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    O AFREUDISACO LACAN NA GALXIA

    DE LALNGUA (FREUD, LACAN A ESCRITURA)1

    Haroldo de Campos

    1. Exerccio de EstiIografia

    Em meados de Julho de 1985, meu velho amigo, o psicanalista Joseph Atti (de quem,

    h cerca de dois anos, foi publicado aqui em Salvador um importante ensaio sobre A

    questo do simblico", sob a chancela do Seminrio do Campo Freudiano), apresentou-

    me a Judith Miller na redaco da revista L'ANE. Conversamos, ento, sobre a relao

    de Lacan e Gngora, Lacan e o Barroco, assunto que eu fiquei de tematizar em um

    ensaio (este compromisso, s o pude saldar em maio de 1988, em meu texto

    "Barrocoldio: transa chim", dedicado a, Atti e estampado no n. 1, vero de 88, da

    revista ISSO/Despensa Freudiana", dirigida em Belo Horizonte pelos psicanalistas

    Srgio Laia, e Wellington Tibrcio).

    Pois bem, na mesma ocasio, fui informado de que L'ANE cogitava de publicar

    um numero especial enfocando o problema do estilo, ou, mais especificamente, a glosa

    de Lacan , clebre frase de Buffon "Le style est l'homme mme" ("O estilo o prprio

    homem", ou, mais sinteticamente, como ficou consagrada em portugus, "O estilo o

    homem"). Nessa glosa - ou pacto de aliana que Lacan faz com a frmula clssica, sob a

    condio de along-la interrogativamente (rallier para rallonger) -, l-se agora: "Le style

    c'est l'homme (...): l'homme qui l'on s'adresse?" ("O estilo o homem (...): o homem aquem nos dirigimos?").

    crits I: "Le Style c'est l'homme, en rallierons-nous la

    formule, "seulement la rallonger: 'l'homme qui l'on

    s'adresse?" (p. 15, "Ouverture de ce recueil", Octobre

    1966);

    Escritos (Perspectiva. 1968; trad. de Ins Oseki-Depr):

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    "O estilo o homem, acrescentaramos frmula, somente

    para along-la: o homem a quem nos dirigimos?" (p. 14,

    "Abertura da colectnea").

    Assim ampliado, o adgio - explica Lacan - satisfaria ao princpio, por ele promovido,

    segundo o qual: "dans le langage notre message nous vient de l'Autre" ("na linguagem,

    nossa mensagem nos vem do Outro"; EC, 15; ESC, 14). Intervim, imediatamente, com

    uma nova glosa - uma reglosa glosa lacaniana - dizendo: ocorre-me um "motto", uma

    divisa, uma epgrafe para esse projectado numero de L'ANE:. '

    Le style c'est l'homme (Buffon)

    Le style c'est l'Autre (Lacan)

    Le stylo c'est l'ANE.

    No meu Witz, no meu "jogo engenhoso de esprito"2, stylo("lapiseira", caneta tinteiro

    ou esferogrfica", em francs) ,se substitui a "estilo", ambos style e stylographe (ou

    stylo, abreviadamente)' provenientes da mesma palavra latina stilus, com ,o sentido de

    instrumento pontiagudo, de metal ou osso, com o qual se escrevia nas tbuas enceradas;

    alis, esta tambm uma das acepes" ainda que pouco usada, ,de estilo" em

    portugus; lembre-se, na mesma rea etimolgica, o diminutivo "estilete", lexicalizado

    como "espcie de punhal", que nos chegou atravs do italiano stiletto; foi por um passe

    metonmico - por, um transpasse de significantes - que o instrumento manual da

    escritura passou a designar a marca escritural mesma: o estilo.

    Ento: "Le stylo c'est l'ANE." ANE abrevia ANALYSTE, ou melhor, NE--LISTE,

    trocadilho irnico com o qual Lacan pe em questo a transmisso institucional dapsicanlise3. Nesse "motto" resultante da releitura do rifo de Buffon pelo refro de

    Lacan; nesse duplo deslocamento chistoso do brocardo clebre, insinuei ainda uma

    aluso: stylo remete quela passagem de "Fonction et champ de la parole et du langage

    en psychanalyse" (tambm conhecido como "Discours de Rome", 1953), em que Lacan

    afirma:, "l'analyste participe du scribe", ou, numa citao ri1ais extensa, em verso

    brasileira ("Funo e campo de fala e da linguagem em psicanlise"): "Desempenhamos

    um papel de registro (un rle d'enregistrement)... Testemunha tomada da sinceridadedo sujeito, depositrio do auto (procs-verbal) de seu discurso, referncia de sua

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    exactido, garante de sua direiteza, guarda de seu testamento, tabelio de seus codicilos,

    o analista faz a parte do escriba." (EC I, 197; ESC, 177). O que no o impede,

    argumenta Lacan, de permanecer ao mesmo tempo: "mestre da verdade de que :esse

    discurso o progresso".

    Pois bem, esse quase-escriba, esse "stylo" que tambm "maitre de la verit" - o

    analista - pelo menos ai partir de Lacan se reclama ostensivamente de um "estilo"

    (donde eu pudesse talvez prosseguir no meu jogo: "Le stylo c'est le style", o que

    equivaleria a reconduzir ambas as palavras sua matriz etimolgica e, assim, fechar o

    crculo hermenutico). o prprio Lacan quem proclama: "Todo retorno a Freud, que

    d matria a um ensinamento digno desse nome, no se produzir seno pela via, por

    onde a verdade mais escondida se manifesta nas revolues da cultura. Essa via a

    nica formao que podemos pretender transmitir aos que nos seguem. Ela se chama um

    estilo." ("La psychanaIyse et son enseignement", 1957; crits, Seuil, 1966, p. 458)4". A

    propsito dessa declarao de postura, Catherine Backs-Clment, falando de

    "psicanlise e literatura", faz observaes muito pertinentes: "Formao; revoluo da

    cultura: o estilo, definido por Lacan, se situa de partida fora de sua situao literria, ou

    antes, ele o correlato necessrio daquilo que, em Lacan, se ,chama LETRA, e regenera

    o significante literatura, que vem: de Belas-Letras. o. estilo, formao revolucionriano plano da linguagem, o que, no pensamento de Lacan, toma possvel um ultrapassar

    da literatura em proveito da literalidade poder da letra, instncia da letra no

    Inconsciente, e, como indica a sequncia desse ttulo de um extracto dos crits, la

    raison depuis Freud ('a razo desde Freud'), gnese de uma outra racionalidade." ("La

    stratgie du langage",Littrature, Larousse, n 3, outubro 71).

