RANCIÈRE, J. Literatura Impensável. in Políticas Da Escrita

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    I. A LITERATURA IMPENSÁVEL

    Quem procura delimitar em sua singularidade o ser da coisa li-

    terária esbarra em primeiro lugar na opacidade de um nome. A pala-

    vra literatura parece, realmente, dotada de notável capacidade de apa-

    gar as operações que a constituíram como objeto teórico. Historica-

    mente, a noção se impôs como por surpresa num deslizamento de

    sentido, ínfimo o bastante em sua operação para que alguns possam

    simplesmente têlo ignorado, radical o bastante em seus efeitos para

    que outros possam ter feito da literatura um sacerdócio ou uma nova

    nobreza.

    O deslizamento histórico pode, em primeira análise, ser desig-

    nado de maneira muito simples: é a passagem de um saber para uma

    arte. No século XVIII, como se sabe, a literatura não era a arte dos

    escritores, era o saber dos letrad os, aquilo que lhes perm itia aprec iar

    as belasletras. Estas, por seu lado, eram artes bem definidas, a poe-

    sia e a eloqüência. Uma e outra se dividiam em gêneros determina-

    dos segundo variáveis específicas: o assun to de que tratav am , os sen-

    timentos que tentavam prov ocar, os mod os de compo sição e métrica

    que utilizavam. Gêneros e subgêneros pun ham em prática saberes pre-

    cisos correspondentes às três grandes atividades usadas na constru-

    ção da obra: a inventio, que determinava os assuntos, a dispositio, que

    organizava as partes do poema ou do discurso, a elocutio , que dava

    aos caracteres e aos episódios o tom e os complementos que convi-

    nham à dignidade do gênero ao mesmo tempo que à especificidade

    do assunto. Regras técnicas indicavam os meios de produzir efeitos

    expressivos específicos. Regras de gosto permitiam julgar quais efei-

    tos deviam ou não deviam ser produzidos. As aulas de literatura do

    século dezoito ensinavam o letrado a apreciar as obras a partir des-

    ses saberes e dessas normas.

     N o século XIX , essa pala vra literatu ra, que designava um saber,

     passará a designar seu obje to . A li teratura se to rna propria m ente a ati -

    vidade daquele que escreve. Ora, essa m udança de natureza e de assunto

     parece se fazer sem que nin guém note . A aula de li teratura no século

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    ante rior ensinava a apreciar as obras de belasletras, agora ensinará a

    apreciar as obras da literatura. As coisas ocorrem como se apenas ti-

    vessem sido mudados um nome e um ponto de focalização: as belas

    letras teriam adotado o nome de literatura, o ponto de vista teria se

    deslocado do saber do apreciado r para o conhecime nto da idiossincra-sia particular do pro du tor. Parece assim assegurada a continuidad e das

     belasletras de antanho para a li te ratura. E mesmo esse nom e novo de

    literatura se revela mais próprio que o antigo para fundar uma histo

    ricidade específica. Parece perm itir finalmen te pensa r, em sua con tinu i-

    dade, o conjunto das artes da língua desde o primórdio das eras, dos

    textos sagrados e saberes retóricos até os rom ances m ode rnos, p assan -

    do pelos grandes gêneros poéticos — trágico, épico e lírico.

    Essa aparente continuidade encontra no entanto um paradoxo, partic ula rm ente detectável na le itura do livro de E rnst R obert Curtiu s,

     Literatura européia e Idade Média latina. Curtius afirma a existência

    de um a continuida de desde as escolas de retórica gregas até a literatu-

    ra moderna. Essa continuidade seria marcada pela transmissão inin-

    terrup ta de saberes e também por um certo núm ero de topoi que deter-

    m inam uma mesm a rede de fábulas e um m esmo estatuto d o livro. En-

    tretanto, Curtius escreve com o sentimento de um perigo: a continui-dade da literatura européia está em situação arriscada devido à perda

    dos saberes tradicionais. Mas a pergunta que ele não pode fazer é a

    seguinte: será que não há precisamente correlação entre a perda dos

    saberes tradicionais e o surgim ento dessa idéia de literatura que perm i-

    te retrospectivamente compreender numa mesma noção essas artes e

    esses saberes da língua? A literatura tornase precisamente nomeável

    com o a atividade específica daqueles que escrevem no m om ento em que

    a “herança” se desvanece. Ela não é aquilo que sucede às belasletras, porém aquilo que as suprim e. H á literatu ra quando os gêneros poéti-

    cos e as artes poéticas cedem lugar ao ato indiferenciado e à arte sem-

     pre singular de escrever. E sabid o que os dois gêneros a través dos quais

    ela se conhece com o tal são p recisam ente os dois gêneros fora de gêne-

    ro: a poesia lírica, situada à margem da gran de poesia — épica e dra -

    mática — , e o rom ance, situado à margem da eloqüência. Foi a partir

    deles que a revolução romântica se pensou, que a literatura pôde se

    colocar como um a experiência e uma p rática autôn om as da linguagem.Foi assim que ela se definiu com o uma cap àcidade própria: o estilo, essa

    “m aneira a bsoluta de ver as coisas” (Flaubert) que se desliga da sub or -

    dinação da elocutio. A literatura veio assim a se dar como um modo

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     próprio do discurso, até mesmo um m odo de vida próprio, a realiza-

    ção de um dever específico para com a língua, onde ética e estilística se

    confund em . Ela veio assim a se enunciar, pela pena de M allarm é, como

    a própria realidade que existe, “sozinha, com exceção de tudo”.

