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Cartas na Mesa – Robert Arjet

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BLIZZARD ENTERTAINMENT

Cartas na Mesa

por

Robert Arjet

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Nerissa Natoli avançava lentamente pelas ruas escorregadias de chuva de Hespéria. As

gotas da garoa emprestavam uma aparência sinistra às luzes na penumbra mortiça do

entardecer. Estava menos preocupada com as criaturas vistas recentemente na cidade

que com o frio, com a névoa que se condensava em chuva e tornava as ruas

escorregadiças e traiçoeiras. O manto de lã fina a mantinha aquecida, mas a

indignidade de caminhar pela chuva a deixava amarga e ressentida.

Apenas um ano antes, ela estaria em uma carruagem, assistida por criados. Claro

que, um ano atrás, os credores ainda não tinham começado a bater em sua porta com

dívidas e contas não pagas — todas em nome do seu marido. Nerissa dizia a si mesma

que Ashton era um homem bom, no fundo. Mas o jogo e a bebida já haviam derrubado

homens muito melhores que ele, e Ashton desaparecera sabe-se lá onde, levando o

último tesouro da família consigo. Ela não tinha coragem culpá-lo por aquela fraqueza,

mas, ao pisar em uma poça gelada, sentiu o estômago revirando-se de raiva.

Ela desceu uma rua residencial pontuada por árvores antigas e mansões

elegantes, e se lembrou dos muitos bailes a fantasia para os quais levara Elizabeth

naquela mesma avenida. Quando ainda havia dinheiro para vestidos novos. A rua

parecera imponente na época, vista da janela de uma carruagem. Mas a carruagem se

fora logo depois dos vestidos, e agora as árvores pareciam pretas e malévolas, os

galhos retorcidos sacudindo em meio à névoa.

Ela ficou com os cavalos tanto quanto pôde. Eram o símbolo evidente da posição

da família, e, quando os vendeu, já não podia sequer fingir alguma dignidade. Andando

pelas ruas úmidas como uma aldeã, amaldiçoou sua sina em silêncio e desejou outra

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vez que Ashton voltasse, com a fortuna intacta e a fraqueza finalmente vencida. Não

costumava se entregar à fantasia, mas não tinha nada mais que a confortasse. Disse a

si mesma que encontraria uma saída. Não deixaria que a irmã morresse como uma

solteirona pobre. Pensar naquilo era o bastante para firmar sua resolução. A qualquer

preço, houvesse o que houvesse, ela encontraria uma saída.

Tomando uma rua transversal, ela viu seu destino pairar à frente como um

penhasco rochoso e sombrio. Na verdade, era apenas a residência relativamente

modesta de Vincent Dastin, um mercador próspero — embora vulgar — e agiota, mas,

na imaginação dela, a casa encimava toda a paisagem, inamovível, intimidadora. Olhou

para a porta da frente com apreensão. Um ano antes, teria enviado um mensageiro e

ficado bebericando vinho fino do Kehjistão na carruagem. Naquela noite, no entanto,

subia os longos degraus na direção da porta, temendo a vergonha de pedir — não, de

implorar — pela paciência dele.

Narissa chegou à entrada e levou a mão à aldrava. Segurou o metal frio com toda a

firmeza que conseguiu reunir e deixou-o bater na porta de sequoia, que se abriu quase

na mesma hora em dobradiças bem oleadas.

— Sim? — perguntou o porteiro gorducho. Nerissa achou sua sobrancelha

arqueada meio insolente, mas conteve a ira — afinal, estava ali para implorar por sua

casa e suspeitava que seu desespero fosse evidente até para os criados. Quando soube

que Ashton havia apostado a mansão da família, foi como se o seu mundo virasse de

ponta-cabeça. Nerissa até então não sabia o que era dever a alguém, jamais

compreendera a insegurança nauseante que acompanha contas que não podem ser

pagas, compromissos que não se podem honrar. Mas a casa — a casa era muito

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diferente. Perder a casa seria perder seu refúgio, sua última esperança de retornar à

sociedade de Hespéria. Sua última esperança de sair do buraco cavado por Ashton. Sua

última esperança de encontrar um pretendente para Elizabeth.

