Rubens Dolce

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8/19/2019 Rubens Dolce http://slidepdf.com/reader/full/rubens-dolce 1/4 SAÚDE, CURA E TEMPO Rubens Dolce Filho Estabelecer um critério de cura é função direta daquilo que se entende filosoficamente por enfermidade. A tradição médica sempre foi baseada no conceito de normalidade, ou seja, o conceito de saúde sempre esteve baseado, em última instância, em ausência de sintomas. A boa homeostase, segundo a idéia tradicional, é aquela pela qual os sistemas fisiológicos se comportam de modo a reduzir ao mínimo a variabilidade das funções fisiológicas e dos parâmetros hematoquímicos. A doença nesta visão seria a perda do equilíbrio ou da capacidade de controlar as perturbações. Sintomas (e sinais) são o que foge à norma, à média, à regra, a doença é o que está errado e necessita ser corrigida, a saúde é o que está certo e necessita ser mantida corretamente. Esta visão de saúde ou doença, a oficial, não foi de todo modo inquestionável pelo pensamento médico ocidental. Refletindo as idéias vigentes de sua época a medicina sempre oscilou entre dois lados, o mecanicismo e o vitalismo. A ciência médica, como conhecemos e como é ensinada hoje nas escolas médicas, apesar de eleger Hipócrates (460 a 350 a.C.) como seu genitor, pouco ensina seus preceitos aos estudantes de medicina. Na verdade a medicina contemporânea deveria estabelecer como seu fundador o médico romano chamado GALENO, que dois séculos depois de Cristo tinha uma visão analítica a respeito dos problemas fisiológicos e anatômicos, reduzindo-os a fenômenos locais, fragmentando o ser humano em cada um dos seus sistemas respectivos. Para ele, a lesão anatômica e sua causa são determinantes da terapêutica. Sua doutrina teve ampla difusão na antigüidade, expandiu-se pela idade média e, em boa parte, perdura até nossos dias. O maior fomentador desta visão analítica, onde o corpo humano vivo pode ser dissecado e divido em partes para poder entendê-lo, foi R ENÈ DESCARTES. Ele acreditava que o universo tem um ordenamento lógico, o qual seria mais eficaz se fosse demonstrado matematicamente. Ele não só viu um modelo ordenado no universo como também no homem, qualidades de precisão e funcionamento ordenado que poderiam ser compreendidas racionalmente. Achava que o homem era constituído de duas partes: mente e corpo. Embora o corpo pudesse afetar a mente, nenhuma interação era possível no sentido contrário. Esta formulação parecia uma solução perfeita para um intelecto que via uma ordem na natureza, uma ordem que tinha de ser preservada com a eliminação de todos os elementos desordenados – como a mente. A formulação cartesiana leva o ponto de vista de que o corpo refletia as características mecânicas do próprio universo – corpos semelhantes à máquina habitando um mundo semelhante à máquina. A doença, desse modo, surge como uma desordem do mecanismo, há algo de errado na máquina. Em resumo, é uma visão mecanicista de saúde e doença, que perdura até hoje. Voltando a HIPÓCRATES, ele admitia que não há enfermidades, mas enfermos, segundo suas peculiares maneiras de reagirem, de acordo com seus

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SSAAÚÚDDEE,, CCUURRAA EE TTEEMMPPOO 

Rubens Dolce Filho

Estabelecer um critério de cura é função direta daquilo que se entendefilosoficamente por enfermidade. A tradição médica sempre foi baseada noconceito de normalidade, ou seja, o conceito de saúde sempre esteve baseado,em última instância, em ausência de sintomas. A boa homeostase, segundo aidéia tradicional, é aquela pela qual os sistemas fisiológicos se comportam demodo a reduzir ao mínimo a variabilidade das funções fisiológicas e dosparâmetros hematoquímicos. A doença nesta visão seria a perda do equilíbrio ouda capacidade de controlar as perturbações. Sintomas (e sinais) são o que foge ànorma, à média, à regra, a doença é o que está errado e necessita ser corrigida, asaúde é o que está certo e necessita ser mantida corretamente.