    Sob o mesmo nome de literatura vieram então se confundir ope-rações con traditórias. A literatura dá nom e a uma rup tura em relação

    à tradição das belasletras; ela apaga essa ruptura na ilusão da conti-

    nuidade, m as pode tam bém levála a seu pon to de absolutização. Antes

    de mais nada, o nome de literatura é capaz de fazer coexistir os con-

    trários: na época das declarações de Mallarmé, os manuais de escola

     prim ária continuam a m aneja r sem perturbação as regras da inventio, 

    da dispositio e da elocutio. E aind a hoje coexistem as histórias de lite-

    ratura para as quais a continuidade de uma mesma arte percorre aseras, e os pensam entos da literatura que fazem a descobe rta, ainda na

    infância desta, de um avesso obscuro e silencioso da língua.

    Podese, naturalm ente, reduzir a inquietação induzida pela am-

     bigüidade da palavra: dizer que só há li te rário , propriam ente dito, de-

     pois que a li te ratu ra se nom eou e se e xperim ento u como ta l ou, ao con-

    trário, que a palavra literatura é o nome com o qual atualmente per-

    cebemos aquilo que, em sua efetuação, pertencia a outras categorias

    (poesia, belasletras, etc.). Põese então a palavra em acordo com a

    idéia, seja relativizando o nom e, seja especificando seu con teúdo . M i-

    nha hipótese é que, ao se proceder assim, deixase escapar precisamente

    a próp ria q uestão colocada pela literatura, questão que vem justamente

     pertubar a ordem das classificações entre os m odos e os gêneros do

    discurso. A impossibilidade de delimitação entre um a noção com um

    e o conceito específico de uma coisa definida não é um defeito atri-

     buível às im perfeições da língua ou ao atraso do conceito . “L iteratu-r a ” é um desses nomes flutuantes que resistem à redução n om inalista,

    um desses conceitos transversais que têm a propriedade de desman-

    char as relações estáveis entre no m es, idéias e coisas e, junto com elas,

    as delimitações organ izadas entre as artes, os saberes ou os modo s do

    discurso. “Literatura” pertence a essa delimitação e a essa guerra da

    escrita onde se fazem e se desfazem as relações entre a ordem do dis-

    curso e a ordem dos estados.

    Há nisso, para a filosofia, o princípio de uma perturbação maisgrave do que o velho engano dos poetas denun ciado n a  República. Sem

    dúvida Hom ero e seus pares são, para P latão, duplam ente engan ado-

    res: em seus mythoi que nos apresentam deuses que desmentem a pr ó-

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     pria idéia do div ino; em sua lexis,  quando escondem sua palavra na

     palavra de seus personagens. M as esse duplo engano é definível para

    quem sabe definir os atributos da divindade e enumerar as posições

     possíveis de um falante em relação ao discurso de que ele é o pai. En-

    tão é possível pôr de volta em seu lugar o imitador cujos simulacros ehom ônimo s introduziam a desordem do duplo na cidade onde cada um

    deve fazer seu própr io negócio. O gesto que exclui o poeta não é senão

    conseqüência do gesto que lhe designa seu lugar. Essa designação é o

     princíp io de um a delim itação estável dos discursos que poderá se pres-

    tar à reabilitação da techné  poética. O legislador técnico da  Poética  

    realiza então, m elhor que o legislador político da  República, a coloca-

    ção do poema em seu lugar. Mas o abandono da escrita exposto pelo

    mito do Fedro é de na tureza completam ente diversa. Pois ele furta o “paido discurso” a qualquer determinação. Este já não está oculto, e sim

    ausente. À fábula m entirosa, devedo ra para com a verdade daquilo que

    diz, opõese o escrito órfão que não se deixa m ais con fron tar com sua

    verdade. O simulacro po ético é um corp o a m ais que deixa reconhecer

    sua textura de ilusão e denuncia seu pai. Em comp ensação, é próprio

    do escrito ap agar a semelhança qu e permite atribuir um discurso a seu

     pai. O corp o da letra se furta tornando sua alm a invisível. A letra m uda/

    tagarela não separa ap enas o filósofo do logógrafo. Ela apaga as deli-m itações entre os mod os do discurso ao fazer desaparecer o princípio

    de filiação que permite identificar um discurso ao reconhecer seu pai.

    Talvez seja nesse apagam ento que a literatura tem seu lugar vir-

    tual. E a notável arquitetura do  Fedro,  esse diálogo que só consegue

    exorcizar a p ertu rba ção da escrita à custa de m ultiplicar os níveis e as

    formas da escrita, a paródia das formas e dos tons, o entrelaçamento

    do discurso e de seu com entá rio, certam ente é sintom ática: ela dispõe,

    em suma, todos os elementos daquilo que Bakhtin chamará o dialogismo e a polifonia romanescos, como que para fechar por anteci-

     pação essa desordem das vozes e dos corpos que virá a tom ar o nom e

    de romance. Aquilo que virá a ser recoberto pelo nome “indetermi-

    na do ” de literatura po deria então ser o redesdobram ento daquilo que

    aqui está fechado, o conjunto aberto e sem lei das aventuras da letra

    com falta de um corpo, onde a delimitação dos discursos não pára de

    se apag ar, voltando a tom ar figura sem cessar, onde q ualquer distri-

     buição legítim a das posições de enunciação desaparece na com unid a-de sem contornos dos seres falantes. O ser da literatura seria o ser da

    língua ond e esta se furta às ordenaçõ es que dã o ao s corpos vozes pró

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     jii. i 1 1, 1 t .i colocálos em seu lugar e em sua função: uma pe rtu rbação

    Im Ilur.iM análoga à pe rtu rbação d em ocrática dos corpos qua nd o só a

    Bpnhimência igualitária os põe juntos.