    2. De Gngora a Mallarm

    Esta preocupao com o estilo (ou esta ocupao do estilo), de parte de um psicanalista,

    no causa espcie a um escritor - a um poeta - desde o momento em que, este mesmo

    analista afirma: " toda a estrutura da linguagem que a experincia psicanaltica

    descobre no inconsciente"; ou ainda: a linguagem com sua estrutura preexiste entrada

    que nela faz cada sujeito a um dado momento de seu desenvolvimento mental"; e mais:

    "o trabalho do sonho obedece s leis do significante"; "a noo de um deslizamentoincessante do significado sob o significante se impe portanto"; a "lei do paralelismo do

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    significante" rege tanto uma estrofe moderna", quanto "a primitiva gesta eslava e a

    poesia chinesa mais requintada"; basta "escutar a poesia...para que a se faa ouvir uma

    polifonia", para ver "que todo o discurso mostra ;alinhar-se sobre as diversas pautas de

    uma partitura". Tais afirmaes, extradas de "L'instance de la lettre dans l'inconscient",

    1957, se convalidam na descoberta dos cadernos de Saussure sobre a dana no-linear

    das figuras fnicas ou anagramas" na poesia latina, vdica e da antiguidade

    germnica5; coincidem tambm com a ideia jakobsoniana da paronomsia (jogo das

    convergncias e/ou contrastes fonossemnticos), tratada figura-rainha da poesia. Essa

    "ocupao" (no sentido latino, de ob-capire, "tomar posse de") do terreno, vacante para

    outros seguidores menos criativos de Freud, do que se resume na palavra "estilo", no

    causa espcie - reitero - para um poeta, desde o momento em que depara com o trecho

    de "Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956", em que Lacan

    assume a comparao (para tantos pejorativa, sobretudo no horizonte francs de clart e

    do classicismo normativo) com Gngora:

    "...no h forma por mais elaborada do estilo em que o

    inconsciente no abunde, sem excetuar as eruditas, as

    conceitistas e as preciosas, que ele no desdenha mais do que

    no o faz o autor destas linhas, o Gngora da psicanlise, pelo

    que dizem, para servi-los" (ESC, 197)

    ("...il n'est pas de forme si labore du style ou l'inconscient

    n'abonde, sans en excepter les rudites, les concettistes et les

    prcieuses, qu'il ne ddaigne pas plus que ne le fait l'auteur de

    ces lignes, le Gongora de la psychanalyse, ce qu'on dit, pour

    vous servir"; EC II, 18).

    O Gngora da psicanlise... Recapitulemos: Don Luis de Gngora y Argote, o Prncipe

    das Trevas do Barroco espanhol, o responsvel pelo estilo "culto" ou culterano",

    sinnimo de rebuscamento formal e mau gosto, contra o qual, por dois sculos no

    mnimo (os scs. XVIII XIX), se levantou o menosprezo dos estudiosos da literatura,

    traduzido em verdadeira "gongorofobia"; aquele cuja "obscuridade" foi reinterpretada

    por Dmaso Alonso um dos reabilitadores do estilo gongorino para a poesia moderna,juntamente com Garcia Lorca, Gerardo Diego e o mexicano Alfonso Reyes - como um

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    efeito de deslumbramento, de ofuscao, provocado por uma radiao esttica de

    hiperluminosidade... Esse mesmo Gngora, que os simbolistas franceses compararam a

    MaIlarm, contribuindo para o seu ,renascimento no gosto moderno...6Pois a MaIlarm,

    chamado por alguns l'Obscur (ttulo, alis, do livro de Charles Mauron sobre o poeta,

    em 1941), foi tambm paragonado Lacan. o que informa o n. especial (36-37, 1966)

    dedicado ao estruturalismo, da revista Yale French Studies, no. qual a obra lacaniana

    apresentada ao publico de lngua inglesa por Jan Miel, com a seguinte considerao

    conclusiva: "Uma palavra final sobre o estilo de Jacques Lacan. Como amigo ou mdico

    de alguns dos principais artistas e poetas deste sculo, e sendo ele prprio: um agudo

    crtico de literatura, o Dr. Lacan no se regateia as vantagens de uma expresso literria

    complexa. Seu estilo, chamado malarmeano por seus prprios colegas, peculiar e, por

    vezes, imensamente difcil, de um modo deliberado..." O paralelo cabe maravilha, j

    que, na esteira de Mallarm, Lacan tambm um "syntaxier" (um "sintaxista"), um

    exmio manipulador da sintaxe francesa at os seus extremos limites de diagramao

    frsica, o que, no -toa, lhe. permite acentuar: "a determinao simblica (...) deve ser

    considerada como fato de sintaxe, se quisermos apreender seus efeitos de analogia" (EC

    II. 19; ESC, 198, "Situao da psicanlise..."); e ainda: "a ordem simblica no

    abordvel seno por seu prprio aparelho. Far-se- lgebra sem saber escrever? Da

    mesma forma no se pode tratar do menor efeito de significaste, no mais do que

    intercept-lo, sem suspeitar pelo menos o que significa um, fato de escritura" (EC II, 21;

    ESC, 201).

    este Gngora-Mallarm, o Dr. Lacan, que inscreve num cursus ideal do ensinamento

    analtico essa "ponta suprema da esttica da linguagem: a potica, que incluiria a

    tcnica, deixada na sombra, do chiste (mot d'esprit)". (EC I, 169; ESC, 152). Isto

    porque "a experincia psicanaltica reencontrou no homem o imperativo do verbo comoa lei que o formou sua imagem. Ela manipula a funo potica linguagem para dar a

    seu desejo o sua mediao simblica" (EC 'I, 207; ESC, 186). De onde decorre que,

    "para restituir fala seu pleno valor de evocao (...) essa tcnica exigiria, para se

    ensinar assim como para se aprender, uma assimilao profunda dos recursos de uma

    lngua, e especialmente daqueles que so realizados concretamente em seus textos

    poticos. Sabe-se que era o caso de Freud quanto s letras alems..." (E I, 177; ESC,

    159).

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    3. Freud, escritor-inventor?

    Sobre Freud escritor, h um estudo pioneiro; nem sempre lembra. do, do terico da

    literatura suo Walter Muschg, "Freud ais Scriftsteller" (1930)7. Nesse trabalho, so

    postos em relevo alguns aspectos da relao de Freud com a linguagem que parecem dar

    razo ao empenho reivindicatrio de Lacan. Observa Muschg: "Os escritos de Freud

    contm claros indcios de que o seu autor sentia-se cnscio do seu senhorio sobre a

    linguagem. Beleza e poder de convencimento (Schlagkraft) no formular, segurana

    rtmica e sonora, manifestam-se j nos seus ttulos". E passa a exemplificar com a

    percia demonstrada por Freud na configurao fnica e semntica do nome de suas

    obras (Das Unbehagen in der Kultur, Das Ich und das Es, Jenseits des

    Lustprinzips, Trauer und Melancholie). Nesses ttulos, graas a uma "tenso

    antittica", que encontra correspondncia nos "ictos" (tempos marcados) da acentuao,

    o ouvido parece captar, em "frmulas lacnicas", algo como "a lei da personalidade

    (das Gesetz der Persnlichkeit), sua energia refreada, uma plenitude na parcimnia".

