ia-lhe sacrificando o con­sórcio ; mas, emfim, pode amar outra mulher, e, feliz com ambas, viver dessas duas dedicações. Henriqueta, por mais que Renan nos affirme o contrario, tinha um fundo pessimista. Que amasse a vida, creio, mas por elle; se « podia sorrir a um enfeite, como se pôde sorrir a uma flor », estava longe da inalterável, bemaventurança do irmão. 0 scepticismo optimistó de Renan nunca seria entendido por ella ; tempera­mento e experiência tinham dado a Henriqueta uma philosophia triste que se lhe sente nas cartas. Todos conhecem a confissão geral feita pelo autor dos Sou-venirs ãenfance et de jeunesse. Renan affirma ter sido tão feliz que, se houvesse de recomeçar a vida, com direito de emendal-a, não faria emenda alguma. Henriqueta, se tivesse igual sentimento, seria uni­camente para servil-o eamal-o, e, caso pudesse, creio que usaria do direito de eliminar, quando menos, as moléstias que padeceu. Renan tinha da vida e dos homens um sentimento que, apezar das agruras dos primeiros annos, já lhe apparece em alguma parte da correspondência. « Um livro, — diz elle na ultima carta do volume, — é o melhor introductor no mundo scientifico. A sua composição obriga a consultar uma porção de sábios, que nunca ficam tão lisongeados como quando se lhes vai prestar homenagem á sicen-cia delles. As dedicatórias, fazem amigos e protec-tores elevados. Tenciono dedicar o meu ao Sr. Qua-

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tremère. » Na confissão dos Souvenirs é já o sábio que fala em relação aos estreantes : « Um poeta, pôr exemplo, apresenta-nos os seus versos. É preciso dizer que são admiráveis; o contrario eqüivale a dizer-lhe que não valem nada, e fazer sangrenta in­juria a um homem cuja intenção é fazer-nos uma

.fineza. » Um clássico da nossa lingua, Sá de Miranda, põe na bocca de um personagem de uma das suas comédias alguma cousa que resume toda essa arte e polidez ahi recommendadas : « A mór sciencia que no mundo ha assim é, saber conversar com os ho­mens ; bom rosto, bom barrete, boas palavras não custam nada, e valem muito... Vou-me a comer. »

« Vou-me a comer », applicado a Renan, é a gloría que lhe ficou das suas admiráveis paginas de escriptor único. A gloria de Henriqueta seria a contemplação daquella, o goso intimo de uma adoração e de um amor, que a vida achou realmente excessivos, tanto que a despegou de si, com um derradeiro e terrível soffrimento, talvez mais inútil que os outros.

O VELHO SENADO

O velho senado

A propósito de algumas lithographias de Sissonr

tive ha dias uma visão do Senado de 1860. Visões ? valem o mesmo que a retina em que se operam. Um político, tornando a ver aquelle corpo, acharia nelle a mesma alma dos seus co-religionarios extinctos, e um historiador colheria elementos para a historia. Um simples curioso não descobre mais que o pinto-resco do tempo e a expressão das linhas com aquelle tom geral que dão as cousas mortas e enterradas.

Nesse anno entrara eu para a imprensa. Uma noite, como saíssemos do theatro Gymnasio, Quin­tino Bocayuva e eu fomos tomar chá. Bocayuva era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco daquelle ar distant que Taine achou em Merimée. Disseram cousa análoga de Challemel-Lacour, que alguém ultimamente de­finia como três republicam de conviction et três

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aristocrate de tempérament. O nosso Bocayuva era só a segunda parte, mas já então liberal bastante para dar um republicano convicto. Ao chá, conver­sámos primeiramente de lettras, e pouco depois de politica, matéria introduzida por elle, o que me espantou bastante; não era usual nas nossas pra­ticas. Nem é exacto dizer que conversámos de poli­tica, eu antes respondia ás perguntas que Bocayuva me ia fazendo, como se quizesse conhecer as minhas opiniões. Provavelmente não as teria fixas nem de­terminadas; mas, quaesquer que fossem, creio que as exprimi na proporção e com a precisão apenas adequadas ao que elle me ia offerecer. De facto, sepa-ramo-nos com prazo dado para o dia seguinte, na loja de Paula Brito, que era na antiga praça da Cons-v

tituição, lado do theatro S. Pedro, a meio caminho das ruas do Cano e dos Ciganos. Relevai esta nomen-, clatura morta; é vicio de memória velha. Na manhan seguinte, achei ali Bocayuva escrevendo um bilhete^ Tratava-se do Diário do Rio de Janeiro, que ia reap-parecer, sob a direcção politica de Saldanha Ma­rinho. Vinha dar-me um lugar na redacção com elle e Henrique César Muzzio.

Estas minudencias, agradáveis de escrever, sel-o-hão menos de ler. É difficil fugir a ellas, quando'se recordam cousas idas. Assim, dizendo que no mesmo, anno, abertas as câmaras, fui para o Senado, como redactor do Diário do Rio, não posso esquecer que nesse ou no outro ali estiveram commigo, Bernardo

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I Guimarães, representante do Jornal do Commercio, e Pedro Luiz, por parte do Correio Mercantil, nem as boas horas que vivemos os três. Posto que Ber­nardo Guimarães fosse mais velho que nós, par­tíamos irmanmente o pão da intimidade. Descíamos

' juntos aquella praça da Acclamação, que não era então o parque de hoje, mas um vasto espaço inculto e vasio como o campo de S. Christovão. Algumas

I vezes íamos jantar a um restaurant da rua dos La-toeiros, hoje Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação justamente do Diário do Rio; o poeta morara ali outr'ora, e foi Muzzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu á Câmara Municipal. Pedro Luiz não tinha só a paixão que poz nos bellos versos á Polônia e no discurso com que, pouco depois, entrou na Câmara dos Deputados, mas ainda a graça, o sarcasmo, a observação fina e aquelle largo riso em que os grandes olhos se faziam maiores. Ber­nardo Guimarães não falava nem ria tanto, incum­bia-se de pontuar o dialogo com um bom dito, um reparo, uma anecdota. O Senado não se prestava menos que o resto do mundo á conversação dos três amigos.

Í Poucos membros restarão da velha casa. Para­naguá e Sinimbú carregam o peso dos annos com muita facilidade e graça, o que ainda mais admira em Sinimbú, que supponho mais idoso. Ouvi falar a este bastantes vezes; não apaixonava o debate, mas era simples, claro, interessante, e, physicamente,

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não perdia a linha. Esta geração conhece a firmeza daquelle homem político, que mais tarde foi presi­dente do conselho e teve de lutar com opposições grandes. Um incidente dos últimos annos mostrará bem a natureza delle. Saindo da Câmara dos Depu­tados para a secretaria da Agricultura, com o Vis­conde de Ouro Preto, collega de gabinete, eram seguidos por enorme multidão da gente em assuada. 0 carro parou em frente á secretaria; os dous apea-j ram-se e pararam alguns instantes, voltados para a multidão, que continuava a bradar e apupar, e então vi bem a differença dos dois temperamentos. Ouro Preto fitava-a com a cabeça erguida e certo gesto de repto; Sinimbú parecia apenas mostrar ao collega um trecho de muro, indifferente. Tal era o homem que conheci no Senado.

Para avaliar bem a minha impressão diante da-quelles homens que eu via ali juntos, todos os dias, é preciso não esquecer que não poucos eram contem­porâneos da Maioridade, algum da Regência, do pri­meiro reinado e da Constituinte. Tinham feito ou visto fazer a historia dos tempos iniciaes do regimen, e eu era um adolescente espantado e curioso. Achava-lhes uma feição particular, metade militante, metad|j triumphante, um pouco de homens, outro pouco de instituição. Parallelamente, iam-me lembrando os apodos e chufas que a paixão politica desferira contra alguns delles, e sentia que as figuras serenas e res- peitaveis que ali estavam agora naquellas cadeiras,

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estreitas não tiveram outr'ora o respeito dos outros, nem provavelmente a serenidade própria. E tirava-lhes as cans e as rugas, e fazia-os outra vez moços, ardegos e agitados. Comecei a aprender a parte do presente que ha no passado, e vice-versa. Trazia commigo a oligarchia, o golpe de Estado de 1848, e outras notas da politica em opposição ao domínio conservador, e ao ver os, cabos deste partido, riso-nhos, familiares, gracejando entre si e com os outros, tomando juntos café e rape, perguntava a mim mesmo se eram elles que podiam fazer, desfazer e refazer os elementos e governar com mão de ferro este paiz.

Os senadores compareciam regularmente ao tra­balho. Era raro não haver sessão por falta de quo­rum. Uma particularidade do tempo é que muitos •vinham em carruagem própria, como Zacharias, Monte-Alegre, Abrantes, Caxias e outros, começando pelo mais velho, que era o marquez de Itanhaem. A edade deste fazia-o menos assíduo, mas ainda assim era-o mais do que cabia esperar delle. Mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até á cadeira, que ficava do lado direito da mesa. Era secco e mirrado, usava cabelleira e tr%zia óculos fortes. Nas ceremonias de abertura e encerra­mento aggravava o aspecto com a farda de senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o chupado e enge-lhado dos tecidos, a cara rapada accentuava-lhe a decrepitude; mas a cara rapada era o costume de

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outra quadra, que ainda existia na maioria do Se­nado. Uns, como Nabüco e Zacharias, traziam' a barba toda feita; outros deixavam pequenas suissasj como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Eu-zebio, a barba em fôrma de collar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma, — um Monte-; zuma de segunda maneira.

A figura de Itanhaem era uma razão visível contra a vitaliciedade do Senado, mas é também certo que a vitaliciedade dava aquella casa uma consciência de duração perpetua, que parecia ler-se no rosto e no trato de seus membros. Tinham um ar de família,; que se dispersava durante a estação calmosa, para ir ás águas e outras diversões, e que se reunia de­pois, em prazo certo, annos e annos. Alguns não tornavam mais, e outros novos appareciam; mas também nas famílias se morre e nasce. Dissentiam sempre, mas é próprio das famílias numerosas bri­garem, fazerem as pazes e tornarem a brigar; parece até que é a melhor prova de estar dentro da huma­nidade. Já então se evocavam contra a vitaliciedade do Senado os princípios liberaes, como se fizera antes. Algumas vozes, vibrantes cá fora, calavam-se lá dtentro, é certo, mas o germen da reforma ia ficando, os programmas o acolhiam, e, como em vários outros casos, os successos o fizeram lei.

Nenhum tumulto nas sessões. A attenção era grande e constante. Geralmente, as galerias não eram mui freqüentadas, e, para o fim da hora,

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poucos expectadores ficavam, alguns dormiam. Na­turalmente, a discussão do voto de graças e outras chamavam mais gente. Nabuco e algum outro dos iprincipaes da casa gosavam do privilegio de attrair [grande auditório, quando se sabia que elles rompiam [um debate ou respondiam a um discurso. Nessas occasiões, mui excepcionalmente, eram admittidos ouvintes no próprio salão do Senado, como aliás era commum na Câmara temporária; como nesta, po­rém, os expectadores não intervinham com applau-sos nas discussões. A presidência de Abaeté redo­brou a disciplina do regimento, porventura menos apertada no tempo da presidência de Cavalcanti. *Não faltavam oradores. Uma só vez ouvi falar a Eusebio de Queiroz, e a impressão que me deixou foi viva; era fluente, abundante, claro, sem prejuízo do vigor e da energia. Não foi discurso de ataque, mas ie defesa, falou na qualidade de chefe do partido conservador, ou papa; Itaborahy, Uruguay, Sayão Lobato e outros eram cardeaes, e todos formavam o tonsistorio, segundo a celebre definição de Octa-viano no Correio Mercantil. Não reli o discurso, não teria agora tempo nem opportunidade de fazel-o,

smas estou que a impressão não haveria diminuído , muito, posto lhe falte o effeito da própria voz do orador, que seduzia. A matéria era sobremodo

l ingrata : tratava-se de explicar e defender o accu-mulo dos cargos públicos, accusação feita na im­prensa da opposição. Era a tarde da oligarchia,.

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o crepúsculo do domínio conservador. As elei­ções de 1860, na capital, deram o primeiro golpe na situação; se também deram o ultimo, não sei; os partidos nunca se entenderam bem acerca das causas immediatas da própria queda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a violação ou a restauração da carta constitucional. Quaesquer que fossem, então, a verdade é que as eleições da capital naquelle anno podem ser contadas como uma vic­toria liberal. Ellas trouxeram á minha imaginação' adolescente uma visão rara e especial do poder das urnas. Não cabe inseril-a aqui; não direi o movi­mento geral e o calor sincero dos votantes, incitados pelos artigos da imprensa e pelos discursos de Theo-philo Ottoni, nem os lances, scenas e brados de taes dias. Não me esqueceu a maior parte delles; ainda guardo a impressão que me deu um obscuro votante que veiu ter com Ottoni, perto da matriz do Sacramento. Ottoni não o conhecia, nem sei se o tornou a ver. Elle chegou-se-lhe e mostrou-lhe um maço de cédulas, que acabava de tirar ás escondidas da algibeira de um agente contrario: O riso que acompanhou esta noticia nunca mais se me apagou da memória. No meio das mais ardentes reivindica­ções deste mundo, alguma vez me despontou ao longe aquella bocca sem nome, acaso verídica e ho­nesta em tudo o mais da vida, que ali viera confessar candidamente, e sem outro prêmio pessoal, o fino roubo praticado. Não mofes desta insistência puerit

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da minha memória; eu a tempo advirto que as mais claras águas podem levar de enxurro alguma palha podre, — si é que é podre, si é que é mesmo palha.

Eusebio de Queiroz era justamente respeitado dos seus e dos contrários. Não tinha a figura esbelta de untParanhos, mas ligava-se-lhe uma historia par­ticular e celebre, dessas que a chronica social e po­litica de outros paizès escolhe e examina, mas que os nossos costumes, — aliás demasiado soltos na palestra, — não consentem inserir no escripto. De resto, pouco valeria repetir agora o que se divul­gava então, não podendo pôr aqui a própria e extre­mada belleza da pessoa que as ruas e salas desta ci­dade viram tantas vezes. Era alta e robusta; não me ficaram outros pormenores.