    I Ma 6 uma desordem que a filosofia não deixou de evitar. E as

    i mi ,r. ocorrem com o se, em todos os lugares on de é expos ta ao ser•Ingular do literário, ela conjurasse a inquietação deste reduzindoo

    i ■alegorias bem determ inad as da poesia e da ficção. Assim se p ro -

    longa pela m odern idade um platonism o cu ja característica n ão é a de

    i

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    dição que Hegel define para a idealidade poética em geral e é precisa-

    mente aquela que ele coloca com o impossível ago ra. C om o esclareci-

    mento do conteúdo do espírito e a racionalização de uma língua que

    tende para o estado de meio transparente e inerte, a poesia vê o chão

    lhe desaparecer de sob os pés. Ela se vê empurrada para fora de simesma, para a prosa do pensam ento. M as, precisamente, ela só pode

    com pletar esse m ovim ento, torn arse poesia que se reflete, à custa de

    se suprimir como poesia. Não há então “poesia progressiva infinita”,

    no sentido de Friedrich Schlegel, há o limite onde o con teúd o e a m a-

    téria da poesia se tornam o objeto e o meio de outro discurso, o dis-

    curso filosófico. O fim “romântico” da poesia é a volta mediatizada

    à condição inicial de toda arte, o fato de qualquer sensível ser inade-

    quad o p ara dar corpo à significação.M as essa operação que separa a poesia de sua pretensã o a se to r-

    nar, sob o nome de literatura, sua própria filosofia, tem de ser com-

     pletada po r um a operação que fixe, diante dessa pretensão, um “p ró -

     p rio ” da id ealidade poética que, num mesmo m ovim ento , delim ite o

    terreno onde ela está pro priam ente em casa e lhe dê esse corp o de sen-

    tido en carna do pró prio p ara a face filosófica. A isto é que respo nde a

    conceitualização da objetividade épica como primeiro momento da

     poesia . Efe tivamente , essa conceitualização esboça, para além da especifidade do gênero épico, um pen sam ento do corp o po ético. Este pen -

    samento se organiza precisamente como uma reinterpretação da ques-

    tão platônica da lexis poética e da figura de Ho m ero, o eng anado r. A

    questão da “voz” de Homero servia, no livro III da  República,  para

    m arcar a man eira como o poeta “se esconde” no poem a. Aristóteles

    retoma a imagem, disposto a inverter o valor dela, louvand o em H o-

    mero a arte suprema daquele que sabe desaparecer no po em a e neste

    organizar o engano. M as em Hegel já não se tratará mais de engano“ feio” ou “ bo nito” . A maneira como H om ero se esconde em seu poema

    é precisamente a efetuação da verdade próp ria ao poem a. A voz de H o -

    mero é inteiramente individual, Homero é inteiramente pai de seu

     poem a na m edida em que essa voz não lhe perte nce, que ela é a ex-

     pressão de um a obje tivid ade épica que se conhece através do poema.

    Essa “propriedade” do poema se opõe a uma hipótese específica que

    Hegel refuta com significativo vigor: que os poem as hom éricos sejam

    feitos de trechos escritos juntados uns aos outros, eventualmente re-digidos em épocas diferentes por autores diferentes, em uma pala-vra, que sejam “escritos”. Essa idéia, para Hegel, é inaceitável: o dis

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    «ij vivo, corno em Platão, é aquele que leva a potência de seu pai.

    f «rmpir leito por um só. M as é tam bém feito por um só na m edida

    m  qu< n.io é “feito” po r ele, em que este não o prod uz co m o resu lta-

    do di u 1 1 i.i intenção de fabricação . A un idad e que filia o po em a a seu

    uni'

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    seu próp rio a ncestral co rtou e transm itiu a seus descendentes; Ulisses

    fabricou seu grand e leito nupcial e, se as famosas arm as de Aquiles não

    são de sua própria fabricação, foi porqu e H efestos as preparo u a pe-

    dido de Tétis” (Vorlesüngen über die Aesthetik, Werke, X,   31, 342/X, 1, 336).

    Hegel utiliza aqui o léxico e as imagens do idílio para fazer con-sistir uma utopia da epos  que é propriamente uma utopia do poema:

    essa utopia do  p d iéin  de que o escudo de Aquiles, obra de arte que reúne

    na arma do senhor a representação dos traba lhos e dos dias do povo,

    é o emblema para sempre. Deixo de lado o peso que essa utopia nos-

    tálgica do  poiein   pode ter tido para os comunismos do futuro. Inte-

    ressome aqui apenas pela maneira como ela regula a inquietação da

    escrita ao de senhar a figura do corp o do po ema: a ficção de Ho m ero

    é feita como o cetro de Agamenon, o leito de Ulisses ou o escudo de

    Aquiles: ela é feita e não feita; é pro du zida com o a m anifestação sin-

    gular de uma m aneira de ser que não conhece a separação d os modo s

    do fazer. Nela a questão da lexis  se resolve simplesmente: uma posi-

    ção de enunciação se reduz a uma maneira de ser. Isto significa tam-

     bém , se nos re ferirmos à dis tinção estabelecida por G érard Genette,

    que a  ficção  e a dicção  dependem de um mesmo princípio, manifes-

    tam a unidade dos modos do ser, do fazer e do dizer. E certamente é

    este o privilégio da epos.  M as a pa rtir daí é possível ane xa r tod a lite-

    ratura ao poema, todo poema à ficção, toda ficção a um corpo de

    verdade. Esse corpo manifesta sua verdade na medida mesmo da re-

    sistência da fáb ula e da “d issim ulaçã o” do p oeta que nele se esconde.

