Jean-Pierre Rameau - Tratado de Harmonia.pdf

79
1 MARIA JULIA DE CARVALHO E MUNIZ JEAN-PHILIPPE RAMEAU E O TRATADO DE HARMONIA FLORIANÓPOLIS, SC 2008

Transcript of Jean-Pierre Rameau - Tratado de Harmonia.pdf

1

MARIA JULIA DE CARVALHO E MUNIZ

JEAN-PHILIPPE RAMEAU E O TRATADO DE HARMONIA

FLORIANÓPOLIS, SC

2008

2

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES

DEPARTAMENTO DE MÚSICA

MARIA JULIA DE CARVALHO E MUNIZ

JEAN-PHILIPPE RAMEAU E O TRATADO DE HARMONIA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Música da Universidade Estadual de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de licenciado em música.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Tadeu Holler.

FLORIANÓPOLIS, SC

2008

3

MARIA JULIA DE CARVALHO E MUNIZ

JEAN-PHILIPPE RAMEAU E O TRATADO DE HARMONIA

Trabalho de conclusão de curso aprovado como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Música, no curso de graduação em Licenciatura em Música, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Banca Examinadora: Orientador: _______________________________________________ Prof. Dr. Marcos Tadeu Holler

Universidade do Estado de Santa Catarina

Membro: _______________________________________________ Profª. Dra. Claudia Borges de Faveri

Universidade Federal de Santa Catarina

Membro: _______________________________________________ Prof. Kleber Alexandre

Universidade do Estado de Santa Catarina

Florianópolis, 05 de dezembro de 2008.

4

ii

Dedico à minha querida mentora Ailande e a toda a equipe do Dr. Lang.

5

iii AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Marcos Höller por acolher o meu tema e por suas

orientações e correções precisas, clareando o meu trajeto.

Agradeço às pessoas que me ajudaram direta e indiretamente nesse trabalho. Ao

Rafa pela parceria nas traduções em inglês e ao Theo pelo olhar distanciado, tão necessário

na construção de um trabalho acadêmico, pela revisão e ajuda na formatação do texto. E a

ambos por transformar uma obrigação em momentos agradáveis.

Agradeço ao Sil B por me acolher no seu lugar e me proporcionar estrutura e

ambiente harmonioso para o processo do TCC.

Finalmente, agradeço ao professor Sérgio Freitas, mentor desse trabalho, pela

sugestão do tema e por todo material que me disponibilizou de forma tão generosa.

6

iv RESUMO Neste trabalho construo um panorama histórico sobre o músico e teórico francês Jean-Philippe Rameau e seu Traité de l’Harmonie: reduite à ses principes naturels, tratado de harmonia publicado em 1722, que sistematizou o tonalismo a partir do conceito de Baixo Fundamental e da inversão de acordes. Tal panorama é composto de uma breve biografia de Rameau, de uma contextualização do ponto de vista físico-matemático, harmônico, estético e filosófico. Descrevo ainda, o conteúdo do tratado em linhas gerais, que é composto por quatro livros, apresentando a tradução do prefácio dessa obra, escrito pelo autor e, por fim, descrevo mais especificamente o conteúdo do primeiro livro do tratado, disponibilizando fragmentos de tradução do mesmo. Como o trabalho foi construído a partir de uma pesquisa bibliográfica e da leitura direta da obra, disponibilizo, através de uma revisão bibliográfica, as principais fontes de consulta. Em anexo estão os textos originais do tratado de harmonia, utilizados no presente trabalho. Palavras-chave: Rameau, tratado de harmonia, musicologia histórica, tradução.

7

v LISTA DE FIGURAS

Figura 01 Quadro das ressonâncias criado por Rameau........................................... 04

Figura 02 Ilustração para explicar a terça menor e a sexta maior............................ 05

8

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 1

1.1 JUSTIFICATIVA ............................................................................... 3

1.2 OBJETIVOS ....................................................................................... 4

1.2.1 Objetivos gerais ........................................................................ 4 1.2.2 Objetivos específicos ................................................................ 4

1.3 METODOLOGIA ............................................................................... 5

1.4 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ........................................................... 6

2 JEAN-PHILIPPE RAMEAU E SUA ÉPOCA ..................................... 9

2.1 RAMEAU .......................................................................................... 9

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO ............................................................... 11

2.2.1 Do ponto de vista físico-matemático ....................................... 12 2.2.2 Do ponto de vista harmônico ................................................... 16 2.2.3 O século XVIII na França ........................................................ 20 2.2.4 Como esse processo se deu ...................................................... 23

3 O TRATADO DE HARMONIA DE RAMEAU ................................. 36

3.1 TRADUÇÃO DO PREFÁCIO DO TRAITÉ DE L’HARMONIE ..... 40 3.2 O PRIMEIRO LIVRO: Relação Das Razões E Proporções Harmônicas .............................................................................................. 45

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 57

REFERÊNCIAS ........................................................................................ 58

ANEXOS .................................................................................................... 60

9

1 INTRODUÇÃO

A música ocidental em sua longa tradição desenvolveu uma extensa teoria, tanto em

relação à quantidade quanto à diversidade de propósitos. A palavra teoria, que em seus

primórdios gregos significava contemplar, observar, especular sobre em oposição ao fazer

algo, é entendida hoje como sendo o estudo da estrutura da música (PALISCA, 2001). As

mudanças nas práticas musicais demonstram a extensão e riqueza do conceito de teoria.

Tratados tão díspares quanto os que foram produzidos ao longo da história são comumente

agrupados sob a categoria de pensamento chamada de teoria musical (PALISCA, 2001).

A concepção da função teórica predominante em uma época específica, a audiência

para a qual um tratado foi escrito e os objetivos filosóficos ou práticos do autor fazem

variar consideravelmente o conteúdo de um tratado, que em termos gerais é definido como

estudo ou obra desenvolvida sobre uma ciência ou arte.

Jean-Philippe Rameau é considerado, pelos seus pares (musicólogos, músicos,

teóricos e filósofos), o mais importante músico francês do século XVIII. Em 1715 escreveu

em Clermont-Ferrand, um tratado de harmonia, publicado em 1722, intitulado Traité de

l’Harmonie: réduite à ses principes naturels. Nos seus escritos, deduziu das leis da acústica

os princípios fundamentais da música, e não somente clarificou a prática musical de seu

tempo, como também exerceu na teoria musical uma influência que se prolongou por mais

de duzentos anos (KREMER, 1986; GROUT, 1996).

Este trabalho, através de pesquisa bibliográfica, sob a luz dos escritos de autores

como Joseph-François Kremer, Enrico Fubini, Joel Lester, assim como da leitura direta da

obra de 1722, mostra o contexto histórico em que viveu Rameau, a repercussão de suas

teorias no meio cultural do século XVIII, que, inusitadamente para a época, uniam ciência e

arte, e descreve o primeiro livro do Tratado de Harmonia, disponibilizando fragmentos de

traduções; de forma que o seu conjunto possa facilitar, aos interessados, o contato direto

com o conteúdo do texto.

A maior parte dos textos utilizados para a construção deste trabalho não estão em

língua portuguesa, sendo que realizei integralmente as traduções diretas dos textos do

francês e espanhol, o texto da língua inglesa foi traduzido em parceria com Rafael Zanim

10

Ferreira. Nos anexos se encontram os textos originais do tratado de Rameau, utilizados

nesse TCC.

No trabalho de construir um material sobre a vida e obra de Rameau, assim como no

de tradução do tratado, sigo os preceitos do tradutor e teórico Antoine Berman1, que

preconiza a tradução como “tradução-da-letra” e que em suas obras chama a atenção às

tendências deformantes do ato de traduzir, conseqüência de uma longa tradição que,

dentre outras coisas, prioriza o sentido em detrimento da letra, terminando por privar o

leitor das escolhas elaboradas e muitas vezes sofridas, feitas pelo escritor para acolher e

realizar o sentido de suas intenções. A letra que inspira o tradutor é vista por este teórico,

não como a palavra, mas como o lugar habitado onde a palavra perde a sua definição e

onde ressoa o “ser na língua”; a letra como o “sentido encarnado”.

O trajeto de uma tradução inicia-se com a leitura e releitura do original, leitura esta

que todo tradutor supostamente faz antes de começar a traduzir o texto. Berman (1995)

aponta como sendo necessárias as leituras colaterais, tais como outras obras do autor,

trabalhos diversos sobre esse autor e estudos sobre sua época. Traduzir, assim, exige

leituras vastas e diversificadas. Esse apoio em leituras colaterais, que Berman denomina de

“escoramento da tradução” em nada retira sua autonomia básica, na medida em que são

para o tradutor, leituras livres e não dizem necessariamente o que o tradutor deve fazer.

Traduzir textos musicais requer cuidado redobrado, o sentido é a essência do

trabalho escolhido, porém a essência está amalgamada à escolha por uma determinada

maneira em descrevê-la. A trama de palavras tecida pelo autor, que é por assim dizer o

texto, revela não só o mundo interno que construiu seu pensamento, como o universo ao

seu entorno que também o construiu. Conteúdo e forma devem ser respeitados, no entanto

com a premissa básica, no caso da música, de que o conteúdo deve ser apreendido pelo

leitor como parte de sua formação técnica e não como algo que pertença somente a

iniciados em uma ordem que os capacita a decifrar enigmas. O texto de Rameau foi feito

para clarear, para instruir pela razão o que já acontecia na prática e essa intenção deve ser

preservada pelo tradutor. .

1 Antoine Berman (1942-1991) é tradutor e autor de obras sobre a tradução de prosas e de poemas. Ele foi diretor de programa do Collège International de Philosophie e diretor do Centre Jacques-Amyot de tradução e de terminologia.

11

1.1 JUSTIFICATIVA

Em 2004, ao iniciar duas graduações que ainda estão em curso, Licenciatura em

música, na Universidade do Estado de Santa Catarina e Letras – língua e literaturas

francesas, na Universidade Federal de Santa Catarina, pensei em aproximar ao máximo as

duas áreas, em trabalho de pesquisa. Na música, como compositora, a arte dos sons e sua

compreensão harmônica sempre me fascinaram; nas letras, a literatura e suas traduções

foram o motivo pelo qual me interessei em aprofundar o estudo de uma língua que já

falava: o francês. Junto a isso, o desejo de que o fruto da dedicação em dois ramos do

conhecimento humano não fosse apenas um desfrute pessoal.

Em conversa com o professor Sérgio Freitas, responsável pela disciplina de

harmonia da UDESC, questionei sobre a existência de algum material musical de

relevância na língua francesa sem tradução para o português e chegamos ao Tratado de

Rameau. Lancei-me então, a partir do Trabalho de Conclusão de Curso, no projeto de uma

tradução anotada e comentada desta obra que, no entanto, só será feita na pós-graduação. O

início deste projeto constituiu-se na proposta do TCC que é a de um panorama da

contextualização histórica do autor e seu tratado, uma vez que o material para tal projeto

também é escasso em nosso idioma.

A escolha de Jean-Philippe Rameau se justifica pela sua importância em diversas

áreas. A obra que é “objeto” de discussão no TCC é referência de base da música ocidental,

tanto do ponto de vista estético como do ponto de vista teórico e o fato de ela configurar-se

em material, ainda sem tradução para o português, e a existência de uma reduzida

bibliografia sobre o autor e sua obra em nosso idioma, justifica a escolha do tema para a

presente monografia. Espero que o material constante desta pesquisa seja útil para estudo

tanto na área musical, quanto na área de tradução e literatura; facilitando aos músicos,

alunos e professores o acesso ao conteúdo da obra que se encontra em edições fac-similes,

em um francês antigo.

12

1.2 OBJETIVOS 1.2.1 Objetivos gerais

O objetivo deste trabalho de conclusão de curso é construir e descrever um

panorama histórico sobre Jean-Philippe Rameau e seu Traité de l’Harmonie: réduite à ses

principes naturels, publicado em 1722, assim como descrever o conteúdo do primeiro livro

deste tratado, fornecendo fragmentos de tradução, tendo em vista oferecer material

biográfico e histórico em língua portuguesa, para uma melhor compreensão desta obra.

1.2.2 Objetivos específicos

• Contextualizar historicamente autor e obra.

• Disponibilizar fragmentos de traduções contextualizados do primeiro livro do

tratado, intitulado Du rapport des raisons et proportions harmoniques e

fragmentos de traduções de fontes biográficas e históricas sobre seu autor.

13

1.3 METODOLOGIA

Esse trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa bibliográfica e da leitura direta

do tratado de harmonia de Rameau.

No capítulo 2 são apresentadas, inicialmente, uma breve biografia de Jean-Philippe

Rameau e uma descrição do contexto histórico em que ele viveu, evidenciando as correntes

filosóficas que o influenciaram, sua importância no contexto musical da época e os reflexos

que emanaram de suas teorias.

Em seqüência, no capítulo 3, é apresentada uma descrição do tratado de harmonia

em seu conteúdo geral e a tradução integral, feita por mim, do prefácio dessa obra, escrito

por Rameau. Os anexos contêm o texto original do prefácio em francês e os originais das

citações.

Por último, ainda no capítulo 3, é feita uma descrição do conteúdo do primeiro livro

do tratado de Rameau intitulado Du rapport des raisons et proportions harmoniques,

através da leitura direta da obra e também da leitura de outros autores sobre a mesma,

oferecendo fragmentos de tradução da obra original.

14

1.4 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Ainda que a publicação do primeiro tratado de Rameau date de 1722, no Brasil o

acesso ao conteúdo de suas obras e, até mesmo, à maior parte das obras que tratam de sua

biografia ou de suas contribuições, é restrito aos que não dominam outros idiomas, além da

linguagem musical. Para traçar um percurso que desvende autor e obra, mesmo que seja de

maneira introdutória, como nesse trabalho, é preciso recorrer a autores que aprofundaram o

olhar no contexto histórico, filosófico e estético de Rameau, como é o caso de Enrico

Fubini, assim como no contexto do desenvolvimento de uma teoria harmônica, como é o

caso de Joel Lester, e ainda a autores com um olhar mais específico sobre o Traité de

l’Harmonie, fornecido por Joseph-François Kremer.

Enrico Fubini em um estudo sobre a música do século XVIII na França e sua

relação com os enciclopedistas apresenta um importante panorama histórico, estético e

filosófico, de uma época que, segundo ele, ainda tanto influencia a visão de mundo do

século XXI. Em sua obra Los enciclopedistas y la música de 2002, através de textos

produzidos no século das luzes, e mesmo antes, no século XVII, de filósofos que

escreveram sobre música, reconstrói a atmosfera dos diversos embates surgidos entre a

música francesa e a música italiana, entre Rameau e Rousseau; embates estes que também

contribuíram para o surgimento de uma futura musicologia.

Patrice Bailhache remonta a evolução das teorias científicas da música ocidental em

suas etapas mais significativas, da antiguidade até os dias de hoje, em sua obra Une histoire

de l'Acoustique musicale de 2001.

Joel Lester em Rameau and eighteenth-century harmonic theory, de 2006, aborda

conceitos da teoria harmônica e suas respectivas tradições pedagógicas, herdadas no

começo do século XVIII, até o desenvolvimento do legado dessa herança, dominante no

final desse mesmo século e ainda depois; considerando Rameau como o brilhante

consolidador e unificador da teoria tonal.

Joseph-François Kremer em Rameau, et les méprises de la tradition, de 1973,

reedita e analisa o Traité de l’harmonie, de 1722, de uma forma cursiva e metodológica,

15

incluindo progressivamente referências importantes como pontos de vistas teórico,

histórico e pedagógico sobre o autor. Faz uma leitura descritiva da obra e apresenta uma

leitura comparativa de outros tratados que sucederam o tratado de Rameau ao longo da

história e que foram influenciados por ele, estabelecendo as bases de uma tradição musical

francesa.

Outros autores foram consultados para a construção de um panorama histórico do

século XVIII e do trajeto da teoria harmônica. Lewis Rowell em Introduccion a la Filosofia

de la Música, de 2005, desenvolve uma resenha histórica e uma análise de diversos temas

estéticos do pensamento musical, delineando para o leitor um caminho para uma percepção

estética e filosófica da música ocidental. Em Romantismo e Classicismo de Rosenfeld e

Guinsburg, de 1985, encontramos a contextualização, as principais idéias, aspirações e os

conceitos destes dois movimentos.

Em um artigo do segundo volume de Les savoirs musicaux da Encyclopédie Pour

Le XXI Siècle, organizada por Jean-Jacques Nattiez, intitulado Polyphonie, Harmonie,

Tonalité,de 2004, Nicolas Meeùs define os aspectos que a música ocidental favoreceu em

detrimento de outros como o ritmo e o timbre. O autor explica conceitos como polifonia e

consonância, contraponto, tonalidade e harmonia, destacando a teoria de Rameau e outras

linhas teóricas que surgiram a partir dela.