0 Senado contava raras sessões ardentes; muitas, porém, eram animadas. Zacharias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor dos golpes. Tinhh a palavra cortante fina e rápida, com uns effeitos de sons gutturaes, que a tornavam mais penetrante e irritante. Quando elle se erguia, era quasi certo que faria deitar sangue a alguém. Che­gou até hoje a reputação de debater, como opposi-cionista, e como ministro e chefe de gabinete. Tinha audacias, como a da escolha « não acertada », que á nenhum outro acudiria, creio eu. Politicamente, erç uma natureza secca e sobranceira. Um livro que foi de seu uso, uma historia de Clarendon (History of the rebellion and civil wars in England), mar-

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cado em partes, a lápis encarnado, tem uma sub­linha nas seguintes palavras (vol. I, pag. 44) attri-buidas ao conde de Oxford, em resposta ao duque de Buckingham, « que não buscava a sua amizade nem temia o seu ódio ». É arriscado ver sentimen­tos pessoaes nas simples notas ou lembranças pos­tas em livros de estudo, mas aqui parece que o espi­rito de Zacharias achou o seu parceiro. Particular^ men*,e, ao contrario, e desde que se inclinasse a alguém, convidava fortemente a amal-o; era lhano e simples, amigo e confiado. Pessoas que o freqüen­tavam, dizem e affirmam que, sob as suas arvores da rua do Conde ou entre os seus livros, era um gosto ouvil-o, e raro haverá esquecido a graça e a polidez dos seus obséquios. No Senado, sentava-se á esquerda da mesa, ao pé da janella, abaixo de Na-buco, com quem trocava os seus reparos e reflexões^ Nabuco, outra das principaes vozes do Senado, era especialmente orador para os debates solemnes. Não tinha o sarcasmo agudo de Zacharias, nem o epi-gramma alegre de Cotegipe. Era então o centro dos conservadores moderados que, com Olinda e Zacha­rias, fundaram a liga e os partidos progressista e \Uf

beral. Joaquim Nabuco, com a eloqüência de escrip-s tor político e a affeição de filho, dirá toda essa his­toria no livro que está consagrando á memória de' seu illustre pae. A palavra do velho Nabuco era mo­delada pelos oradores da tribuna liberal franceza.' A minha impressão é que preparava os seus discur-

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sos, e a maneira por que os proferia realçava-lhes a matéria e a forma solida e brilhante. Gostava das imagens litterarias : uma dessas, a comparação do poder moderador á estatua de Glauco, fez então for­tuna. 0 gesto não era vivo, como o de Zacharias, mas pausado, o busto cheio era tranquillo, e a voz

• adquiria uma sonoridade que habitualmente não L tinha.

Mas eis que todas as figuras se atropelam na evo­cação commum, as de grande peso, como Uruguay, com as de pequeno ou nenhum peso, como o padre Vasconcellos, senador creio que pela Parahyba, um bom homem que ali achei e morreu pouco depois. Outro, que se podia incluir nesta segunda categoria, era um de quem só me lembram duas circumstan­cias, as longas barbas grisalhas e sérias, e a cau­tela e pontualidade com que não votava os artigos de uma lei sem ter os olhos pregados em Itaborahy. Era um modo de cumprir a fidelidade politica e obe­decer ao chefe, que herdara o bastão de Eusebio. Como o recinto era pequeno, viam-se todos esses «gestos, e quasi se ouviam todas as palavras parti­culares. E, comquanto fosse assim pequeno, nunca -vi rir a Itaborahy, creio que os seus,músculos diffi-cilmente ririam — o contrario de S. Vicente, que ria com facilidade, um riso bom, mas que lhe não ia bem. Quaesquer que fossem, porém, as desele-gancias physicas do senador por S. Paulo, e mau grado a palavra sem sonoridade, era ouvido com

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grande respeito, como Itaborahy. De Abrantes dizia-se que era um canário falando. Não sei até que ponto merece a definição; em verdade, achava-o fluente, acaso doce, e, para um povo mavioso como o nosso, a qualidade era preciosa; nem por isso Abrantes era popular. Também não o era Olinda, mas a autori­dade deste sabe-se que era grande. Olinda appare-cia-me envolvido na aurora remota do reinado, e na mais recente aurora liberal ou «• situação nascente », mote de um dos chefes da liga, penso que Zacha­rias, que os conservadores glosaram por todos os feitios, na tribuna e na imprensa. Mas não desuse­mos a reminiscencias de outra ordem; fiquemos na surdez de Olinda, que competia com Beethoven nesta qualidade, menos musical que politica. Não seria tão surdo. Quando tinha de responder a alguém, ia sen­tar-se ao pé do orador, e escutava attento, cara de mármore, sem dar um aparte, sem fazer um gesto, sem tomar uma nota. E a resposta vinha logo; tão de pressa o adversário acabava, como elle princi­piava, e, ao que me ficou, lúcido e completo.

Um dia vi ali aparecer um homem alto, suissas e bigodes brancos e compridos. Era um dos rema­nescentes da Constituinte, nada menos que Monte-suma, que voltava da Europa. Foi-me impossivel. reconhecer naquella cara barbada a cara rapada que eu conhecia da lithographia Sisson; pessoalmente nunca o vira. Era, muito mais que Olinda, um typo de velhice robusta. Ao meu espirito de rapaz affigu-

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rava-se que elle trazia ainda os rumores e os gestos da assemblea de 1823. Era o mesmo homem; mas foi preciso ouvil-o agora para sentir toda a vehe-mencia dos seus ataques de outr'ora. Foi preciso ou­vir-lhe a ironia de hoje para entender a ironia da-quella rectificação que elle.pôz ao texto de uma per­gunta ao ministro do Império, na celebre sessão permanente de 11 a 12 de novembro : « Eu disse que o Sr. ministro do Império, por estar ao lado de Sua Majestade, melhor conhecerá o « espirito da tropa », e um dos senhores secretários escreveu « o espirito de Sua Magestade », quando não disse tal, porque deste não duvido eu. »

Agora o que eu mais ouvia dizer delle, além do talento, eram as suas infidelidades, e sobre isto cor­riam anecdotas; mas eu nada tenho com anecdotas políticas. Que se não pudesse fiar muito em seus carinhos parlamentares, creio. Uma vez, por ex­emplo, encheu a alma de Souza Franco de grandes alleluias. Querendo criiicar o ministro da Fazenda (não me lembra quem era) começou por affirmar que nunca tivéramos ministros da Fazenda, mas tão somente ministros do Thesouro. Encarecia com ad-jectivos : excellentes, illustrados, conspicuos minis­tros do Thesouro, mas da Fazenda nenhum. « Um houve, Sr. presidente, que nos deu alguma cousa do que deve ser um ministro da Fazenda; foi o nobre senador pelo Pará. » E Souza Franco sorria alegre, deleitava-se com a excepção, que devia doer ao seu

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forte rival em finanças, Itaborahy; não passou muito tempo que não perdesse o gosto. De outra vez, Montezuma atacava a Souza Franco, e este no­vamente sorria, mas agora a expressão não era alegre, parecia rir de desdém. Montezuma empinao busto, encara-o irritado, e com a voz e o gesto in­tima-lhe que recolha o riso; e passa a demonstrar,; as suas criticas, uma por uma, com esta espécie de estribilho : « Recolha o riso o nobre senador! » |

Tudo isto aceso e torvo. Souza Franco quiz resistir; mas o riso recolheu-se por si mesmo. Era então um homem magro e cançado. Gozava ainda agora a po­pularidade ganha na Câmara dos Deputados, annos antes, pela campanha que sustentou, sósinho e pa­rece que enfermo, contra o partido conservador, i

Contrastando com Souza Franco, vinha a figura de Paranhos, alta e forte. Não é preciso dizel-o a uma geração que o conheceu e admirou, ainda bello e robusto na velhice. Nem é preciso lembrar que era uma das primeiras vozes do Senado. Eu trazia de cór as palavras que alguém me confiou haver dito, quando elle era simples estudante da Escola Central: « Sr. Paranhos, você ainda ha de ser ministro. » O estudante respondia modestamente, sorrindo; mas o propheta dos seus destinos tinha apanhado bem o valor e a direcção da alma do moço.

Muitas recordações me vieram do Paranhos de então, discursos deattaque, discursos de defesa, mas, uma basta, a justificação do convênio de 20 de

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fevereiro. A noticia deste acto entrou no Rio de Janeiro, como as outras desse tempo, em que não havia telegrapho. Os successos do exterior chega­vam-nos ás braçadas, por atacado, e uma batalha, uma conspiração, um acto diplomático eram conhe­cidos com todos os seus pormenores. Por um pa­quete do sul'soubemos do convênio da villa da União. 0 pacto foi mal recebido, fez-se uma mani­festação de rua, e um grupo de populares, com três ou quatro chefes á frente, foi pedir ao governo a demissão do plenipotenciario. Paranhos foi demitido, e, aberta a sessão parlamentar, cuidou de produzir a sua defesa.

í. Tornei a ver aquelle dia, e ainda agora me parece vel-o. Galerias e tribunas estavam cheias de gente; ao salão do Senado foram admittidos muitos homens políticos ou simplesmente curiosos. Era uma hora da tarde quando o presidente deu a palavra ao sena­dor por Matto-Grosso; começava a discussão do voto de graças. Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e a voz ia saindo meditada e colorida. Naquelle dia, porém, a anciã de produzir a defesa era tal, que as

.primeiras palavras foram antes bradadas que ditas : « Não a vaidade, Sr. presidente... » D'ahi a um

.instante, a voz tornava ao diapasào habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando elle acabou ; estava como no

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principio, nenhum signal de fadiga nelle nem no auditório, que o applaudiu.Foi uma das mais fundas* impressões que me deixou a eloqüência parlamentar, A agitação passara cornossuccessos, a defesa estava-feita. Annos depois do attaque, esta mesma cidade i acclamava o autor da lei de 28 de setembro de 1871, como uma gloria nacional; e ainda depois, quandol elle tornou da Europa, foi recebel-o e conduzil-o até á casa. Ao clarão de um bello sol, rubro de commoção*| levado pelo enthusiasmo publico, Paranhos seguia as mesmas ruas que, annos antes, voltando do Sul, pisara sozinho e condemnado.

A visão do Senado foi-se-me assim alterando nos gestos e nas pessoas, como nos dias, e sempre remota e velha : era o Senado daquelles três annos.' Outras figuras vieram vindo. Além dos cardeaes, os Muritibas, os Souza e Mellos, vinham os de menor graduação politica, o risonho Penna, zeloso e miúdo em seus discursos, o Jobim, que falava algumas vezes, o Ribeiro, do Rio Grande do Sul, que não falava nunca, — não me lembra-, ao menos. Este, philosopho e philologo, tinha junto a si, no tapete,! encostado ao pé da cadeira, um exemplar do diccio-nario de Moraes. Era commum vel-o consultar um e outro tomo, no correr de um debate, quando ouvia! algum vocábulo, que lhe parecia de incerta origem ou duvidosa aceitação. Em contraste com a abstenção delle, eis aqui outro, Silveira da Motta, assiduo na tribuna, opposicionista por temperamento, e este

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outro, D. Manoel de Assis Mascarenhas, bom exem­plar da geração que acabava. Era um homemzinho

' secco e baixo, cara lisa, cabello raro e branco, tenaz, 'um tanto impertinente, creio que desligado de par­tidos. Da sua tenacidade dará idéia o que lhe vi fazer em relação a um projecto de subvenção ao theatro lyrico, por meio de loterias. Não era novo ; conti­nuava o de annos anteriores. D. Manoel oppunha-se — por todos os meios á passagem delle, e fazia

•extensos discursos. A mesa, para acabar com o pro­jecto, já o incluía entre os primeiros na ordem do dia, mas nem assim desanimava o senador. Um dia foi elle collocado antes de nenhum. D.Manoel pediu a palavra, e francamente declarou que era seu intuito falar toda a sessão; portanto, aquelles de seus col-legas que tivessem algum negocio extranho e fora do Senado podiam retirar-se : não se discutiria mais nada. E falou até o fim da hora, consultando a miúdo o relógio para ver o tempo que lhe ia fal­tando. Naturalmente não haveria muito que dizer em tão escassa matéria, mas a resolução do orador e a liberdade do regimento davam-lhe meio de compor o discurso. D'ahi nascia uma infinidade de episódios, reminiscencias, argumentos e explicações ; por exem­plo, não era recente a sua aversão ás loterias, vinha do tempo em que, andando a viajar, foi ter a Ham­burgo ; ali offereceram-lhe com tanta instância um bilhete de loteria, que elle foi obrigado a comprar, e o bilhete saiu branco. Esta anecdota era contada com

1 7 8 O VELHO SENADO

todas as minúcias necessárias para amplial-a. Uma parte do tempo falou sentado, e acabou diante da mesa e três ou quatro collegas. Mas, imitando assim Catão, que também falou um dia inteiro para impe­dir uma petição de César, foi menos feliz que o seu collega romano. César retirou a petição, e aqui as loterias passaram, não me lembra se por fadiga ou omissão de D. Manoel; annuencia é que não podia ser. Taes eram os costumes do tempo.

E após elle vieram outros, e ainda outros, Sapu-cahy, Maranguape, Itaúna, e outros mais, até que se confundiram todos e desappareceu tudo, cousas e pessoas, como succede ás visões. Pareceu-me vel-os enfiar por um corredor escuro, cuja porta era fechada por um homem de capa preta, meias de seda preta, calções pretos e sapatos de fivela. Este era nada menos que o próprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes do tempo, nos dias de abertura e encerramento da assemblea geral. Quanta cousa obsoleta! Alguém ainda quiz obstar á acção do por­teiro, mas tinha o gesto tão cançado e vagaroso que não alcançou nada; aquelle deu volta a chave, envol­veu-se na capa, saiu por uma das janellas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério, provavel­mente. Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catal-o, mas não vale; todos os cemitérios se parecem.

TU SO, TU, PURO AMOR...

COMEDIA

Tu, só, tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga.,

(Limadas, 3, CXIX.)

O desfecho dos amores palacianos de Camões e de D. Catharina de Athayde é o objecto da comedia, desfecho que deu logar á subsequente aventura de África, e mais tarde á partida para a índia, donde| o poeta devia regressar um dia com a immortalidade não mãos. Não pretendi fazer um quadro da corte de D. João III, nem sei se o permittiam as proporções mínimas do escripto e a urgência da occasião (1). Busquei, sim, haver-me de maneira que o poeta fosse contemporâneo de seus amores, não lhe dando feições épicas, e, por assim dizer, posthumas.