    Releva a "tcita eloquncia" de um composto certeiramente balanceado como Die

    Traumdeutung, a "fora imagtica" (bildkraft), apoiada no "ritmo binrio", de uma

    designao como Massenpsychologie und Ich-Analyse. "Ningum poria em dvida" -

    comenta - "que uma mo experta em beleza se tenha deixado expressar numa forma

    assim". Em exemplos como esses estariam J os paradigmas para os acha. dos

    freudianos em obras como Psychopathologie des Alltagslebens, no livro sobre o Witz,

    na interpretao dos sonhos. "A maneira como ele domina o teclado dos acordes,

    consonncias e associaes sonoras que resvalam internamente umas nas outras; o

    modo como capaz de acompanhar o mais tresloucado jogo espirituoso de palavras

    (WortWitz), os caprichos do som em liberdade com ele, um irmo de Mongenstern e

    dos Surrealistas, dedilha o piano microtonal da linguagem. isso deixa em todo leitoruma forte impresso a respeito de sua capacidade de fantasia lingustica

    (Sprachphantasie). A esse captulo segue merecidamente outro sobre a reproduo das

    relaes sintcticas no sonho, que todo poeta receber como fascnio. S algum com

    profunda vivncia da linguagem poderia escrever tudo isso.

    Para mim, at onde posso conjecturar, esse Freud atento ao "design" sintctico da

    linguagem, capaz de debruar-se com ouvido sutilssimo (no inferior em acuidade escuta fonolgica de um Jakobson) sobre a trama do som e do sentido, que est

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    sobretudo subentendido na reivindicao mais funda de Lacan; esse Freud

    "microlgic", de: preferncia mesmo quele outro, dos sempre citados ensaios que

    tematizam obras literrias artsticas ou seus criadores (Gradivade Jensen, o "Moiss".

    de Michelngelo, ou por exemplo, os estudos analticos sobre Dostoivski e Leonardo

    da Vinci).

    certo, por outro lado, que a postura de Freud perante a linguagem era primacialmente

    a de um homem de cincia, de um pesquisador (Forscher), como sublinha W. Muschg,

    ao assinalar: "Como puro pesquisador Freud foi levado a usurpar a arquipalavra

    (Urwort) de todos os poetas, a palavra sonho, para si prprio. Ela lhe veio a calhar

    como suma (Inbegriff) de uma temtica cientfica soberanamente escolhida; isto

    certo, mas de que modo ele se apoderou tambm de seu poder sonoro de incitao

    (Lautreize)!". E Muschg passa a enumerar as variaes que Freud foi capaz de extrair

    da palavra Traum (Traumquelle, Traumtag, Traumwunsch, Traumrede,

    Traumarbeit, Traumverdichtung, Traumreizen, Traumentstellung,

    Traumgedanke, Traummaterial). Quanto aos propsitos, porm, dessa. fbrica

    neolgica que se vale dos recursos aglutinantes do idioma alemo ressalva: apesar de

    seu ineludvel fascnio, elas essas palavras sedutoras - foram criadas como "conceitos

    fundamentais da anlise" (analytische Grundbegriffe). Vale dizer: "A magia das

    palavras no est entregue tentao aliciadora delas mesmas, mas acompanha e serve a

    um conhecimento. No um livre jogo prazeroso, uma outorga de leis

    (Gesetzgebung)".

    Algo de semelhante pode-se afirmar de Lacan, para quem o interesse primeiro no est

    em "le plaisir du texte" (como no caso de Roland Barthes), mas na "funo do

    significante" enquanto "fundamento da dimenso do simblico", o qual "s o discursoanaltico nos permite isolar". O que no impede Lacan de proclamar. por outro lado:

    "Direi que o significante se situa no nvel da substncia gozante" (O Seminrio, Livro

    20, verso de M. D. Magno, Zahar, 1982; texto de 1973, dedicado a Jakobson). Le stylo,

    o "escriba" tambm - e sobretudo - "mestre da verdade": "A anlise deve visar

    passagem de uma fala verdadeira, que junte o sujeito a um outro sujeito do outro lado

    do muro da linguagem. a relao derradeira de um sujeito a um Outro verdadeiro, ao

    Outro que d a resposta que no se espera, que define o ponto terminaI da anlise (...) ali que o sujeito reintegra autenticamente seus membros disjuntos, e reconhece,

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    reagrega sua experincia" (O SEM., L. 2, verso de Marie Christine L. Penot em

    colaborao com Antonio Luiz Quinet de Andrade, Zahar, 1985; "Do Pequeno ao

    Grande Outro". 1955).

    S que. no retomo a Freud. o percurso de volta ao precursor se faz por uma

    radicalizao do discurso analtico. o que eu me proponho chamar afreudisaco"

    Lacan. O que outra coisa no seno um exponenciar em princpio obsessivo de estilo,

    um elevar at extrema potncia de linguagem aquilo que, em Freud, era sobretudo um

    dispositivo de leitura analtica (ainda quando rastrevel nos paradigmas dispersos de

    uma indubitvel predisposio escrituraI). Assim, se me licito um outro paralelo,

    Lezama Lima gongorizou Gngora, levou-o ostensivamente ao excesso em coleios

    serpentinos. em seu ensaio exegtico "Sierpe de Don Luis de Gngora". Nesse sentido

    pode-se dizer, Lacan tem parte com o Barroco.

    4. De Lacan a Joyce, para voltar a Freud

    No mesmo n. da revista Littrature, no qual Catherine Backes-Clment pe em

    conjuno o estilo lacaniano, que produz uma revoluo na formao do analista via

    linguagem. com o do escritor inovador. que revoluciona a linguagem "marcando-a com

    seu estilo". Lacan publica um dos seus textos mais complexos, "Lituraterre". No ttulo,

    h um trocadilho irnico-anagramtico com "Littrature". Mas h tambm uma

    homenagem a Joyce. Sobreimprimindo na palavra literatura o vocbulo latino litura

    (borradura. riscadura, letras riscadas; donde liturarius, que tem rasuras. livro de

    rascunhos), Lacan confessa que o ponto de partida desse jogo de subverso das "Belas.