Orlando Fideli, em Música e Beleza, no artigo eletrônico

<http://www.montfort.org.br/index.php?secao=cadernos&subsecao=arte&artigo=musicab

eleza&lang=bra >, trata da beleza objetiva e subjetiva, para isso descreve de forma geral o

conceito de beleza, música e proporção da arte grega. Outra fonte utilizada para pesquisar

a história da harmonia e os teóricos na história foi o Guide de la théorie de la musique, de

2001, de Claude Abromont. Nessa obra o autor reúne noções relativas à teoria musical,

uma história da notação musical que permite descobrir variadas formas de notação

utilizadas no mundo, um percurso da evolução da linguagem musical desde a modalidade,

a tonalidade até as principais correntes da música do século XX, um guia dos teóricos

apresentados por ordem cronológica e um vocabulário de termos essenciais.

Ferdinand Alquié, importante intérprete da filosofia cartesiana do século XX, em

seu artigo Descartes para a Encyclopaedia Universalis de 1998, faz uma exposição do

pensamento de Descartes, a partir da relação entre ciência e metafísica. A partir da edição

16

francesa bilíngüe do Compendium Musicae de Descartes, feita por Frédéric de Buzon em

1987, traduzido como Abrégé de musique, e dos trabalhos de Alquié, foi possível adentrar

no universo de Descartes, autor que embasa o tratado de Rameau. O pequeno livro sobre

música de Descartes, porém um dos mais importantes do século XVII, expõe as teorias

musicais do autor e sua estética, fundada pelo estudo da teoria do prazer, desenvolvida

nas primeiras páginas.

Sites oficiais franceses, indicados nas referências bibliográficas oferecem biografia,

obra e bibliografia sobre Rameau, de onde foram tiradas as informações que constam no

item biográfico do autor neste trabalho. Outra fonte biográfica foi o Éloge de M. Rameau,

escrito em 1764 por Michel Paul-Guy de Chabanon, filósofo e admirador de Rameau.

As edições do tratado utilizadas neste trabalho são fac-similes, e são elas a

editada por Kremer em 1986, já citada acima, e a edição de 1992 citada nas referências.

Foi consultada também a edição americana, o tratado foi traduzido para o inglês em

1971, com introdução e notas de Philip Gosset.

17

2 JEAN-PHILIPPE RAMEAU E SUA ÉPOCA

2.1 RAMEAU

Jean-Philippe Rameau teve uma carreira diferente dos músicos bem sucedidos de

sua época, que ainda jovem tinham seus nomes em voga. Foi praticamente desconhecido

até os quarenta anos de idade, tornando-se conhecido primeiro como teórico e só depois

como compositor. Nasceu em Dijon no dia 25 de setembro de 1683, filho de Jean Rameau

organista desta cidade, do qual recebeu sua formação musical, e de Claudine Martincourt.

Foi o sétimo de onze irmãos. Estudou em colégio jesuíta e não era considerado um bom

aluno, pois só se interessava por assuntos musicais, tendo aprendido as notas antes mesmo

de ler e escrever. Deixou o colégio para passar alguns meses na Itália, retornando à França

em 1701. As conseqüências dos estudos deixados de forma precoce apareceram em uma

expressão escrita deficiente. Em 1702 torna-se mestre de capela na Catedral de Avignon,

Notre-Dame de Doms. No mesmo ano ele é convidado para ser mestre de capela da catedral

de Clermont, mas não chega a terminar seu período, indo para Paris em 1706, onde publica

seu primeiro livro de cravo.

Em 1709 assume o posto que era de seu pai em Dijon, muda-se ainda para Lyon e

Montpellier depois de 1713, reaparecendo mais tarde em seu posto de Clermont. Esse

período da vida de Rameau é mal documentado, segundo Chabanon, filósofo e discípulo de

Rameau, a primeira metade da vida do músico é desconhecida, ele nada relatou aos seus

amigos sobre esse período e nem mesmo à sua esposa (CHABANON, 1764. p.7).

Rameau se instala em Paris em 1722, onde escreve seus primeiros artigos e publica

o Traité de l'harmonie, obra que abre sua carreira de teórico musical. Em 1724 publica seu

segundo livro de cravo e no ano seguinte se casa com Marie-Louise Mangot de 19 anos,

musicista e cantora, filha de um sinfonista do rei e de uma bailarina, com quem terá quatro

filhos. Nesse mesmo ano publica o Nouveau système de musique theorique, que completa

seu tratado de harmonia. Seu primeiro filho Claude nasce em 1727, mesmo ano em que é

apresentado ao rico mecenas e arrematador geral de impostos Le Riche de la Pouplinière do

18

qual Rameau passa a ser protegido, dirigindo sua orquestra a partir de 1731 e dando aulas

de música a Madame de la Pouplinière, morando de 1746 a 1752 em seu hotel particular.

Em 1733 foi apresentada pela primeira vez Hipollyte et Aricie, obra que iniciou a

querela entre os lullistas e os ramistas. Os lullistas acharam a música muito moderna e os

ramistas reconheceram a riqueza da harmonia e a potência das orquestrações. Nesse mesmo

ano abre sua escola de composição. Em 1745 foi nomeado compositor da música do

gabinete do rei. Em 1750 publica uma nova obra Démonstration du principe de l’harmonie.

Por volta de 1752 se envolve na Querela dos Bufões.

As obras que o levaram à fama foram produzidas, em sua maioria, entre os seus 50 e

os 56 anos de idade. Entre elas as mais conhecidas são as obras líricas Les Indes Galantes

(1735), Castor et Pollux (1737) e Fêtes d’Hébé et Dardanus (1739). La Princesse de

Navarre, divertissement composto por Rameau para a peça de Voltaire, estreou em 1745.

Sua obra é composta por motetos, peças para cravo, cantatas, pastorais, óperas cômicas,

ballets e tragédias líricas.

Jean-Philippe Rameau exerceu suas atividades de músico e teórico até sua morte em

12 de setembro de 1764. Ao fim da vida morava em um grande apartamento em Paris com

sua esposa e dois filhos. Nessa época encontrava-se com o jovem Chabanon que escreveu

mais tarde um éloge funèbre para o compositor. Chabanon recolheu raras confidências de

uma personalidade considerada difícil, introspectiva, que se interessava somente por

assuntos musicais aos quais se dedicou por toda uma vida. Diderot o descreve de forma

caricatural em sua obra Le neveu de Rameau.

Seu último escrito, L’Origine des sciences, é caracterizado por sua obsessão em

fazer da harmonia a referência de toda ciência. Rameau expõe sua teoria essencialmente em

quatro obras: Traité de l’harmonie réduite à ses principes naturels (1722), Nouveau

système de musique théorique (1726), Génération harmonique (1737) e Démonstration du

principe de l’harmonie (1750). No entanto, ele também redigiu outros escritos em forma de

cartas, panfletos e artigos dos quais podemos citar : Dissertation sur les différentes

méthodes d'accompagnement, Paris (1732), Observations sur notre instinct pour la musique

et sur son principe, Paris (1754), Erreurs sur la musique dans l'Encyclopédie, Paris (1755)

e Code de musique pratique, Paris (1760).

19

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO

A história da humanidade é uma história de busca. O homem é por assim dizer um

“buscador” que alterna o foco de desenvolvimento sobre as diversas áreas que o

compõem, numa dança tramada e contínua, em lentes que afastam e aproximam o seu

olhar no desejo de melhor “enxergar” e traduzir o mundo ao seu entorno e ao seu

“interno”, o que nem sempre significa enxergar mais, mas as vezes significa ver além, um

dos significados da palavra fé. Na arte em geral, a busca se expressa e se registra em

várias representações. A música, o teatro, a dança, a literatura, a poesia, as artes plásticas

refletem a senda do homem.

Na aprendizagem de um caminho, passa-se muitas vezes por sensações de perda,

de regressão, pois este processo é marcado por contradições, avanços e recuos, por idas e

vindas que tornam intensamente ricas as ações e abrem espaços para profundas

transformações. O Universo é movimento, é contração e expansão. É uma relação de

forças opositoras e complementares, como bem percebeu Nietzsche ao dividir os ciclos da

arte em Apolíneos e Dionisíacos. Todo processo criativo é marcado por antagonismos

constantes. A busca de um sentido para a existência é representada por toda conquista do

homem, pela criação de símbolos, pelas imagens que se materializam em suas

construções, e por tantas outras formas de conteúdos decifráveis, oferecendo uma

inteligibilidade a respeito deste caminho percorrido.

Compreender as necessidades, as criações artísticas e as teorias de uma época, exige

o mergulho nas espirais do tempo, nos ciclos de um trajeto em busca da consciência plena e

da perfeição, prescrito por crenças – que se alternam e até coabitam – em deuses, em um

deus único, na natureza, na razão e na ciência.

A música, nesse processo histórico, tem sido compreendida de diversas formas –

talvez de tantas formas quanto possa existir pessoas no mundo. A história musical do

ocidente tem origem na Grécia antiga, a palavra música vem do grego (mousikê) e significa

“arte das musas”, que, na mitologia grega representavam seres celestiais, divindades

representantes das artes e das ciências. Essa arte abrangia, ao mesmo tempo, a poesia e a

dança, e todas essas expressões eram praticadas de modo integrado. Como os demais povos

antigos, os gregos atribuíam aos deuses sua música, definindo-a como uma criação integral

20

do espírito, um meio de alcançar a perfeição. Os gregos foram os grandes descobridores das

proporções como causa da beleza material, em sua arte tudo era medido, tudo era

proporcionado. Pitágoras tratou das relações de beleza e números, através de Platão e dos

neoplatônicos sua influência se estendeu por séculos. A história de Rameau é de reiteração

e quebra, ele se vale da tradição pitagórica para romper com ela, não com sua essência, mas

com o dogma que ela se tornou, induzindo os olhares sob um prisma que poderia esmaecer

o tonalismo como grau avançado no desenrolar da busca pela música perfeita.

2.2.1 Do ponto de vista físico-matemático

Para os filósofos antigos e medievais, a palavra música designava qualquer

harmonia, podendo a estética ser qualificada de musical. Boécio, um dos transmissores

dessa concepção numérica de beleza nos primeiros tempos da Idade Média, distingue em

seu tratado De Institutione Musica (500-507), três tipos de música: música mundana ou

cósmica, que seria a resultante da harmonia dos elementos do universo; música humana ou

harmonia existente no homem; e música artificial, instrumental ou sonora, que seria a

música propriamente dita. Esta última é apenas uma expressão da beleza das proporções

através dos sons. Por meio dela, o homem procura exprimir as harmonias que ele encontra

no universo ou em si mesmo. Por isso, as leis que regem a música instrumental são as

mesmas que regem os outros tipos de música. Os sons agradáveis ao ouvido correspondem

a números proporcionados, e esses números e proporções seriam a causa da beleza musical.

Quanto mais a relação numérica é simples, mais harmonioso é o intervalo, mais

facilmente o ouvido capta a harmonia, e mais rapidamente a razão a compreende. Música,

harmonia e beleza, sob essa perspectiva, são resultantes do número, do peso e da medida,

quer na música sonora, quer nas formas plásticas (FEDELI, 2008).

Nos primórdios das especulações acústicas encontramos o experimento dos

pitagóricos em relação ao Monocórdio; ao esticar uma corda foi possível relacionar

intervalos musicais com a ajuda de um cavalete que alterava a proporção da corda de

acordo com sua disposição. Desde então se criou um dogmatismo aritmético, que

21

atravessou a Idade Média, construído a partir da doutrina pitagórica segundo a qual todo o

conhecimento reduzir-se-ia a relações numéricas, considerando tão somente o número

inteiro. Segundo essa tradição os números 1, 2, 3 e 4 geram toda a perfeição, na medida em

que o número quatro é considerado como a origem de todo o universo, todo o mundo

material, representando a matéria em seus quatro elementos: o fogo, o ar, a terra e a água

(BAILHACHE, 2001).

Boécio desenvolveu sobre o experimento de Pitágoras no monocórdio uma relação

para a corda que resultou nas razões 1:2, 2:3 e 3:4 e nos intervalos musicais de oitava,

quinta e quarta respectivamente, generalizando para outras fontes sonoras tais como copos,

sinos e flautas e se encarregou de enfatizar essa visão musical, influenciando músicos e

teóricos numa abordagem de especulação matemática para solucionar problemas teórico-

musicais (BAILHACHE, 2001).

O sistema musical pitagórico possui limitações como: uma rígida distinção entre

consonância e dissonância, utilização somente de razões comensuráveis, a inferência de que

os resultados encontrados para a corda valiam em qualquer outro sistema físico que

emitisse som (copos com água, sinos, flautas). Um importante legado do experimento de

Pitágoras consiste na percepção de que subir ou descer um intervalo musical corresponde

respectivamente a compor ou decompor o comprimento da corda, produtor da nota mais

grave ou mais aguda pelo fator correspondente ao intervalo referido (BAILHACHE, 2001).

A construção de uma escala, segundo os métodos pitagóricos, resulta da obtenção

de quintas compostas reduzidas posteriormente a notas equivalentes na oitava, ou seja,

supondo que uma nota inicial dó é produzida por 1, sua quinta será produzida por 2:3,

equivalente à nota sol. A quinta do sol, por sua vez, por (2:3)(2:3) = (4:9), que reduzido à

oitava original resulta em 8:9, equivalente à nota ré. A quinta de ré será produzida por (8:9)

(2:3) = 16:27, que equivale à nota lá, e assim por diante, resultando na seguinte escala

diatônica: Dó ré mi fá sol lá si dó 1 8:9 64:81 3:4 2:3 16:27 128:243 (BAILHACHE,

2001).

Porém outras correntes vieram contestar esse paradigma. Vincenzo Galilei (1520-

1591) mostrou que as relações intervalares variavam em relação aos parâmetros medidos

na corda, como tensão e densidade linear, e de maneira geral, em relação aos parâmetros

medidos em qualquer fonte sonora. Intensificada no decorrer do século XVII, tal

22

perspectiva matemático-experimental representa a semente de uma mudança significativa

de enfoque sobre a compreensão de conceitos acústico-musicais como consonância e série

harmônica (BAILHACHE, 2001).

A aurora da Polifonia traz problemas entre teoria e prática, exige uma

fundamentação teórica que os pressupostos pitagóricos não dão conta. O próprio

experimento do monocórdio, que revela que os intervalos de quinta e oitava estão

relacionados respectivamente com razões 2:3 e 1:2, já contém potencialmente o problema

levantado pelo advento da Polifonia na medida em que a partir de seus resultados, constata-

se que não existem inteiros positivos tais que (2/3)m seja igual a (1/2)n, o que implica na

impossibilidade de encaixar um número inteiro de ciclos de quintas em um número inteiro

de ciclos de oitavas. Essa impossibilidade resultaria na coma pitagórica, que representa o

incômodo da imperfeição: os doze semitons não “cabem” exatamente em uma oitava,

assim como 12 meses de trinta dias não “cabem” exatamente no ano de 365 dias. Simetria e

pureza são impossíveis, de tal forma que ou sistematiza-se o semitom diferente da

experiência de Pitágoras, sendo assim todos os intervalos musicais impuros, ou cria-se um

intervalo assimétrico, com semitons variando de tamanho (BAILHACHE, 2001).

Estas observações estabeleceriam uma melhor compreensão da discussão sobre a

relação entre o advento da Polifonia e a necessidade de um Temperamento, uma vez que a

coma pitagórica e as outras geradas a partir das tentativas de construção de escalas

musicais baseadas em números racionais representam o motor para o desenvolvimento dos

diversos temperamentos. Uma solução para este problema é o temperamento igual, que tem

como característica fundamental o fato da relação matemática entre as freqüências de notas

de um mesmo intervalo ser sempre igual, ou seja, consiste em dividir a oitava em 12 partes

iguais, o que resulta no encontro entre 12 ciclos de quinta e 7 ciclos de oitava. Neste caso, a

razão relacionada ao intervalo de quinta seria 1:27/12, que numericamente é

aproximadamente 1,4983, e não 1,5 correspondente à razão 3:2 como propunha Pitágoras

(BAILHACHE, 2001).

O surgimento da Polifonia desencadeou, a partir das tentativas de sistematização de

uma base teórica congruente com tal expressão cultural, um afastamento do pitagorismo,

em favor de uma maior aproximação entre teoria e prática que se intensifica no

Renascimento. O tratamento do temperamento igual torna-se imprescindível para a

23

compreensão da acústica musical, denotando a necessidade de validar o experimento como

parte essencial do desenvolvimento científico, já que era preciso unir a prática musical à

teoria (BAILHACHE, 2001).