Na primeira impressão escrevi uma nota, que reprodusi na segunda, accrescentando-lhe alguma cousa explicativa. Como na scena primeira se trata da anecdota que motivou o epigramma de Camões ao duque de Aveiro, disse eu alli que, posto se lhe não possa fixar data, usara desta por me parecer um

(1) A peça foi escripta para as testas organisadas no Rio "d*è" Janeiro, pelo Gabinete Portuguez de Leitura, no tricentenario de Camões e representada no theatro de D. Pedro II, em 10 de Junho de 1880. Imprimiu-se a primeira vez na,- Revista Brasi­leira (1 de Julho de 1880) e a segunda em cem exemplares, numerados e assignados pelo autor (edição Lombaerts, Rio dp. Janeiro MnniT. I YYYI1

TU SÓ, TU, PURO AMOR 1 8 1

curioso rasgo de costumes. E adduzi : « Engana-se, creio eu, o Sr. Theophilo Braga, quando affirma que ella só podia ter occorrido depois do regresso de Camões a Lisboa, allegando para fundamentar essa opinião, que o titulo de duque de Aveiro foi creado em 1557. Digo que se engana o illustre escriptor, porque eu encontro o duque de Aveiro, cinco annos antes, em 1552, indo receber, na qualidade de em­baixador, a princesa D. Joanna, noiva do príncipe D. João (Veja MEM. E Doe, annexos aos ANNAES DE

D. JOÃO m, pags. 440e441);e, se Camões só em 1553 partiu para a índia, não é impossivel que o epi-gramma e o caso que lhe deu origem fossem ante­riores. »

* Temos ambos razão, o Sr. Theophilo Braga e eu. Bom effeito, o ducado de Aveiro só foi creado for­malmente em 1557, mas o agraciado usava o titulo desde muito antes, por mercê de D. João III; é o que confirma a própria carta regia de 30 de Agosto daquelle anno, textualmente inserta na HIST. GENEAL.

de D. ANTÔNIO CAETANO DE SOUZA, que cita em abono da assersão o testemunho de ANDRADE, na CHRONICA

D'EL-REI D. JOÃO III. Naquella mesma obra se lê (liv. IV, cap. V) que em 1551, na trasladação dos fossos d'el-rei D. Manoel estivera presente o duque de Aveiro. Não é, pois, impossivel que a aneedota oceor-resse antes da primeira ausência de Camões.

n

PESSOAS

CAMÕES. D. ANTÔNIO DE LIMA. CAMINHA. D. MANOEL DE PORTUGAL. D. CATHARINA DE ATHAYDE. D. FRANCISCA DE ARAGÃO.

Tu só, tu, puro amor COMEDIA

Sala no paço.

SCENA I

CAMINHA, D. MANOEL DE PORTUGAL

(Caminha vem do fundo, á esquerda; vae a entrar pela porta da direita, quando lhe sae D. Manoel de Portugal, a rir). :

CAMINHA.

Alegre vindes, senhor D. Manoel de Portugal. Disse-vos El-rei alguma cousa graciosa, de certo...

D . MANOEL.

Não; não foi El-rei. Adivinhae o que seria, se é que o não sabeis já.

CAMINHA.

Que foi?

1 8 4 TU SÓ, TU, PURO AMOR..-

D. MANOEL.

Sabeis o caso da gallinha do duque de Aveiro?

CAMINHA.

Não.

D . MANOEL.

Não sabeis? — Pois é isto; uns' versos mui ga­lantes do nosso Camões. (Caminha estremece e faz um gesto de má vontade) Uns versos como elle os sabe fazer: (A parte) Dóe-lhe a noticia. (Alto) Mas, deveras, não sabeis do encontro de Camões com o duque de Aveiro ?

CAMINHA.

Não.

D. MANOEL.

Foi o próprio duque que m'o contou agora mesmo, ao vir de estar com El-rei...

CAMINHA.

Que houve então ?

D . MANQEL.

Eu vol-o digo ; achavam-se hontem, na egreja do Amparo, o duque e o poeta...

CAMINHA, com enfado.

O poeta! o poeta! Não é mais que engenhar ahi uns pêccos versos, para ser logo poeta! Desperdi-

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 8 5

çaes o vosso enthusiasmo, senhor D. Manoel. Poeta é o nosso Sá, o meu grande Sá! Mas, esse armador, esse brigão de horas mortas...

u . MANOEL.

Parece-vos então...?

CAMINHA.

' Que esse moço tem algum engenho, muito menos do que lhe diz a presumpção d'elle e a cegueira dos amigos; algum engenho não lhe nego eu. Faz so­netos soffriveis. E canções... digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com bôa vontade, mais esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de Lisboa, mas a meditar os poetas italianos, digo-vos que pôde vir a ser...

D. MANOEL.

Acabae.

CAMINHA.

Está acabado : um poeta soffrivel.

D. MANOEL.

Deveras? Lembra-me que já isso mesmo lhe ne-gastes.

CAMINHA, sorrindo.

No meu epigramma, não? E nego-Ih'o ainda agora, se não fizer o que vos digo. Pareceu-vos gra-

186 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

cioso o epigramma? Fil-o por clesenfado, não por ódio... Dizei, que tal vos pareceu elle?

D. MANOEL. (

Injusto, mas gracioso.

CAMINHA.

Sim? Tenho em mui boa conta o vosso parecer. Algum tempo suppuz que me desdenhaveis. Não era impossivel que assim fosse. Intrigas da corte dão azo a muita injustiça; mas principalmente acreditei que fossem artes d'esse rixôso... Juro-vos que elle me tem ódio.

D. MANOEL.

0 Camões?

Tem, tem...

Porque? CAMINHA.

Não sei, mas tem. Adeus.

D. MANOEL.

CAMINHA.

D. MANOEL.

Ides-vos ?

CAMINHA.

Vou a El-rei, e depois ao meu senhor infante. (Corteja-o e dirige-se para a porta da direita D. Manoel dirige-se para o fundo.)

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 8 7

D. MANOEL, andando.

Eu já vi a taverneiro Vender vacca por carneiro...

CAMINHA, volta-se.

Recitaes versos?... São vossos?... Não me negueis o gosto de vos ouvir.

D. MANOEL.

Meus não; são de Camões... (Repete-os descendo a scena.)

Eu já vi a taverneiro Vender vacca por carneiro...

CAMINHA, sarcástico.

De Camões?... Galantes são. Nem Virgilio os daria melhores. Ora, fazei o favor de repetir com­migo :

Eu já vi a taverneiro Vender vacca por carneiro...

E depois? Vá, dizei-me o resto, que não quero perder iguaria de tão fino sabor.

D. MANOEL.

0 duque de Aveiro e o poeta encontraram-se hon­tem na egreja do Amparo. O duque prometteu ao poeta mandar-lhe uma gallinha da sua mesa; mas só lhe mandou um assado. Camões retorquiu-lhe com

1 8 8 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

estes versos, que o próprio duque me mostrou agora, a rir :

Eu já vi a taverneiro, Vender vacca por carneiro; Mas, não vi, por vida minha, Vender vacca por gallinha, Senão ao duque de Aveiro.

Confessae, confessae, senhor Caminha, vós que sois poeta, confessae que ha ahi certo pico, e uma simpleza de dizer... Não vale tanto de certo como os sonetos d'elle, alguns dos quaes são sublimes, aquelle, por exemplo :

De amor escrevo, de amor trato e vivo...

ou este :

Tanto do meu estado me acho incerto...

Sabeis a continuação ?

CAMINHA.

Até lhe sei o fim :

Se me pergunta alguém porque assim ando Respondo que não sei, porém suspeito Que só porque vos vi, minha senhora.

(Fitando-lhe muito os olhos.) Esta senhora... Sa­beis vós, de certo, quem é esta senhora do poeta como eu o sei, como o sabem todos... Naturalmente amam-se ainda muito?...

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 8 9

D. MANOEL, aparte.

Que quererá elle?

CAMINHA.

Amam-se por força.

D. MANOEL.

, Cuido que não.

CAMINHA.

Que não ?

D. MANOEL.

Acabou como tudo acaba.

CAMINHA, sorrindo.

Andae lá ; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é impossivel que também vós... Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de Aragão ?

D. MANOEL.

Que tem ?

CAMINHA.

Vede : um simples nome vos faz estremecer de cólera. Mas, abrandae a cólera, que não sou vosso inimigo; mui ao contrario ; amo-vos, e a ella tam­bém... e respeito-a muito. Um para o outro nas-icestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sáepela direita.)

1 1 .

1 9 0 TU SÓ, TU, PURO AMOR..

SCENA II

D. MANOEL DE PORTUGAL

Este homem ! Este homem !... Como se os versos d'elle, duros e ensôssos... (Vae á porta por onde Caminha saiu, e levanta o reposteiro). Lá vae elle; vae cabisbaixo; rumina talvez alguma cousa. Que não sejam versos! (Ao fundo apparecem D. Antoniol de Lima e D. Catharina de Athayde.)

SCENA III

D. MANOEL DE PORTUGAL, D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. ANTÔNIO DE LIMA

D. ANTÔNIO DE LIMA.

Que espreitaes ahi, senhor D. Manoel?

D. MANOEL.

Estava a vêr o porte elegante de nosso Caminha. Não vades suppôr que era alguma dama. (Levanta o reposteiro.) Olhae, lá vae elle a desapparecer. Vae a El-rei.

D. ANTÔNIO.

Também eu. Tu, não, minha boa Catharina. A rainha espera-vos. (D. Catharina faz uma reverencia

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 9 1

e caminha para a porta da esquerda.) Ide, ide, minha gentil flor... (A D. Manoel.) Gentil, não a achaes ?

D. MANOEL.

Gentilissima.

D . ANTÔNIO.

Agradecei, Catharina.

D. CATHARINA.

Agradeço ; mas o certo é que o senhor D. Manoel é rico de louvores...

D . MANOEL.

Eu podia dizer que a natureza é que foi comvosco pródiga de graças; mas, não digo ; seria repetir mal aquillo que só poetas podem dizer bem. (D. Antô­nio fecha o rosto.) Dizem que também sou poeta, é verdade; não sei ; faço versos. Adeus, senhor D. Antônio... (Corteja-os e sáe. D. Catharina vae a entrar, á esquerda. D. Antônio detem-ria.)

SCENA IV

D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE

D . ANTÔNIO.

, Ouviste aquillo ?

1 9 2 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

D. CATHARINA, parando.

Aquillo?

D. ANTÔNIO.

« Qué só poetas podem dizer bem » foram as palavras d'elle. (D. Catharinaapproxima-se.)\èstu, filha? Tão divulgadas andam já essas cousas, que até se dizem nas barbas de teu pae!

D. CATHARINA.

Senhor, um gracejo...

D. ANTONIO, enfadando-se.

Um gracejo injurioso, que eu não consinto, que não quero, que me dóe... Que só poetas podem dizer bem! E que poeta ! Pergunta ao nosso Cami­nha o que é esse atrevido, o que vale a sua poe­sia... Mas, que seja outra e melhor, não a quero para mim, nem para ti. Não te criei para entregar-te ás mãos do primeiro que passa, e lhe dá na cabeça haver-te.

D. CATHARINA, procurando moderal-o.

Meu pae...

D. ANTÔNIO.

Teu pae, e teu senhor!

D. CATHARINA.

Meu senhor e pae... juro-vos que... juro-vos que

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 9 3

vos quero e muito... Por quem sois, não vos irriteis contra mim !

D. ANTÔNIO.

Jura que me obedecerás.

D. CATHARINA.

Não é essa a minha obrigação ?

D . ANTÔNIO.

Obrigação é, e a mais grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pae que sou. Agora, anda, vae.

SCENA V

D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO

', D. ANTÔNIO.

Mas não, não vás sem falar á senhora D. Fran-cisca de Aragão, que ahi nos apparece, fresca como a rosa que desabotoou agora mesmo, ou como dizia a farça do nosso Gil Vicente, que eu ouvi ha tantos annos, por tempo do nosso sereníssimo senhor D. Manoel... Velho estou, minha formosa dama...

D. FRANCISCA.

E que dizia a farça ?

1 9 4 TU SQ, TU, PURO AMOR.

D. ANTÔNIO.

A farça dizia :

É bonita como estrella, Uma rosinha de Abril, Uma frescura de Maio, Tão manhosa, tão subtil!

Vede que a farça adivinhava já a nossa D. Fran-cisca de Aragão, uma frescura de Maio, tão manhosa, tão subtil...

D. FRANCISCA.

Manhosa, eu ?

D. ANTÔNIO. 4

E subtil. Não vos esqueça a rima, que é de lei. (Vae a sair pela porta da direita; apparece Ca­mões.)

SCENA VI

Os MESMOS, CAMÕES

D. CATHARINA, ápaHe.

Elle!

D. FRANCISCA, baixo a D. Catharina. } Socegae!

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 9 5

D. ANTÔNIO.

Vinde cá, senhor poeta das gallinhas. Já me che­gou aos ouvidos o vosso lirtdo epigramma. Lindo, sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazel-odoque eu a dizer-vos que me divertiu muito... E o duque ? O duque, ainda não emendou a mão ? Ha de emendar, que não é nenhum mesquinho.

CAMÕES, alegremente.

Pois El-rei deseja o contrario...

D. ANTÔNIO.

Ah! Sua Alteza falou-vos d'isso?... Contar-m'o-heis em tempo. (A D. Catharina, com intenção.) Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? eu vou falar a El-rei. (D. Catharina corteja-os. e dirige-se para a esquerda; D. Antônio sae pela direita.)

SCENA VII

Os MESMOS, menos D. ANTÔNIO DE LIMA {D. Catharina quer sair, D. Franeísea de Aragão

detem-n'a.)

D. FRANCISCA.

Ficae, ficae...

D. CATHARINA.

Deixae-me ir!

1 9 6 TU SÓ, TU, PURO AMOR.

CAMÕES.

Fugis de mim ?

D. CATHARINA.

Fujo... Assim o querem todos.

CAMÕES.

Todos ! todos quem ?

D. FRANCISCA, indo a Camões.

Socegae. Tendes, na verdade, um gênio, uns espíritos... Que ha de ser? Corre a mais e mais a noticia dos vossos amores... e o senhor D. Antônio, que é pae, e pae severo...

CAMÕES, vivamente, a 1). Catharina.

Ameaça-vos ?

D. CATHARINA.

Não; dá-me conselhos... bons conselhos, meu Luiz. Não vos quer mal, não quer... Vamos lá ; eu é que sou desatinada. Mas, passou. Dizei-nos lá esses versos de que falaveis ha pouco. Um epigramma, não é ? Ha de ser tão bonito como os outros... menos um.

CAMÕES.

Um?