    A problemática do pai escondido ou ausente é apenas a do espírito

    ainda exterior a si mesmo. M as a verdade desse espírito é atestad a po r

    essa próp ria ex terioridade. Ela é a verdade de um es pírito criança que

    faz seus poemas como faz suas armas ou suas religiões. Nunca há le-tra ó rfã, apenas sentido ainda p reso na indivisão prime ira, selado —

    e deste mo do posto à disposição — na exterioridade da ap resentação

    sensível. Podese então p ensa r o mov imento que vai da im ediatez p ri-

    meira do po ema/m undo à constituição da prosa do m undo racional,

    ou seja, à manifestação do espírito que se exprim e diretam ente em sua

     própria língua. A im propriedade nunca é senão im agem , a im agem

    nunca é senão sentido vindouro.

    Assim o poema épico não é apenas um objeto ou um momentoda estética entre outros. O lugar original, não evidente, que lhe cabe

    na divisão das formas do poema é, a esse respeito, significativo. Ele

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    ti ih/.i exemplarmente, e como que de uma vez por todas, a tarefa

     piu M rm átic a a que o poem a tem de responder, a de apresentar “ o

    • mu rito da coisa e seu estarlá com o um a só e mesm a to talida de den

    11  “ mom ento épico” sai então de sua designação como m om ento par

    t it ular do po rvir da poesia. As figuras que o povoa m são com o p rofei i.is da realização da idéia em seu elem ento p rópr io. Livro de vida ou

     poem a do povo, a epopéia estende sua som bra po r sobre toda a Esté -

    tica. Ela opõe seu corpo exemplar de verdade às heresias que o tor-

    na rseprosa do m un do carrega em si: heresias da letra sem corp o e

    do espírito errante que desviam o a cabam ento racional da prosa para

    novas e intermináveis aventuras do sentido. Dessas heresias, talvez a

     palavra literatura seja o nome genérico e a form a rom anesca o terre-

    no de manifestação privilegiada.Q ualq ue r que seja, com efeito, o partid o tirado po r Lukacs e seus

    discípulos confessos ou inconfessos das poucas linhas da  Estética  so-

     bre o rom ance como “epopéia m oderna burguesa” , a tarefa dessa “m o-

    derna epop éia”, a de “ devolver seu direito p erd ido ” a uma poesia que

    .) prosaização do m und o contradiz, permanece altame nte prob lem áti-

    ca. A apreciação de seu m odelo, o Wilhelm Meister  de Goethe, oscila

    cm Hegel entre o reconhecim ento do ideal estético de reco nstituição deuma vida poética e os escárnios sobre o rom anesco dos anos de a pren -

    dizado ao fim dos quais o herói se torn a um filisteu com o os outro s. E

    as possibilidades do gênero rom anesco se enco ntram circunscritas en-

    tre a comédia burguesa de seu conteúdo e a pretensão infinita de uma

    forma indiferente a qualquer conteúdo. E essa pretensão infinita que

    Hegel denuncia na teoria schlegeliana do Witz  e na prática do hum or

     próprio aos rom ances de JeanPaul, essas h is tó rias em que o rom ancis-

    ta se manifesta tanto mais como pai de suas fábulas quanto estas têmmenos consistência — essas histórias em que o rom anc ista lança seus

     personagens e os la rga, retom a sem parar a palavra que deu a eles, para

    com entar seus feitos e ditos e dissolver qu alqu er po sitividade na liber-

    Políticas da Escrita

    U H I V t i i S I D A C E f t t l E R A L D t U B f R L A N D I A  

    B I B L I O T E C A 3 3

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    dade infinita de sua fantasia. Nesse hum or, para H egel, é a dissociação

    simbólica primeira da forma e da significação que retorna, correlata

    mente à absolutização da subjetividade do autor.

    M inha hipótese é de que não se trata aí da ap reciação de um cer-

    to tipo de literatura: é antes a questão da literatura com o m odo de dis-

    curso que é pressentida e rejeitada po r Hegel. É efetivamente o p róp rio

    da imp ropriedade literária que é exacerbada nessa “ida e vind a” inces-

    sante do rom ancista hum orista entre a objetivação da fábula e seu pró -

     prio poder subjetivo de fabulação. A “ida e vinda” denunciada p or Hegel

    é, em termos platônicos, o ato de uma paternidade qiiy não pára de

    den unc iar seu próp rio exercício ao devolver o discurso à sua condição

    de orfanda de. E um fantasm a de voz que se insinua a o longo de todo

    o texto sem nunca tom ar corpo nem dar corpo à fábula. No exagerodo fantasista rom ântico , a literatura se figura a si mesm a com o o perpétuo

    requestionam ento da posição do pai do discurso, o perigo infinito da

    letra remetida a sua situação de orfan dad e. A alegoria disso po deria ser

    aquela Vie de Fibel, ond e JeanPaul transforma em personagem o nome

    com um dos abecedários alemães e organiza o curso de sua história como

    a reunião casual de folhas espalhadas de um livro perdido e transfo r-

    m adas em pipas, copos descartáveis ou papéis pa ra em brulha r peixe.

    Entre o arbitrário da subjetividade do c on tado r e a precariedade da folha

    impressa, sempre am eaçada de voltar a ser papel pa ra qua lquer uso, se

    esvai a substancialidade da relação éticopoética. Efetivamente, a fá-

     bula da le tra errante , do te xto tr ansform ado em folha de embalagem,

    será invertida nesses pequ enos mitos antiplatônicos em que os “ filhos

    do p ov o” do século X IX con tarão sua iniciação ao livro através do en-

    con tro e do dec iframen to desses escritos sem nom e que and am pelos

    embrulhos ou enrolam a comida do pobre: vida p arado xal da “letram orta ”, do texto órfão que seu próp rio aban don o torn a capaz de falar

    com aqueles a quem não compete o discurso e de pertu rba r assim a ordem

    que determina pa ra cada um o que “lhe comp ete”.