    Letras" ele o encontrara em James Joyce. que sabia deslizar, com agilidade. pelo

    equvoco que vai de uma LETTER (letra) a uma LITTER (sujeira, lixo). palavra. porsua vez. procedente do latim lectus(leito, cama). A literordura, como eu me expresso

    num momento das Galxias. Joyce, pode-se aqui dizer. fica sendo o Freud da "prtica

    textual". o paradigma daqueles. escritores que no se .contentam com a literatura

    beletrstica e. ao invs de dissimular os bastidores do engendramento do texto (como,

    segundo repara Poe, gosta de fazer o "histrio literrio"). pem a nu esses processos de

    produo. Escritores - prossegue Backs-Clment, apoiando-se agora na Semanlisede

    Julia Kristeva, - que fazem irromper o ES do texto (o ISSO do texto, a "outra cena" doseu engendramento, - ao "geno-texto" de Kristeva) no ICH textual (o "feno-texto", o

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    texto manifesto, assim aberto ao "geno-texto" como a subjectividade ilusria ao

    Inconsciente). Escritores que pem em prtica - ainda nos termos de Kristeva - o

    "preceito freudiano": WO ES W AR, SOLL ICH WERDEN.

    Podemos fazer intervir aqui uma outra operao, a tradutora; esta, enquanto voltada para

    a materialidade da linguagem (e. que corpo subtil, mas corpo", EC I, 183; ESC,

    165), tambm desocultadora: faz advir o texto de chegada "lngua pura" (W.

    Benjamin) dissimulada no texto de partida.

    Essa frmula gnmica do ltimo Freud, esse aforismo testamentrio contido na 31a.. de

    suas Neue Vorlesungen, Lacan o traduziu e retraduziu mais de uma vez, porm de

    maneira mais completa e elaborada (ainda que refugindo conciso lapidar do adgio

    freudiano e sua cadncia quase talismnica) em "La chose freudienne" (1955; EC I,

    226-227). Confira-se:

    WO ES W AR, SOLL ICH WERDEN

    V S V-R Z V-R = transcrio ressaltando em port. o jogo das

    figuras fnicas do alemo.

    WHERE THE ID WAS, THERE THE EGO SHALL BE = traduo

    inglesa criticada por Lacan: Freud no disse das Es, nem das Ich (EC

    I,226).

    LE MOI DOIT DLOGER LE A = traduo francesa repelida por

    Lacan (EC I, 227-228, n 4):

    I MUST COME TO PLACE WHERE THAT (ID) WAS = trad. para o

    ingl. em The Yale French Review, 36-37,1966.

    DONDE ESTUVO ESO, TENGO QUE ADVENIR = trad. para oespanhol por Toms Segovia (in J. Lacan, Lectura estructuralista de

    Freud, Siglo XXI, Mxico, 1971).

    L ONDE ERA ISSO, ME PRECISO CHEGAR = trad. brasileira, ESC.

    255.

    L O FT A, IL ME FAUT ADVNENIR = trad. de Lacan em

    crits, Linstance de la lettre...", p. 524.

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    L O CTAIT (S'TAIT),C'EST MON DEVOIR QUE JE VlENNE TRE

    = trad. de Lacan (EC I, 227).

    Nesta ltima transposio (feita "contra os princpios da economia significativa", Lacan

    quem o assinala), WO (L O) entende-se como "lieu d'tre" (um lugar de ser" ou de

    "estar"); ES, que se verte por ISSO (A, como o fez o Lacan de "L'instance..."), ou

    mesmo, com indulgncia, por SOl (SI), como na primeira e precria traduo que se lhe

    deu em francs, acaba sendo traduzido por C' (o c elidido de c'est), soluo que, c.f.

    Lacan, tem a virtude afastar o das "objetivante" inexistente no original, por um lado;

    por outro (j que ocorre uma "homofonia do ES alemo com a inicial da palavra Sujet"),

    essa soluo enseja a produo dum verbo reflexivo inusitado, S'TRE (SER-SE),

    verbo no qual "se exprimiria o modo da subjectividade absoluta...em sua excentricidade

    radical", No creio que exceda a violncia translatcia de Lacan, quando proponho a

    retraduo do adgio freudiano maneira de Joyce, ou seja, operando

    reconcentradamente sobre os significantes e sua fonia (e reencontrando nesse nvel a

    economia da significncia, provisoriamente suspensa ria reelaborao explicativa do

    "escriba/mestre da verdade"). Assim teramos:

    LONDE ISS'ESTAVA DEV'EUREI DEVIR-ME

    A operao consistiu em imbricar ao mesmo tempo ISSO e SI em ESTAVA (com

    nfase na sibilao, marca do /s/ do sujeito), e fazer o EU emergir do seu DEVER

    ("dever moral", diz Lacan) de DEVlR/DEVENIR (WERDEN, "no

    SURVENlR/SOBREVIR, nem mesmo ADVENlR/ADVIR, mas VIR LUZ/VENIR

    AU JOUR), DE.VIR-SE ("il ME faut", "c'est mon devoir" enquanto sujeito ("sujet

    vritable de l'inconscient"). O ME, na minha frmula, pode parecer abundante, mas quer

    corresponder ao reflexivo em SER-SE (sublinhado por Lacan em "ME faut", "MON

    devoir"). Vantagem: a conciso e a cadncia do aforismo de Freud esto de volta,

    restitudos em portugus. "Deixar de lado o corpo mesmo a energia essencial da

    traduo. Quando ela reinstitui um corpo poesia. (J. Derrida)8. No que eu chamo

    "transcriaco'" a hermenutica encapsulada na forma significante9.

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    5. Es Freud mich: Rejoyce!

    Se eu quiser levar adiante o jogo, poderei ousar concentrar num contraponto

    polissmico de palavras Joyce o caso de fetichismo, narrado por Freud e recontado por

    Lacan (ESC, 253) justamente como um "sinete" para ilustrar O modo pelo qual, atravs

    de "frmulas de conexo e de substituio", a anlise freudiana do inconsciente

    surpreende o significante em sua "funo de transferncia" (bertragung). Trata-se da

    histria de um paciente bilngue (ingls/alemo), para quem a satisfao sexual

    dependia de um certo "brilho" (GLANZ) sobre o nariz (AUF DER NASE). A anlise

    revelou que, por fora de seus "primeiros anos anglfonos", sua "curiosidade ardente"

    em relao ao "falo materno" (essa "carncia de ser", manque tre) havia-se

    deslocado num "olhar para o nariz" (GLANCE AT THE NOSE, em lugar de SHINE

    ON THE NOSE, como seria adequado na lngua esquecida" da "infncia do sujeito").

    Comutao de GLANZ em alemo por GLANCE em ingls, que pode ser recomutada

    numa historieta pseudojoyceana sobre SHEM, THE PEN-MAN (SHEM, O HOMEM

    PENA) e ANA LVIA PLURABELA, o Eterno-Feminino, ME-IRM-FIIHA-

    AMANTE-ESPOSA do Finnegans Wake.

    Tudo seducedeu num brilhance de nasolhos.