Esta visão de saúde ou doença, a oficial, não foi de todo modo inquestionável pelopensamento médico ocidental. Refletindo as idéias vigentes de sua época amedicina sempre oscilou entre dois lados, o mecanicismo e o vitalismo. A ciênciamédica, como conhecemos e como é ensinada hoje nas escolas médicas, apesarde eleger Hipócrates (460 a 350 a.C.) como seu genitor, pouco ensina seuspreceitos aos estudantes de medicina. Na verdade a medicina contemporâneadeveria estabelecer como seu fundador o médico romano chamado GALENO, quedois séculos depois de Cristo tinha uma visão analítica a respeito dos problemasfisiológicos e anatômicos, reduzindo-os a fenômenos locais, fragmentando o serhumano em cada um dos seus sistemas respectivos. Para ele, a lesão anatômica

e sua causa são determinantes da terapêutica. Sua doutrina teve ampla difusão naantigüidade, expandiu-se pela idade média e, em boa parte, perdura até nossosdias.O maior fomentador desta visão analítica, onde o corpo humano vivo pode serdissecado e divido em partes para poder entendê-lo, foi RENÈ DESCARTES.  Eleacreditava que o universo tem um ordenamento lógico, o qual seria mais eficaz sefosse demonstrado matematicamente. Ele não só viu um modelo ordenado nouniverso como também no homem, qualidades de precisão e funcionamentoordenado que poderiam ser compreendidas racionalmente. Achava que o homemera constituído de duas partes: mente e corpo. Embora o corpo pudesse afetar amente, nenhuma interação era possível no sentido contrário. Esta formulação

parecia uma solução perfeita para um intelecto que via uma ordem na natureza,uma ordem que tinha de ser preservada com a eliminação de todos os elementosdesordenados – como a mente. A formulação cartesiana leva o ponto de vista deque o corpo refletia as características mecânicas do próprio universo – corpossemelhantes à máquina habitando um mundo semelhante à máquina. A doença,desse modo, surge como uma desordem do mecanismo, há algo de errado namáquina. Em resumo, é uma visão mecanicista de saúde e doença, que perduraaté hoje.

Voltando a  HIPÓCRATES, ele admitia que não há enfermidades, mas enfermos,segundo suas peculiares maneiras de reagirem, de acordo com seus

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temperamentos. Por métodos empíricos, chega à síntese da medicina em umaconcepção original da unidade do homem, onde não se pode separar o enfermodo seu meio fisiológico e cósmico, posto que ele sofre as influências

metereológicas, climatológicas, raciais, sociais, etc. A enfermidade não é umconjunto isolado de sintomas que o paciente suporta, senão um movimentofisiológico de todo o organismo. Introduz o conceito de physis  que equivale à forçanatural de cura ou poder fisiológico que governa as funções orgânicas. Ela regulaos processos fisiológicos e guia-os pelos caminhos corretos – cura doenças.Porém, é incapaz de solucionar tudo, devendo, portanto, quando deficiente,receber a ajuda do médico.

Portanto, a medicina ocidental começou com um pensamento integrativo dohomem tanto com o meio externo como com as partes internas do organismo deuma forma global. Há algo além de corpo material que regula todos os processos

orgânicos, tanto na saúde quanto na doença, que Hipócrates chamou de physis .Esta corrente de pensamento chama-se Vitalismo. Ela é amplamente aceita nasmedicinas orientais onde o equivalente da physis na medicina chinesa é chamadode chi   e na medicina Ayuvédica (praticada há milênios na Índia) é chamado deprana. Vários filósofos, religiosos e médicos ocidentais através dos séculosacreditavam e discorreram a respeito do vitalismo nas suas obras. Porém, quemmais desenvolveu este conceito, criando uma terapêutica totalmente calcada eminfluenciar o organismo através desta força que o organiza, foi HAHNEMANN ocriador da homeopatia. Hahnemann acreditava que a vida humana não é de formaalguma regulada por leis puramente físicas, aquelas que prevalecem entre assubstâncias inorgânicas. As substâncias materiais das quais se compõe nosso

organismo são reguladas pelas leis peculiares da vitalidade, elas são animadas evitalizadas, assim como o sistema como um todo também o é. Neste domínio reinaonipotente um poder fundamental, que chamava de Força Vital, o qual mantém oorganismo na condição de sensibilidade e atividade necessária à preservação davida. Esta força, não material, é responsável por todos os processos harmônicosque mantém a saúde. E é ela também a primeira a ser afetada por um processopatológico hostil à vida, o qual a desequilibra e ela reage manifestando-se atravésde sintomas e sinais. Para ele a totalidade de sintomas é o equivalente aodesequilíbrio da Força Vital, não podendo separar uma parte da outra, estandotodo o organismo afetado por ela.