Um maior enfoque sobre as evidências experimentais gerou um salto qualitativo no

desenvolvimento da acústica durante o século XVII. Grandes físicos e matemáticos

começaram a dar mais atenção ao tema, respaldando o que mais tarde, no início do século

XVIII, seria denominada de ciência da acústica por Joseph Saveur. Nomes como Marin

Mersenne, John Wallis (1616-1703), Johannes Kepler (1571-1630), Vincenzo Galilei,

Galileu Galilei (1554-1642), René Descartes (1596-1650), Christiaan Huygens (1629-

1695), Isaac Newton (1642-1727) construíram uma fundamentação empírica para novos

paradigmas (BAILHACHE, 2001).

Inicialmente com Mersenne que além de estabelecer, juntamente com Galileu, a lei

de Mersenne, começou a relacionar diretamente a altura de uma nota emitida por uma fonte

com sua freqüência de vibração, dando início a uma resposta ao problema proposto por

Vincenzo Galilei, que mostrava a insuficiência de razões de números sem base

experimental para a determinação de intervalos musicais, como propunham os pitagóricos.

Ainda no século XVII, Mersenne levantou um novo paradoxo que consistia em saber se um

mesmo objeto poderia vibrar em várias freqüências simultaneamente que só pôde ser

resolvido no final desse século quando Joseph Saveur propôs o Princípio da Superposição.

Tal questão motivou também a busca de explicações para o conceito de Série Harmônica,

que tempos depois passou a ser essencial para distinguir timbres (BAILHACHE, 2001).

O que caracteriza o timbre de um instrumento é a composição das diversas

freqüências emitidas, todas múltiplas da fundamental, quando tal instrumento soa, vibra e

tal vibração é transmitida ao ar. A freqüência ou altura do som produzido vai depender das

características do meio vibratório. Tais freqüências são os harmônicos ou parciais. Em

1673, Christiaan Huygens, influenciado por Mersenne, estimou freqüências absolutas e

estabeleceu a relação entre comprimento de onda e comprimento da corda. Em 1677, o

matemático John Wallis publicou um artigo mostrando experimentalmente que os

harmônicos gerados por uma corda estavam relacionados com seus nós. Saveur mostrou

que um mesmo objeto pode produzir diferentes freqüências simultaneamente, o que o levou

a conceber o princípio da superposição para ondas sonoras que consiste em dizer que a

24

freqüência de uma nota dada é a somatória das freqüências de cada um de seus harmônicos

(BAILHACHE, 2001).

A primeira abordagem de Rameau, desenvolvida no tratado de 1722 é puramente

matemática, tendo como princípio a máxima de Descartes que “a corda está para a corda

como o som está para o som”. As conclusões a que chega confirmam o seu caminho,

sobretudo por haver conhecido, antes de 1726, os trabalhos de Joseph Saveur sobre os sons

harmônicos, que vinham a corroborar perfeitamente suas crenças. Este físico demonstrou

que quando uma corda vibra em um tubo sonoro (um corpo sonoro) emite um som, e

também, de uma maneira muito mais débil, seus terceiros e quintos harmônicos, que os

músicos chamavam décimo segundo e décimo sétimo graus diatônicos. Supõe-se que não

se possuía uma acuidade auditiva capaz de identificá-los distintamente, no entanto um

dispositivo físico simples permitiu visualizar o efeito, artifício importante para Saveur que

era surdo. Surge então a física num domínio em que se repartiam, até aquele momento,

matemáticos e músicos (BAILHACHE, 2001).

2.2.2 Do ponto de vista harmônico

Para compreensão da teoria de harmonia tonal é necessária a noção de que a unidade

harmônica básica é o acorde e não o intervalo. Os intervalos harmônicos são mais bem

compreendidos como componentes de acordes em contrapartida ao pensamento de que os

acordes surgem meramente da combinação de intervalos. Esta noção surgiu em várias

tradições teóricas independentes, de acordo com muitos dos componentes que foram

eventualmente combinados para formar uma perspectiva harmônica tonal. Em 1558 o

italiano Gioseffo Zarlino, cujos tratados enciclopédicos são fontes primárias para o

entendimento do pensamento musical do século XVIII, já abordava essa noção em sua obra

Le Institutioni Harmoniche, de acordo, obviamente, com as circunstâncias musicais da

época, que está muito longe da moderna concepção de tríade (LESTER, 2006).

Zarlino proclamou a importância do tenor na maioria dos aspectos da estrutura

musical. O tenor dificilmente poderia fazer soar uma inversão triádica, papel central na

teoria dele e o resultado de ter uma sexta em vez de uma quinta sobre o baixo: C-E-A

25

surgiu como uma modificação de C-E-G, não como uma inversão de A-C-E; o C-E-A passa

a ser um acorde maior com duas grandes consonâncias imperfeitas sobre o baixo e não um

acorde menor rearranjado. Uma “harmonia Perfeita”, termo utilizado por esse autor, era

uma maneira de checar a textura para ter certeza de que as harmonias não eram impróprias.

Só mais tarde é que os teóricos chamaram essa ocorrência de primeira inversão triádica.

“No entanto, a autoritária enunciação de Zarlino de que a natureza essencial de uma

harmonia era definida pela qualidade da terça sobre o baixo provavelmente chamou a

atenção de muitos músicos” (LESTER, 2006. p.754).

Outros teóricos do final do século XVI reconheceram através de outros caminhos a

primazia dos acordes sobre os intervalos. Ao final do século XVII isso já era comum aos

músicos, no mínimo reconhecerem tríades de sexta no lugar da quinta como permutações

da mesma harmonia (LESTER, 2006).

O reconhecimento do acorde de sexta no lugar da quinta pelos escritores do séc.

XVI e início do XVII como blocos primários da construção harmônica da estrutura musical

precede e deriva de um diferente contexto de tradições e do crescimento de uma das mais

importantes e peculiares características do início da prática musical barroca: o baixo

contínuo (LESTER, 2006).

No século XVII, a prática e a pedagogia do baixo contínuo contribuíram muito para

o reconhecimento em larga escala de que esse tipo de acorde (5/3), aquele simultâneo que

não requer nenhuma cifra, era a unidade harmônica estável primária. O conceito de baixo

contínuo era estranho às noções teóricas de inversões acordais – desde o uso do baixo

contínuo os acordes são conceitualizados a partir da nota do baixo e não de uma raiz como

mais tarde mostrará Rameau – porém, na prática, promoveu a descoberta de noções

importantes, a partir do momento em que os organistas e cravistas (que usavam

instrumentos de teclas) se tornaram conscientes de que o mesmo acorde da mão direita

poderia ser tocado sob diferentes armaduras de clave ou cifras. Por exemplo, C-E-G

poderia ser tocado na mão direita sob um baixo de C desfigurado, tão bem quanto uma

configuração de E com uma 6/3 e um G configurado com uma 6/4. Segundo Lester (2006),

no final do séc. XVII era comum os manuais de baixo contínuo sugerirem mnemônicos

(processo de treinar ou ajudar a memória) para simplificar a percepção da figura do acorde.

26

Igualmente, instrumentistas de instrumentos de corda como o violão, alaúde e teorba (todos

instrumentos populares do séc. XVII) são treinados para perceber a figura do acorde sem se

preocupar com o som da nota do baixo, soada no momento (LESTER, 2006).

A prática diária fez com que os músicos se familiarizassem com a relação entre os

acordes, pouco referida pelos teóricos. O baixo contínuo também foi importante para trazer

à tona outra característica fundamental da música tonal, a de que sobre as notas dadas pelo

baixo ocorriam, regularmente, sonoridades específicas. Na prática da música barroca,

muitas das harmonizações desenvolvidas desde o início do século XVI se tornaram lugar

comum, o que possibilitou oferecer linhas guia para a realização de linhas de baixo

completamente desfiguradas que reclamavam uma melhor formulação das harmonizações.

Mas ao mesmo tempo elas também ajudavam a codificar normas de coerência harmônica.

As versões do século XVII destas regras oferecem padrões harmônicos além das colocadas

na clave. Heinichen reduziu o número de regras e as diferenciou entre recomendações

baseadas nos padrões e no uso das escalas diatônicas dentro da clave. Uma tradição

pedagógica separada evitou tais regras, apresentando um modelo de escala de baixo e

outros padrões de baixo com harmonias comumente sustentadas por ele (LESTER, 2006).

Em 1716 o violonista francês François Campion canonizou uma normativa

harmonização de ambas as escalas: ascendente e descendente maiores e menores

(melódica) sob o nome de “regra da oitava” (règle de l’octave). Através dessa regra (ou

muitas de suas variantes), incontáveis músicos do século XVIII aprenderam o uso de

harmonias da escala diatônica comum na clave e como elas interagiam entre si. Campion,

implicitamente reconheceu que as normas harmônicas mudavam, dependendo se o baixo se

movia por saltos ou por graus. As linhas guias encontradas na literatura prática e teórica do

século XVII e XVIII ajudaram a codificar e promover normas harmônicas intuitivas que se

tornaram parte da sintaxe tonal (LESTER, 2006).

O reconhecimento do direcionamento de certas normas harmônicas apareceu pela

primeira vez em meados do século XVI em conexão à condução cadencial de vozes. Nicola

Vicentino (1511 – 1576) em 1555 e Zarlino em 1558 reconheceram que certas combinações

de duas ou mais vozes criavam tamanha expectativa da eminente chegada num objetivo

cadencial específico que um senso claro de direcionalidade era percebido mesmo quando o

objetivo em si era ausente – um efeito que eles chamaram de cadência evasiva. Esse

27

pensamento postulou que forças subjacentes à continuidade musical podem ser mais

importantes que uma resolução de dissonâncias local (LESTER, 2006).

Demorou para que o sistema de tons maiores e menores – outro ingrediente de

mudança de perspectivas teórica no século XVI e XVII que preparou o fundamento para

futuras teorias da tonalidade harmônica – fosse reconhecido universalmente como pilar da

música contemporânea. Muitas tradições continuavam a insistir, no séc. XVIII, que os

modos tradicionais eram a base de toda a música. Lippius o teórico que imprimiu o termo

triadis é o primeiro a argumentar que a essencial diferença entre os modos está na

qualidade da tríade sobre o final (LESTER, 2006).

Importantes desenvolvimentos no entendimento dos intervalos musicais e acústicos

complementaram os aspectos de mudança da teoria musical e da prática durante o séc

XVII. A hierarquia tradicional da razão dos intervalos canonizada por Zarlino, dentro do

cenário dele, por exemplo, foi inadequada para teóricos (começando por Lippius em 1610)

que colocaram as tríades maiores e menores como fonte de consonância. A maior

problemática foi à quarta justa que se colocava à frente da terça maior ou menor em valor

de consonância quando medida pela razão intervalar, e que ainda era uma dissonância

quando aparecia sobre o baixo (LESTER, 2006).

Não muito tempo depois que Lippius publicou seu tratado, René Decartes (1596 –

1650) escreveu seu Musicae Compendium (1618) no qual ele diferenciou consonâncias

entre si, baseado nas suas relações com o intervalo gerador. A oitava (2:1) foi dividida em

uma quinta justa (3:2) e uma quarta justa (4:3). A quinta era um intervalo direto, por ser

acusticamente construída sobre o tom mais baixo da oitava; a quarta, por contraste, era

meramente a “sombra” da quinta, preenchendo um espaço entre a quinta e a oitava. Este

raciocínio também colocou a terça maior (5:4) como um intervalo primário, desde que

também fosse diretamente gerado pela corda fundamental. Mas isso falhou para explicar

como uma tríade menor poderia formar o intervalo mais baixo, por esse raciocínio a tríade

menor deveria ser a sombra da terça maior preenchendo a distância entre a terça maior e a

quinta justa (LESTER, 2006).

Todas as noções citadas e que emergiram no curso do século XVII em diferentes

tradições da prática, da pedagogia e da teoria especulativa – acordes como unidades

composicionais fundamentais, a identidade inversional de harmonias, o sistema de

28

transposição de tons maiores e menores, a direcionalidade de progressões cadenciais, o

surgimento da padronização de escalas harmonizadas e as teorias da fundamental gerativa –

precisavam de um agente unificador, alguém que organizasse essas noções em um único

sistema de teoria harmônica e este foi o feito de Rameau (LESTER, 2006).

2.2.3 O século XVIII na França

O século XVII vê com Descartes a separação entre alma e corpo, quase um século

após sua morte, sua influência, que foi chamada de cartesianismo, conduzia a França a um

movimento intelectual de revolta e independência, como parte do classicismo. As teorias já

existentes eram freqüentemente questionadas pelos filósofos que produziam suas próprias

teorias, tendo a natureza como base. O século XVIII responde ao século XVII pela dialética

dissociada da alma sensível, imprimindo a todo espírito teórico uma perda de valor de sua

aplicação. Com o final do reinado de Luís XIV o racionalismo ganha força na sociedade e

as pessoas “esclarecidas” acham que tudo pode ser explicado pela razão.

O pensamento iluminista foi construído, principalmente, sobre três pilares: a razão,

a natureza e o progresso. No imaginário do iluminismo o mundo, incluindo o universo das

artes, poderia ser apreendido pela razão, baseando-se em princípios naturais. Era a nova

realidade que o cenário histórico propiciava.

Segundo Lewis Rowell, em seu livro Introdução a Filosofia da Música de 2005, os

escritos de René Descartes (1596-1650) marcam a origem do movimento racionalista na

filosofia, tendo como alguns de seus seguidores Spinoza (1632-1677) e Leibniz (1646-

1716). Para essa corrente de pensamento o conhecimento é obtido a partir das idéias e

princípios inatos que todos possuem e da capacidade de raciocínio; o racionalismo acentua

a importância de conhecimentos que já estão colocados independentes da nossa

experiência, os axiomas. Na arte este movimento tende a generalizar, a idealizar e a

estimular a criação normatizada, o que favoreceu a evolução das teorias acerca da música.

A teoria musical começou lentamente sua transformação de uma disciplina descritiva a uma

preceptiva, a qual os teóricos seguiram, baseando suas especulações na prática musical e

29

buscando identificar cada vez mais os princípios organizadores da música e sua

estruturação em um sistema musical ideal.

Descartes possuía um projeto de ciência universal e toda sua obra parece ter sido

construída na intenção de substituir a ciência incerta da idade média por uma ciência cuja

certeza se igualasse àquela dos matemáticos, para que pudesse tirar dessa ciência as

aplicações práticas, que segundo a célebre fórmula do Discurso do Método, tornariam os

homens “mestres e possuidores da natureza”. Poderia então, situar tal ciência em relação ao

ser, dando assim uma solução ao conflito que nessa época opunha ciência e religião.

(ALQUIÉ, 1956).

Os escritos de Descartes não falam diretamente sobre a estética, apesar de delinear

uma teoria geral da expressão em sua obra Paixões da alma, de 1649. Em 1618, ainda

muito jovem, enquanto servia o exército, escreve o Abrégé de la musique, um breve tratado

sobre música, que apesar de parecer ingênuo quando comparado aos tratados de música

mais técnicos da época, foi de um considerável interesse para os músicos. Nele se

encontram observações preliminares tais como:

- Todos os sentidos podem experimentar prazer;

- Para este prazer, deve haver presente uma relação proporcional de alguma classe entre o

objeto e o sentido mesmo;

- O objeto deve ser tal que não caia sobre o sentido de uma forma muito complicada ou

confusa;

- Os sentidos percebem com maior facilidade um objeto quando a diferença entre as partes

é menor;

- Podemos dizer que as partes de um objeto inteiro têm diferenças menores quando há

maior proporção entre elas;

- Esta proporção deve ser aritmética e não geométrica;

- Entre os sentidos-objetos, o mais agradável para a alma é o que não se percebe com muita

facilidade, para que não satisfaça instantaneamente o desejo natural pelo qual os sentidos

são levados até os objetos, mas que também não seja tão complicado, para não cansar

demasiadamente os sentidos;

- Deve-se observar que a variedade é muito agradável em tudo. (DESCARTES, 1987. p.54-

56)

30

Sobre o racionalismo de Descartes na criação artística Rowell comenta:

Descartes não estava seguro sobre a aplicabilidade dos princípios racionalistas na criação artística. Apesar da ênfase que colocava no método intelectual da mente clara, sustentava que a experiência estética era subjetiva e que a arte era, em essência, irracional. Em cartas a Marin Marsenne, escritas em 1630, Descartes expõe sua opinião sobre a relatividade dos efeitos da arte, de como a noção do belo e o do prazenteiro é individual e as associações emocionais provocadas por uma determinada obra também são relativas, deixando implícito que a resposta à beleza é uma espécie de reflexo condicionado. Os métodos de Descartes podem ter sido racionalistas, mas suas opiniões sobre a arte são empíricas e demonstram que a aplicação dos princípios racionais na organização da música exige uma definição profissional. Tal aplicação foi levada a cabo por um de seus sucessores, Jean-Philippe Rameau. Rameau foi sem dúvida um dos compositores mais significativos do século XVIII (especializado em ópera e música para cravo e órgão), suas contribuições para a teoria musical são das mais importantes. Em uma série de tratados que começou com a publicação de seu Traité de l’harmonie em 1722, Rameau desenvolveu gradualmente uma teoria compreensiva da harmonia que foi tanto um modelo de pensamento musical de sua época quanto uma afirmação definitiva de que os princípios harmônicos governaram a música entre o ano de 1650 a 1900. (ROWELL,2005. p.107 e 108)

Rameau foi uma dessas pessoas com a capacidade de observar e analisar os

acontecimentos de seu tempo, com sólidas referências do passado e previsão do futuro.