    Com o que poderamos passar - "por um cmodo vico de recirculao" (diria Joyce) -

    quele WITZ exemplar do romntico Scheleiermacher, estudado por Freud, cujo "nico

    carcter distintivo, sem o qual se aboliria o chiste, consiste em dar s mesmas palavras

    uma aplicao mltipla". Outro aspecto posto em relevo por Freud diz respeito ao efeitoproduzido - "uma espcie de unificao" (Unifizierung): a palavra-chave do jogo -

    ElFFERSUCH ("cime") - acaba definida por si mesma, ou seja, pelo prprio material

    lingustico que a nomeia:

    EIFERSUCHT ist eine LEIDENSCHAFT,

    die mit EIFER SUCHT, was LEIDEN SCHAFFT.

    11

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    A "abolio" (Aufhebung) do chiste ocorre numa traduo banal, onde o significante

    rasurado:

    O cime (die EIFER) uma paixo (LEIDENSCHAF) que com avidez zelo, afinco,

    EIFER) busca (SUCHT) o que causa (SCHAFFI', de SCHAFFEN) a dor (das LEIDEN).

    Numa "transposio criativa" (Jakobson), numa "transpoetizao" (Umdichtung, como

    quer W. Benjamin), numa. operao "transcriadora" (como eu a chamo), onde o

    significante prima (tem primazia), o chiste preservado em sua semantizao fnica,

    em sua "matria de linguagem" (Sprachmaterial, como sublinha Freud):

    o CIME CAUSA uma DOR,

    que aSSUME com gUME

    o seu CAUSADOR

    ( evidente que, na minha translao de significantes, houve uma disseminao do

    efeito: a "definio" de CIME construda pela sequncia aSSUME...gUME, assim

    como, num imediato paralelo, CAUSADOR resulta de CAUSA e DOR Mas a

    Witztechnik observada)10.

    A Joyce,The Penman, o Homem-Pena, mestre da linguagem, compara-se Lacan, Le

    Stylo, o Escriva, propostamente "mestre da verdade", vista da "ilegibilidade" de

    ambos. Adverte, no Posfcio de 1973 ao Livro 11 do Seminrio, quanto aos crits, com

    ironia, que esse livro se compra, mas "para no ler", o que no lhe parecia

    surpreendente, j que, ao assim intitul-lo, se : ouvira prometer a si mesmo, e era o seu

    modo de ver, que um escrito, dizendo outra coisa, " feito para no ler". E linhas

    adiante:.

    ...aprs tout l'crit comme pas--lire, c'est Joyce qui l'introduit, je ferais mieux de

    le dire: l'intraduit, car . faire du mot traite au-del des langues, il ne se traduit qu'

    peine d'tre partout galement peu a lire.

    "...depois de tudo o escrito como no-a-ler, Joyce que o

    12

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    introduz, eu faria melhor em dizer: o introduz, pois a. fazer da

    palavra treta para alm das lnguas, ele s se traduz a penas, por

    ser por toda parte igualmente pouco a ler" (verso brasileira de

    M. D, Magno, Zahar, 1985, 2 ed. corrigida ).

    "...ao fim e ao cabo, o escrito como impasse-a-ler (pas--lire),

    Joyce quem o introduz, eu faria melhor dizendo: o intraduz,

    pois, no fazer com a palavra trato de trfico (traite; trajeto,

    transporte, acto de negociar por meio de letra de cmbio; "to

    deal with the words is to negotiate beyond languages") para

    alm das lnguas, ele no se traduz seno a penas de ser

    portodaparte igualmente parco-a-Ier" (transposio do H. de

    C.)11.

    No livro 20 do Seminrio, num texto tambm de 1973, "La fonction de l'crit", Lacan

    retoma o tema:

    Joyce, acho mesmo que no seja legvel (...) O que que se

    passa em Joyce? O significante vem rechear o significado.

    pelo fato de os significantes se embutirem, se comporem, se

    engavetarem - leiam Finnegans Wake - que se produz algo que,

    como significado, pode aparecer eO1gmtico, mas que mesmo

    o que. h de mais prximo daquilo que ns, analistas, graas ao

    discurso analtico, temos de ler - o lapso. a ttulo de lapso que

    aquilo significa alguma coisa, quer dizer, que aquilo pode ser

    lido de uma infinidade de maneiras diferentes. Mas

    precisamente por isso que aquilo se l mal, ou que se l detravs, ou que no se l. Mas esta dimenso do ler-se, no ela

    suficiente para mostrar que estamos no registro do discurso

    analtico? O de que se trata no discurso analtico sempre isto -

    ao que se enuncia de significante, vocs do sempre uma leitura

    outra que no o que ele significa". (Verso brasileira de M. D.

    Magno, Zahar,1982).

    13

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    6. Na galxia de lalngua

    No mesmo Livro 20 ("Le rat dans le labyrinthe", 1973) Lacan expe o que entende por

    LALANGUE. Aqui, desde logo, discrepo de traduo que vem sendo proposta em

    portugus para esse neovocbulo: alngua. Diferentemente do artigo feminino francs

    (LA), o equivalente (a) em portugus, quando justaposto a uma palavra, pode

    confundir-se com o prefixo de negao, de privao (afasia, perda do poder de

    expresso da fala; afsico, o que sofre dessa perda; apatia, estado de indiferena;

    aptico, quem padece disso; aglossia, mutismo, falta de lngua; aglosso, o que no tem

    lngua). Assim, alngua, poderia significar carncia de lngua, de linguagem, como

    alinge seria o contrrio absoluto de plurilngue, multilngue, equivalendo a

    "deslinguado". Ora, LALANGUE, pode-se dizer, o oposto de no-lngua, de privao

    de lngua. antes uma lngua enfatizada, uma lngua tensionada pela "funo potica",

    uma lngua que "serve a coisas inteiramente diversas da comunicao"12.

    Esse idiomaterno (recorro a uma cunhagem do meu poema "Ciropdia ou a Educao

    do .Prncipe", de 52) "lalangue dite maternelle" ("lalngua dita maternal"), no por

    nada - sublinha Lacan - escrita numa s palavra, j que designa a "ocupao (l'affIire)

    de cada um de ns", na medida mesma em que o inconsciente " feito de lalngua".

    Ento prefiro LALINGUA, com LA prefixado, este LA que empregamos habitualmente

    para expressar destaque quando nos referimos a uma grande actriz. a uma diva (La

    Garbo, la Duncan, la Monroe). Lalia, lalao derivados do grego lalo, tm as acepes

    de "fala", "loquacidade", e tambm por via do lat. lallare. verbo onomatopaico, "cantar

    para fazer dormir as crianas" (Ernout/Meillet); glossolalia quer dizer: "dom

    sobrenatural de falar lnguas desconhecidas" (Aurlio). Toda a rea semntlca que essaaglutinao convoca (e que est no francs lalangue, mas se perde em alngua)

    corresponde aos propsitos da cunhagem lacaniana, servindo a justaposio enftica

    para frisar que, se "a linguagem feita de lalngua", se "uma elucubrao de saber

    sobre lalngua", o "inconsciente um saber, um saber-fazer com lalngua", sendo certo

    que esse "saber-fazer com lalngua ultrapassa de muito aquilo de que podemos dar conta

    a ttulo de linguagem". O "idomaterno" - LALNGUA - nos "afecta" com "efeitos" que

    so "afectos" resume Lacan, mostrando que sabe jogar com mestria o jogo que enuncia.