    As “idas e vindas” do humorista não passam portanto de uma

    figura particular dessa andança da letra muda/tagarela que, ao sub-

    trair a substancialidade do corpo po ético, desfaz a divisão do po em a

    e do filosofema. No momento em que deve se completar a troca da

     poeticid ade prim eira pela prosa do m undo racio nal e a troca do uni-verso ético heróico pelo Estado m od erno , aparece com o que um a de-

    rivação que é o início de um recomeço infinito: a literatura, ou seja,

    uma outra prosa que vem borrar a passagem do estado poético do

    Jacques Rancière

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    i i i ,m estado prosaico, um a prosa infinitizada que não tem nem

    in, i.didade do poético nem a transparência da prosa que ex

    tii| m , i   ii espirito em sua própria linguagem. Essa nova prosa, que re

    |R\ri indefinidamente a posição do pai do discurso e a anda nça da letra

    Pi1 1  i ii que Hegel proc ura conjugar. E m inha hipótese pessoal serian di

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    um a “distinção elem entar”, o conceito de literatura. Efetivam ente não

    há, diz Searle, traços com uns a todas as obras literárias qu e constituam

    “as condições necessárias e suficientes para que um te x to seja literá-

    rio” (Sens e t expression, p. 102). “L iteratu ra” então des igna “um a série

    de atitudes que tomamos em relação a um campo do discurso, maisque uma propriedade interna desse campo”. Esta é uma formulação

    que poderíamos subscrever. M as o problema todo está em saber como

    a interpretam os, que sentido dam os a “atitu de ” e como p ens am os essa

    ausência de “propriedade interna”. Ora, Searle a interpreta pelo ca-

    m inho mais curto: mais do que pôr em causa a própria idé ia de “p ro-

     p riedade” , ele escolhe priv ilegia r a simples relação do in te rno com o

    externo: se não há propriedade interna ao texto que o torne literário,

    ele simplesmente deduz irá daí que isto é o predicado de um julgamen toexterior. Desprezando a historicidade própria do conceito de litera-

    tura e todo o trabalho de sua autoelaboração, ele simplesmente o

    reverte para o lado d o consum idor: “ cabe ao leitor decidir se um a obra

    é ou não literatura ”. A literatura fica assim em purrada p a ra o campo

    da sociologia do julgamento de gosto. Permanece então em questão

    só a ficção, sendo que até desta o próp rio po derá ser pen sad o em ter-

    mos não mais de arbitrário, porém de convenção social. Efetivamen-te não há, afirma Searle, propriedades textuais que assinalem os tex-

    tos de ficção. O que os caracteriza fica po rtan to aq uém deles, na ati-

    tud e daqueles que os enunciam . Os enunciados de ficção se distinguem

    dos o utros po r diferenças no m odo de sua asserção, diferenças que só

     podem ser expressas negativam ente: diferente do au tor de enunciados

    “sérios”, o autor de enunciados ficcionais não se engaja nem na ver-

    dade do que enuncia nem mesmo em sua próp ria crença nessa verda-

    de. É como dizer que ele não faz na verdade aq uilo qu e parec e fazer:asserções. O a uto r de ficção “ faz de co n ta” que está fazendo asserções,

    ele “im ita” o ato de fazêlas. Assim como a “ dissim ulação ” hom érica

    em Hegel, a categoria platônica da mímese retorna como princípio

     positivo, para afastar a pertu rbação desse m odo de escrita “sem p ro -

     prie dade in terna” que é a literatura. íris M urdoch, em sum a, faz de

    conta que está fazendo asserções do mesmo modo que Homero, se-

    gundo Platão, fazia de conta que estava “fazendo” sábios, legislado-

    res ou guerreiros. A reviravolta po sitiva da noção im plica apenas num

     problem a: com o é que o uso do fingim ento po r parte do escritor é

    recebido pelo que é? Como é que o ficcionista pode imitar perfeita-

    mente um ato sem criar a ilusão de sua realização? A resposta à questão

    36 Jacques Rancière

  • 8/20/2019 RANCIÈRE, J. Literatura Impensável. in Políticas Da Escrita

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     platônica é dada nos term os de P rotágoras: é a convenção que funciona

    entre o escritor e o leitor. O e nu nciad o fictício é recebido exatam ente

    |k   I.» que é — nem realid ad e, nem mentira — po rque o esc ritor e o leitor

    limlos combinam suspender as regras normais da asserção.

    Essa solução simples deixa Searle num paradoxo singular. Ela oobriga a negar o s critério s de distinção on de eles são m anifestos pa ra

    ■olocálos onde eles nã o pode m ser determinados. Kàte Ham burg er

    |.i assinalou a estranh eza do exemplo escolhido po r Searle p ara demons

    11 ar a ausência de pro prie da de s textu ais distintivas, ou seja, o início

  • 8/20/2019 RANCIÈRE, J. Literatura Impensável. in Políticas Da Escrita

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    regra fixando uma dupla relação: a relação entre o enunciador e seu

    enu nciad o, a relação entre o enun ciado e aquele que o recebe. E isto o

    que significa a aventura da letra sem corpo e que é ainda conjurado

     pela legislação filosófica do poema. M ais exatam ente , há duas maneiras

    de conjurar a perturbaç ão, ou seja, de jogar Platão contra Platão. Umaconsiste em reun ir as três instâncias do texto , do a uto r e do seu desti-

    natá rio num a mesma totalidade, a ou tra consiste, ao contrário de se-

     parála s, em pôr o au to r e o destinatário a um a dis tância regula da em

    relação ao texto. Uma joga com a substancialidade do conteúdo, a

    outra com a convencionalidade da forma. Hegel toma de maneira

    exem plar o prime iro caminho: o herói, o aedo que o can ta e o púb li-

    co que escuta o aedo pertencem a um a m esma totalidade substancial.