D. CATHARINA.

Sim, o que fizestes a D. Guiomar de Blasfé.

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 9 7

CAMÕES, com desdém.

Que monta? Bem frouxos versos.

D. FRANCISCA.

Não tanto; mas eram feitos a D. Guiomar, e os peiores versos d'este mundo são os que se fazem a outras damas. (A D. Catharina.) Acertei? (A Ca­mões.) Ora, andae, vou deixar-vos; dizei o caso do vosso epigramma, não a mim, que já o sei de cór,

i porém a ella que ainda não sabe nada... E que foi que vos disse El-rei ?

CAMÕES.

El-rei viu-me, e dignou-se chamar-me ; fitou-me um pouco a sua real vista, e disse com brandura: — « Tomara eu, senhor poeta, que todos os duques vos faltem com gallinhas, por que assim nos ale-•grareis com versos tão chistosos. »

D. FRANCISCA.

Disse-vos isto ? é um grande espirito El-rei!

D. CATHARINA, a D. Franclscct.

Não é? (A Camões.) E vós que lhe dissestes?

CAMÕES.

Eu? nada... ou quasi nada. Era tão inopinado o louvor que me tomou a fala. E, comtudo, se eu pudesse responder agora... agora que recobrei os espíritos... dir-lhe-hia que ha aqui (leva a mão á

198 TU só , TU, PURO A M O R . . .

fronte), alguma cousa mais do que simples versos de desenfado... dir-lhe-hia que... (Fica absorto um instante, depois olha alternadamente para as duas damas, entre as quaes se acha.) Um sonho... A's vezes cuido conter cá dentro mais do que a minha vidae o meu século... Sonhos... sonhos ! A realidade é que vós sois as duas mais lindas damas da chris-tandade, e que o amor é a alma do universo!

D. FRANCISCA.

O amor e a espada, senhor brigão!

CAMÕES, alegremente.

Porque me não dáes logo as alcunhas que me hão de ter posto os poltrões do Rocio ? Vingam-se com isso, que é a desforra da poltroneria... Não sabeis? Naturalmente não ; vós gastaes as horas nos lavores e recreios do paço; mora aqui a doce paz do espi­rito...

D. CATHARINA, 6'OIB intenção.

Nem sempre.

D. FRANCISCA, a Camões, sorrindo.

Isto é comvosco ; e eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir mais nada. (Dá alguns passos para o fundo.)

D. CATHARINA.

Vinde cá...

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 1 9 9

D. FRANCISCA.

Vou-me... vou a consolar o nosso Caminha, que ha de estar um pouco enfadado... Ouviu elle o que El-rei vos disse?

CAMÕES.

Ouviu ; que tem ?

D. FRANCISCA.

Não ouviria de boa sombra.

CAMÕES.

' Pôde ser que não... dizem-me que não. (A D. Ca-*1harina.) Pareceis inquieta...

D. CATHARINA, a D. Francisca.

Não vades, não vades ; ficae um instante.

CAMÕES, a D. Francisca. Irei eu.

D. FRANCISCA.

Não, senhor; irei eu só. (Saepelo fundo.)

SCENA VIII

CAMÕES, D. CATHARINA DE ATHAYDE

CAMÕES, com uma reverencia.

Irei eu. Adeus, minha senhora D. Catharina de

2 0 0 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

Athayde! (D. Catharina dá um passo para elle.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda.

D. CATHARINA.

Não... vinde cá... (Camões detem-se.) Enfadei-vos? Vinde um pouco mais perto. (Camões approxi-ma-se.) Que vos fiz eu? Duvidaes de mim?

CAMÕES.

Cuido que me querieis ausente.

D. CATHARINA.

Luiz ! (Inquieta.) Vede esta sala, estas paredes... falarmos a sós... Duvidaes de mim?

CAMÕES.

Não duvido de vós ; não duvido da vossa ternura; da vossa firmeza é que eu duvido.

D. CATHARINA.

Receiaes que fraqueie algum dia ?

CAMÕES.

Receio ; chorareis muitas lagrimas, muitas e amargas... mas, cuido que fraqueareis.

D. CATHARINA.

Luiz! juro-vos...

CAMÕES.

Perdoae, se vos offende esta palavra. Ella é sin-

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 0 1

cera; subiu-me do coração á boca. Não posso guardar a verdade; perder-me-hei algum dia por dizel-a sem rebuço. Assim me fez a natureza, assim irei á sepultura.

D. CATHARINA.

Não, não fraquearei, juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a affrontar tudo, até a cólera de meu pae. Vede lá, estamos a sós; se nos vira alguém... (Camões dá um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguém, defronte um do outro, no meio de uma sala deserta, que pen­saria? Não sei que pensaria; tinha medo ha pouco ; já não tenho medo... amor sim... O que eu tenho é amor, meu Luiz.

CAMÕES.

Minha boa Catharina.

D. CATHARINA.

Não me chameis boa, que eu não sei se o sou... Nem boa, nem má.

CAMÕES.

Divina sois !

D. CATHARINA.

Não me deis nomes que são sacrilégios.

CAMÕES.

Que outro vos cabe?

2 0 2 TU SÓ, TU, PURO AMOR..

D. CATHARINA.

Nenhum.

CAMÕES.

Nenhum ? — Simplesmente a minha doce e for­mosa senhora D. Catharina de Athayde, uma nym­pha do paço, que se lembrou de amar um triste escudeiro, sem reparar que seu pae a guarda para algum solar opulento, algum grande cargo de cama-reira-mór. Tudo isso havereis, emquanto qué o coi­tado de Camões irá morrer em África ou Ásia...

D. CATHARINA.

Teimoso sois ! Sempre essas idéias de África...

CAMÕES.

Ou Ásia. Que tem isso ? Digo-vos que, ás vezes, a dormir, imagino lá estar, longe dos galanteios da corte, armado em guerra, diante do gentio. Imagi-nae agora...

D. CATHARINA.

Não imagino nada; vós sois meu, tão só meu, tão somente meu. Que me importa o gentio, ou o Turco, ou que quer que é, que não sei, nem quero? Tinha que ver, se me deixaveis, para ir ás vossas Africas... E os meus sonetos? Quem m'os havia de fazer, meu rico poeta?

TU SO, TU, PURO AMOR. 203

CAMÕES.

Não faltará quem vol-os faça, e da maior perfeição.

D. CATHARINA.

Pôde ser; mas eu quero-os ruins, como os vos­sos... como aquelle da Circe, o meu retrato, disses-teis vós.

• CAMÕES, recitando.

Um mover de olhos, brando e piedoso, Sem ver de que ; um riso brando e honesto, Quasi forçado ; um doce e humilde gesto De qualquer alegria duvidoso...

D. CATHARINA.

Vão acabeis, que me obrigarieis a fugir de vexada.

CAMÕES.

De vexada ! Quando é que a rosa se vexou, porque o sol a beijou de longe?

D. CATHARINA.

Bem respondido, meu claro sol.

CAMÕES.

r. Deixae-me repetir que sois divina. Nathercia minha, pôde a sorte separar-nos, ou a morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida, no mais baixo estado, ou no cimo das grandezas humanas, não é assim ? Deixae-

2 0 4 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

me crêl-o, ao menos ; deixae-me crer que ha um vinculo secreto e forte, que nem os homens, nem a própria natureza poderia já destruir. Deixae-me crer... Não me ouvis ?

D. CATHARINA, enlevada.

Ouço, ouço.

CAMÕES.

Crer que a ultima palavra de vossos lábios será o meu nome. Será?... Tenha eu esta fé, e não se me dará da adversidade ; sentir-me-hei afortunado e grande. Grande, ouvis bem ? Maior que todos os demais homens.

D. CATHARINA.

Acabae!

CAMÕES.

Que mais ?

D. CATHARINA.

Não sei; mas é tão doce ouvir-vos ! Acabae, aca­bae, meu poeta! Ou antes, não, não acabeis; falae sempre, deixae-me ficar perpetuamente a escutar-vos.

k

CAMÕES.

Ai de nós! A perpetuidade é um simples instante,, um instante em que nos deixam sós n'esta sala! (D. Catharina afasta-se rapidamente.) Olhae; só a idéia do perigo vos arredou de mim.

TU SÓ, TU, PURO AMOR. 205

D. CATHARINA.

Na verdade, se nos vissem... Se alguém ahi, por esses reposteiros... Adeus...

CAMÕES.

Medrosa, eterna medrosa!

D. CATHARINA.

Pôde ser que sim; mas não está isso mesmo no meu retrato ?

Um encolhido ousar, uma brandura, Um medo sem ter culpa; um ar sereno, Um longo e obediente sofrimento...

CAMÕES.

Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, e o mágico veneno Que pôde transformar meu pensamento.

D. CATHARINA, indo <2 elle.

Pois então? A vossa Circe manda-vos que não duvideis d'ella, que lhe perdoeis os medos, tão próprios do logar e da condição ; manda-vos crer e amar. Se ella ás vezes foge, é porque a espreitam; se vos não responde, é porque outros ouvidos pode­riam escutal-a. Entendeis ? É o que vos manda dizer a vossa Circe, meu poeta... e agora... (Es­tende-lhe a mão.) Adeus!

12

206

CAMÕES.

Ides-vos ?

D. CATHARINA.

A rainha espera-me. Audazes fomos, Luiz. Não desafiemos o paço... que esses reposteiros...

CAMÕES.

Deixa-me ir ver!

D. CATHARINA, detendo-o.

Não, não. Separemos-nos.

CAMÕES.

Adeus! (D. Catharina dirige-se para a porta ia, esquerda; Camões olha para aporta da direita.)

D. CATHARINA.

Andae, andae!

CAMÕES.

Um instante ainda!

D. CATHARINA.

Imprudente! Por quem sois, ide-vos, meu Luiz!

CAMÕES.

A Rainha espera-vos!

D. CATHARINA.

Espera.

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 0 7

CAMÕES.

Tão raro é ver-vos !

D. CATHARINA.

Não affrontemos o céu... podem dar comnosco...

CAMÕES.

Que venham ! Tomara eu que nos vissem ! Bra­daria a todos o meu amor, e á fé que o faria res­peitar !

D. CATHARINA, afflicta, pegando-lhe na mão. Reparae, meu Luiz, reparae; onde estaes, quem

eu sou, o que são estas paredes... domae esse gênio ^arrebatado. Peço-vol-o eu. Ide-vos em boa paz, sim?

CAMÕES.

Viva a minha corça gentil, a minha timida corça! Ora vos juro que me vou, e de corrida. Adeus!

D. CATHARINA.

Adeus!

CAMÕES, com a mão delia presa.

• Adeus! ' D. CATHARINA.

Ide... deixae-me ir!

CAMÕES.

Hoje ha luar; se virdes um embuçado deante das vossas janellas, quedado a olhar para cima, des- v

2 0 8 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

confiae que sou eu; e então, já não é sol a beijar de longe uma rosa, é o goivo que pede calor a uma -estrella.

D. CATHARINA.

Cautela, não vos reconheçam.

CAMÕES.

Cautela haverei; mas que me reconheçam, que tem isso? embargarei a palavra ao importuno.

D. CATHARINA.

Socegae. Adeus

CAMÕES.

Adeus! (D. Catharina dirige-se para a porta da esquerda, e pára deante delia, á espera que Ca­mões saia. Camões corteja-a com um gesto gra­cioso, e dirige-se para o fundo. — Levanta-se o reposteiro da porta da direita, e apparece Cami-,. nha. — D. Catharina dá um pequeno grito, e sae precipitadamente. — Camões detem-se. Os dous homens olham-se por um instante.)

SCENA IX

CAMÕES, CAMINHA.

CAMINHA, entrando.

Discreteaveis com alguém, ao que parece...

TU SÓ, TU, PURO AMOR. 209

CAMÕES.

É verdade. CAMINHA.

Ouvi de longe a vossa fala, e reconheci-a. Vi logo que era o nosso poeta, de quem tratava ha pouco com alguns fidalgos. Sois o bem amado, entre os últimos de Coimbra. — Com què, discreteaveis.. Com alguma dama?

Com uma dama. CAMÕES.

CAMINHA.

i Certamente formosa, que não as ha de outra casta n'estes reaes paços. Sua Alteza, cuido que conti­nuará, e ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pae. Damas formosas, e, quanto possível, lettradas. São estes, dizem, os bons costumes ita­lianos. É vós, senhor Camões, porque não ides a Itália ?

CAMÕES.

Irei á Itália, mas passando por África.

CAMINHA.

Ah! ah! para lá deixar primeiro um braço, uma perna, ou um olho... Não, poupae os olhos, que são o feitiço d'essas damas da corte ; poupae também a mão, com que nos haveis de escrever tão lindos ver­sos; isto vos digo que poupeis...

12.

210 TU SO, TU, PURO AMOR..,

CAMÕES.

Uma palavra, senhor Pedro de Andrade, uma só palavra, mas sincera.

CAMINHA.

Dizei.

CAMÕES.

Dissimulaes algum outro pensamento. Revelae-n7o... intimo-vos que m'o reveleis.

CAMINHA.

Ide a Itália, senhor Camões, ide a Itália.

CAMÕES.

Não resistireis muito tempo ao que vos mando,

CAMINHA. ,

Ou a África, se o quereis... ou a Babylonia... A Babylonia é melhor ; levae a harpa ao desterro, mas em vez de a pendurar de um salgueiro, como na Escriptura, cantar-nos-heis a linda copia da gal-linha, ou comporeis umas outras voltas ao mote, que já vos serviu tão bem :

Perdigão perdeu a penna, Não ha mal que lhe não venha.

Ide a Babylonia, senhor Perdigão!

CAMÕES, pegando-lhe no pulso. Por vida minha, talae-vos !

TU SÓ, TU, PURO AMOR.. . 211

CAMINHA.

Vede o lugar em que estaes.

CAMÕES, solta-o.

Vejo ; vejo também quem sois ; só não vejo o que

odiaes em mim.

CAMINHA.

: Nada. CAMÕES.

Nada? CAMINHA.

Cousa nenhuma.

CAMÕES.

Mentis pela gorja, senhor camareiro.

CAMINHA.

Minto? Vede lá; ia-medeixando arrebatar, ia cons­purcando com alguma villania esta sala de El-rei. Retraí-me a tempo. Menti, dizeis vós? — Pôde ser que sim, porque eu creio que effectivamente vos odeio, mas só ha um instante, depois que me pa-gastes com uma injuria o aviso que vos dei.

CAMÕES.

Um aviso ?

CAMINHA.