    14

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    Por isso mesmo chamei a interveno do "estilo" Lacan na formao do analista e no

    evolver do discurso analtico a partir do lado microtonal de Freud, um "afreudisaco"

    introjetado na galxia de lalngua.

    Um dedo de prosa, agora, sobre minhas Galxias.

    Para falar da conjuno FREUD/LACAN/JOYCE, falei de traduo, mas poderia

    tambm ter falado de tradio, e daquela "tradio de ruptura (como a chamou Octavio

    Paz) que se configura na sequncia da obra de escritores como Joyce (expresso que

    seria talvez cabvel para definir a retomada do Freud "microtonalista" pelo "'estilista"

    Lacan). Nessa tradio ambicionei inscrever o texto que denominei Galxias (escrito

    entre 1963-1976, e que na origem se intitulava, mais programaticamente, Livro de

    Ensaios: Galxias). A melhor caracterizao para esses textos galcticos eu a encontrei

    em 1970, quando a maior parte deles j estava elaborada. Nesse ano, nas pginas

    iniciais de S/Z, Roland Barthes exps sua concepo dos textos "escritveis"

    (scriptibles), que seriam ilegveis no confronto com os textos literrios clssicos, ou

    seja, com aqueles, por definio, legveis. "Estrelados", "plurais", os textos "escritveis"

    exigiriam a leitura como um trabalho: "quanto mais o texto plural, tanto menos ele

    ser escrito antes que eu o leia", acentua Barthes. O ideal (inalcanvel) desse texto,

    Barthes o prope assim: "(nele) as redes so mltiplas e jogam entre elas, sem que

    nenhuma possa sobrepor-se s outras esse texto uma galxia de significantes, no uma

    estrutura de significados; ele no tem comeo; ele reversvel; tem-se acesso a ele por

    mltiplas entradas, nenhuma das quais pode ser, com certeza, considerada a principal;

    os cdigos que ele mobiliza se perfilam a perder de vista; eles so indecidveis (...);

    desse texto absolutamente plural, os sistemas de sentido podem se apropriar, mas seu

    nmero no ser jamais fechado, tendo por medida o infinito da linguagem":

    Lacan, por seu turno em "O campo do outro" (Seminrio 11, texto de 1964, deixa

    expresso: "No que o significante primordial puro no-senso, ele se toma portador da

    infinitizao do valor do sujeito, de modo algum aberto a todos os sentidos, mas

    abolindo todos, o que diferente (...) por isso que falso dizer que o significante do

    inconsciente est aberto a todos os sentidos. Ele constitui o sujeito em sua liberdade em

    relao a todos os sentidos, mas isto no quer dizer que ele no esteja determinado.Pois, no numerador, no lugar do zero, as coisas vindas a se inscrever so significaes,

    15

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    significaes dialetizadas na relao do desejo do Outro, e elas do relao do sujeito

    ao inconsciente um valor determinado.

    Barthes diz algo que parece confluente: "No a 'pessoa' do outro que me necessria,

    o espao: a possibilidade duma dialctica do desejo, duma impreviso do gozo: que

    os dados no estejam lanados, que haja um jogo" (Le plaisir du texte, 1973). A

    diferena est em que, para Barthes, crtico-escritor, nesse jogo, no texto plrimo - pelo

    menos no caso ideal do texto "absolutamente plural" - no h um "princpio de deciso"

    quanto aos cdigos de sentido, no h critrio de "verdade"; para Lacan, escriba-

    estilista, mas sobretudo "matre de la verit", o que releva, no estudo do sonho, do lapso,

    do chiste, da "psicopatologia da vida quotidiana", a "anamnese psicanaltica", que diz

    respeito no "realidade", mas "verdade", ao "nascimento da verdade na fala",

    restituio do sujeito ao seu Iugar-de-verdade (londe issestava), fala plena" (parole

    pleine); em suma, o que lhe interessa a adivinhao do mistrio humano, para a qual

    o jogo da escritura (de escritores-inventores como Rabelais e Joyce) fornece pistas e

    sugere indcios13.

    Mas Lacan tambm reconhece que "le langage ne peut-tre autre chose que demande, et

    demande qui choue" ("a linguagem no pode ser outra coisa seno demanda/pergunta,

    e demanda/pergunta que fracassa"). Creio que .nos fragmentos das Galxias - num

    deles especialmente ("passatempos e matatempos"), armado com base nos resduos da

    minha leitura morfolgica do Macunama, via Propp, todo ele, atravessado por

    simulacros de narrao, - pude de algum modo insinuar essa demanda evasiva; rapsdia

    de lalngua. Vou l-lo, ou melhor, vou d-lo, de seu escrito, a ouvir.

    So Paulo/Salvador

    Setembro/89

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    Passatempos e matatempos eu mentoscuro pervago por este minuscoleante instante de

    minutos instando algum e instado alm para contecontear uma estria scherezada

    minha fada quantos fados h em cada nada nuga meada noves fora fada scherezada

    scherezada uma estria milnoitescontada ento o miniminino adentrou turlumbando a

    noitrvia forresta e um drago dragoneou-lhe a turgimano com setifauces furnvidas e

    grotantro cavurnoso meuminino quer-saber o desfio da formesta o desvio da furnesta s

    drago dragoneante sabe a chave .da festa e o drago dorme a sesta entoquo

    meuminino comeou sua gesta cirandejo no bosque deu com a bela endormida belabela

    me diga uma estria de vida mas a bela endormida de silncio. endormia e ningum lhe

    contava essa estria se havia meuminino disparte para um reino entrefosco que o rei

    morto era posto e o rei posto era morto mas ningum lhe contava essa estria desvinda

    meuminino soposto a urna prova de fogo devadear pelo bosque forestear pelo rio trs

    da testa-de-osso que h no fundo do poo no fundo catafundo catafalco desse poo uma

    testa-de-morto meuminino transfunda adeus no calabouo mas a testa no conta a

    estria do seu poo se houve ou se no houve se foi moa ou foi moo um cisne de

    outravez lhe aparece no sonho e pro cisnepas o leva num revo meuminino pergunta ao

    cisne pelo conto este canta seu canto de cisne e cisnencanta-se dona sol no-que-espera

    sua chuva de ouro deslumbra meuminino fechada em sua torre dnae princesa ncuba

    coroada de garoa me conta esse teu conto pluvial de como o ouro num flvio de poeira

    irrigou teu tesouro mas a de ouro princesa fechou-se auriconfusa e o menino seguiu no