    Há uma interioridade própria à exterioridade poética que contém o poeta . O poem a épico leva a voz que o leva. Assim a condenação pla-

    tônica do poem a hom érico fica revertida e o pensam ento protegido da

     perturbação li te rária .

    Searle resolve o problem a às avessas. A correta divisão d os m o-

    dos do discurso está garantida, nele, pela d upla exterioridade do en un-

    ciador e do d estinatário. Am bos são exteriores ao enunciado e tratam

     ju nto s do que convém fazer com este. O texto entã o se torna um jogo

    fixado por regras que determinam papéis ou ainda um produto cujoemprego é determinado por seus produtores e seus usuários. Ao mes-

    mo tem po, as situações de engano d enunciadas por P latão podem se

    to rn ar situações exemplares de conv encio nalidad e ficcional bem regu-

    lada. Significativamente, com efeito, são os modos da ficção classica

    mente tidos como os mais enganadores, o relato na primeira pessoa e

    o teatro, que se torn am pa ra Searle os “ m elhores” casos, à custa de um

    deslocam ento de acento específico. O relato na p rime ira pessoa é valo-

    rizado porque nele o narrador se mostra “fazendo de conta que está

    fazendo asserções”. Isto quer dizer, em suma, que o eu  da na rração nela

    instala um pai, um aco m pan had or que estabelece uma convenção e faz

    consistir os referentes do relato na esfera pró pria da n arraç ão. O na r-

    rad o r se autodesigna como diferente do au tor, ao mesmo tempo que

    an un cia a ficcionalidade dos person agen s do relato. P ara isto é preciso

    som ente a escolha de um tipo de narra ção em primeira pessoa bem de-

    finido, o do na rrad or que se apresenta, apresenta seu m undo e conduz

    a ação. Mas será que a literatura não se afirma com o tal onde essa posição

    ideal do na rrad or se desfaz: qua nd o o “ eu” ou o “n ós” que começa a

    narração logo a abandona (M adame Bovary);  quand o o “e u” não se

    38 Jacques Rancière

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    iI|

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    /A IMPROPRIEDADE LITERÁRIA

    A literatura, de fato, começa onde essa “realidade da ficção” é

     posta em questã o. Com eça com o bom golpe de espada de Dom Qui

    xote através do bom co rpo ficcional das marionetes do M estre Pedro.

    Pois há duas maneiras de ler esse episódio. Podese ver nele simples-mente a loucura daquele que tom a a ficção por realidade. M as sabe-

    mos que Dom Q uixote não tom a sistematicamente a ficção po r reali-dade. Digalhe Sancho o que disser, ele se declara incapaz de reconhecer

    Dulcinéia e suas dama s de honra n as três camponesas do T oboso. O

    que caracteriza mais profundamente Dom Quixote é o fato de não

    reconhecer aquilo que fundam enta a prática de M estre Pedro e a teo-

    ria de Jo hn Searle: a idéia de um a relação co nvenc ional, institucional

    entre realidade e ficção. Para os com panhe iros de Dom Q uixote, como

     para John Searle, há um prin cíp io de re alidade da ficção . H á lugares

    e momentos em que as pessoas se reúnem para se divertir com histó-

    rias em que acreditam sem acreditar. E já os críticos do século XVI

    com eçaram a definir as esferas onde a imaginação po ética tem to da a

    licença e aquelas onde ela tem de se submeter à realidade verificável.

    O cônego e o estalajadeiro põem em aplicação essas regras que evi-

    tam que se recubram o cam po do verificável e o da im aginação (William Nelson,  Fact or fiction. The dile m ma o f th e Renaissance storyte ller).  

    Ora, Dom Quixote, de seu lado, recusa essa regra séria do nãosério,

    essa divisão que organiza a ficção dentro da realidade. Não poderia

    haver para ele a realidade e a ficção. Há apenas verdadeiro e falso. Se

    a história é verda deira, é preciso ir em soco rro da pob re p rincesa, se é

    falsa, que razão temos nós para nos reunir e fingir nos interessarmos

     por ela? N ão há regra séria do nãosério, não há divisão instituível en tre

    situações em que se acredita e situações em que não se acredita. Háuma relação com a verdade que desregula todas essas divisões entre

    m odos de discurso e m odo s de recepção, que devolve tod a h istória ao

    aleatório da palavra sem corpo e fundamenta o dever absoluto de

    emprestar seu corpo para subtrair a verdade da letra a seu perigo.

    E com certeza não é indiferente que a vítima de Dom Quixote

    seja aqui o alvo do filósofo platônico: um m arionetista. Excedendo jus-

    tamente toda ilusão ou convenção m imética com seu gesto, Dom Q ui-

    xote reabre a qu estão , fechada pela proscrição do rei Tam os e a legis-

    lação do filósoforei. Ele reexpõe a questão “literá ria” p or excelência,

    aquela questão do corpo da letra que a filosofia procura esquecer no

    40 Jacques Rancière

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      i.ln poem a/livro do povo com o na represe ntação do livro/modo

    B i HMi . A literatura n ão é simplesmente essa zona indete rm inad a de

    ■ h i i i i   s o   que estaria alojad a nos vazios ou nas margens esquecidas da

    hUmna da poesia e da eloqüência. A literatura é uma dramática da

    i im, desse trajeto de letra desincorp orada que pod e tom ar qualqu er

    i ni po. Kla tem seu lugar nessa disjunçã o pró pr ia ao conce ito de escri

    i i qin faz com que a p ró pria op osiç ão do logos vivo e da escrita m or -

    ta só se coloque à custa de instituir o mito de outra escrita, de um es

    h ito mais que escrito. Já destaquei essa disposição singu lar da “ques

    i,n> da escrita”, de que  Fedro  nos apresenta a configuração acab ada.