Assim como Karl Marx na economia consegue descrever o capitalismo e prever sua

evolução, quando esse sistema estava apenas em seu início, Rameau consegue apreender o

início do sistema tonal, descobrir os seus pilares e os princípios de suas engrenagens.

Segundo Rowell (2005) a história posterior da teoria harmônica até o começo do

século XX consistiu em preencher as lacunas que Rameau havia deixado e em completar

algumas de suas observações. Lacunas estas que ele mesmo previu no prefácio de sua

primeira obra publicada em 1722, o Traité de l’Harmonie, quando afirmou:

Um só homem não é capaz de esgotar uma matéria tão profunda como essa, é quase impossível que ele não esqueça sempre alguma coisa, apesar de todos os seus cuidados, mas ao menos todas as descobertas, que ele pode unir as que já apareceram sobre o mesmo assunto, são igualmente estradas abertas para os que podem ir mais longe (RAMEAU, 1722).

As idéias musicais de Rameau estavam em um estado de evolução constante,

portanto é difícil determinar sua posição final sobre um tema dado, mas é duvidoso que

31

existam aspectos da prática musical do século XVIII que ele não tenha analisado em

profundidade. As especulações harmônicas de Rameau refletem o movimento racionalista

na filosofia, sobretudo porque ele sustentava que as regras da arte se baseavam com firmeza

em princípios da natureza. Descreveu a normatização na harmonia musical e sustentou que

a harmonia tonal se modelava inconscientemente segundo certos conceitos inatos, dados

alguns fatos, restava à mente deduzir o conjunto completo de leis harmônicas e confirmar

sua existência observando a prática musical. (ROWELL,2005).

2.2.4 Como esse processo se deu

No processo de separação das artes, no decorrer da acentuação sobre a razão

humana, sobrou para a música uma submissão em relação às outras áreas artísticas,

sobretudo a poesia, o que gerou diversos embates e discussões a respeito de sua

importância, assim como um determinado comportamento dos músicos diante de sua arte e

das outras artes em relação aos músicos e teóricos musicais.

Enrico Fubini em seu livro Los Enciclopedistas y La Música, assim comenta sobre

essa questão:

“A vida da música no mundo ocidental, desde a antiguidade grega até o umbral do romantismo, tem-se caracterizado em relação às outras artes por dois fenômenos: a falta de uma consciência clara de sua própria historicidade e a estreita relação de dependência em relação à poesia. De fato, conhecemos muito menos do nosso passado musical que o das outras artes, e o pouco que conhecemos da música mais antiga, devemos às notícias indiretamente rastreáveis nos escritos dos literatos e filósofos. Esta condição de inferioridade se acentua com os teóricos do classicismo e remonta à metade do século XVIII”.(FUBINI, 2002. p.17)

O classicismo retoma os valores da Antiguidade e do Renascimento em relação ao

equilíbrio, à ordem, à harmonia, à objetividade, à ponderação, à proporção, à serenidade, à

disciplina, ao caráter apolíneo, lúcido e luminoso. A natureza é concebida em termos de

32

razão e harmonia, a obra de arte é imitação da natureza e reflete por conseqüência as leis do

universo. (CROCE, Iniciação a Estética).

Disciplinar os impulsos subjetivos, dominar os ímpetos da interioridade e de sua

expressão, fazendo com que o autor desapareça por trás da obra é outro aspecto relevante

do classicismo. Apesar do valor às regras ser um fator geral há nesse período uma rígida

separação das artes, cada uma obedece a suas normas específicas; cada gênero possui seus

preceitos e confundir os vários tipos de composição é tido como um grave defeito. Na visão

clássica o poder da obra está em veicular, através da bela e suave revelação da forma,

ensinamentos e verdades que elevem o conhecimento e contribuam para o aperfeiçoamento

do ser humano (GUINSBURG, 1985).

Diante de uma visão normativa, dogmática, moralista e intelectual como a do

classicismo é de se esperar que a música represente uma anomalia no meio das artes por seu

aspecto transitório, por seu caráter não semântico e sua natureza hedonista que se dirige aos

sentidos, além de não imitar a natureza senão de uma forma muito reduzida, num nível

onomatopaico ou de maneira confusa na imitação dos sentimentos. Por esses motivos ela é

tida como imoral, sua existência por si só é um atentado à razão (FUBINI, 2002).

A música que predominava até metade do século XVIII era a ópera e a música

instrumental pura era consumida por uma pequena elite. Na França, sem uma tradição

própria de música pura, sem tradição de escolas instrumentais e por conseqüência sem bons

instrumentistas, a música de Rameau e Couperin era novidade e pouco difundida

popularmente. O que se comentava era o melodrama, a música com palavras e os sons

deveriam restringir-se à ornamentação, a embelezar o texto, a revestir um conteúdo muito

mais significativo, por ser passível de racionalização, que é a palavra.

A teoria da imitação da natureza, dogma tão indiscutido quanto ambíguo e

interpretável de maneira diferente até a segunda metade do século XVIII e ainda depois, foi formulado, tendo presente o modelo das artes figurativas e literárias; mas a estética musical herdou uma teoria que, certamente, a música não contribuiu para formular; e os teóricos não fizeram senão se conformar, aceitando passivamente um conceito alheio mesmo à natureza do feito musical. Daí deriva a ambigüidade de linguagem dos filósofos, que com freqüência se servem do termo expressão não como alternativa ou em oposição à imitação, mas intercambiando os dois termos como sinônimos ou quase sinônimos. É evidente que a música não pode limitar seu campo de ação a imitação dos ruídos e dos sons da natureza, posto que o que se exige no melodrama é um dever muito distinto, porém é dificilmente explicitável. Toda preocupação dos teóricos do século XVIII se resumia no intento de clarificar a relação

33

entre duas linguagens tão diferentes como a música e a poesia, se bem, sempre próximas em sua história desde a Grécia antiga até os tempos do melodrama. O conceito de expressão, portanto, se usa com freqüência na primeira metade do século XVIII, precisamente a propósito da música, para indicar essa vaga propriedade, intuída mais do que identificada, de atuar de maneira diferente a das artes que imitam a natureza mais explicitamente (FUBINI, 2002. p.19).

Apesar dessa visão generalizada sobre a música, outras visões ressaltavam o

privilegiado poder dessa arte sobre as emoções e as paixões, porém não fazia sentido, até

então, imitar nosso mundo interior. Não se sabia distinguir um sentimento imitado de outro

surgido espontaneamente, além do que imitar a natureza de maneira indireta, através da

imitação dos sentimentos por meio dos sons exigia a ambigüidade entre expressão e

imitação. Em um universo impregnado de cartesianismo essa ambigüidade faz com que a

música represente um elemento de crise e desagregação para a estética racionalista, que

prefere vê-la como um elemento heterogêneo, não lingüístico, não racionalizável e

complementar à poesia. Filósofos como Boileau, La Motte, Dubos e Batteux mostram

diferentes posições sobre a ópera e sobre as relações entre música e poesia ou música e

dança nas primeiras décadas do século das luzes, anunciando futuras polêmicas e

alternativas formuladas nas décadas posteriores (FUBINI, 2002. p.20).

Até a metade do século XVIII, pensar a música como uma linguagem artística

autônoma e auto-suficiente era algo alheio aos filósofos e para que tal visão se instaurasse e

pudesse abrir novos caminhos foi preciso uma profunda revolução tanto no plano prático

quanto no plano teórico.

As polêmicas que envolveram a música começaram na França ainda no século

XVII, mais por motivos éticos e morais do que por valores estéticos. Alguns filósofos

consideravam a ópera como uma degeneração da tragédia em que a música servia para

distrair o espetáculo do efeito catártico, além de infringir a lei da verossimilhança,

corrompendo o espírito e o intelecto com seus agrados ilusórios aos ouvidos, tão

perniciosos à razão. Boileau (1636 – 1711) e Saint-Evremont (1613 – 1703), por exemplo,

em escritos e cartas demonstram a mentalidade de rechaço à música. A ópera é vista dessa

forma como uma busca fácil pelo prazer. A pior crítica que se podia fazer a um poeta era

dizer que seus versos cabiam bem na música, crítica feita por Boileau a Quinault, famoso

libretista de Lully, compositor italiano que monopolizou a ópera francesa desde 1672. A

34

música, força misteriosa e irracional, desvia a atenção das palavras e as empobrece,

empobrecendo assim seu público (FUBINI, 2002. p. 22-23).

Apesar do desprezo à ópera, ao mesmo tempo filósofos como Fenelon e mesmo

Boileau propõem que a arte não deve cansar a razão, que a poesia deve ser passível de

acessar a razão e não exatamente racional, deve estar próxima do bom sentido e não da

razão matemático-cartesiano (FUBINI, 2002. p.27). Nessa nova maneira de ver a arte,

coração e razão não se opõem, não pertencem a domínios diferentes. Coração e sentimentos

são equivalentes à razão no mundo das artes, no entanto tudo é muito contido e os filósofos

que identificaram o mundo das artes com o mundo dos sentimentos continuaram com os

mesmos ideais artísticos de simplicidade formal, de didatismo moral e intelectualismo

(FUBINI, 2002. p.27-29).

O empirismo inglês, através da filosofia de Locke, começa a adentrar na cultura

francesa no começo do século XVIII e vai se opor aos racionalistas na época das luzes. Os

filósofos empiristas achavam que o conhecimento só é logrado através da experiência e esta

se obtém pelo exercício dos nossos sentidos e pelo que se descobre por meio deles. O

método dos empiristas consistia em acumular evidências, sem idéias pré-concebidas e

extrair conclusões baseadas nessa acumulação, suspeitando de toda doutrina de causa e

efeito. Enquanto a ênfase do racionalismo estava nos princípios prévios e os conjuntos de

regras tendiam à idealização da arte (em desenho e proporção), acentuando o típico, o

normativo e o geral, a filosofia empírica tendia a debilitar o que concernia à crítica

tradicional e a validar os juízos subjetivos (Rowell, 2005).

No mesmo momento em que a estrutura do pensamento empírico toma forma na

Inglaterra, na França as primeiras polêmicas entre os defensores da ópera francesa e os

defensores da ópera italiana mostram uma abertura de visão e valorização da música. Na

querela dos antigos e dos modernos a ópera francesa era defendida pelos mais rígidos

racionalistas e a ópera italiana era defendida pelos que viam a música por uma perspectiva

mais autônoma, mesmo que inconscientemente. Estes últimos, defensores do moderno,

apesar de não se afastarem tanto do racionalismo, abrem espaço para uma mentalidade

menos dogmática e mais acolhedora de outras realidades circundantes. O conflito entre os

defensores da música italiana e os defensores da música francesa, na chamada Querelle des

anciens et des modernes (1687 a 1694), revela duas concepções estéticas e filosóficas

35

opostas que se escondem por trás de opiniões e defeitos atribuídos a cada uma dessas

músicas, defeitos esses que se convertem em virtudes com o passar dos anos.

Demorou para que a ópera fosse aceita como um novo gênero musical e não como

uma deturpação das tragédias gregas ou uma fraca e débil produção literária. Alguns dos

defensores dos modernos como Perrault (1628-1703) e Dubos (1670-1742) foram uns dos

primeiros a ver a ópera como um gênero em si mesmo, em que a música é parte

imprescindível, e a defender os libretos de Quinault. O canto para eles passa a ser visto

como uma intensificação lírica da palavra. A ópera é vista como pertencente ao reino do

irracional, do irreal e do sobrenatural, não sob uma conotação negativa e sim por uma

reconhecida necessidade humana de um mundo mágico, dos sonhos e das fábulas que

agradam a todos os espíritos. O reconhecimento aberto da positividade do prazer auditivo,

da musicalidade da poesia e da própria música sem conteúdos éticos ou didáticos faz nascer

uma nova arte com características próprias. A música passa a ser uma arte privilegiada pela

capacidade de agradar e comover por apresentar signos naturais enquanto as palavras são

signos arbitrários. (FUBINI, 2002. p. 29-37).

É relevante observar que a ópera francesa é na realidade fruto da ópera italiana, pois

a ópera chegou à França por meio de italianos como Mazzarino, Rossi, Cavalli e Lully, este

último criou um império musical francês na segunda metade do século XVII por entender e

interpretar o gosto francês, muito facilmente controlado pelos críticos, uma vez que o

público de ópera na França era composto de uma elite aristocrática concentrada em Paris,

ao contrário do público italiano, muito mais variado, pertencente a várias classes e

espalhado por várias cidades (FUBINI, 2002. p.35).

Apesar de todas as discussões sobre a música e as diferentes visões estéticas e

filosóficas, ela ainda estava no papel de acompanhamento e servilidade ao texto literário.

Tanto na música francesa, caracterizada pelo amor à verdade, à imitação e que corria o

risco da monotonia, quanto na música italiana, caracterizada pelo amor à variedade, ao

prazer e beirando à aridez e ao hedonismo, havia a busca do caminho do meio, do ponto de

equilíbrio que só poderá ser encontrado em uma outra compreensão sobre a natureza da

música e seu desenrolar histórico (FUBINI, 2002. p.38-55).

Novos caminhos foram abertos no decorrer da segunda metade do século XVIII.

Muitas discussões entre filósofos e críticos buscavam nas polêmicas apaixonadas um meio

36

para a compreensão das necessidades culturais emergentes das quais a mentalidade

puramente clássica não dava conta. É justamente nessa época que nasce uma crítica

musical. Antigos e novos conceitos se confrontam, se mesclam e se invertem, muitas vezes,

na busca do entendimento desse algo ainda tão confuso chamado música.

É interessante ressaltar que as concepções sobre a música elaboradas pelos teóricos

do século XVIII surgiram das polêmicas desenvolvidas pelo mundo das letras: libretistas

críticos literários, ensaístas. Os músicos, que possuíam a experiência musical, muito pouco

se colocavam nessas discussões. Existia paralelamente ao mundo estético, um outro

universo musical completamente diferente, que apesar de frágil carregava a tradição de

questionamentos e soluções a respeito da música com origem no pensamento medieval e

grego. A procura de uma estrutura profunda das leis musicais, independente do seu aspecto

auditivo e dos seus efeitos sensíveis, através de especulações matemáticas, perpassou

séculos e ressurgiu com o interesse em desenvolver uma nova ciência da harmonia

(FUBINI, 2002. p.58-59).

O moralismo dos literatos católicos franceses em suas aspirações por uma música

simples, despojada do supérfluo e que valorizasse as palavras é, por assim dizer, eco de

uma contra reforma e de uma tradição católica de desconfiança em relação à música, vendo

nela muitas vezes a encarnação do demônio. Em contrapartida, os países de tradição

luterana buscaram simplificar e popularizar a música por reconhecer nela um poderoso

instrumento de elevação e educação religiosa, gerando uma concepção e um

desenvolvimento musical muito diferente nos países protestantes, como a Alemanha

(FUBINI, 2002. p.60-63).

É no contexto de todas essas heranças que se situa Jean-Philippe Rameau (1683-

1784), músico e teórico que pela primeira vez intenciona a autonomia da música como arte

e sua liberação da poesia. Acercando-se do clima cultural e da mentalidade dos países

luteranos, valendo-se de uma tradição pitagórica apoiada em Marsenne, Zarlino e

Descartes, imprime um caráter científico aos estudos nessa área, promovendo uma

mudança importante à teoria musical.

Assim comenta Fubini:

37

Não é alheio ao significado da obra do Rameau Teórico o fato de que esta

é também a obra de um músico, o qual, por necessidade, tem um interesse muito mais direto e imediato pela música em relação ao que poderia experimentar o puro matemático ou o literato. Intento talvez anacrônico, o de Rameau, em uma época em que o pensamento musical recorria a outros caminhos e aprofundava, sobretudo, na idéia da relação originária entre música e poesia, entre som articulado e som inarticulado, para tentar sair do dilema imposto pela tradição classista. No entanto, ainda que seja anacrônico, seu pensamento se impõe igualmente numa dimensão de obstinado rigor, por sua fria e rígida coerência da qual emerge em uma solitária grandeza. (FUBINI,2002.p.65)

Rameau teve a necessidade de colocar a música no mesmo status em que se

encontravam as outras artes e as ciências, de ver reconhecido o trabalho intelectual do

músico, até então, visto como um cortesão, um serviçal dos aristocratas e da corte, já que a

música era tida como diversão ou como um ornamento quase inútil (FUBINI, 2002. p.66).