    emps de contoconto seguiu de ceca a meca e de musa a medusa todo de ponto em

    branco todo de branco em ponto scherezada minha fada isto no leva a nada princesa-

    minha-princesa que estria malencontrada quanto veio quanta volta quanta voluta

    volada me busque este verossmil que faz o vero da fala e em fado transforma a fada

    este smil sibilino bicho-azougue serpilino machofmea do destino e em fala transforma

    o fado esse bicho malinmaligno vermicego peixepalavra onde o canto conta o cantoonde o porqu no diz como onde o ovo busca no ovo o seu oval rebrilhoso onde o fogo

    virou gua a gua um corpo gazoso onde o nu desfaz seu n e a noz se neva de nada

    uma fada conta um conto que seu canto de finada mas ningum nemnunca umzinho

    pode saber de tal fada seu conto onde comea nesse mesmo onde acaba sua alma no

    tem Palma sua palma uma gua encantada vai minino meuminino desmaginar essa

    maga um trabalho fatigoso uma pena celerada voc cava milhas adentro e sai no poo

    onde cava voc trabalha trezentos e recolhe um trecentavo troca diamantes milheirospor um carvo mascavado quem sabe nesse carvo esteja o p-diamantrio a madre-dos-

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    diamantes morgana do lapidrio e o menino foi e a lenda no conta do seu fadrio se

    voltou ou no voltou se desse ir no se volta a lenda fechada em copas no-diz desdiz s

    d voltas

    NOTAS

    1. Este ensaio. redigido em definitivo para servir de base conferncia de mesmo titulo

    pronunciada em Salvador, em 26.09.89. a convite da Fundao Casa de Jorge Amado,

    Colgio Freudiano da Bah1a e CERNE, resulta de rascunhos e notas para palestras

    apresentadas anteriormente nas seguintes ocasies: a), em 27.11,85. na BibliotecaFreudiana Brasileira, So Paulo ("O sujeito, o texto e a criao - depoimento do poeta

    H. de Campos"): b) em 23.06.88, no Simpsio do Campo Freudiano, Belo Horizonte

    ("Exercido de estilografta". seguido de "Barrocoludo"); c) em 28.06.88, no Sarau

    Cultural do Grupo Che Vuoi?, So Paulo e, na semana seguinte, em Porto alegre ("O

    poeta no jogo da linguagem").

    2. Traduzo Witz, para os propsitos deste ensaio, por "jogo engenhoso de esprito". Apalavra est no ttulo de uma das mais fascinantes obras de Freud, Der Witz und seine

    Beziehung zum Unbewusstsein (1905). Em portugus, o termo tem sido traduzido por

    "chiste", em Ingls por wit e joke,em francs por mot d'esprit. Lacan, em nota a seu

    estudo sobre" A instncia da letra no inconsciente, entende que esprit , sem dvida, o

    equivalente francs do termo alemo; objecta, porm, ao ingls wit, conceito

    sobrecarregado por discusses intelectuais e que teria perdido suas "virtudes essenciais"

    para a palavra humour, a qual, no obstante, tem uma acepo distinta; pun, por outrolado, seria "estreita demais". De facto, James Strachey, na Standard Edition, optou por,

    joke, em lugar de wit (termo que figurara na primeira verso Inglesa do texto, por A. A.

    BriIl, em 1916); isto por entender que wit compreenderia apenas os jokes mais

    refinados e intelectuais. Significativo das dificuldades a enfrentar. o facto de que o

    criterioso tradutor do ensaio de Lacan para o ingls, Jan Miel, tenha preferido eliminar a

    nota e verter Witzpor wit.. Marilena Carone aponta, com razo, a falta de cursividade,

    de trnsito coloquial, da palavra "chiste", pelo menos no portugus do Brasil: "em nossa

    experincia quotidiana, contamos ou ouvimos contar histrias engraadas, anedotas,

    18

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    piadas", argumenta (cf. "Freud em portugus: traduo e tradio", artigo de 1987

    republicado em Sigmund Freud e o Gabinete do Dr. Lacan, antologia organizada por

    Paulo Csar de Souza, Brasiliense, 1989). O conceito, cabe lembrar, teve um particular

    relevo terico no Romantismo alemo (no -toa Freud, em sua exemplificao tcnica,

    remete-se, com destaque, a SchIeiermacher). Em sua recente traduo de fragmentos de

    Novalis (Plen, Iluminuras, 1988), Rubens Rodrigues Torres Filho deixa consignado

    em nota: "A palavra 'chiste' a traduo convencional para Witz, que os franceses

    costumam traduzir por espritou mot d'esprit. Pode designar tanto a prpria piada, ou

    graa, quanto a faculdade do sujeito, a qualidade de: ser 'espirituoso'." Na traduo

    portuguesa, de Pedra Tamen, do Vocabulrio da Psicanlise, de J. Laplanche / J. B.

    Pontalis, emprega-se a expresso "dito de esprito". Observe-se, finalmente, que J.

    Laplanche, na "Terminologie raisonne" do recente Traduire Freud (PUF, 1989),

    adopta a locuo trait d'espritque, no contendo a palavra mot, se presta distino,

    existente no texto freudiano, entre Wortwitz (jogo espirituoso, de palavras) e

    Gedankenwitz(jogo espirituoso de pensamentos).

    3. O Asinus Aureus, a clebre alegoria fisolgica de Apuleio, que remonta a fontes

    gregas (Lcio de Patra e Luciano de Samosata), se embebe na tradio carnavalesca da

    comicidade popular, conforme aponta Bakhtin em seu livro, sobre Rebelais. Aqui,

    porm, a metamorfose caricatural responde: a propsitos satricos especficos. L'ANE

    "magazin freudien", teve o seu 1 nmero editado pela Escola da Causa Freudiana em

    abril/maio de 1981. Em nota de redaco, explicava-se que o ttulo fora proposto por

    Lacan, como substitutivo simples designao L'Analyste. O trocadilho L'ne--liste:

    (O Asno com a lista") faz referncia, segundo anota Elisabeth Roudinesco (Histria

    da Psicanlise na Frana, vol. 2, 1925-1985, J. Zahar, 1988), as "listas de didatas".

    Mas lembra tambm as "listas eleitorais", aludindo s disputas pelo poder queculminaram na dissoluo, por Lacan, da Escola Freudiana de Paris, que ele fundara em

    1964. No por acaso, esse nmero inaugural de L'ANE estampavam um "Almanach de

    Ia dissolution 1980-1981", contendo a crnica minuciosa dos eventos que levaram ao

    referido desfecho. O jogo de palavras lacaniano acaba extrapolando o seu contexto e

    irradiando uma luz irnica sobre as querelas que pontilham ,o domnio francs,

    sobretudo no que diz respeito questo da formao do analista e s relaes entre

    psicanlise e poder. Num sentido premonitrio, um texto como "Situation, de lpsycanalyse et formation du psychanalyste en 1956" j envolvia, como ressalta E.