Nada menos. Queria eu dizer-vos que as paredes do paço nem são mudas, nem sempre são caladas.

2 1 2 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

CAMÕES.

Não serão ; mas eu as farei caladas.

CAMINHA.

Pôde ser. Essa dama era...

CAMÕES.

Não reparei bem.

CAMINHA.

Fizestes mal; é prudência reparar nas damas; prudência e cortezia. Com qué, ides a África? Lá estão os nossos em Mazagão, commettendo façanhas contra essa canalha de Mafamede; imitae-os. Vede, não deixeis lá esse braço, com que nos haveis de calar as paredes e os reposteiros. É conselho de amigo.

CAMÕES.

Porque serieis meu amigo ?

CAMINHA.

Não digo que o seja; o conselho é o que é.

CAMÕES.

Credes, então... ?

CAMINHA.

Que poupareis uma grande dôr e um maior escân­dalo.

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 1 3

CAMÕES.

Percebo-vos. Imaginaes que amo alguma dama? Supponhamos que sim. Qual é o meu delicto? Em que ordenação, em que rescripto, em que bulla, em que escriptura, divina ou humana, foi já dado como delicto amarem-se duas creaturas ?

CAMINHA.

Deixae a corte. CAMÕES.

Digo-vos que não.

CAMINHA.

Oxalá que não!

CAMÕES, aparte. Este homem... que ha neste homem? lealdade ou

perfídia? (Alto) Adeus, senhor Caminha. (Pára no meio da scena.) Porque não tratámos de versos?... Fora muito melhor...

CAMINHA.

Adeus, senhor Camões. (Camões sae.)

SCENA X

CAMINHA, logo D. CATHARINA DE ATHAYDE

CAMINHA.

Ide, ide, magro poeta de camarins... (Desce ao proscênio) Era ella, de certo, era ella que ahi estava

'214 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

com elle, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos... Oh temeridade do amor ! Do amor?... elle...*! elle... Mas seria ella deveras"?... Que outra podia ser?

D. CATHARINA, espreita e entra.

,Senhor... senhor!..,.

CAMINHA.

Ella!

D. CATHARINA.

Ouvi tudo... tudo o que lhe dissestes... e peço-vos que não nos façaes mal. Sois amigo de meu pae, elle é vosso amigo; não lhe digaes nada. Fui im­prudente, fui, mas que quereis? (Vendo que Cami­nha não diz nada) Então? falae... poderei contar comvosco ?

CAMINHA.

Commigo? (D. Catharinha, inquieta e afflicta,. pega-lhe na mão; elle retira-lWa com aspereza}. Contar commigo! Para que, minha senhora D. Ca­tharina? Amaes um mancebo digno, porque vós o amaes... muito, não?

D. CATHARINA.

Muito.

CAMINHA.

Muito! Muito, dizeis... E éreis vós que estáveis aqui, com elle, nesta sala solitária, juntos um do

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 1 5

outro, a falarem naturalmente do céu e da terra... ou só do céu, que é a terra dos namorados. Que dizieis?...

D. CATHARINA, baixando os olhos.

Senhor...

CAMINHA.

Galanteios, galanteios, de que se ha de falar lá fora... (Gesto de D. Catharina) Ah ! Cuidaes que estes amores nascem e morrem no paço ? — Não; passam além; descem á rua, são o mantimento dos ociosos, e ainda dos que trabalham, porque, ao serão, principalmente nas noites de inverno, em que se ha de occupar a gente, depois de fazer as suas orações? Com quê, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava, porque não podia talvez ser outra...E confessaes que lhe quereis muito. Muito?

D. CATARINA.

Pôde ser fraqueza; mas crime... onde está o,crime?

CAMINHA.

0 crime está em deshonrar as cans de um nobre homem, arrastando-lhe o nome por viélas e praças ; o crime está em escandalisar a corte, com essas ter-nuras, impróprias do alto cargo que exerceís, do vosso sexo e estado... esse é o crime. E parece-vos fequeno ?

216

D. CATHARINA.

Bem ; desculpae-me, não direis nada...

CAMINHA.

Não sei.

D. CATHARINA.

Peço-vol-o... de joelhos até... (Faz um gesto para ajoelhar-se, elle impede-Wo.)

CAMINHA.

Perdereis o tempo ; eu sou amigo de vosso pae. J

D. CATHARINA.

Contar-lhe-heis tudo ?

CAMINHA.

Talvez.

D. CATHARINA.

Bem m'o diziam sempre; sois inimigo de Camões.4

CAMINHA.

E sou.

D . CATHARINA.

Que vos fez elle?

CAMINHA.

Que me fez? (Pausa) D. Catharina de Athayde, quereis saber o que me fez o vosso Camões? Não é só a sua soberba que me affronta'; fosse só isso, eã

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 1 7

que me importava um frouxo cirzidor de palavras, sem arte, nem conceito ?

D. CATHARINA.

Acabae.

CAMINHA.

Também não é porque elle vos ama, que eu o Íodeio; mas vós, senhora D. Catharina de Athayde, vós o amaes... eis o crime de Camões. Entendeis?

D. CATHARINA, depois de um instante de assombro.

Não quero entender.

CAMINHA.

Sim, que também eu vos quero, ouvis? — E quero-vos muito... mais do que elle, e melhor do que «He; porque o meu amor tem o impulso do ódio, nutre-se do silencio, o desdém o avigora, e não faço alarde nem escândalo; é um amor...

D . CATHARINA.

Caláe-vos! Pela Virgem, calae-vos!

CAMINHA.

1 Que me cale? Obedecerei. (Faz uma reverencia) Mandaes alguma outra cousa ?

D . CATHARINA.

si Não, ficae. Jurae-me que não direis cousa ne­nhuma...

13

2 1 8 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

CAMINHA.

Depois da confissão que vos fiz, esse pedido chega a ser mofa. Que não diga nada? Direi tudo, revelarei tudo a vosso pae. Não sei se a acção é má ou bôa; sei que vos amo, e que detesto esse rufião, a quem vadios deram foros de lettrado.

D. CATHARINA.

Senhor ! É de mais !...

CAMINHA.

Defendeil-o, não é assim?

D. CATHARINA.

Odeae-o, se vos apraz; insultal-o, é que não é de1

cavalleiro...

CAMINHA.

Que tem ? O amor despresado sangra e fere.

D. CATHARINA.

Deixae que lhe chame um amor villão.

CAMINHA.

Sois vós agora que me injuriaes. Adeus, senhora D. Catharina de Athayde! (Dirige-se para o fundo.)

D. CATHARINA, tomando-lhe o passo.

Não! Agora não vos peço... intimo-vos que vos, caleis.

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 1 9

CAMINHA.

Que recompensa me daes ?

D. CATHARINA.

A vossa consciência.

CAMINHA.

Deixae em paz os que dormem. Não vos peço nada. Quereis que vos prometta alguma cousa? Uma só cousa prometto; não contar a vosso pae o que se passou. Mas, se por denuncia ou desconfiança, fôr interrogado por elle, então lhe direi tudo. E duas vezes farei bem : — não faltarei á verdade, que é dever de cavalleiro; e depois... chorareis lagrimas de sangue; e eu prefiro ver-vos chorar a ver-vos sorrir. A vossa angustia será a minha consolação. Onde fallecerdes de pura saudade, ahi me glorifi-jarei eu. Chamae-me agora perverso, se o quereis, eu respondo que vos amo... e que não tenho outra firtude. (Vae a sair, encontra-se com D. Francisca ie Aragão ; corteja-a e sae.)

SCENA XI

D. CATHARINA DE ATHAYDE, D. FRANCISCA DE A R A G Ã O

D. FRANCISCA.

. Vae affrontado o nosso poeta. Que terá elle? (Re-

2 2 0 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

parando em D. Catharina) Que tendes vós?... que foi?

D. CATHARINA.

Tudo sabe.

D. FRANCISCA.

Quem?

D. CATHARINA.

Esse homem. Achou-nos n'esta sala ; eu tive medo ; disse-lhe tudo.

D. FRANCISCA.

Imprudente!

D. CATHARINA.

Duas vezes imprudente; dei-me estar ao lado do meu Luiz, a ouvir-lhe as palavras tão nobres, tão apaixonadas... eo tempo corria... e podiam esprei­tar-nos... Credes que o Caminha diga alguma cousa a meu pae ?

D. FRANCISCA.

Talvez não.

D. CATHARINA.

Quem sabe? Elle ama-me.

D. FRANCISCA.

O Caminha?

D. CATHARINA.

Disse-m'o agora. Que admira? acha-me formosa,

TU SO, TU, PURO AMOR. 221

como os outros. Triste dom é esse. Sou formosa para não ser feliz, para ser amada ás occultas, odiada ás escancaras, e, talvez... Se meu pae vier a saber... que fará elle, amiga minha ?

D. FRANCISCA.

0 senhor D. Antônio é tão severo!

D. CATHARINA.

Irá ter com El-iei, pedir-lhe-ha que o castigue, que o encarcére, não? E por minha causa... Não; primeiro irei eu... (Dirige-separa aporta da direita).

D. FRANCISCA.

Onde ides ?

D. CATHARINA.

Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se para a porta da esquerda). Vou ter com a rainha; contar-lhe-hei tudo; ella me amparará. Credes que não?

D . FRANCISCA.

Creio que sim.

D. CATHARINA.

Irei, ajoelhar-me-hei a seus pés. Ella é rainha, mas é também mulher... e ama-me. (Saepela esquerda.)

2 2 0 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

parando em D. Catharina) Que tendes vós?... que foi?

D. CATHARINA.

Tudo sabe.

D. FRANCISCA.

Quem?

D. CATHARINA.

Esse homem. Achou-nos n'esta sala ; eu tive medo ; disse-lhe tudo.

D. FRANCISCA.

Imprudente!

D. CATHARINA.

Duas vezes imprudente; dei-me estar ao lado do meu Luiz, a ouvir-lhe as palavras tão nobres, tão apaixonadas... eo tempo corria... e podiam esprei­tar-nos... Credes que o Caminha diga alguma cousa a meu pae ?

D. FRANCISCA.

Talvez não.

D. CATHARINA.

Quem sabe? Elle ama-me.

D. FRANCISCA.

O Caminha?

D. CATHARINA.

Disse-nfo agora. Que admira? acha-me formosa,.:

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 2 1

como os outros. Triste dom é esse. Sou formosa para não ser feliz, para ser amada ás occultas, odiada ás escancaras, e, talvez... Se meu pae vier a saber... que fará elle, amiga minha ?

D. FRANCISCA. »

0 senhor D. Antônio é tão severo!

D. CATHARINA.

Irá ter com El-iei, pedir-lhe-ha que o castigue, que o encarcére, não? E por minha causa... Não; primeiro irei eu... (Dirige-separa aporta da direita).

D. FRANCISCA.

Onde ides?

D. CATHARINA.

Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se para a porta da esquerda). Vou ter com a rainha; contar-lhe-hei tudo; ella me amparará. Credes que não?

D. FRANCISCA.

Creio que sim.

D. CATHARINA.

Irei, ajoelhar-me-hei a seus pés. Ella é rainha, mas é também mulher... e ama-me. (Saepela esquerda.)

2 2 2 TU SÓ, TU, PURO AMOR..

SCENA XII

D. FRANCISCA DE ARAGÃO, D. ANTÔNIO DE LIMA, depois D. MANOEL DE PORTUGAL.

D. FRANCISCA, depois de um instante de reflexão.

Talvez chegue cedo de mais. (Dá um passo para aporta da esquerda.) Não; melhor é que lhe fale... mas, se se aventa a noticia? Meu Deus, não sei... não sei... Ouço passos... (Entra D. Antônio de Lima). Ah!

D. ANTÔNIO.

Que foi ? D. FRANCISCA.

Nada, nada... não sabia quem era. Sois vós... (Risonha.) Chegaram galeões da Ásia ; boas noticias, dizem...

D. ANTÒNIO, sombrio.

Eu não ouvi dizer nada. (Querendo retirar-se.) Permittis?...

D. FRANCISCA.

Jesus! Que tendes?... que ar é esse? (Vendo entrar D. Manoel de Portugal.) Vinde cá, senhor. D. Manoel de Portugal, vinde saber o que tem este meu bom e velho amigo, que me não quer... (Segu-, rondo na mão de D. Antônio.) Então, eu já não sou a vossa frescura de Maio ?...

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 2 3

D. ANTONIO, sorrindo, a custo.

Sois, sois. Manhosamente subtil, ou subtilmente manhosa, á escolha ; eu é que sou uma triste seccura ie Dezembro, que me vou e vos deixo. Permittis, lão? (Corteja-a e dirige-se para a porta.)

D. MANOEL, interpondo-se.

Deixae que vos levante o reposteiro. (Levanta o •eposteiro.) Ides ter com Sua Alteza, supponho?

D. ANTÔNIO.

Vou. D. MANOEL.

Ides levar-lhe noticias da índia ?

D. ANTONIO.

Sabeis que não é o meu cargo...

D. MANOEL.

Sei, sei; mas' dizem que... Senhor D. Antonio, icho-vos o rosto annuviado, alguma cousa vos pena-isa ou turva. Sabeis que sou vosso amigo ; perdoae ievos interrogo. Que foi? que ha?

D. ANTONIO, gravemente.

Senhor D. Manoel, tendes vinte e sete annos, eu :onto sessenta; deixae-me passar. (D. Manoel nclina-se, levantando o reposteiro. D. Antonio lesapparece.)

C; í 3 õ *"Sí£Ki»P

2 2 4 TU SO, TU, PURO AMOR...

SCENA XIII

D. MANOEL DE PORTUGAL, D. FRANCISCA DE ARAGÃO.

D. MANOEL.

Vae dizer tudo a El-rei.

D. FRANCISCA.

Credes? D. MANOEL.

Camões contou-me o encontro que tivera com o Caminha aqui; eu ia falar ao senhor D. Antonio; achei-o agora mesmo, ao pé de uma janella, com o dissimulado Caminha, que lhe dizia ? « Não vos nego, senhor D; Antonio, que os achei naquella sala, a sós, e que vossa filha fugiu desde que eu lá entrei. »

D. FRANCISCA.

Ouvistes isso?

D. MANOEL.

D. Antônio ficou severo e triste. « Querem escân­dalo?... » foram as suas palavras. E não disse outras; apertou a mão ao Caminha, e seguiu para cá... Penso que foi pedir alguma cousa a El-rei. Talvez o desterro.

D. FRANCISCA.

O desterro?