No primeiro momento em que Rameau começou a colocar seus conceitos em 1722,

até 1750, a polêmica entre os defensores da música italiana e da música francesa não tinha

atingido o máximo de sua agressividade como veio a atingir depois, quando Rousseau

através de seus escritos inverteu totalmente os termos da polêmica no que ficou conhecido

como a Querela dos Bufões. A França clássica se considerava a pátria do canto simples, de

pouca ornamentação, da expressão natural, da música pouco estridente, interpretada com

uma modesta e humilde orquestra que não se sobrepunha ao poeta, único e verdadeiro

soberano. A Itália se considerava a pátria do barroquismo, das sofisticações musicais, dos

caprichos da prepotência dos músicos que se impunham ao ouvido, órgão tão depreciável, a

não ser como intermediário para se chegar ao coração e à razão. Ou seja, sentimentais os

primeiros, intelectuais os segundos (FUBINI, 2002. p.70).

Porém, na segunda metade do século XVIII, por influência de Rousseau, a Itália

passou a ser para os franceses a terra do bel canto, da melodia, e os italianos se mostraram

para os franceses ou parte deles como emotivos, sentimentais e passionais. Para esta

reviravolta contribuiu também Rameau desde a época de seu primeiro tratado com a rígida

divisão prática e teórica e ao mesmo tempo com a divisão da música em melodia e

harmonia, perspectiva vista por Rousseau como uma espécie de intelectualismo incapaz de

tocar o coração.

38

Faz-se necessária uma breve explanação sobre a querela dos bufões. Em agosto de

1752 a apresentação da Ópera Bufa La Serva Padrona de Pergolesi por uma trupe italiana

composta por três cantores inicia a chamada Querela dos Bufões. Essa obra, que anos antes

foi apresentada sem nenhum sucesso, entusiasma alguns parisienses por sua música simples

e cantante, diferente das pompas da tragédia lírica; incita também uma polêmica que

dividiu franceses em duas partes. De um lado estavam os aliados do rei e sua favorita,

Madame de Pompadour, favoráveis à ópera francesa de Lully e Rameau, do outro lado

estavam os aliados da rainha, favoráveis à ópera italiana, defendida veementemente por

Jean-Jacques Rousseau.

Rousseau, compositor amador, tinha razões pessoais para incitar tal polêmica, em

As Confissões ele conta como foi rejeitado por Rameau, de quem se considerava discípulo,

quando intentou mostrar-lhe suas composições na casa de La Pouplinière, famoso mecenas

e protetor do músico e teórico. Rameau, mal humorado, disse que o que ouvia não era obra

do filósofo, que as peças se alternavam em genialidade e mediocridade. De tais

constatações Rousseau se defende, dizendo dever-se ao fato de ele compor apenas por

impulso de seu gênio, sem a sustentação da ciência. Em sua Lettre sur la musique française

de 1753 o filósofo critica fortemente a música francesa, dizendo que jamais tal música

poderia ser boa por conta da falta de musicalidade da língua francesa, já que para ele a

língua era uma imagem viva e fiel do caráter de um lugar. Rousseau considerava a música

instrumental como um arabesco sonoro, puro entretenimento ao ouvido, um discurso frio,

racional, significativo apenas para a razão, sem fazer parte das artes autenticamente

expressivas. A expressividade só poderia existir onde a língua conservasse, ao menos em

parte, o acento musical original e onde a música não tivesse perdido a originalidade

melódica. (FUBINI, 2002. p.106-107)

Para Fubini (2002):

Com esta posição, Rousseau entra diretamente em polêmica com Rameau, dando a volta aos fundamentos de sua perspectiva teórica. A universalidade da música, que para Rameau se baseava na racionalidade e naturalidade da harmonia, se converte para Rousseau em um fator negativo. A música como a linguagem, não é universal senão nacional em sua essência, e o aspecto universal é postiço, caduco, na origem. A harmonia precisamente “é igual em todas as nações ou, quando se pode notar nela alguma diferença, é veiculada pela melodia” (Lettre sur la musique française, en Oeuvres complètes VI, Paris, 1939, p.147.); o elemento originário na música é a melodia, e é “por ela somente que se pode identificar o caráter próprio de uma música nacional,

39

por que, tendo em conta que este caráter é dado, sobretudo pela língua, deixará seu mais profundo vestígio no canto propriamente dito” (Ibid. p.147). Tem sentido falar de melodia só se por ela se entende a melodicidadade de um canto; mas um canto unicamente pode ser melódico se a língua que o modula é “doce, sonora e harmoniosa e acentuada”. Só a língua italiana possui essas quatro qualidades, enquanto que o francês perdeu toda musicalidade, prevalecendo nele a articulação fria e dura.

Muitos escritos foram lançados e muitos panfletos foram escritos por diversos

pensadores anti ou pró-italianos em resposta à Lettre, alargando a discussão e a luta entre o

que aparentemente era o antigo e o novo. Apesar do considerável “barulho” que se fez em

torno da querela, registrado pela abundância de escritos literários, não se pode exagerar a

importância puramente musical.

Alguns filósofos a favor da música francesa responderam mais por se sentirem

feridos em seu patriotismo e por rígidos princípios racionalistas do que por entenderem o

pensamento de Rousseau, que de forma original, buscava explicar a natureza da linguagem

e da música, tema não tão original assim. Outros buscaram essa explicação antes de

Rousseau, como Dubos que falava do gênio da língua encontrado mais claramente nas

línguas originais em que se revelam as características próprias de cada etnia; cada povo

deixa a expressão de sua essência na língua. Tais pensamentos como a revalorização do

primitivo, do selvagem, das expressões fortes, simples e naturais, abriram novas

perspectivas para a estética e uma mudança fundamental na lingüística. Para os

enciclopedistas, influenciados pelo empirismo de Locke em suas investigações, inclusive

nos estudos sobre a linguagem, a superioridade das línguas primitivas se baseia numa

musicalidade latente. A força do caráter emotivo, metafórico e musical da linguagem,

sobretudo da linguagem poética, coincidem com as línguas primitivas, já que poesia não é

imagem, não é imitação e sim uma obra feita de sons (FUBINI, 2002. p 110 e 111).

Rousseau, no entanto, era um dos enciclopedistas com maior conhecimento musical,

apesar de outros terem escrito sobre música, e pôde de maneira mais orgânica, iniciar uma

nova concepção de música e uma visão histórica dos problemas musicais a partir de suas

concepções. Outros filósofos como Diderot (organizador da conhecida Enciclopédia) ou

D’Alembert guardaram certa distância da querela, apesar de se interessarem pela música

em seus escritos. Pode-se dizer que a única alternativa realmente opositora ao pensamento

de Rousseau é a teoria harmônica de Rameau que responde à Lettre em 1755 em seu

40

Erreurs sur la musique dans l’Encyclopédie, salientando as fraquezas dos argumentos de

Rousseau e se contrapondo com rigor à união orgânica e originária de música e palavra,

através do conceito de autonomia da linguagem musical. Em 1754, um édito real coloca fim

à Querela dos Bufões.

Em pleno século XVIII, quando se utilizava o racionalismo para se justificar as

ciências e buscava-se separá-lo da arte – valorizada pelo gosto e pelos sentimentos que

gerava – Jean-Philippe Rameau aplicava o racionalismo à música e continuava a fundar

seus princípios no método cartesiano, mesmo quando essa forma de pensar já declinava.

Rameau quis afirmar a autoridade da razão, privilegiando a música em relação às outras

artes, justamente por sua racionalidade. Em uma época em que prevalecia o canto

melódico, Rameau reafirma a supremacia da harmonia sobre a melodia, a dependência da

última em relação à primeira; melodia, cuja importância e beleza Rameau não nega, mas

que sempre foi considerada por ele como um subproduto da harmonia que representa a base

e “a estrutura sustentadora do inteiro edifício musical” como diz Fubini (2002).

Uma visão da música como ciência, quando esta era tão somente vista como arte,

afetou todo um modo de perceber as artes e as ciências, cheias de vaidades e fronteiras,

ainda mais vinda de alguém como Rameau, que se valendo da tradição rompe com toda

uma tradição. Rameau que se apoiava nas teorias de Descartes e se relacionava com as

teorias do físico Isaac Newton, era totalmente persuadido de que o saber absoluto está

depositado e encarnado na música. Vale-se da tradição por se apoiar em Descartes no que

diz respeito à busca de uma racionalização e na redução de uma multiplicidade de

fenômenos a um único princípio. No entanto a cisão entre intelecto e sentimento, entre

razão e coração e a idéia de que devemos sobrepujar as paixões por serem negativas, não é

bem o ideal de racionalidade para Rameau. Para ele a música é justamente a expressão de

uma aliança entre esses âmbitos, em que o sentimento é considerado como uma forma de

razão, sendo dever do teórico desvendar a racionalidade natural da música para atingir seu

poder de expressão, mesmo que um músico possa se sobressair em sua prática sem teorizar

a respeito dela. Essa maneira de perceber a música é o caráter novo de sua visão,

claramente exposta no prefácio de seu tratado, traduzido nesse trabalho de TCC.

De início Rameau foi considerado pelos literatos franceses como “italianista”, pois

até 1733 tinha sido preponderantemente compositor de música instrumental, fato

41

condenável para os literatos franceses tão amantes da poesia e do canto e como críticos

achavam que ele tinha maior facilidade para a música instrumental do que para a música

vocal. Sua obra se constitui de muita organização e de uma racional simetria, em que a

descrição não é o forte, deixando claro que ele não é um músico a serviço da poesia. Sua

crença na força e na autonomia da harmonia é expressa tanto nos seus tratados quanto na

sua música. Para os apreciadores da época, nostálgicos de Lully, ser italianista é não saber

tocar o coração, é ser mero combinador de sons em busca do prazer do ouvido; mesmo suas

óperas eram consideradas mais como concertos do que imitação de ações (FUBINI, 2002,

p. 71).

Aos poucos os críticos foram percebendo que Rameau, ao menos como músico, não

era revolucionário, não queria exatamente subverter a tradição e sim colocá-la em dia e

logo os conservadores, tranqüilizados com as boas relações de Rameau com a corte,

passaram a considerá-lo o possível e legítimo herdeiro de Lully, ou seja, o perpetuador da

tradição francesa. Os embates ao longo do tempo com os enciclopedistas só vieram a

reforçar seu aparente conservadorismo.

Assim então, até 1750, o início da querelle dos bufões, a bipartição estabelecida por Rameau entre harmonia e melodia havia tido somente uma importância teórica, e, todavia não havia começado a formar parte da polêmica entre defensores e opositores da música francesa, que já contava com pelo menos cinqüenta anos de antiguidade. Rousseau foi o responsável por introduzir essa espécie de falsa alternativa em forma de antinomia dramática na velha querela, renovando-a assim em suas conotações, e inclusive contribuindo indiretamente a dar um novo colorido à teoria harmônica de Rameau. De fato, desde então, colocar-se de parte dos franceses significará afirmar a supremacia da harmonia sobre o canto; colocar-se de parte dos italianos significará afirmar a supremacia da melodia. Rameau e Rousseau se convertem em duas figuras complementares: suas doutrinas encaixam perfeitamente uma com a outra e se iluminam respectivamente. Rameau, depois da Letre sur la musique française de Rousseau, já não poderá ser tachado de italianismo; sua música já não se mostrará como um acúmulo de ruídos e sons carentes de lógica. Rameau será considerado justamente um racionalista, como músico e como teórico; poderá ser acusado de intelectualismo, de falta de abandono emotivo, de não saber tocar o coração. Mas, desta vez, o coração se entenderá segundo a linguagem da maior parte dos philosophes, como o que se contrapõe à razão, à abstração intelectual, como o fluir da vida frente ao rigor da doutrina, como a mobilidade do sentimento em relação à imobilidade do intelecto (Fubini, 2002. p.73).

Essa inversão dos pontos de vista não diz respeito somente às polêmicas musicais

da época, mas também a toda cultura pré-romântica e pré-revolucionária francesa e

42

européia, que tão bem se manifesta na intensa confrontação dialética entre Rameau e

Rousseau (FUBINI, 2002. p.73).

Para Rameau o princípio fundamental da música se situa numa esfera natural que

compreende sentimento e razão, que faz dela uma revelação sensível da unidade do

cosmos. Por conta disso, existe uma autonomia da música que passa a ter na harmonia, na

variedade dos acordes, uma espécie de vocabulário com significados fixos. Estes acordes

refletem uma ordem natural e são a expressão desta ordem independente de gosto, tempo e

espaço. A expressão musical possui seus próprios meios. A música é, portanto, uma arte

privilegiada, abstrata e imaterial, porém realista que encarna em si a harmonia universal e

por isso é também a primeira das ciências. O ouvido é valorizado por ser guiado pelo

instinto natural que percebe as leis universais encarnadas na música. O corpo sonoro é a

manifestação do espírito divino, fonte de consciência e de progresso para o homem, ou seja,

de uma adequação a um princípio eterno e imutável (FUBINI, 2002. p.81-86).

Os enciclopedistas buscavam a separação entre arte e ciência, aspiravam a uma

visão plural do universo e à autonomia dos diferentes campos, valorizavam as diferenças

entre países e épocas e separavam a técnica do resultado, elemento acústico de efeito

emotivo. Rameau defendia a idéia de que em todos os países onde reina a música existem

cabeças dotadas e ouvidos experientes, unia teoria e prática, elemento técnico-acústico com

resultado artístico. Progresso para os enciclopedistas era destacar as características

nacionais dos estilos musicais, captar as peculiaridades de cada povo e afirmar a

pluralidade das tradições, retomando os cantos populares e introduzindo uma perspectiva

histórica no campo musical (FUBINI, 2002. p.87-88).

Rameau para defender sua visão se preocupa em não parecer um árido

intelectualista, tampouco um mero sentimentalista que procura ressaltar a emoção de um

texto literário, podemos perceber isso na leitura de seu tratado de 1722 desde o seu

prefácio, assim como na carta para pedir um libreto, enviada ao filósofo, literato e libretista

Houdar de La Motte em 1727, carta essa que nunca foi respondida. É uma nova estética que

se apresenta baseada em uma visão organicista do homem e da natureza, que vai de

encontro aos ideais dos enciclopedistas. Alguns deles como D’Alembert chegam a valer-se

de suas teorias sobre a harmonia, mas rechaçam suas implicações no plano estético e

filosófico. D’Alembert aparentemente com intenções de divulgar e tornar mais acessível o

43

conteúdo do Traité de l’harmonie publica um compendio intitulado Éléments de musique

théorique et pratique suivant les príncipes de M. Rameau. No entanto, Rameau que de

início se sentiu lisonjeado com a difusão de sua obra por tão ilustre filósofo, mais tarde o

acusará de ter traído seu pensamento, pois apesar de ter seguido as teorias harmônicas do

músico, D’Alembert altera em seu texto o espírito “newtoniano” – Rameau foi considerado

por filósofos ingleses o Newton da harmonia por seu princípio do baixo fundamental – do

pensamento unificador e racionalizador de Rameau, que se torna um reduzido conjunto de

regras úteis e práticas de forma empirista (FUBINI, 2002. p.76 e 77).

44

3 O TRATADO DE HARMONIA DE RAMEAU

O Tratado de Harmonia de Rameau foi escrito no ano de 1715 em Clermont-

Ferrand e foi publicado no ano de 1722 em Paris, e segundo o compositor Joseph-François

Kremer2 (1986), produziu uma revolução no mundo da música. Rameau era tanto criador

quanto pedagogo e seu tratado foi concebido como um tratado de composição, revelando o

teórico cartesiano que faz da música uma ciência físico-matemática, o compositor que

busca criar o repertório do fruto da sua imaginação com a ajuda das fórmulas de sua nova

ciência, e o estético que responde às polêmicas de seu tempo.

Rameau conviveu com Voltaire, libretista de suas óperas e com Diderot,

enciclopedista que, a pedido do músico, ajudou a construir o corpo de texto de seu trabalho

posterior ao tratado de harmonia, fazendo desta obra uma de suas mais elegantes

(KREMER, 1986). Ele foi essencialmente cartesiano e suas escolhas ao escrever refletem

isso: simplicidade, ordem, dedução, prova; tudo tendo o recurso fundamental da

experiência. Os “longos discursos” e as “repetições” aparecem somente como uma garantia

de seu grande cuidado em nada deixar escapar nas suas colocações de regras e

estabelecimentos de classificações que lhe são próprias (KREMER, 1986).