    I ni primeiro lugar, a escrita só pode ser condenada a isto em nome

    de outra escrita, aquela que se inscreve na alma. Em segundo lugar, o

    modo de discurso que nela divide o logos vivo e a letra m or ta tem , elemesmo, que se dar sob a forma da indiscernibilidade do logos  e doniytbos.  Em terceiro lugar, o discurso que deve pôr a escrita em seu

    lugar tem, ele mesmo, que se dar um corpo complexo de escrita que

    multiplique os relatos, entrelace as figuras e volte sem cessar a colo-

    rar a questão do pai do discurso. O próprio impróprio da literatura

    está inscrito nessa disjunção d a escrita. A escrita sempre significa mais

    que o ato empírico de seu traçado. Ela metaforiza uma relação entre

    a ordem do discurso e a ordem dos corpos em comunidade. Toda es-crita desenha ao mesmo tempo um mito da escrita que institui linhas

    de divisão entre os mo dos do discurso, linhas de divisão na o rdem dos

    corpos e relações legítimas ou ilegítimas entre umas e outras: mito de

    distribuição dos discursos e dos corpos, sem pre sujeito a redistribuição.

    E esse jogo põe em cena o grande mito de outra escrita, uma escrita

    mais que escrita, um logos incorporado. Antes de ser polissemia ou

    dissem inação, a escrita é divisão. E é a essa divisão que a literatu ra dá

    figura, ao ree xp or sem cessar a questão do p ai do discurso e do corpo

    da letra. Ela tem seu ato no gesto que desfaz a relação estabelecida da

    realidade e da ficção, ou da filosofia e do poema, para devolver toda

    matéria de ficção ou todo ritmo poético ao estatuto da letra aban-

    donada: letra emancipada que apaga a divisão de legitimidade na co-

    m unidade indiferente dos seres falantes, letra órfã à procura de seu cor-

     po de verd ade. E talvez essa dupla figura do abandono dê à lite ratura

    sua tensão específica. Seu movimento se desd obra no intervalo de duasescritas, no intervalo que separa a fábula da letra abandonada da fá-

     bula do corpo de verdade, do logos  que se tornou carne sensível do

    mundo.

    Políticas da Escrita 41

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    Podese então m anter ao mesmo tem po dois enunciados apare n-

    temente contraditórios: a literatura é o modo do discurso que desfaz

    a legislação filosófica do poético ou do ficcional, a divisão dos discursos

    e dos corpos. Mas isso também quer dizer que ela tem seu lugar uni-cam ente na disjunção da escrita. “Escrever” , diz K afk a” , “não se alo-

     ja em si m esm o” . A dificuldade em que ela põe a fi losofia não é res-

     pondid a por nenhum saber lite rário do “p róprio” do lite rário . Pois,

     precisamente , não há escrita própria , esta do ou uso específico da lin-

    guagem em que o literário possa se conhec er como tal. O nde ela quei-

    ra “alojarse em si m esm a” , definir esse ser próp rio ou esse saber pró -

     prio do li te rário , a li te ratura é obrig ada a se fazer fi losofia, a voltar a

     jo gar com a legislação filosófica das divisões do discurso e com a u to -

     pia filosó fica de um a esc rita mais que esc rita . E é certa m ente no escri-tor que, mais que qualque r outro, enca rnou a ab solutização da litera-

    tura , que ro dizer, em M allarm é, que essa necessidade se manifesta com

    mais evidência.

    O que se pode entender exatamente, com efeito, na pretensão

    mallarmeana a uma literatura que existe “com exceção de tudo”, na

    “devoção às vinte e quatro letras”, e na separação que ele proclama

    entre dois estados da língua? Uma tradição de pensamento marcada

    em particu lar pelas análises de M aurice Blanchot lê aí de bo m gradouma reversão da função da linguagem: esta se separaria de sua fun-

    ção transitiva ou comun icacional, para se afu nda r em sua próp ria pro -

    fundidade, p ara se dizer a si mesma. M as o conceito de intransitividade,

    m uitas vezes afirm ado , para dizer a verdade não traz n enh um a luz. A

    fronteira entre um uso transitivo e um uso intransitivo da linguagem

    nã o tem consistência lingüística. Pertence às utop ias da d ivisão dos dis-cursos. É o que surge com clareza na oposição mallarmeana de duas

    formas radicalmente antagonistas do escrito, o jornal e o poema: o jo rnal, ou se ja , o lu gar de despejo, in diferente , o escrito que funcio na

    como puro instrumento de circulação, como a moeda que se passa

    silenciosamente para a mão do vizinho; o poem a, ou seja, o verso, no

    sentido forte da palavra, a “palavra tota l, nova, estranha à língua” mastamb ém o estado ritm ado, o estado m edido da língua. N ão existe aí,

     propriam ente , uso in transit iv o que se opõe a uso transit iv o. T anto o

    despejo quanto o verso fundamentam uma comunicação: a comuni-

    cação silenciosa da circulação “ m on etá ria” dos puros signos de trocaou a comunicação numerada dos “puros motivos rítmicos do ser”.