TU SÓ, TU, PURO AMOR... 2 2 5

D. MANOEL.

Talvez. Camões ha de voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao senhor D Antonio. Para que? Que outros lhe falem sim : mas o meu Luiz que não sabe conter-se... D. Catharina?

D. FRANCISCA.

Foi lançar-se aos pés da rainha, a pedir-lhe pro-tecção.

D. MANOEL.

Outra imprudência. Foi ha muito?

D. FRANCISCA.

Pouco ha.

D. MANOEL.

Ide ter com ella, se é tempo, e dizei-lhe que não, que não convém falar nada. (D. Francisca vae a sair, e pára.) Becusaes?

D. FRANCISCA.

Vou, vou. Pensava commigo uma cousa. (D. Manoel vae a ella.) Pensava que é preciso querer muito aquelles dois para nos esquecermos assim de nós.

D. MANOEL.

É verdade. E não ha mais nobre motivo da nossa mutua indifferença. Indifferença, não; não o é, nem o podia ser nunca. No meio de toda essa angustia que nos cerca, poderia eu esquecer a minha doce

13.

2 2 6 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

Aragão? Podereis vós esquecer-me? Ide agora, nós que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados. (D. Francisca sae pela esquerda.)

SCENA XIV

D. MANOEL DE PORTUGAL, logo D. ANTONIO DE LIMA.

D. MANOEL.

Se perco o confidente dos meus amores, da minha mocidade, o meu companheiro de longas horas... Não é impossivel. — El-rei concederá o que lhe pedir D. Antonio. A culpa, — força é confessal-o — a culpa é d'elle, do meu Camões, do meu impetuoso poeta ; um coração sem fveio... (Abre-se o reposteiro, apparece D. Antonio.) D. Antonio!

D. ANTONIO, da porta, jubiloso.

Interrogastes-me ha pouco ; agora hei tempo de vos responder.

D. MANOEL.

Talvez não seja preciso.

D. ANTONIO, adianta-se.

Adivinhaes então?

D. .1!ANt1 KL.

Pôde ser que sim.

1U SO, TU, PURO AMOR. 227

D . ANTONIO.

Creio que adivinhaes.

D . MANOEL.

Sua Alteza concedeu-vos o desterro de Camões.

- D. ANTÔNIO.

Esse é o nome da pena; a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um vassallo, e a paz a um ancião.

D. MANOEL.

Senhor D. Antonio...

D . ANTÔNIO.

Nem mais uma palavra, senhor D. Manoel de Por­tugal, nem mais uma palavra. — Mancebo sois; é natural que vos ponhaes do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o respeito. Até á vista, senhor D. Manoel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo para sair.)

D. MANOEL.

Se mataes vossa filha'?

D. ANTÔNIO.

Não a matarei. Amores fáceis de curar são esses que ahi brotam no meio de galanteios e versos. Versos curam tudo. Só não curam a honra os versos; mas para a honra dá Deus um rei austero, e um pae

2 2 8 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

inflexível... Até á vista, senhor D. Manoel. (Saepela esquerda.)

SCENA XV

D. MANOEL DE PORTUGAL, CAMÕES.

D. MANOEL.

Perdido... está tudo perdido. (Camões entra pela fundo.) Meu pobre Luiz! Se soubesses...

CAMÕES.

Que ha?

D . MANOEL.

El-rei... El-rei attendeu ás supplicas do Senhor D. Antonio. Esti tudo perdido.

CAMÕES

E que pena me cabe ?

I). MANOEL,

Desterra-vos da corte.

CAMÕES.

Desterrado! Mas eu vou ter com Sua Alteza, eu direi...

D. MANOEL, aquietando-o.

Não direis nada; não tendes mais que cumprir a

TU SO, TU, PURO AMOR... 2 2 9

real ordem ; deixae que os vossos amigos façam alguma cousa ; talvez logrem abrandar o rigor da pena. Vós não fareis mais do que aggraval-a.

CAMÕES. /

Desterrado! E para onde?

D. MANOEL.

Não sei. Desterrado da corte é o queé certo. Vede... não ha mais demorar no paço. Saiamos.

CAMÕES.

Ahi me vou eu, pois, caminho do desterro, e não sei se da miséria! Venceu então o Caminha? Talvez os versos d'elle fiquem assim melhores. Se nos vae dar uma nova Eneida, o Caminha? Pôde ser, tudo pôde ser... Desterrado da corte! Cá me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crède, senhor D. Manoel, podeis crer que as mais fundas saudades cá me ficam.

D . MANOEL.

Tomareis, tomareis...

CAMÕES.

E ella? Já o saberá ella?

D. MANOEL.

Cuido que o senhor D. Antonio foi dizer-lh'o em pessoa. Deus! Ahi vem elles.

2 3 0 TU SÓ, TU, PURO AMOR...

SCENA XVI

Os MESMOS, D. ANTONIO DE LIMA, D. CATHARINA DE ATHAYDE.

(D. Antonio apparece á porta da esquerda, trazendo D. Catharina pela mão. — D. Catharina vem pro­fundamente abatida.)

D. CATHARINA, aparte, vendo Camões.

Elle! Dae-me forças, meu Deus! (D. Antonio cor­teja os dois, e segue na direcção do fundo. Camões dá um passo para falar-lhe, mas D.Manoel contem-rio. D. Catharina, prestes a sair, volve a cabeça para traz.)

SCENA XVII

D. MANOL DE PORTUGAL, CAMÕES.

CAMÕES.

Ella ahi vae... talvez para sempre... Credes que para sempre?

D . MANOEL.

Não. Saiamos! CAMÕES.

Vamos lá; deixemos estas salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e olhando para dentro.) Ella ahi vae, à minha estrella, ahi vae a resvalar

231

no abysmo, d'onde não sei se a levantarei mais... Nem eu... (voltando-se para D. Manoel) nem vós, meu amigo, nem vós que me quereis tanto, ninguém.

D . MANOEL.

Desanimaes depressa, Luiz. Porque ninguém?

• CAMÕES.

Não saberia dizer-vos ; mas sinto o aqui no cora­ção. Essa clara luz, essa doce madrugada da minha vida, apagou-se agora mesmo, e de uma vez.

D. MANOEL.

Gonfiae em mim, nos meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com elles; induzil-os-hei a...

. CAMÕES.

A que? A mortificarem um camareiro-mór, afim. de servir um triste escudeiro, que já estará caminho de África ?

D . MANOEL.

Ides a África?

CAMÕES.

Pôde ser; sinto umas tonteiras africanas. Pois que me fecham a porta dos amores, abrirei eu mesmo as da guerra. Irei lá pelejar, ou não sei se morrer... África, disse eu ? Pôde ser que Ásia também, ou Ásia só; o que me der na imaginação.

D . MANOEL.

Saiamos.

2 3 2 TU SO, TU, PURO AMOK...

CAMÕES.

E agora, adeus, infiéis paredes; sede ao menos compassivas; guardae-m'a, guardae-m'a bem, a minha formosa D. Catharina! (A D. Manoel) Credes que tenho vontade de chorar?

D. MANOEL.

Saiamos, Luiz!

CAMÕES.

E não choro, não; não choro... não quero... (For-cejando por ser alegre.) Vedes? até rio! Vou-me para bem longe. Considerando bem, Ásia é melhor; lá rematou a audácia luzitana o seu edifício, lá irei escutar o rumor dos passos do nosso Vasco. E este sonho, esta chimera, esta cousa que me flammeja cá dentro, quem sabe se... Um grande sonho, senhor D. Manoel... Vede lá, ao longe, na immensidade d'esses mares, nunca d'antes navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da aurora, coroada de palmas indianas? É a nossa gloria, é a nossa gloria que alonga os olhos, como a pedir o seu esposo Occidental. E nenhum lhe vae dar o osculo que a fecunde; nenhum filho d'esta terra, nenhum que empunhe a tuba da immortalidade, para dizel-a aos quatro ventos do céu... Nenhum... (Vae amortecendo' a voz.) Nenhum... (Pausa, fita D. Manoel como se acordasse e dá de hombros.) Uma grande chimera, senhor D. Manoel. Vamos ao nosso desterro.

ENTRE 1892 E 1894

Entre 1892 e 1894

V.E SOLI!

1892, Julho.

Um dia d'esta semana, farto de vendavaes, nau­frágios, boatos, mentiras, polemicas, farto de ver como se descompõem os homens, accionistas e direc tores, importadores e industriaes, farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um silencio sem quietação, peguei de uma pagina de annuncios, e disse commigo :

— Eia, passemos'em revista as procuras e offer-tas, caixeiros desempregados, pianos, magnesias, sabonetes, officiaes de barbeiro, casas para alugar, amas de leite, cobradores, coqueluche, hypothecas, professores, tosses chronicas...

E o meu espirito, estendendo e juntando as mãos e os braços, como fazem os nadadores, que caem do alto, mergulhou por uma columna abaixo. Quando voltou á tona, trazia entre os dedos esta pérola :

2 3 6 ENTRE iOi*.i Ü íaox

« Uma viuva interessante, distincta, de boa familia e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia idade, sério, instruído, e também com meios de vida, que esteja como ella cançado de viver só; resposta por carta ao escriptorio d'esta folha, com as iniciaes M. R..., annunciando, afim de ser procurada essa carta. »

Gentil viuva, eu não sou o homem que procuras, mas desejava ver-te, ou, quando menos, possuir o teu retrato, porque tu não és qualquer pessoa, tu vales alguma cousa mais que o commum das mu­lheres. Ai de quem está só! dizem as sagradas let­tras; mas não foi a religião que te inspirou esse annuncio. Nem motivo theologico, nem metaphysico. Positivo também não, porque o positivismo é infenso ás segundas nupcias. Que foi então, senão a triste, longa e aborrecida experiência? Não queres amar; estás cançada de viver só.

E a cláusula de ser o esposo outro aborrecido, farto de solidão, mostra que tu não queres enganar, nem sacrificar ninguém. Ficam desde já excluídos os sonhadores, os que amem o mysterio e procurem justamente esta occasião de comprar um bilhete na loteria da vida. Que não pedes um dialogo de amor, é claro, desde que impões a cláusula da meia idade, zona em que as paixões arrefecem, onde as flores vão perdendo a côr purpurea e o viço eterno. Não ha de ser um naufrago, á espera de uma taboa de salvação, pois que exiges que também possua. E ha de ser

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fmstruido, para encher com as luzes do espirito as •longas noites do coração, e contar (sem as mãos •presas) a tomada de Constantinopla. f Viuva dos meus peccados, quem és tu que sabes tanto? 0 teu annuncio lembra a carta de certo capi­tão da guarda de Nero. Rico, interessante, aborre­cido, como tu, escreveu um dia ao grave Seneca, per-guntando-lhe como se havia de curar do tédio que sentia, e explicava-se por figura : « Não é a tempes­tade que me afflige, é o enjôo do mar. » Viuva minha, o que tu queres realmente, não é um marido, é um remédio contra o enjôo. Vès que a travessia ainda é longa, — porque a tua idade está entre trinta e dous e trinta e oito annos, — o mar é agi­tado, o navio joga muito; precisas de um preparado para matar esse mal cruel e indefinivel. Não te con-tentaes com o remédio de Seneca, que era justamente a solidão « a vida retirada, em que a alma acha todo o seu socego ». Tu já provaste esse preparado; não te fez nada. Tentas outro; mas queres menos um companheiro que uma companhia.

Pôde ser que a esta hora já tenhas achado o esposo nas condições definidas. Não estás ainda casada, porque é preciso fazer correr os pregões, e tens alguns dias diante de ti, para examinar bem o homem. Lembra-te de Xisto V, amiga minha; não vá elle sair, em vez de um coração arrimado á ben­gala, um coração com pernas, e umas pernas com músculos e sangue; não vás tu ouvir, em vez da

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tomada de Constantinopla, a queda de Margarida nos braços de Fausto. Ha d'esses corações, nevados por cima, domo estão agora as serras do Itatiaya e de Itajubá, e contendo em si as lavas que o Etna está cuspindo desde alguns dias.

Mas, se elle te sair o que queres, que grande prê­mio de loteria! Junto á amurada do navio, vendo a fúria do mar e dos ventos, tu ouvirás muitas cousas serias e graciosas a um tempo, seguindo com os olhos" a fúria dos ventos e o tumulto das ondas, livre do enjôo, como pedia aquelle capitão de Nero, e por differente regimen do que lhe aconselhou o phi­losopho. E a tua conclusão será como a tua premissa; em caso de tédio, antes um marido que nada.

SALTEADORES DA THESSALIA

1893, Novembro.

Tudo isto cança, tudo isto exhaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma,palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céo azul ou embruscado, as estrellas e as nuvens, o gallo da madrugada, é tudo a mesma cousa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete medico, este vende, aquelle compra,

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iquelle outro empresta, emquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopra ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Todo isto qança, tudo isto exhaure.

Tal era a reflexão que eu fazia commigo, quando me trouxeram os jornaes. Que me diriam elles que não fosse velho? A guerra é velha, quasi tão velha como a paz. Os próprios diários são decrépitos. A primeira chronica do mundo é justamente a que conta a primeira semana delle, dia por dia, até o sé­timo em que o Senhor descançou. 0 chronista bíblico omitte a causa do descanço divino; podemos suppòr que não foi outra senão o sentimento da caducidade da obra.

Repito, que me trariam os diários? As mesmas noticias locaes e estrangeiras, os furtos do Rio e de Londres, as damas da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma tempestade em Chicago, as cebolas do Egypto, os juizes de Berlim, a paz de Var-sovia, os Mysterios de Pariz, a Lua de Londres, o Carnaval de Veneza... Abri-os sem curiosidade, li-os sem interesse, deixando que os olhos caíssem pelas columnas abaixo, ao peso do próprio fastio. Mas os diabos estacaram de repente, leram, releram e mal puderam crer o que liarn. Julgai por vós mesmos.

Antes de ir adiante, é preciso saber a idéia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador. Provavelmente, é a vossa. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar os seus impostos e

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leis. É um cidadão ordeiro, ora implacável e violento, ora tolerante e brando, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras do governo, os de-veres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o contrario. O officio d'este é justamente infringir as leis que o outro decreta. Inimigo d'ellas, contrario á sociedade e á humanidade, tem por gosto, pratica e religião tirar a bolsa aos homens, e, se fôr preciso, a vida. Foge naturalmente aos tribunaes, e, por ante­cipação, aos agentes de policia. A sua arma é uma espingarda; para que lhe serviriam pennas, a não serem de ouro? Uma espingarda, um punhal, olho vivo, pé leve, e matto, eis tudo o que elle pede ao céo. O mais é com elle.