A obra é dividida em quatro partes às quais Rameau chamou de livre, ou seja, livro

em francês. Os quatro livros se dividem entre a teoria e a prática. Os dois primeiros livros,

ditos teóricos, tratam dos princípios matemáticos nos quais Rameau baseou suas teorias, é a

parte essencial de seu tratado; os dois últimos livros, ditos práticos, tratam das regras de

composição e da arte do acompanhamento. Cada livro possui um título e são eles: Du

Rapport Des Raisons & Proportions Harmoniques; De La Nature & De La Proprieté Des

Accords : Et De Tout Ce Qui Peut Servir À Rendre Une Musique Parfaite; Principes De

2 Joseph-François Kremer é compositor diplomado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, autor da ópera La Rencontre au Point du Jour. É diretor artístico do Conservatório de Sevran. Informações retiradas do encarte da obra do autor.

45

Composition Et Principes d’Accompagnement3. Segue-se uma breve descrição do tratado

de 1722 sob a luz da “leitura” 4 de Joseph Kremer e da leitura direta da obra.

O primeiro livro do Traité de l’harmonie intitulado Du rapport des raisons et

proportions harmoniques, é composto de onze capítulos e treze artigos que tratam da

proporção e definição de som grave e agudo, da introdução à noção de acústica da

ressonância com cálculos aritméticos, tendo como base a proposição de Descartes5 sobre a

ressonância monocordista de um corpo sonoro. Rameau evoca os diferentes intervalos e

impõe suas propriedades características, usando cálculos para justificar a origem dos tons e

semitons da escala, assim como para explicar a gênese acústica dos acordes, formulada com

a ajuda das leis de proporções, próprias ao espírito cartesiano. Distingue ainda, os modos

perfeitos Maior e Menor, as inversões dos acordes e por fim o papel dos acordes com

função de dominante.

O segundo livro, De la nature et de la propriété des accords : et de tout ce qui peut

servir à rendre une musique parfaite, possui vinte e nove capítulos que tratam

respectivamente:

I. Do conceito de som fundamental no que diz respeito à definição de baixo

fundamental, explicitando a sua mobilidade em relação às outras partes da

harmonia,

II. Do movimento diatônico das vozes além do baixo, a partir de Zarlino6, guiado

pelo que virá a ser o preceito melódico da “lei do caminho mais curto” e do

fundamento do princípio de tensão e repouso,

III. Dos intervalos em uma ótica de utilização prática para a oitava considerada

aumentada e a perfeição dos acordes, 3 Relação das razões e proporções harmônicas; Natureza e propriedade dos acordes: e de tudo que pode servir para tornar uma música perfeita; Princípios de composição e Princípios de acompanhamento. Tradução minha. 4 As aspas se referem à dupla conotação de leitura, a leitura que Kremer fez da obra de Rameau e a minha leitura de Kremer. 5 Descartes escreveu em 1618 uma obra intitulada Abrégé de musique, não publicada em vida, na qual construiu sua filosofia, tendo como base a música sob seu aspecto físico e matemático. A publicação de sua obra aconteceu em 1668. Frédéric de Buzon, professor de história da filosofia na universidade Marc Bloch de Strasbourg, foi o responsável por sua nova edição em 1987, somente em língua francesa. Informações retiradas do site do Centre National de la Danse, da França. 6 Gioseffo Zarlino, teórico e compositor italiano que em 1558 publicou Le istitutioni harmoniche, um marco na história da teoria musical. Tinha como objetivo unir teorias especulativas, baseadas em fontes antigas, às práticas modernas de composição ( SADLER, 2001).

46

IV. Da importância do quarto e quinto grau, desenhando através de suas mobilidades

os esquemas dos períodos cadenciais,

V. Da definição da cadência perfeita que se traduz como uma representação de

satisfação conclusiva. Rameau assinala o quinto grau com sétima que resolve no

primeiro grau e chama a atenção para os diferentes efeitos expressivos produzidos

pela variação do uso das terças maiores e menores,

VI. Da substituição de intervalo do primeiro grau (segundo acorde), trocando-se o

quinto grau da cadência pelo sexto grau, gerando, como Rameau denominou, uma

cadência interrompida,

VII. Da cadência irregular com o repouso sobre o acorde dominante,

VIII. Da possibilidade de disfarçar cadências através das inversões de acordes,

oferecendo ao compositor uma gama muito grande de escolhas e invocando seu

poder imaginativo,

IX. Das falsas cadências para justificar a não utilização em si das dissonâncias

artificiais das sétimas,

X. Dos acordes por suposição com os quais se podem evitar cadências, imitando-as,

XI. Rameau adianta algumas resoluções sobre a quarta e a décima primeira, vistas em

comparação, seja como intervalo simples ou composto, em particular a nona e a

décima,

XII. Nota sobre as sétimas diminutas,

XIII. Das regras de preparação e resolução que tem por denominação “preparar e

salvar”7 a dissonância,

XIV. Das engrenagens de elaboração da dissonância por junção das diferentes terças

sobre o acorde perfeito,

XV. Das ocasiões em que a sétima deve ser retirada do acorde de nona,

XVI. Da utilização do acorde da “grande sexta” que é aparentado com a sexta

acrescentada (ajouté) e que se diferem pela utilização,

XVII. Das “licenças”8, que são outras possibilidades práticas mais subjetivas, porém

toleráveis, mas não definidas em fórmulas,

7 É interessante notar o uso dos termos cristãos preparar e salvar (préparer et sauver) no que se refere à preparação e resolução de uma dissonância numa progressão harmônica.

47

XVIII. Da representação de algumas “licenças”, assim como algumas preparações de

acordes,

XIX. Da visão de Rameau, justamente a que provocou seus difamadores, de que a

melodia provém da harmonia,

XX. Da proposição de uma tradução da essência sensível do discurso musical,

XXI. Da distinção dos dois modos: o maior e o menor, e de precisar as funções da

tônica, da mediante e da dominante,

XXII. Das modulações possíveis, determinando a diferença dos tons e dos modos no que

diz respeito ao sentido da receptibilidade e da escuta,

XXIII. Da explicitação das funções de dinâmica, da relação de valor e da duração das

notas. Da noção de tempo em decorrência da pulsação. As relações assim

estabelecidas dos valores e pulsações se ligam à dinâmica e a outros princípios de

densidade e intensidade para formar a base da música,

XXIV. Da propriedade expressiva dos modos e dos tons, concebidos em suas utilizações

como efeitos psicológicos,

XXV. Da precisão da caligrafia ordenada da armadura de clave e da métrica (compasso

indicado),

XXVI. Da quantidade de compassos que cada melodia deve ter e do seu movimento

particular, ou seja, sobre a fraseologia musical,

XXVII. Da prosódia, sobre o que se deve observar para colocar a letra no canto,

XXVIII. Da descrição das diferentes maneiras de escrever segundo o gosto e a finalidade

escolhida,

XXIX. De uma rememorização da função dos intervalos, precisando suas qualificações e

seus papéis na escritura harmônica.

A partir do capítulo XIX Rameau conduz progressivamente o leitor à prática,

justificando os exemplos por evidências teóricas já enunciadas.

O terceiro livro, como diz o título Príncipes de composition, é um conjunto de regras

de composição, formado por quarenta e quatro capítulos, em que Rameau se vale de tudo

8 Segundo Jean-Jacques Rousseau as licenças são “liberdades que tomam os compositores e que parecem contrárias às regras... Considerando que a maior parte das regras de harmonia são fundadas de princípios arbitrários e mudam pelo uso e gosto dos compositores, acontece que essas regras variam, são sujeitas a moda, e o que é licença em um tempo não o é mais em outro” (ROUSSEAU apud KREMER, 1986. p.41).

48

que explicitou no livro anterior para traçar sua prática. O autor evoca o gosto próprio do

compositor para as escolhas imprevisíveis, pois para isso só o saber não é suficiente e

enfatiza a necessidade de compreender plenamente a natureza da modulação e a harmonia

fundamental para quem deseja compor.

O quarto livro Príncipes d’accompagnement é o último do tratado e guia o intérprete

para a prática na arte do acompanhamento, para o cravo ou para o órgão, instrumentos de

teclado da época que eram geralmente utilizados no baixo-contínuo, sempre utilizando o

arcabouço teórico desenvolvido nos livros anteriores. Desde propostas de cifragem até a

maneira mais indicada de utilizar a posição de mãos e dedos são descritas nesse livro, assim

como encadeamentos de acordes e a utilização de diferentes movimentos do baixo, sempre

definindo a inversão dos acordes.

3.1 TRADUÇÃO DO PREFÁCIO DO TRAITÉ DE L’HARMONIE ESCRITO POR RAMEAU

O próprio autor é quem melhor pode descrever sua obra. Através do prefácio de seu

tratado, traduzido por mim, o autor não só apresenta a obra, como também revela suas

expectativas em relação à mesma, além das suas escolhas ao escrevê-la, pelas quais

transmite seus valores pessoais e culturais9:

Qualquer progresso que a música tenha feito até nós, parece que o espírito foi

menos curioso em aprofundar os verdadeiros princípios, à medida que o ouvido se tornou

sensível aos maravilhosos efeitos dessa arte, de sorte que podemos dizer que a razão perdeu

seus direitos, enquanto que a experiência adquiriu alguma autoridade.

Os escritos que nos restam dos Antigos nos fazem ver muito sensivelmente que a

razão por si só deu a eles os meios de descobrir a maior parte das propriedades da música,

no entanto, embora a experiência nos faça ainda aprovar a maior parte das regras que eles

9 A nota apresentando Zarlino e o comentário sobre as citações de sua obra também fazem parte do prefácio.

49

nos deram, se negligencia hoje todas as vantagens que poderíamos tirar dessa razão, em

favor de uma experiência de simples prática.

Se a experiência pode nos prevenir sobre as diferentes propriedades da música, ela

não é, no entanto, a única capaz de nos fazer descobrir o princípio dessas propriedades com

toda precisão que convém à razão; as conseqüências que dela se tira são seguidamente

falsas, ou ao menos nos deixam numa certa dúvida, que não cabe senão à razão dissipar.

Por exemplo, como poderíamos provar que nossa música é mais perfeita que aquela dos

antigos, enquanto ela não nos parece mais suscetível aos mesmos efeitos que eles

atribuíram a deles? Equivaleria a dizer que quanto mais as coisas se tornam familiares,

menos elas causam surpresa e que a admiração que elas podem nos causar na sua origem,

degenera insensivelmente à medida que nós a elas nos acostumamos, tornando-se por fim

um simples divertimento? Isso seria, quando muito, supor a igualdade e não a

superioridade. Mas, se pela exposição de um princípio evidente, do qual tiramos em

seguida conseqüências justas e certas, podemos fazer ver que nossa música está no seu

último grau de perfeição, e é preciso que os antigos tenham atingido essa perfeição

(podemos ver sobre esse assunto o capítulo XXI do segundo livro), saberemos então, em

que nos apoiarmos, sentiremos bem melhor a força da reflexão precedente e sabendo, por

esse meio, os limites da arte, a ela nos entregaremos de bom grado.

As pessoas de um gosto e de um gênio superior nesse gênero não temerão mais a

falta de conhecimentos necessários para serem bem sucedidas. Em poucas palavras: as

luzes da razão, dissipando assim as dúvidas em que a experiência pode nos mergulhar a

todo o momento, serão garantias certeiras do sucesso que poderemos nos prometer nessa

arte.

Se os músicos modernos (quer dizer, depois de Zarlino*) tivessem se aplicado,

como fizeram os antigos, em dar razão àquilo que eles praticam, eles teriam feito cessar

muitos preconceitos que não lhes são vantagem e isso os teria mesmo feito voltar do que

ainda estão tomados e do que têm muita dificuldade em se desfazer, pois a experiência é

para eles muito favorável, ela os seduz de alguma maneira, já que ela é a causa do pouco

cuidado que eles tomam em se instruir a fundo sobre as belezas que ela os faz descobrir a

cada dia. Seus conhecimentos são próprios apenas a eles mesmos, eles não têm o dom de

comunicá-los e como eles não se apercebem disso, freqüentemente ficam mais espantados

50

por não serem entendidos do que por não se fazerem entender. Essa censura é um pouco

severa, eu o confesso, mas eu a faço de novo tal qual eu mesmo talvez ainda a mereça,

apesar de tudo que eu pude fazer para dela escapar. De qualquer maneira, eu gostaria que

ela pudesse produzir sobre eles o efeito que produziu sobre mim e é, principalmente

também, para reavivar essa nobre emulação que reinou outrora, que corro o risco de

participar ao público minhas novas pesquisas em uma arte à qual eu tento dar toda a

simplicidade que lhe é natural, afim de que o espírito conceba as propriedades tão

facilmente quanto o ouvido os sinta.

Um só homem não é capaz de esgotar uma matéria tão profunda como essa, é quase

impossível que ele não esqueça sempre alguma coisa, apesar de todos os seus cuidados,

mas ao menos todas as descobertas, que ele pode unir às que já apareceram sobre o mesmo

assunto, são igualmente estradas abertas para os que podem ir mais longe.

A música é uma ciência que deve ter regras certas, essas regras devem ser tiradas de

um princípio evidente, e esse princípio não nos pode ser conhecido sem o socorro da

Matemática. Também devo confessar que, não obstante toda experiência que me pôde ser

adquirida na música, por tê-la praticado por um longo e suficiente período de tempo, não é

senão pelo socorro da Matemática que minhas idéias se desenvolveram, e que a luz sucedeu

a uma certa obscuridade, da qual eu não me apercebia antes. Se eu não sabia fazer diferença

entre princípio e regra, logo que esse princípio se ofereceu a mim com tanta simplicidade

quanto evidência, as conseqüências que ele me forneceu em seguida fizeram-me conhecer

nelas as regras que devem se relacionar por conseqüência a esse princípio. O verdadeiro

sentido dessas regras, suas justas aplicações, suas relações e a ordem que elas devem ter

entre elas (a mais simples, servindo sempre de introdução à menos simples e assim

gradualmente) enfim, a escolha dos termos, tudo isso, eu digo, que ignorava antes, se

desenvolveu em meu espírito com tanta nitidez e precisão que não pude me impedir de

convir que seria à desejar (como me disseram um dia que eu aplaudiria a perfeição da nossa

Música moderna) que o conhecimento dos músicos desse século respondesse às belezas de

suas composições. Não é suficiente, portanto, sentir os efeitos de uma ciência ou de uma

arte, é preciso mais: concebê-las de modo que se possa torná-las inteligíveis. E é

principalmente a isso que eu me apliquei no corpo dessa obra, que distribuí em quatro

livros.

51

O PRIMEIRO contém um resumo da relação dos sons, das consonâncias, das

dissonâncias e dos acordes em geral. O princípio da harmonia se descobre de um som único

e as suas propriedades mais essenciais são aplicadas. Veremos, por exemplo, como esse

som único engendra um outro na sua primeira divisão que é a oitava e que parece ser um

com ele. Como ele se apropria em seguida, dessa oitava, para formar todos os acordes, já

que todos esses acordes são compostos a partir desse princípio, da terça, da quinta e da

sétima, e que é da força da oitava que nasce toda a diversidade da qual esses acordes são

suscetíveis. Encontramos ainda várias outras propriedades, na verdade menos interessantes

para a prática, mas necessárias, porém, para nos conduzir; tudo sendo demonstrado de uma

maneira suficientemente simples.

O SEGUNDO LIVRO olha igualmente a teoria e a prática. O princípio é então

representado na parte da Música que se chama Baixo, a qual se acrescenta o epíteto de

Fundamental: todas as suas propriedades e aquelas dos intervalos, dos acordes e dos modos

que dele dependem unicamente, são explicadas. Falamos também de tudo que pode servir

para tornar uma música perfeita na execução. Para esse efeito lembramos, oportunamente,

as razões do livro precedente e a experiência e autoridade dos melhores autores nesse

gênero, sem nem por isso os poupar, já que eles puderam se enganar. Pois nas novidades

que encontraremos temos a tarefa de satisfazer os sábios, pela razão, os que se relacionam

apenas com seu ouvido, pela experiência e àqueles que têm muita condescendência pelas

regras de seus mestres, descobrindo os erros que elas podem conter. Enfim, temos a tarefa

de preparar o leitor para receber sem constrangimento as regras que são prescritas e que se

encontram deduzidas por ordem, e mais adiante nos livros seguintes.

O TERCEIRO LIVRO encerra um método particular para aprender a composição

em muito pouco tempo. A prova já foi feita, mas como não nos deixamos persuadir, em

semelhante caso, senão por nossa própria experiência, eu guardarei silêncio sobre isso e me

contentarei em pedir às pessoas, a quem esse método não será familiar, de ver os frutos que

se pode dele tirar, antes de combatê-lo. Tal como aquele que quando quer aprender não

sofre com a maneira pela qual está sendo instruído, desde que aprenda.