    19

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    Roudinesco, "uma stira feroz s sociedades psicanalticas", bem como aos respectivos,

    "modelos hierrquicos". Como se sabe, precedentemente, Lacan rompera com a

    Sociedade Psicanaltica de Paris (vinculada Associao Psicanaltica Internacional)

    para juntar-se aos dissidentes, que constituram a Sociedade, Francesa de Psicanlise

    (1953-1964).

    4. Releva notar que o jovem Marx, rebelando-se em 1842 contra a censura prussiana,

    valeu-se da mxima de Buffon para enfatizar, precisamente, o seu direito plena

    liberdade de expresso, s peculiaridades formais intrnsecas a seu modo de escrever:

    "Mein Eigentum ist die Form, sie ist meine geistige Individualitat. Le style c'est

    I'homme. Und wie!" ("Minha propriedade a forma, ela minha individualidade

    espiritual. O estilo o homem, E como!).

    5. A atitude de Lacan com respeito a Saussure alterou-se com a revelao, por Jean

    Starobinuski, dos inditos do linguista genebrino sobre a questo irresolvida dos

    "anagramas". Ver, a propsito, meu ensaio "Dibolos no texto (Saussure e os

    Anagramas)" em A Operao do Texto, Perspectiva, 1976. No Seminrio 20 ("Le

    Savoir e la Vrit), a relao entre leitura anagramtica e trabalho do sonho,

    estabelecida da seguinte maneira: "A. anlise veio, nos anunciar que h saber que no se

    sabe, um saber que se baseia no significante como tal. Um sonho, isso no introduz a

    nenhuma experincia insondvel, a nenhuma mstica, isso se l do que dele se diz, e que

    se poder ir mais longe ao tomar seus equvocos no sentido mais anagramtico do

    termo. neste ponto da linguagem que um Saussure se colocava a questo de saber se

    nos versos saturninos, onde ele encontrava as mais estranhas pontuaes de escrita, isto

    era intencional ou no. a que Saussure espera por Freud. E a que se renova a

    questo do saber. (Verso de M. D. Magno).

    6. A respeito da questo gongorina na historiografia Iiterria, como problema de

    "recepo esttica", ver o meu O Sequestro do Barroco na Formao da Literatura

    Brasileira: o caso Gregrio de Mattos, Salvador, Fundao Casa de Jorge Amado,

    1989.

    7. Cf. Ludwig Rohner (org.) Deutsche Essays- Prosa aus zwei Jahrhunderten, vol.5Munique, Deutscher Taschenbuch Veriag, 1972. ocasio em que pronunciei pela

    20

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    primeira vez esta conferncia (1985), no conhecia meno, entre ns, ao ensaio de

    Muschg. Essa lacuna foi recentemente preenchida com o excelente artigo de Paulo

    Csar Souza, "Freud como escritor" (Letras, Folha de S. Paulo, 23.09.89), onde a

    notvel contribuio do crtico suo recebe o merecido destaque.

    8. Derrida, ao .fazer essa afirmao em "Freud e a cena da escritura", 1966 (verso

    brasileira, por Maria Beatriz Nizza da Silva, em A Escritura e a Diferena,

    Perspectiva, 1971), no estava, evidncia, se referindo possibilidade de uma

    traduo criativa, de uma (como eu a chamo) trans-criaco, operao que, no seu

    nvel, tambm privilegia a "funo potica" da linguagem. Que esse problema est no

    horizonte de preocupaes do filsofo francs, prova-o sobejamente o seu admirvel

    ensaio "Des tours de Babel", publicado em Aut-Aut, n. duplo 189-190, Milo, maio-

    agosto 1982, ensaio que tematiza a teoria da traduo de Walter Benjamin.

    9. Em Traduire Freud(cf. Nota 2, supra), rejeita-se a ideia de adoptar, para efeito do

    novo texto francs das Obras Completas, uma traduo maneira de Lacan da

    mxima de Freud. Os autores (Andr Bouruinon, Pierre Cotet, Jean Laplanche)

    consideram que haveria nisso, como tambm numa tentativa de verso segundo a ego-

    psychology, um "verdadeiro desvio". Optam por uma traduo que deixe o texto

    "abertos interpretaes, e no fechadoem nome de uma dada ideologia". Chegam,

    assim, seguinte soluo: "O a tait, je (moi) dois (doit) devenir. Judiciosa que seja

    essa argumentao, em Iinha de princpio geral, no me parece que tenha o condo de

    invalidar, para propsitos especficos, a utilizao da operao tradutria como recurso

    exegtico (procedimento de Lacan que procurei radicalizar esteticamente em

    homenagem ao gnio aformismtico de Freud, realado por Muschg.

    10. No que respeita ao Wortwitz, ao "trait d'esprit de mots" ("jogo espirituoso de

    palavras"), os autores de Traduire Freud entendem que esto diante de um limite

    absoluto, que s pode ser contornado pela verso explicativa, j que, em casos dessa

    natureza, a formulao verbal do original seria inseparvel dele. Arriscam, assim, a

    lanar um veto sobre toda e qualquer possibilidade de traduo potica (ou seja, do

    procedimento a que Jakobson chamou "transposio criativa", aplicvel, segundo o

    grande linguista russo, no apenas ao caso da poesia propriamente dita, mas tambm aodos gracejos, da linguagem dos sonhos, das frmulas mgicas, enfim, da "mitologia

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  • 8/10/2019 Lacan e a Lingua

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    verbal de todos os dias"; cf. "Aspectos Iingusticos da traduo", Lingustica e

    Comunicao, Cultrix, 1969 ).

    11. O trecho em destaque foi traduzido para o ingls por Colin MacCabe, James Joyce

    and the Revolution of the Word, The Macmilian Press, Londres, 1981. A

    "reivindicao negativa" nele contida interpretada por MacCabe como "a descrio de

    uma prtica do escrever que desloca a leitura enquanto consumo passivo de um

    significado (meaning) e a transforma numa organizao activa de significantes

    (imagens materiais). Essa noo da leitura como uma apropriao activa do material da

    linguagem comum tanto psicanlise quanto aos textos Joyceanos. Ver, ainda, Joyce

    avec Lacan, coIetnea organizada por Jacquces Aubert, Navarin diteurs, Paris, 1987,

    bem como o Seminrio "Le Sinthome" (8.11.75/11.05.76).

    12. No texto "A Jakobson" do Seminrio 20, Lacan, ao mesmo tempo que admite no

    lhe ser difcil, concordar com o grande poeticista em matria das relaes entre

    lingustica e poesia ("Non que je ne le lui accorde trs aisment quand il s'agit de Ia

    posie"), prefere demarcar a esfera prpria do discurso analtico (o problema, da

    fundao/subverso do sujeito e o da estrutura do inconsciente) cunhando um

    neologismo, linguisterie.