Dadas estas noções elementares, imaginai com que alvoroço li esta noticia de uma de nossas folhas : « Na Grécia foi preso o deputado Talis, e expediu-se ordem de prisão contra outros deputados, por faze­rem parte de uma quadrilha de salteadores, que infesta a provincia da Thessalia. » Dou-vos dez mi­nutos de incredulidade para o caso de não haverdes lido a noticia; e, se vós accommodaes da monotonia da vida, podeis clamar contra semelhante accumula-ção. Chamai barbara á moderna Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime.

Sim, essa mistura de discurso e carabina, esse apoiar o ministério com um voto de confiança ás duas horas da tarde, e ir espreital-o ás cinco, á beira da estrada, para tirar-lhe os restos do subsidio, não

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i commum, nem rara, é única. As instituições parla-nentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao contrario, quaesquer que sejam as mo-lificações de clima, de raça ou de costumes, o regi-nen das câmaras differe pouco, e, ainda que diffira nuito, não irá ao ponto de pôr na mesma curul Catão i Caco. Ha alguma cousa nova debaixo do sol.

Durante meia hora fiquei como fora de mim. A situação é, na verdade, aristophanesca. Só a mão de jrande cômico podia inventar e cumprir tão extraor-linaria facecia. A folha que dá a noticia, não conta lada da provável confusão de linguagem que ha de laver nos dous officios. Quando algum d'aquelles leputados tivesse de falar na câmara, em vez de )edir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a dda. Vice-versa, aggredindo um viajante, pedir-he-hia dous minutos de attenção. E nada ficaria, em íbsoluto,'fora do seu logar; com dous minutos de ittenção se tira o relógio a um homem, e mais de um ia câmara preferiria entregar a bolsa a ouvir um liscurso.

Mas, por todos os deuses do Olympo! não ha gosto jerfeito na terra. No melhor da alegria, acudiu-me á embrança o livro de Edmond About, onde me pare-:eu que havia alguma cousa semelhante á noticia, lorri a elle; achei a scena dos maniotas, que amea-:avam brandamente um dos amigos do autor, se hes não desse uma pequena quantia. 0 chefe do frupo era empregado subalterno da administração

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local. About chega, ameaça por sua vez os homens. e, para assustal-os, cita o nome de um deputado para quem levava carta de recommendação. « Fulano! exclamou o chefe da quadrilha, rindo; conheço muito, é dos nossos. »

Assim, pois, nem isto é novo! Já existia ha qua­renta annos! A novidade está no mandado de prisão, se é a primeira vez que elle se expede, ou se até agora os homens faziam um dos dous officios dis­cretamente. Fiquei triste. Eis ahi, tornamos á velha divisão de classes, que a terra de Homero podia des­truir pela fôrma audaz de Talis. Ahi volta a mono­tonia das funcções separadas, isto é, uma restricção á liberdade das profissões. A própria poesia perde com isto; ninguém ignora que o salteador, na arte, é um caracter generoso e nobre. Talis, se é assim que se lhe escreve o nome, pôde ser que tivesse ganho um par de sapatos a tiro de espingarda; mas estou certo que proporia na câmara uma pensão á viuva da victima. São duas operações diversas, e a diversidade é o próprio espirito grego. Adeus, minha illusão de um instante! Tudo continua a ser velho; nihil sub sole novum.

Eu pediria o perdão de Talis, se pudesse ser ouvido. Condemnem os demais, se querem, mas deixem um, Talis ou outro qualquer, um funccio-nario duplo, que tire ao parlamento grego o aspecto de uma instituição aborrecida. Que a Hellade deite os ministérios abaixo, se lhe apraz, mas não atire ás

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águas do Eurotas um elemento de aventura e de poesia. Acabou com o turco, acabe com este moder­nismo, que é outro turco, differente do primeiro em não ser silencioso. Não esqueça que Byron, um dos seus grandes amigos, deixou o parlamento britannico para fugir á discussão da resposta á fala do throno. E repare que não ha, entre os seus poemas, nenhum que se chame 0 presidente do conselho, mas ha um que se chama 0 Corsário.

O SERMÃO DO DIABO

1893, Setembro.

Nem sempre respondo por papeis velhos; mas aqui sstá um que parece authentico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evan­gelho do Diabo, justamente um sermão da monta­nha, á maneira de S Matheus. Não se apavorem as limas catholicas. Já Santo Agostinho dizia que « a greja do Diabo imita a igreja de Deus. » D'ahi a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do )iabo.

« 1.° E vendo o Diabo a grande multidão de povo, iubiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois le se ter sentado, vieram a elle os seus discípulos.

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« 2." E elle, abrindo a bocca, ensinou dizendo as palavras seguintes.

« 3.° Bemaventurados aquelles que embaçam, porque elles não serão embaçados.

« 4.° Bemaventurados os afoutos, por que elles possuirão a terra.

« S.° Bemaventurados os limpos das algibeiras, porque elles andarão mais leves.

« 6.° Bemaventurados os que nascem finos, por­que elles morrerão grossos.

« 1.° Bemaventurados sois, quando vos injuria­rem e disserem todo o mal, por meu respeito.

« 8." Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.

« 9.° Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra cousa se ha de sal­gar?

« 10. Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela accesa debaixo de um chapéo, pois assim se perdem o chapéo e a vela.

«11. Não julgueis que vim destruir as obras im­perfeitas, mas refazer as desfeitas.

«12. Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se concertam, e se não fôr com remendo da mesma côr, será com re­mendo de outra côr.

« 13. Ouvistes que foi dito aos homens : Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos : Comei-vos uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o

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ombo alheio é muito mais nutritivo que o próprio. « 14. Também foi dito aos homens : não matareis

i vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não ;ejaes castigados. Eu digo-vos que não é preciso natar a vosso irmão para ganhardes o reino da erra; basta arrancar-lhe a ultima camisa.

« 15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, 3 te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado le ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao en­contro de teu irmão na rua, restitue-lhe a confiança, B tira-lhe o que elle ainda levar comsigo.

« 16. Igualmente ouvistes que foi dito aos ho­mens : Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os teus juramentos.

« 11. Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade núa e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a pro­pósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos ac-cenderão velas.

«18. Não façaes as vossas obras diante de pes­soas que possam ir contal-o á policia.

« 19. Quando, pois, quizerdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito hábil, que faça treze de cinco e cinco.

« 20. Não queiraes guardar para vós thesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e d'onde os ladrões os tiram e levam.

14.

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« 2 1 . Mas remettei os vossos thesouros para al­gum banco de Londres, onde a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vel-os no dia do juizo.

« 22. Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é capaz de comer o seu visinho, e boa cara não quer dizer bom negocie.

« 23. Vendei gato por lebre, e concessões ordiná­rias por excellentes, afim de que a terra se não des-. povoe das lebres, nem as más concessões pereçam nas vossas mãos.

« 24. Não queiraes julgar para que não sejais jul­gados; não examineis os papeis do próximo para que elle não examine os vossos, e não resulte irem os dous para a cadeia, quando é melhor não ir ne­nhum.

« 25. Não tenhaes medo ás assembléas de accio-nistas, e affagai-as de preferencia ás simples com-missões, porque as commissões amam a vangloria eas assembléas as boas palavras.

« 26. As porcentagens são as primeiras flores do capital; cortai-as logo, para que as outras flores brotem mais viçosas e lindas.

« 27. Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contas contadas, e perpétuas as contas que se não contam.

« 28. Deixai falar os accionistas prognósticos; uma vez alliviados, assignam de boa vontade.

« 29. Podeis excepcionalmante amar a um homem

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que vos arranjou um bom negocio; mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardesjuntos.

« 30. Todo aquelle que ouve estas minhas pala­vras, e as observa, será comparado ao homem sá­bio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrario do homem sem consideração, que edi­ficou sobre a arêa, e fica o ver navios... »

Aqui acaba o manuscripto que me foi trazido pelo próprio Diabo, ou alguém por elle; mas eu creio que era o próprio. Alto, magro, barbicula ao queixo, ar de Mephistopheles. Fiz-lhe uma cruz com os dedos e elle sumiu-se. Apezar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas doutrinas, nem pelos erros de cópia.

A SCENA DO CEMITÉRIO

1894, Junho.

Não mistureis alhos com bugalhos; é o melhor conselho que posso dar ás pessoas que lêem de noite na cama. A noite passada, por infringir essa regra, tive um pesadelo horrivel. Escutai; não perdereis os cinco minutos de audiência.

Foi o caso que, como não tinha acabado de ler os jornaes de manhã, fil-o á noite. Pouco já havia que

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ler, três noticias e a cotação da praça. Noticias da manhã, lidas á noite, produzem sempre o effeito de modas velhas, d'onde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que apparecem. A co­tação da praça, comquanto tivesse a mesma feição, não a li com igual indifferença, em razão das recor­dações que trazia do anno terrível (1890-91). Gastei mais tempo a lel-a e relel-a. Afinal puz os jornaes de lado, e, não sendo tarde, peguei de um livro, que acertou de ser Shakspeare. 0 drama era Hamlet. A pagina, aberta ao acaso, era a scena do cemitério, acto V Não ha que dizer ao livro nem á pagina; mas essa mistura de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom; eram alhos com bugalhos.

Succedeu o que era de esperar; tive um pesadelo. A principio, não pude dormir; voltava-me de um lado para outro, vendo as figuras de Hamlet e de Horacio, os coveiros e as caveiras, ouvindo a bailada e a conversação. A muito custo, peguei no somno. Antes não pegasse! Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma côr. Tinha a própria alma do príncipe da Dinamarca. Até ahi nada houve que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horacio, o meu fiel criado José. Achei natural : elle não o achou menos. Saimos de casa para o cemitério; atravessamos uma rua que nos pareceu ser a Primeiro de Março e entramos em um espaço

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que era metade cemitério, metade sala. Nos sonhos ha confusões d'essas, imaginações duplas ou incomple­tas, mistura de cousas oppostas, dilacerações, des­dobramentos inexplicáveis; mas, emfim, como eu era Hamlet e elle Horacio, tudo aquillo devia ser ce­mitério. Tanto era que ouvimos logo a um dos co-veiros esta estrophe :

Era um titulo novinho, Valia mais de oitocentos; Agora que está velhinho Não chega a valer duzentos.

Entramos e escutamos. Como na tragédia, deixa­mos que os coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Ophelia. Mas os coveiros eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e pa­peis. A um d'elles ouvia bradar que tinha trinta acções da Companhia Promotora das Batatas Econô­micas. Respondeu-lhe outro que dava cinco mil réis por ellas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Horacio, que me respondeu, pela bocca de José : « Meu senhor, as batatas d'esta companhia foram prosperas emquanto os portadores dos titulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia justamente em não plantar o precioso tu-berculo; uma vez que o plantassem era indicio certo da decadência e da morte. »

Não entendi bem; mas os coveiros, fazendo sal­tar caveiras do solo, iam dizendo graças e aprego-

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ando titulos. Falavam de bancos, do Banco Único, do Banco Eterno, do Banco dos Bancos, e os res­pectivos titulos eram vendidos ou não, segundo offerecessem por elles sete tostões ou duas patacas. Não eram bem titulos nem bem caveiras; eram as duas cousas juntas, uma fusão de aspectos, lettras com buracos de olhos, dentes por assignaturas. De­mos mais alguns passos, até que elles nos viram. Não se admiraram; foram indo com o trabalho de cavar e vender. — Cem da Companhia Balsamica! — Três mil réis. — São suas. — Vinte e cinco da Companhia Salvadora! — Mil réis! — Dous mil réis ! — Dous mil e cem ! — E duzentos! — E quin­hentos! — São suas.

Cheguei-me a um, ia a falar-lhe, quando fui nterrompido pelo próprio homem : « — Prompto

Allivio! meus senhores! Dez do Banco Prompto Allivio! Não dão nada, meus senhores? Prompto Allivio! senhores... Quanto dão? Dous tostões?Oh! não! não! valem mais! Prompto Allivio ! Prompto Allivio! » O homem calou-se afinal, não sem ouvir de outro coveiro que, como allivio, o banco não podia ter sido mais prompto. Faziam trocadilhos, como os coveiros de Shakspeare. Um d'elles, ouvindo apre­goar sete acções do Banco Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual até o dia em que passou do ponto á reticência. Como espirito, não era grande' cousa; d'ahi a chuva de tibias que caiu em cima do autor. Foi uma scena Iugubre e alegre ao mesmo

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tempo. Os coveiros riam, as caveiras riam, as arvores, torcendo-se aos ventos da Dinamarca, pare­ciam torcer-se de riso, e as covas abertas riam, á espera que fossem chorar sobre ellas.

r Surdiram muitas outras caveiras ou titulos. Da Companhia Exploradora de Alem-Tumulo apparece-ram cincoenta e quatro, que se venderam a dez réis. 0 fim d'esta companhia era comprar para cada âccionista um lote de trinta metros quadrados no Paraíso. Os primeiros titulos, em março de 1891, subiram a conto de réis; mas se nada ha seguro n'este mundo conhecido, pôde havel-o no incognos-civel? Esta duvida entrou no espirito do caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um pa­quete transatlântico, para ir consultar um theologo europeu, levando comsigo tudo o que havia mais cognoscivel entre os valores. Foi um coveiro que me contou este antecedente da companhia. Eis aqui, porém, surdiu uma voz do fundo da cova, que esta­vam abrindo. Uma debenturel uma debenture!

Era já outra cousa. Era uma debenture. Cheguei-me ao coveiro, e perguntei que era que estava dizendo. Repetiu o nome do titulo. Uma debenture? — Uma debenture. Deixe ver, amigo. E, pegando nella, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia :

— Alas, poor Yorick! Eu a conheci, Horacio. Era um titulo magnífico. Estes buracos de olhos fo­ram algarismos de brilhantes, saphyras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontorio de mar-

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fim velho lavrado; eram de nacar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e saphyra. Desta bocca sahiam as mais sublimes promessas em estylo alevantado e nobre. Onde estão agora as bellas palavras de outro tempo? Prosa eloqüente e fecunda, onde param os longos períodos, as phrases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavallos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de crystal, as almofadas de setim? Diz-me cá, Horacio.

— Meu senhor... — Crês que uma lettra de Sócrates esteja hoje no

mesmo estado que este papel ? — Seguramente. — Assim que, uma promessa de divida do nobre

Sócrates não será hoje mais que uma debenture es­cangalhada?