Ainda não vimos regras que ensinem a composição na perfeição que ela está hoje,

não existe mesmo, um hábil homem nesse gênero, que não confesse sinceramente que deve

quase todos os seus conhecimentos somente à experiência; e quando ele os quer procurar

52

nos outros, se encontra, seguidamente, constrangido de acrescentar às suas lições esse

provérbio familiar aos músicos: caetera docebit usus10. É verdade que há certas perfeições

que dependem do gênio e do gosto, as quais a experiência é ainda mais vantajosa que a

ciência mesmo, mas isso não impede que um perfeito conhecimento não deva sempre nos

clarear, temendo que essa experiência nos engane, quando não é senão para saber aplicar ao

seu verdadeiro princípio, as novidades que ela pode nos fazer produzir. Aliás, esse perfeito

conhecimento serve para colocar em obra o gênio e o gosto, que sem ele se tornam,

freqüentemente, talentos inúteis. É por isso que eu acreditei dever procurar os meios de

obter mais facilmente e mais prontamente essa perfeição, a qual não pudemos ainda atingir

senão por uma experiência de simples prática, dando, de início, um entendimento racional,

preciso e distinto de toda a harmonia pela única exposição de três intervalos, de onde se

formam dois acordes principais e toda progressão do baixo fundamental que determina ao

mesmo tempo aquela das outras partes. De maneira que só desse conhecimento, que se

pode adquirir na primeira leitura desse livro, depende todo o resto, como é fácil de se

esclarecer.

O QUARTO LIVRO contém regras de acompanhamento, tanto para o cravo quanto

para o órgão, em que a posição da mão, o arranjo dos dedos e tudo que pode servir para

adquirir a prática o mais prontamente possível, se encontram deduzidos.

O fundo dessas regras pode igualmente servir para os instrumentos sobre os quais se

acompanha aproximadamente da mesma forma que sobre o cravo.

Esses dois últimos livros têm muita relação no conjunto, é porque serão igualmente

úteis às pessoas que querem se ligar apenas à prática da composição ou do

acompanhamento. E não fará mal consultar o segundo livro se não quiser ignorar nada,

supondo que eu nada tenha esquecido, pois eu não duvido que não se possa ainda me

censurar, apesar do cuidado que eu tomei de não deixar nada escapar, como meus longos

discursos e minhas repetições provam o suficiente; defeito que vem tanto da atenção em

tornar as coisas claras e inteligíveis quanto da fraqueza do meu gênio. O que contém o

primeiro livro é de qualquer maneira inútil para a prática e faremos uso tal qual julguemos

propósito, não o tendo colocado na cabeça desse tratado senão como prova de tudo que ele

contém tocante a harmonia.

10 Que a prática ensine o restante. Tradução de Marcos Holler.

53

Como não me foi possível, para satisfazer ao meu emprego, ver imprimir essa obra,

eu fui obrigado a relê-la com uma nova aplicação e achei que deveria fazer algumas

mudanças e algumas correções necessárias que se encontrará no final, em um suplemento.

Coloquei no começo dois índices, um das matérias desse tratado, outro contendo uma

explicação dos termos, cujo entendimento é necessário, para servir de introdução a toda

essa obra, que eu dedico ao público.

As citações de Zarlino em suas Institutions Harmoniques são da impressão de

Veneza, ano de 1573.

* Zarlino, célebre autor na música, que escreveu há aproximadamente 150 anos e do qual encontramos apenas cópias muito frágeis, nas obras que apareceram depois das suas, sobre o mesmo assunto.

3.2 O PRIMEIRO LIVRO: Relação Das Razões E Proporções Harmônicas

O primeiro capítulo do primeiro livro do Tratado tem como título De la musique et

du son (Da música e do som). Nele o autor afirma que a música é a ciência dos sons, sendo

o som, portanto, o principal objeto da música que comumente é dividida em harmonia e

melodia, uma fazendo parte da outra. Trata de definir harmonicamente som grave e som

agudo, deixando para os físicos a tarefa de definir o som propriamente dito. A partir dos

sons graves e agudos define ainda, os intervalos como sendo as distâncias entre esses dois

tipos de sons que ganham suas denominações, conforme seus graus, dos números

aritméticos (unidade, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sétima e oitava).

No segundo capítulo, Des Differentes manieres dont le rapport des sons peut nous

être connus (Diferentes maneiras pelas quais a relação dos sons nos pode ser conhecida),

Rameau cita as diversas maneiras pelas quais a relação entre os sons pode ser conhecida

até sua época, como por exemplo, através de instrumentos de sopro ou de diferentes

tensões, pelo peso ou ainda pela espessura das cordas e esclarece que considerará as

relações em que os números seguem a progressão natural, por ser mais inteligível:

54

“Para conhecer a relação dos sons escolhe-se uma corda tesa de modo que ela possa produzir um som; divide-se em seguida essa corda em várias partes com cavaletes móveis, e encontramos todos os sons ou intervalos que podem se acordar juntos, estando contidos nas cinco primeiras divisões desta corda, comparando reciprocamente cada duração que resulta dessa divisão” (RAMEAU, p. 2).

No terceiro capítulo De l’origine des consonances e de leur rapport (Da origem das

consonâncias e de sua relação) um parágrafo inteiro do Abregé de la Musique de Descartes

é citado por Rameau. Neste parágrafo Descartes fala sobre a ressonância monocordista de

um corpo sonoro:

“O som está para o som como a corda está para a corda: ou cada corda

contém em si todas as outras cordas que são menores que ela e não aquelas que são maiores; por conseqüência também em cada som, todos os agudos estão contidos no grave, mas não reciprocamente todos os graves neste que é agudo; de onde é evidente que devemos procurar o término mais agudo pela divisão do mais grave; tal divisão deve ser aritmética, quer dizer em partes iguais” (DESCARTES, p.60 ou 68 e RAMEAU, p.3).

Dito de outra maneira, uma corda dada contém duas vezes uma corda que tenha a

metade do seu comprimento, da mesma maneira o som grave produzido pela primeira

“contém” duas vezes o som mais agudo produzido pela segunda.

O autor desenha um esquema das ressonâncias mais preciso que o de Descartes,

mostrando como elas são produzidas a partir do som fundamental, no entanto refuta a

ressonância natural de número sete dos harmônicos, dizendo que este não pode dar nenhum

intervalo agradável. No lugar da ressonância 7 que é o si bemol ele coloca uma repetição da

fundamental. Em vez de utilizar as subdivisões dos harmônicos sobre uma única corda,

como fez Descartes, A_________B, Rameau reproduz oito vezes, a partir da fundamental,

as ressonâncias conforme elas vão se configurando na série harmônica de 1 a 10

(KREMER, 1986. p.29).

55

Figura 1 – Quadro das ressonâncias criado por Rameau.

Fonte: RAMEAU, 1992, p.4.

Através de seis artigos, dentro do capítulo três, são explicadas as propriedades

particulares de cada som e cada ressonância, vale ressaltar como o fez Kremer (1986. p.29)

que “Os intervalos são considerados aqui enquanto intervalos harmônicos e não como

intervalos melódicos, pois eles correspondem às ressonâncias 1-2-3-4-5-6-7-8 da carta

sonora de um som fundamental”.

Artigo primeiro: Princípio da harmonia ou som fundamental

O artigo primeiro trata das distâncias entre o som fundamental e os sons que se

formam de sua divisão, da conformação de diferentes intervalos, da união desses diferentes

intervalos que formam diferentes consonâncias, cuja harmonia não poderá ser perfeita se o

56

som fundamental não “reinar” - termo utilizado freqüentemente pelo autor numa analogia

ao sistema monárquico, vigente na época - sobre todos eles.

Artigo segundo: O uníssono

O uníssono não é uma consonância e tem a mesma relação de consonâncias que a

fundamental ou unidade tem com os números ou divisões.

Artigo terceiro: A oitava

A oitava serve de parâmetro a todos os intervalos, e todas as divisões que são

originadas no princípio, na unidade podem ser comparadas também com a sua oitava,

produzindo na harmonia apenas uma diferente situação de dois termos como 2:3. ou 3:2.,

que em geometria se chama razão ou comparação invertida e que na música resulta numa

transposição de sons graves e agudos. A partir do princípio que as proporções harmônicas

oferecem sempre o acorde perfeito o autor revela que um acorde invertido não pode ser um

outro acorde e sim o mesmo expressado de outra forma. A experiência que nos faz sentir

que um acorde composto de terça e de quinta é sempre perfeito e completo sem a oitava,

nos deixa pensar que essa oitava esta subentendida, já que ela está engendrada à primeira:

“... em seguida a essa oitava colocada acima dessa terça e dessa quinta, com a qual ela forma então uma sexta e uma quarta nos faz escutar nada menos que um acorde sempre bom, embora o som fundamental não tenha mais lugar; logo esse som fundamental é transposto ou subentendido na sua oitava... de maneira que o som agudo da oitava não deve ser visto como um princípio diferente desse que é engendrado imediatamente, mas como o representante e como formando um todo com ele onde todos os sons, todos os intervalos, e todos os acordes devem começar e terminar, sem esquecer, no entanto que todas as propriedades dessa oitava, dos sons em geral, dos intervalos e acordes dependem absolutamente desse princípio único e fundamental que é representado pela corda inteira ou pela unidade” (RAMEAU, p.09).

57

Artigo quarto: A quinta e a quarta

Os sons que formam a quinta e a quarta estão compreendidos na divisão da corda

inteira e por conseqüência surgem a partir do som fundamental; no entanto somente o

intervalo de oitava e de quinta provém imediatamente do som fundamental, pois a quarta

não é senão uma seqüência da oitava. A quarta provém da diferença que se encontra entre a

oitava e a quinta.

“... cada uma das duas proporções, estando aplicada ao seu objeto, nos dá a

quinta em relação ao som grave da oitava e a quarta em relação ao som agudo; e se aplicamos em seguida uma dessas proporções ao objeto de outra, ela nos dará a quarta no grave e a quinta no agudo; essa inversão se descobrindo mais a mais a medida que queremos penetrar nos segredos da harmonia...” (RAMEAU, p.11).

Rameau diz que a divisão da corda dá de início a quinta como primeiro intervalo e

dá em seguida a quarta como “sombra” da quinta, expressão usada por Descartes; “... isso

não provêm senão que da inversão dos dois sons que compuseram essa quinta em primeiro

lugar, pela transposição do som grave da oitava no som agudo; essa última inversão sendo o

principal objeto dessa obra...” (RAMEAU, p.11).

A quinta implica a ambivalência de seu intervalo com sua fundamental e, por outro

lado, com a oitava dessa mesma fundamental: o que nos dá a quarta. Rameau nos faz

entrever aqui o começo da sua teoria das inversões (KREMER, 1986. p.30).

Artigo quinto: Terças e sextas

Sobre as terças e sextas é o autor quem melhor explica:

“Já que todos os intervalos são engendrados da oitava, e é lá que tudo

começa e termina; logo a terça menor deve ser compreendida, e não indiretamente, como a encontramos aqui entre a terça maior e a quinta, mas se relacionando diretamente ao som fundamental ou a sua oitava, senão esta terça não poderia mais mudar de lugar, o meio seria sua divisão nos acordes, e jamais ela poderia ocupar as extremidades, o que seria completamente contrário ao que a experiência nos prova, e

58

as propriedades que se atribui nesse caso, as proporções aritméticas e harmônicas; a primeira dividindo a quinta (segundo nosso sistema) pela terça maior no grave e a terça menor no agudo; e a segunda a dividindo ao contrário pela terça menor no grave e a terça maior no agudo; nova espécie de inversão na ordem dessas terças, que prova bem que toda diversidade da harmonia é principalmente fundada sobre essa inversão. · ...a quinta não pode servir de limite aos intervalos, essa qualidade é devida somente à oitava”. Assim tudo que se pode encontrar entre o princípio e a quinta é sempre da dependência da oitava, já que ela é inseparável desse princípio, como provamos até o presente; e, aliás, visto que não podemos julgar um intervalo por outro, e somente por socorro da oitava; logo é preciso abandonar a quinta e a terça maior para julgar a terça menor, assim a oitava do som grave e fundamental dessa terça menor será por conseqüência subentendida; e usufruirá todos os privilégios que os são afetados na origem de todos os intervalos...

É preciso concluir de tudo que viemos dizendo que existem apenas três consonâncias primeiras, que são a quinta e as duas terças, do qual se compõe um acorde que se chama natural ou perfeito, e de onde provem três consonâncias secundárias, que são a quarta e as duas sextas, do qual se compõe dois novos acordes que são nada menos que inversões do primeiro, deixando à parte a oitava que deve ser subentendida em cada um desses acordes, e para quem o termo consonância não é tão próprio quanto o de eqüissonância, cuja maior parte dos melhores autores ordenou” (RAMEAU, p.12-14)

Artigo sexto: Resumo do conteúdo desse capítulo, onde as propriedades da

demonstração precedente se encontram incluídas em uma só corda.

Através do desenho da representação de uma corda que reúne todas as ressonâncias,

reproduzido abaixo, Rameau inverte a posição do princípio ou baixo fundamental, fazendo

a relação dos intervalos a partir da unidade colocada no lado esquerdo da representação da

corda e depois no lado direito dela. Dessa forma explica a terça menor e a sexta maior a

partir de uma oitava formada pela quinta e décima ressonância (mi-mi). Acrescenta que não

se deve ficar surpreso se a unidade é representada pelas ressonâncias 2, 4 ou 5, ou qualquer

outro número, isso é feito, segundo ele, para evitar as frações.

59

Figura 2 – Ilustração para explicar a terça menor e a sexta maior.

Fonte: RAMEAU, 1992, p.16.

Sobre as terças Rameau revela os erros de Descartes e Zarlino a respeito das

inversões de terças e sextas. Ele anuncia o preceito do acorde perfeito maior e de uma

quinta pertencente à fundamental. Rameau revela a existência de duas terças na quinta: uma

maior no grave, partindo da fundamental dó – mi, e uma menor no agudo mi – sol, indo em

direção a quinta (KREMER, 1986 p.30).

“Zarlino havia salientado que as sextas eram o resultado de inversões de terças, mas ele concebia a existência nas sextas de uma quarta e de uma terça. Descartes demonstra que a terça menor é engendrada da terça maior como a quarta é da quinta. Para refutar estes teóricos empíricos Rameau avança que a mutação de intervalo de quinta em quarta é devida a uma inversão efetuada pelos limites da oitava, ao passo que a relação dó-mi-sol é uma composição de intervalo acrescentado. Descartes enuncia mais a frente, que a sexta maior procede da terça menor e que a sexta menor deriva da terça menor – o que é da mesma forma empírico. O intervalo de terça coloca, quando menor, uma problemática acústica quanto a sua origem e também em relação a sua inserção na fórmula de ressonâncias naturais, já que ele não aparece naturalmente. A terça será considerada como ressonância analógica, diante da tese dos monocordistas” (KREMER, p.30 – 31).

O sol também seria uma décima sétima ressonância de mib, além de ser ressonância

de dó, o que compõe com ele um intervalo de terça menor e com o sol uma terça maior.

Essa décima sétima (mib) é tirada analogicamente pela quinta do tom de dó, o que permite,

60

quando substituída no tom de dó sem essa mesma quinta (sol), o estabelecimento de um

acorde perfeito menor (KREMER, 1986. p.32-33)

No quarto capítulo, Remarques sur la proprieté des proportions harmoniques e

arithmetiques (Observações sobre a propriedade das proporções harmônicas e aritméticas),

Rameau esclarece o que ele considera como proporção harmônica e aritmética, ressaltando

que outros autores que trataram do tema foram imprecisos por não serem músicos, não

definindo assim, as propriedades da proporção harmônica. Comenta que mesmo Zarlino,

considerado o “príncipe dos músicos modernos”, esqueceu em suas demonstrações e regras

que a música é subordinada à aritmética, que a unidade é o princípio dos números e que o

uníssono é o princípio das ressonâncias.

Rameau diz que se encontrarmos acordes em que a unidade (a fundamental) não

apareça é preciso procurá-la em um de seus múltiplos, ou seja, em uma de suas oitavas, que

mesmo não estando na cabeça do acorde fará parte dele em alguma outra disposição. O fato

dessa nota não estar na cabeça não muda em nada a substância desse acorde. O mesmo

acontece em relação à quinta que às vezes pode representar a unidade. Porém, a terça

menor, assim como seus múltiplos, por não ser natural e não representar um acorde

perfeito, não pode ocupar a nota mais grave.