SAÚDE, CURA E O TEMPOO relógio é o símbolo da morte. Quando começamos a pensar no tempo pareceque algo de sinistro está acontecendo. Nós que somos também relógiosbiológicos, com nossos ritmos e ciclos internos, estamos constantementetestemunhando a nossa própria morte. Não podemos enganar a nós mesmos e oslembretes diários vêm na forma de rugas, de flacidez, de dores e de dinheiro gastocom médicos – nenhum dos quais presente na nossa juventude. Desta forma,voltamos os olhos ao passado, tentando recriar a juventude e, às vezes, atribuindoa ela um esplendor e magia que nunca chegamos de fato a perceber, mesmo

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quando jovens. Vivemos oprimidos pela percepção de tempo linear, como umaseta que inicia no nascimento e termina na morte.

O tempo para os povos primitivos é circular, ou seja, o tempo é percebido atravésdos rituais e cerimônias (de passagem para a vida adulta, de casamento, dechuva, guerra, trabalho, etc.) e através dos fenômenos astronômicos (luas,estações do ano, épocas para a caça e plantio, etc.). Desta forma o tempo é umeterno renascimento, esta sempre se regenerando.

A percepção da duração do tempo é fortemente afetada pela opinião da pessoa acerca da tarefa na qual ela está envolvida. Quanto mais informação o indivíduoprocessa a sensação do tempo tende a ser mais rápido. Quanto maisdesagradável uma tarefa é executada mais lenta é sensação do tempo. Atemperatura ambiente afeta a percepção do tempo. Quando mais quente a

temperatura, a percepção do tempo parece diminuída. Quanto mais fraca ailuminação, também é mais curta a estimativa de determinado intervalo de tempo.

O tempo está ligado aos nossos sentidos – ele faz parte de nós, não está lá fora.A nossa crença em um tempo real linear está por trás de nossas suposiçõesbásicas sobre saúde e doença, vida e morte; mas este tipo de pensamento estáligado a uma ciência mais antiga, que dependia de uma realidade exterior, umarealidade independente de nossos sentidos.Determinamos a nossa realidade ao fazer refletir sobre nossas funções corporaisa percepção de que o tempo se escoa. Tendo convencido a nós mesmos – com aajuda de relógios, bipes, tique-taques, calendários e uma miríade de outros

adjuvantes culturais – de que o tempo linear nos está fugindo, causamos emnosso corpo doenças que nos asseguram a mesma coisa, pois o surgimento dedoenças cardíacas, úlceras e de hipertensão arterial reforça a mensagem dorelógio: nós estamos nos acabando e mais cedo ou mais tarde seremos levadospela corrente linear do rio do tempo. Para nós, as nossas percepções tornaram-sea nossa realidade.

Além disto, existe de certo modo, uma memória biológica que faz com que oorganismo conserve a lembrança de todas as agressões patológicas sofridas.Todo processo patológico deixa um traço, uma impressão, por exemplo,imunológica. Desconhecendo isto, as pessoas doentes esperam recuperar-se

totalmente, querendo voltar ao estado de saúde de quando eram crianças ou jovens. Deve-se observar que esse mito do retorno ao estado anterior representasimbolicamente a anulação do tempo, o estágio mítico em que se realizou umestado de equilíbrio estável, a utopia da imortalidade.

Como o estado de saúde absoluto, a “cura absoluta” recobre uma descrição derealidade estritamente conceitual e abstrata. A cura relativa adere mais à realidadede um dado indivíduo. Na prática, pode ser considerada como curada uma pessoaque, após uma doença, reencontra a “sua saúde”, isto é, o seu equilíbrio dentrodos limites de sua própria normalidade. Portanto, a cura é global, individual e se

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inscreve numa dinâmica evolutiva pessoal: ela assinala uma etapa na evoluçãobiopsicológica individual.

A cura pode surgir graças à interação entre doente, médico e medicamento.Segundo a teoria médica oriental, curar equivale a governar. O ideograma Zhi  exprime o significado do ato médico: curar é ao mesmo tempo fazer o trabalho dofuncionário do Estado, ou seja, governar.

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