    Tanto um quanto o outro fundamentam uma comunidade pol í t ica

    42 Jacques Rancière

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    • ii Uri .1  dos eleitores que despejam silenciosam ente suas cédulas na

      ........  .1 da m ultidão, “gu ardiã do m istério” e cha m ada p ara as fes

    M do futuro.

    iim M allarmé, não é porta nto um avesso silencioso da linguagem

    i(iu m opõe a um a tagarelice da com unicação. É antes, mesm o, umaliln.i platônica da música, ritmo do mundo, da alma e da cidade, que

    •i' opor ao silêncio da troca . M allarmé põe nov am ente em cena a uto

    l

    .1 musica da alma e da cidade se torna aí não mais o assunto do filó

    •11o, mas do p oeta . A partilh a do logos  vivo e da letra morta se re-

    produz exatam ente na oposição do verso e do despejo. E, tan to q ua n-

    to o livro/mundo de Hegel ou o livro/modo de usar de Searle, ela bar

    i 1 1 1  acesso do conceito de literatura. N a pa rtilha m allarm eana , o quelorna impensável é justamen te a aven tura m odern a dessa pro sa que

    n.i apa à partilha hegeliana. O ro m anc e está destinad o a ser ou a ssun

    1 1 1  clr vitrine, “prod uto de livre aceitação ” , ou poem a dissimulado, “se

    • o ia busca de mú sica ” (“Etalage s” ). Só há dois term os em jogo: ou o

    ' !

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    da p ágina o u do livro m aterialmen te semelhantes em sua disposição à

    significação que carregam. Estou pensa ndo , é claro, n aquela caligra-

    fia do “C oup de dés” , ond e Valéry saudava a nov idade inédita de um

    “espaço que pensa” , mas onde o próprio M allarm é exprimia mais bru -

    talmente o ideal de um texto semelhante ao que ele diz, fazendo no papel a mím ica da form a da conste lação e o m ovim ento do barco que

    afunda, pois “o ritmo de uma frase a respeito de um ato ou um obje-

    to só tem sentido se ele os imita e, figurado no papel, retomado pelas

    letras à sua estampa de origem, tem que transmitir alguma coisa des-

    ta assim mesmo” (carta a André Gide, 14 de maio de 1897).

     Na verdade a esc rita ra re fe ita, v oltada para a neutralidade de uma

    linguagem que se diz a si mesma em sua indiferença, é toda uma d ram a-turgia do verdadeiro corpo da escrita que é desdobrada pelo projeto

    m allarm eano de um a “e xpan são total da letra” , um excesso mimético

    radical que deixa ao encargo do poeta o cuidado de realizar a legisla-

    ção filosófica, de fixar a música da alma e do m und o p or meio da qual

    a ordem das palavras e a ordem dos corpos estão em harm onia. A “li-

    teratu ra sozinha, com exceção de tu d o ” é na verdade a literatura leva-

    da ao limite em que ela se suprime, em que a poesia abole sua p ertu r-

     bação fazendose filosofia. N ão há escrita pura, m odo próprio à lin-guagem literária. A literatura existe precisamente por falta da escrita

     pura ou do livro da encarnação. Ela existe na falta de seu próprio mito.

    E nada o exprim e m elhor do que aquele trecho de A prisioneira em que

    o na rrad or prou stiano, ao ouvir o septeto de Vinteuil, opõe às palavras

    indiferentes da conversa aquela linguagem original da com unicação das

    almas cujas lembrança é evocada pela m úsica. E esse m ito de um a lin-

    guagem esquecida que susten ta o projeto de escrever. M as esse projetosó pode se realizar à custa de um desvio radical. A “frase celeste” de

    Vinteuil não passa ela mesma de uma reconstituição, do fruto do tra-

     balho realizado em cim a dos hieróglifo s ilegíveis de V in teuil po r aque-

    la mesma que abreviou a vida do músico, a perversa amiga de sua fi-

    lha. E, do mesmo m odo , o trabalh o de escrita no q ual ela em penha o

    na rrado r tem que passar p or um trabalho em cima dos signos que é o

    con trário do m ito da co m unicação musical das almas. Tem que passar

     pela experiência da perversão e pelo decif ram ento dos hieróglifo s a queo corpo de m entira, o corpo de perversão de Albertine, este “ser de fuga” ,

    obriga o apaixo nad o ciumento. A fábula proustiana que faz do ciumento

    o auto r exem plar do livro arru ina a uto pia épica do corpo de verdade,

    do mesmo modo que o romance do louco, quebrando as marionetes,

    44 Jacques R ancière

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      ii.iva o princ ípio de realidade da ficção, a utopia tea tral da ficção

    Plu ' . < 1 1  lugar. A literatura não existe como efetuação de seu ato pró

    ■ i ii i ( )s dois esforços filosóficos para d ar à letra seu co rpo e seu lugar,

    a tentativa hegeliana de encon trar na substancialidade d o epos o cor

     jm dc verdade do poem a, ass im como a tentativa searliana de dete rm i-nai na func iona lidade teatral o ser do corp o de ficção, perm item situa r

     ,l m iitrario  esse lugar problem ático ond e a literatura “n ão se aloja em

    ii mesma” . Ela se aloja no espaço dessas aventuras da letra on de o ciu-

    mento que quer fazer com que os corp os falem responde ao louco que

    i||iit dar corpo às palav ras, nesse espaço delimitado p or d uas fábulas

    limite: a gra nde fábula do livro de vida e a pequ ena f ábula de Fibel; o

    liv i o da verdade encarnada e o livro reconstitu ído a pa rtir de folhas er

    i antes que conta as aventuras do abecedário. A literatura não existe nem•oi no resultado de um a convenção nem com o efetuação de um poder

    específico da linguagem. Ela existe na relação entre uma posição de enun