“1º Se encontramos acordes em que a unidade não aparece, é preciso procurá-la em um de seus múltiplos geométricos, ou antes, em um desses de número 2 que o representa; ressaltando que se esse múltiplo não está na cabeça do acorde ele o fará ao menos parte, de forma que não se terá que reduzi-lo a sua metade para lhe dar o lugar que lhe convém e para conhecer ao mesmo tempo o verdadeiro acorde do qual ele será questão, estando certos de que os acordes reduzidos dessa maneira serão sempre os fundamentais desses, em que os múltiplos da unidade não serão os primeiros: por exemplo, se encontrarmos 5,6,8 ou 6,8,10, precisaremos apenas dividir 8 por sua metade e teremos de todo lado 4,5,6 de onde se forma o acorde perfeito, que provém da divisão da quinta, tendo também reduzido 10 a sua metade, o que não muda a substância do acorde. 2º O número 5 ou seus múltiplos geométricos podem às vezes nos representar a unidade, bem entendido que nem a unidade nem seus múltiplos aparecem então. Será preciso fazer a respeito dos múltiplos desse número 5 o que fizemos a respeito da unidade, assim a origem desse acorde 12, 15, 20 se encontrará dividindo 20 a 10 etc. 3º Quando a quinta e a terça maior ocupam o grave, a unidade tomada em um de seus múltiplos é sempre a primeira e quando a terça menor ocupa o grave com essa quinta, a unidade tomada nos múltiplos do número 5 é sempre a primeira; o que se faz, como já foi dito, apenas para evitar as frações; mas se a quinta não se encontra no grave, os números que devem representar a unidade não são mais os primeiros; daí vem que nem o número 3 nem seus múltiplos de onde se engendra a quarta podem

61

representar a unidade, nem por conseqüência, se encontrar na cabeça dos acordes sem inverter a ordem natural; o número 3 é um meio harmônico que deve subsistir para tudo como tal, quando a unidade é representada por um de seus múltiplos, 3 é igualmente representado por um de seus múltiplos e quando a unidade é representada por um dos múltiplos de 5, 3, é multiplicado por 5 ou por um dos múltiplos de 5 de modo que nem o 3 nem seus múltiplos podem ocupar o grave sem destruir de todo modo o fundamento; pois se o fundamento não pode ser subentendido, é certo que será inteiramente destruído; assim é dessa conseqüência que podemos tirar a prova da perfeição dos acordes invertidos, no que eles tem dessa perfeição de um acorde verdadeiramente perfeito, cujo eles derivam; as regras que estabelecemos acima acabarão por nos convencer” (RAMEAU, p.21-22).

Kremer (1986) explica que Rameau em sua obra Génération harmonique, posterior

ao tratado, avança em sua proposta sobre a origem do modo menor, dizendo que no

momento em que a ressonância de uma corda produz um som, este faz escutar os sons

provenientes de cordas mais curtas. Esse mesmo som pode fazer vibrar, igualmente, cordas

mais longas com relações idênticas, de um lado por múltiplos 3-4-5 vezes menores e de

outro lado por múltiplo 3-4-5 vezes maiores. Como submúltiplos, temos, depois de reduzir

as oitavas: dó-mi-sol (ressonâncias 4-5-6 da carta sonora de Rameau) e para seus múltiplos,

fá-lab-dó, que resulta no modo menor.

A partir do quinto capítulo, De l’origine des dissonances e de leur rapport (Origem

das dissonâncias e de sua relação), Rameau utiliza cálculos aritméticos para justificar a

origem dos tons e semitons da escala e para explicar a gênese acústica dos acordes.

Distingue o modo perfeito maior e o modo perfeito menor, determinados pelo intervalo de

terça maior ou menor e faz a observação de que não existe acorde perfeito sem a quinta

pela reunião de duas terças (KREMER, 1986. p.34).

Vários quadros e esquemas foram elaborados para demonstrar a organização

diatônica e cromática dos intervalos e suas possíveis inversões dentro dos acordes. Um

primeiro desenho mostra que a mesma divisão da corda que dá a dissonância dá também as

consonâncias e que são os tons e semitons que formam os graus sucessivos da voz natural,

de onde se origina a melodia “de maneira que isso começa a nos fazer perceber que a

melodia é uma conseqüência da harmonia” (RAMEAU, p.23). Uma figura mostra o sistema

diatônico perfeito nas suas divisões de tom e semitom de dó a dó. Um grande quadro

mostra a razão natural e alterada de todos os acordes, é interessante notar que a

nomenclatura da época para os intervalos se alterava em relação à teoria e à prática.

62

O sexto capítulo, Des intervales doublez sur tout de la neuviéme e de la onzième

(Intervalos dobrados, e, sobretudo a nona e a décima primeira), é uma explicação de que

apesar da prática considerar os intervalos dobrados - chamados hoje em dia de intervalos

compostos - como intervalos simples, a nona e a décima primeira devem ser reconhecidas

com essa nomenclatura, por suas progressões e construções serem diferentes da segunda e

da quarta.

O sétimo capítulo, De la division harmonique ou de l’origine des acordes (Divisão

harmônica ou origem dos acordes), é reservado à explanação sobre a origem dos acordes a

partir da quinta e das terças, em uma seqüência de cálculos e tabelas, utilizando relações

aritméticas e harmônicas. Vemos aparecer a teoria da inversão dos acordes. A partir das

ressonâncias 2-3-5 ele escolhe as ressonâncias 4-5-6 de sua carta sonora para fazer a

abstração das primeiras e para que as ressonâncias 5-6-8 estejam na ordem, obtendo assim a

primeira inversão do acorde perfeito do baixo fundamental, dando mi-sol-dó (acorde de

sexta) e igualmente a segunda inversão 6-8-10, sol-dó-mi (acorde de quarta e sexta).

No oitavo capítulo Du renversement des accords Rameau trata das “inversões dos

acordes” e a distinção das consonâncias nos acordes. Em sete artigos que definem as

inversões dos acordes perfeitos maiores, menores e acordes de sétima. A sétima é vista

como a junção de uma terça menor ao acorde perfeito: dó-mi-sol-sib

Artigo primeiro: O acorde perfeito maior e seus derivados

Nesse artigo o autor mostra as duas possibilidades de inversão do acorde perfeito

maior. A primeira inversão é denominada de acorde de sexta (accord de sixte) e a segunda

de acorde de quarta e sexta (accord de sixte quarte); somente estas duas inversões são

possíveis, já que o acorde perfeito é composto apenas de três sons. Rameau chama os dois

acordes que derivam do perfeito de acordes imperfeitos, mesmo que sejam consonantes,

como forma de distingui-los do principal e também por possuírem propriedades diferentes.

A grande potência da quinta como origem de todos os acordes é ainda ressaltada en

passant, como diz o autor.

Artigo segundo: O acorde perfeito menor e seus derivados

63

Para os acordes perfeitos menores segue-se o mesmo raciocínio e a mesma

nomenclatura utilizada para os acordes perfeitos maiores, havendo apenas uma diferente

disposição de terças. A terça que de um lado era maior torna-se menor e assim em relação

às sextas.

A partir do terceiro artigo são definidos os acordes de sétima.

Rameau diz que o acorde de sétima é o mais perfeito de todas as dissonâncias:

“parece ser feito para tornar ainda maior a perfeição dos acordes consonantes, pois ele os

precede sempre, ou de preferência, por que o perfeito ou seus derivados deve sempre o

seguir; esta propriedade sendo igualmente afetada a seus derivados” (RAMEAU, p.37).

Segundo o autor esse acorde não produz somente acordes por inversões, mas produz ainda

outros que não podem ser invertidos, possuindo por essa razão nomes que lhes são

próprios.

Artigo terceiro: O acorde de sétima, composto de uma terça menor acrescentada ao

acorde perfeito maior, e seus derivados.

Artigo quarto: Acorde de sétima, composto da adição de uma terça menor, ao

acorde perfeito menor, e seus derivados.

Artigo quinto: Acorde de sétima, composto da adição de uma terça maior ao acorde

perfeito maior e seus derivados.

Artigo sexto: Acorde de sétima, composto da adição de uma terça menor abaixo do

acorde perfeito menor, e seus derivados.

Artigo sétimo: Acorde de sétima diminuta, composto da adição de uma terça menor

a quinta diminuta dividida harmonicamente, e seus derivados.

No nono capítulo, Remarques sur tous les accords précédens (Notas sobre todos os

acordes precedentes), Rameau define o papel dos acordes com função de dominante e

64

afirma que a diferença entre os acordes perfeitos e os acordes de sétima é uma questão de

inversão da ordem das terças e que a modulação obriga ao uso de certos sons, do qual

depende a ordem das terças que compõem todos os acordes. Apesar da força do acorde

perfeito na modulação, o acorde de sétima é independente, ele nunca muda (trata-se aqui de

modulação de acorde maior em menor e vice-versa) e a conclusão não pode ser

perfeitamente sentida se não for por meio dele. Ele é a fonte de todas as dissonâncias: “... a

terça maior que ele toma do acorde perfeito do qual ele deriva, forma todas as dissonâncias

maiores e a terça menor que se acrescenta ao acorde perfeito para compor esse de sétima,

forma todas as dissonâncias menores” (RAMEAU, p.45).

No décimo capítulo, Remarques sur les differentes raisons que l’on peut donner à

um même accord (Notas sobre as diferentes razões que se pode dar à um mesmo acorde), o

autor ressalta que se configura as razões dos acordes à dos intervalos contidos entre as

notas que compõem cada acorde, de modo que um mesmo intervalo pode ser dado sob duas

razões diferentes. A diferença dessas razões, que é insensível ao ouvido, provém da

diferente disposição de tons e semitons que os compõe e o nome das notas é indiferente

nessa conjuntura.

O décimo primeiro capítulo e último desse primeiro livro tem como título La

manière de pouvoir rapporter aux vibrations, e aux multiplications des longueurs, les

raisons donnés sur les divisions (A maneira de poder relacionar às vibrações e às

multiplicações dos comprimentos, as razões dadas sobre as divisões). O autor volta aos

cálculos aritméticos sobre as divisões de uma corda para justificar a origem das regras de

harmonia.

65

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do panorama histórico sobre Jean-Philippe Rameau e seu Traité de

l’Harmonie: réduite à ses principes naturels, foi possível compreender exatamente o

caráter inovador deste autor e de sua obra, além de elucidar razões de antigos (e ainda

atuais) embates entre música instrumental e vocal. O contexto histórico mostra-se

fundamental para a compreensão de um texto, adentrar na escrita de Rameau é tarefa que

exige o conhecimento básico das motivações que o levaram a escrever sobre música de

determinada forma.

Musicalmente, para quem não considere a época, pode parecer que o conteúdo do

tratado seja óbvio ou antigo, no entanto, ao dar-se conta do universo do século XVIII, pode-

se perceber o quanto o autor promove uma revolução conceitual. Para Rameau os acordes

são “entidades” que “imitam afetos” e suas progressões também o podem fazer, o que antes

só poderia ocorrer através do texto cantado linearmente. Sua retórica verticaliza a estratégia

de persuasão, construída até então sobre a horizontalidade da sucessão melódica. Seu

tratado de harmonia desencadeia um debate histórico entre música horizontal, proveniente

da concepção e regras do contraponto, versus música concebida e construída sobre os

alicerces verticais de acordes gerados por baixos (BENEVOLO, 2005).

Tanto o texto, quanto as perspectivas musicais de Rameau são ainda atuais, a

tradução de seu prefácio para a obra de 1722 pode comprovar isso. O Traité de l’harmonie

é ferramenta valiosa para o estudo de harmonia, é resultado do trabalho de uma vida

dedicada à música, sua compreensão e a forma de torná-la mais facilmente compreensível.

Acredito que os objetivos deste trabalho foram cumpridos e espero que ele possa ajudar aos

interessados no assunto a aprofundar os estudos nessa área, assim como ajudou a mim. E

que outros possam se motivar a traduzir textos musicais, tarefa importante e tão carente em

nosso país.

66

REFERÊNCIAS ALQUIÉ, Ferdinand. Descartes. France : Encyclopaedia Universalis, 1998. Disponível em: http://www.universalis.fr. Acesso em 21/10/2008. BAILHACHE, Patrice. Une histoire de l'Acoustique musicale. Paris: CNRS Editions, 2001. BENOLO, Caio. Tríade e falsa relação como centro e margem da tonalidade. Cadernos do Colóquio, Publicação do Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO. Rio de Janeiro, CLA/UNIRIO, 2005, 120p. BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions: Jonh Donne. Paris: Gallimard, 1995. ______. La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain. Paris: Éditions du Seuil, 1999. CHABANON, Michel Paul-Guy de. Éloge de M. Rameau, 1764. Disponível em: <http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k108141f>. Acesso em: 12 fev. 2008. CHRISTENSEN, Thomas. Rameau, Jean-Philippe. (5, bibliografia). In: SADIE, Stanley (org). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Londres: McMillan, 2001, vol. 20, p.794-806. DAMSCHRODER, David e WILLIAMS, Daniel Russell, Music Theory from Zarlino to Schenker: A Bibliography and Guide. (Harmonologia Series, 4). Stuyvesant: Pendragon Press, 1990. FEDELI, Orlando. Música e Beleza. Monfort Associação Cultural. Disponível em: <http://www.montfort.org.br/index.php?secao=cadernos&subsecao=arte&artigo=musicabeleza&lang=bra > Online, 25/08/2008 às 18:37h FUBINI, Enrico. Los enciclopedistas y la música. Valência: Universitat de Valência, 2002. GROUT, Donald Jay; PALISCA, Cluade V. A History of Western Music. New York: W.W. Norton, 1996. KINTZLER, Catherine. Jean Philippe Rameau: Splendeur et naufrage de l’esthétique du plaisir à l’âge classique. Paris: Le Sycamore, 1983. KREMER, Joseph-François. Rameau, et les méprises de la tradition. In: RAMEAU, Jean-Philippe. Traité de l'harmonie. Paris: Merididens Klincksoeck, 1986.

67

LESTER, Joel. Rameau and eighteenth-century harmonic theory. In: CHRISTENSEN, Thomas (org). The Cambridge History of Western Music Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 753-777. LÉVI-STRAUSS, Claude. Escutando Rameau. In:______. Olhar Escutar Ler. São Paulo: Companhia das letras, 1997. p. 33-50. MEEÙS, Nicolas. Polyphonie, harmonie, tonalité. In: NATTIEZ, Jean-Jacques (Org). Musiques: une encyclopédie pour le XXIe siécle, II, Les savoirs musicaux. Actes Sud / Cité de la musique, 2004, p. 116-133. MUSICOLOGIE.ORG. Disponível em: <http://www.musicologie.org/Biographies/rameau_jp.html.> Acesso em 12 agosto de 2008. PALISCA, Claude V. Theory, theorists. In: SADIE, Stanley (org). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Londres: McMillan, 2001, vol. 20. RAMEAU, Jean-Philippe. Traité de l’Harmonie: reduite à ses principes naturels. Genève: Slatkine Reprints, 1992. RAMEAU, Jean-Philippe. Code de musique pratique ... , avec de nouvelles réflexions sur le principe sonore, 1760. Disponível em: < http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1082246>. Acesso em: 12 fev. 2008. RAMEAU, Jean-Philippe. Démonstration du principe de l'harmonie servant de base à tout l'art musical théorique et pratique, 1750. Disponível em: <http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1082246>. Acesso em: 12 fev. 2008. RAMEAU, Jean-Philippe. Suite des Erreurs sur la musique dans l'Encyclopédie, 1756-57. Disponível em: <http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k83800j>. Acesso em: 12 fev. 2008. RAMEAU, Jean-Philippe. Treatise on harmony. New York: Dover Publications, 1971. RAMEAU, Le Site. Disponível em: http://jp.rameau.free.fr/jpr-sommaire.htm. Acesso em 10 de agosto de 2008. ROMANO, Roberto. A crise dos paradigmas e a emergência da reflexão ética, hoje. Educação social, dez.1998, v.19, n.65, p.65-100. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci-arttext&pid=s0101-73301998000400003&ing=pt&nrm=isso. Acesso em 09 julho 2006. ROSENFELD, Anatol e GUINSBURG, J. Romantismo e Classicismo. In: GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. ROWELL, Lewis. Introduccion a la Filosofia de la Musica: Antecedentes históricos y problemas estéticos. Barcelona: Gedisa editorial, 2005.

68

ANEXOS

Os textos originais foram retirados das edições fac-similes do tratado utilizadas

neste trabalho. Os fragmentos das citações são da edição de Kremer de 1986, e o

original do prefácio foi retirado da edição de 1992, ambas citadas nas referências.

69

70

71

72

73

74

75

76

Página 2

Página 3

Página 9

77

Página 11

Página12

Página 13 e 14

78

Página 22 e 23

79