— A mesma cousa. — Até onde podemos descer, Horacio ! Uma lettra

de Sócrates pôde vir a ter os mais tristes empregos d'este mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Tal­vez ainda valha menos que esta debenture.

— Saberá Vossa Senhoria que eu não dava nada por ella.

— Nada ? Pobre Sócrates! Mas espera, calemo-nos, ahi vem um enterro.

Era o enterro da Ophelia. Aqui o pesadelo foi-se tornando cada vez mais afflictivo. Vi os padres, o rei e a rainha, o séquito, o caixão. Tudo se me fez

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turvo e confuso. Vi a rainha deitar flores sobre a defunta. Quando o joven Laertes saltou dentro da cova, saltei também; alli dentro atracámo-nos, esbo-feteámo-nos. Eu suava, eu matava, eu sangrava, eu gritava...

— Acorde, patrão! acorde!

CANÇÃO DE PIRATAS

1891, Julho.

Telegramma da Bahia refere que o conselheiro está em Canudos com 2,000 homens-(dous mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Con­selheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mysterio. É o Conselheiro, um homem, dizem que fanático, levando comsigo a toda a parte aquelles dous millegionarios. Pelas ultimas noticias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Te­mem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos.

Jornaes recentes affirmam também que os cele­bres clavinoteiros de Belmonte têm fugido, em tur­mas, para o sul, atravessando a comarca de Porto Seguro. Essa outra horda, para empregar o termo do profano vulgo que odeio, não obedece ao mesmo chefe. Tem outro ou mais de um, entre elles o que

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responde ao nome de Cara de Graxa. Jornaes e tele-grammas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pôde sair de cérebros alinhados, registrados, qua­lificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, atravéz da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janella e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura d'este fim de século. Nos cli­mas ásperos, a arvore que o inverno despiu, é nova­mente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que apprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte é a arvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.

Sim, meus amigos. Os dous mil homens do Con­selheiro, que vão de villa em villa, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se mettem pelo ser­tão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando moças naturalmente, moças cap­tiva s, chorosas e bellas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, ahi tendes matéria nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas :

En mer, les hardis écumeurs! Nous allions de Fez à Catane...

Entrai pela Hespanha, é ainda a terra da imagi­nação de Hugo, esse homem de todas as pátrias; puxai pela memória» ouvireis Espronceda dizer

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outra canção de pirata, um que desafia a ordem e a lei, como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; ahi Byron recita os versos do Corsário no regaço da bella Guiccioli. Tornai á nossa America, onde Gon­çalves Dias também cantou o seu pirata. Tudo pi­rata. O romantismo é a pirataria, é o banditismo, é a aventura do salteador que estripa um homem e morre por uma dama.

Crêde-me, esse Conselheiro que está em Canudos com os seus dous mil homens, não é o que dizem tele-grammas e papeis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem officio nem be­neficio, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos d'esta vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mes­mos acontecimentos, os mesmos delictos, as mesmas virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e de saida, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei; os consórcios ce­lebram-se por um regulamento em casa do pretoiv, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas, palavras symbolicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa á regulamentação universal; o finado ha de ter velas e responsos, um caixão.fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu... Não, por Satanaz! Os partidários do Conselheiro lambraram-

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responde ao nome de Cara de Graxa. Jornaes e tele-grammas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pôde sair de cérebros alinhados, registrados, qua­lificados, cérebros eleitores econtribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, éum raio de sol que, atravéz da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janella e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura d'este fim de século. Nos cli­mas ásperos, a arvore que o inverno despiu, é nova­mente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que apprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte é a arvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.

Sim, meus amigos. Os dous mil homens do Con­selheiro, que vão de villa em villa, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se mettem pelo ser­tão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando moças naturalmente, moças cap-tivas, chorosas e bellas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, ahi tendes matéria nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas :

En mer, les hardis écumeurs! Nous allions de Fez à Catane...

Entrai pela Hespanha, é ainda a terra da imagi­nação de Hugo, esse homem de todas as pátrias; puxai pela memória, ouvireis Espronceda dizer

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outra canção de pirata, um que desafia a ordem e a lei, como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; ahi Byron recita os versos do Corsário no regaço da bella Guiccioli. Tornai á nossa America, onde Gon­çalves Dias também cantou o seu pirata. Tudo pi­rata. O romantismo é a pirataria, é o banditismo, é a aventura do salteador que estripa um homem e morre por uma dama.

Crède-me, esse Conselheiro que está em Canudos cora os seus dous mil homens, não é o que dizem tele-grámmas e papeis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem officio nem be­neficio, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos d'esta vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mes­mos acontecimentos, os mesmos delictos, as mesmas virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e de saida, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei; os consórcios ce­lebram-se por um regulamento em casa do pretoiv, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas, palavras symbolicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa á regulamentação universal; o finado ha de ter velas e responsos, um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu... Não, por Satanaz! Os partidários do Conselheiro lambraram-

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se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias á porta da civilisação e sairam á vida livre.

A vida livre, para evitar a morte igualmente livre, precisa comer, e d'ahi alguns possíveis assaltos. Assim também o amor livre. Elles não irão ás villas pedir moças em casamento. Supponho que se casam a cavallo, levando as noivas á garupa, emquanto as mais ficam soluçando e gritando á porta das casas ou á beira dos rios. As esposas do Conselheiro, essas são raptadas em verso, naturalmente :

Sa Hautesse aime les primeurs, Nous vous ferons mahométane...

Mahometana ou outra cousa, pois nada sabemos da religião d'esses, nem dos clavinoteiros, a verdade é que todas ellas se affeiçoarão ao regimen, se regi-men se pôde chamar a vida errática. Também ha estrellas erráticas, dirão ellas, para se consolarem. Que outra cousa podemos suppor de tamanho numero de gente? Olhai que tudo cresce, que os exércitos de hoje não são já os dos tempos românticos, nem as armas, nem os legisladores, nem os contribuintes, nada. Quando tudo cresce, não se ha de exigir que os aventureiros de Canudos, Alagoinhas e Belmonte contem ainda aquelle exiguo numero de piratas da cantiga :

Dans Ia galère capitane, Nous étions quatre-vingts rameurs,

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mas mil, dous mil, no minimo. Do mesmo modo, ó poetas, devemos compor versos extraordinários e rimas inauditas. Fora com as eantigas de pouco fôlego.. Vamos fazel-as de mil estrophes, com estri-bilho de cincoenta versos, e versos compridos, dous decasyllabos atados por um alexandrino e uma redon-dilha. Pelion sobre Ossa, versos de Adamastor, versos de Encelado. Rimemos o Atlântico com o Pacifico, a via-lactea com as areias do mar, ambições com mal-logros, empréstimos com calotes, tudo ao som das polkas que temos visto compor, vender e dançar só no Rio de Janeiro. Ó vertigem das vertigens!

GARNIER

1893, Outubro.

Segunda-feira d'esta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum — está escripto no alto da porta do cemitério de S. João Baptista. Não, murmurou elle talvez dentro do caixão mortuario, quando percebeu para onde o iam con­duzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de tra­balho, ao fundo, á esquerda; é alli que estão os meus

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livros, a minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escripturação.

Durante meio século, Garnier não fez outra cousa, senão estar alli, naquelle mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns annos, com a morte no P-dto, descia todos os dias de Santa Thereza para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontral-o na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, mettido em um sobretudo, perguntei-lhe porque não descan-çava algum tempo. Respondeu-me com outra per­gunta : Pourriez-vous résister, si vous étiez force de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cin-quante ansl Na véspera da morte, se estou bem informado, achando-se de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos á livraria.

Essa livraria é uma das ultimas casas da rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não cito os nomes das que se foram, porque não as conhecerieis, vós que sois mais rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e populosa onde se vendem, ao par de bellas jóias, excellentes queijos. Uma das ultimas figuras desapparecidas foi o Bernardo, o perpetuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos charutos do duque de Caxias, que tinha fama de os fumar únicos, ou quasi únicos. Ha casas como a Laemmert e o Jornal do Commercio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se

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fossem ; a maior parte, porém, desfizeram-se com os donos.

Garnier é das figuras derradeiras. Não apparecia muito; durante os 20 annos das nossas relações, conheci-o sempre no mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a principio era em outra casa, n. 69, abaixo da rua Nova. Não pude conhecel-o na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A carteira é que pôde ser a mesma, como o banco alto onde elle repousava, ás vezes, de estar em pé. Ahi vivia sempre, penna na mão, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que assignava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, attendia a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. Neste caso, quando a pessoa amiga chegava, se não era dia de mala, ou se o trabalho ia adiantado e não era urgente, tirava logo os óculos, deixando ver no centro do nariz uma depressão do longo uso d'elles. Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia da politica da terra, acompanhava a de França, mas só o ouvi falar com interesse por occasião da guerra de 1870. O francez sentiu-se francez. Não sei se tinha partido; presumo que haveria trazido da pátria, quando aqui aportou, as sympathias da classe media para com a monarchia orleanista. Não gostava do império napoleonico. Acceitou a republica, e era grande admirador de Gambetta.

D'aquellas conversações tranquillas, algumas lon­gas, estão mortos quasi todos os interlocutores,

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Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Nor­berto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma Branco, romance e comedia que fizeram as delicias de uma geração inteira. Com José de Alencar foi differente ; alli travamos as nossas relações litterarias. Sentados os dous, em frente á rua, quantas vezes tratámos d'aquelles negócios de arte e poesia, de estylo e imaginação, que valem todas as canceiras d'este mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os cito, porque teria de nomear um cemitério, e os cemitérios são tristes, não em si mesmos, ao contrario. Quando outro dia fui a en­terrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de S. João Baptista, já acabada a ceremonia e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres, como quem não pisa memórias nem saudades. As figuras sepulchraes eram, para ellas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das suas flores mofinas, ou por ellas mesmas, tal é a visão dos primeiros annos. Não citemos nomes.

Nem mortos, nem vivos. Vivos ha-os ainda, e dos bons, que alguma cousa se lembrarão d'aquella casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras jurídicas ou escolares, não é mui difficil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas

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edições dessas, foi também editor de obras litterarias, o primeiro e o maior de todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes principaes, entre os nossos homens de lettras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que também produziu muito nos seus últimos annos, figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou acharam naquella casa a porta da publicidade e o caminho da reputação.

Não é mister lembrar o que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em que havia tudo, desde a theologia até á novella, o livro clássico, a compo­sição recente, a sciencia e a imaginação, a moral e a technica. Já a achei feita; mas vi-a crescer ainda mais, por longos annos. Quem a vè agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, á espera da justiça, do inventario e dos herdeiros, ha de sentir que falta alguma cousa á rua. Com effeito, falta uma grande parte d'ella, e bem pôde ser que não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espirito.

Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se d'elle, não pôde mais; o instru­mento da riqueza era também o do castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza. Não im­porta : laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas paginas dos diecionarios biographi-

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cos. Perdure a noticia, ao menos, de alguém que n'este paiz novo occupou a vida inteira em criar uma industria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpetua. Perpetua!

FIM

# # # # # # # # # # # # # #

ÍNDICE

O CASO DA VARA . 1

O DICCIONARIO . 1 7

UM ERRADIO. 25

ETERNO ! 57

MISSA DO GALLO . 77

IDÉIAS DE CANÁRIO.. 89

LAGRIMAS DE X E R X E S . 99

PAPEIS VELHOS. 111

A ESTATUA DE J O S É DE ALENCAR. . 125

HENRIQUETA RENAN. 133

O VELHO SENADO. 159

Tu, só, TU, PURO AMOR 179

ENTRE 1892 E 1894 233

YJE S O U !. 235 SALTEADORES DA THESSALIA. 238

O SERMÃO DO DIABO 243

A SCENA DO CEMITÉRIO 247

CANÇÃO DE PIRATAS. . . 253

GARNIER . 257

Pariz. — Typ. GARNIER IRMÃOS, 6, rua dos Saints-Pères. 325.6.99.

H. GARNIER, Livreiro-Editor, rua Moreira Cezar, 71

Historias da Meia Noite, i v. Historias sem data. I vol. Memórias de Braz Cubas. I v. Papeis avulsos. 1 vol. Resürreição. 1 vol. Americanas (poesias). 1 vol. Chrysalidas. I vol. Phalenas. 1 vol. Quincas Borba. J vol. Yáyá Garcia. 1 vol. Paginas Recolhidas. 1 vol. Don Casmuro. i vol.

Magalhães (D. J. G. de) Commentarios e Pensamentos

I vol.

Martins Penna. n

Comédias.! vol. Mello Moraes Filho (D. A.

S.). Os Ciganos no Brazil. 1 vol. Qu.*JiOS e Ghronicas. 1 vol. Myfhos e Poemas. 1 vol. Caocioneiro dos ciganos. I vol. Memórias do Marquez de Santa

Cruz. I vol. Mendes Pinto (Fernão de).

Excèrptos. 2 vol.

Moreira de Azevedo. Lourenço de Mendonça. I vol. Criminosos celebres. I vol. Homens do passado. I vol. Curiosidades. 4 vol. Os Francezes no Rio de

Janeiro. \ vol. Mosaico brazileiro. 1 vol.

Norberto de Souza S i l v a . Brazileiras celebres. 1 vol.

Pascual (À.-D.). A morte moral. 4 vol.

Pereira da S i lva . Aspasia. I vol.

Jeronymo Corte Real. I vol. Manoel de Moraes. I vol.

Rozendo Moniz. Faros e Traros. i vol. Moniz Baretto. 1 vol.

Saint ine . Picciola. 1 vol.

Serra (Joaquim). Quadros, poesias. 1 vol.

Smiles (Samuel). Ajuda-te. i VQI. 0 caracter. 1 vol. 0 dever. 1 vol. Economia. I vol. A Vida e o Trabalho. í vol. Poder da vontade. 1 vol.

Sylv io Romero. Litleratura Contemporânea.

1 vol.

Taunay (Sylvio Dinarte). Historias Brazileiras. I vol. Narrativas militares. 1 vol. Mocidade de Trajano. 1 vol. Ouro sobre azul. I vol. Manuscripto de uma mulher.

1 vol.

Tavares Bas tos (Dr A. C). Cartas a um solitário. 1 vol.

in-4°-Valle o) do Amazonas. 1 vol.

in-4°.

Zaluar. Contos da roça. 2 vol. 0 Doutor Benignus.2 vol.

Paris. — Imp. P. Monillot, ia, quai Voltaire. — U0756.

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