Reunindo sua dignidade, ela informou ao homem de maneira educada mas firme:

— Gostaria de falar com o mestre Dastin. — Em seguida, lembrou que não tinha se

apresentado e acrescentou: — Me chamo Nerissa Natoli.

O porteiro fez uma pausa maior do que Nerissa achou aceitável, depois, para sua

surpresa, disse rapidamente antes de fechar a porta: — Vou ver se o patrão está.

Aquilo era demais. Ficar parada à porta feito uma pedinte ou vendedora era um

insulto que Nerissa não sabia como suportar. Ela resolveu falar com Dastin sobre a

grosseria dos seus serviçais.

Enquanto isso, ela pensou no momento em que saíra de casa aquela noite, no

pedido de Elizabeth para que ficasse e jogasse cartas, e então sorriu, amarga. Elizabeth

podia estar em uma casa pegando fogo e só pensaria em bailes e diversão. Mas, de

certa forma, a Casa Natoli estava mesmo pegando fogo, e Elizabeth sofreria mais que

todos. Ela era jovem e bela, mas não teria a menor chance de casar se o seu dote não

pudesse ser recuperado. Nerissa fez um esforço para não pensar nos bordéis e nas

casas de aposta em que o dote da irmã se perdera, mas se sentiu endurecer. Repetiu

para si mesma que, lá no fundo, Ashton era um homem bom.

A porta se abriu outra vez, e, quando Nerissa fez menção de entrar, o porteiro

disse, com um tom que não podia ser tomado por deferente: — O patrão não recebe

hoje.

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Nerissa parou com o pé sobre o batente. Será que tinha ouvido direito? O

mercador novo-rico estava negando uma audiência a ela? O sangue subiu-lhe às

bochechas, e ela se esforçou para se controlar. Fazer uma cena só a humilharia ainda

mais. Sua mãe costumava dizer que a nobreza de uma mulher se notava em seu modo

de suportar uma afronta, e Nerissa não ir dar àquele criado insolente — ou a seu

patrão sem modos — a satisfação de vê-la se portar mal. Ela se empertigou e

respondeu apenas: — Muito bem. — Em seguida, deu uma meia-volta graciosa.

A chuva agora caía com vontade, escorrendo veloz pelas ruas de pedra enquanto

Nerissa caminhava para casa. os reflexos da luz de velas e lampiões dançavam

erraticamente nas poças que ela tentava evitar. À medida que sua raiva foi se

esvaindo, medo e desespero tomaram seu lugar. Estarrecida com o agravo de Dastin,

esquecera-se do significado da afronta. Fora-lhe negada até a oportunidade de discutir

outra extensão do prazo de pagamento. Uma oportunidade de implorar para manter o

lar que era seu e de Elizabeth. Por mais que a situação na ida fosse preocupante,

Nerissa viu que ela se tornara muito mais desesperadora.

Pensativa, Nerissa se assustou com um relincho súbito. Ela olhou para cima, a

chuva fria escorrendo-lhe pelo rosto, e percebeu que não reconhecia a rua em que

estava. Estreita, escura e tortuosa, parecia uma floresta úmida, com criaturas apenas

vislumbradas à espreita fora do seu campo de visão. Nerissa conhecia muito bem as

avenidas e os bulevares mais nobres de Hespéria, mas aquele beco retorcido era de

uma estranheza ameaçadora.

Ela se virou, tentando identificar a origem do som, e ouviu outra vez, junto com o

chacoalhar de rodas de carruagem. Amaldiçoando a névoa, Nerissa olhou em volta,

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sem saber se tinha mais medo da carruagem invisível ou da rua esquálida. Com um

espasmo, um cavalo negro feito carvão se empinou diante dela, e suas rédeas foram

puxadas com força. Nerissa quase caiu de joelhos, mas o animal acalmou-se de

repente, e o cocheiro olhou para ela como se nada tivesse acontecido.

Ela não reconhecia os trajes do cocheiro, mas o corte era de pelo menos da

geração anterior. Baixou a cabeça outra vez, a vergonha da sua posição social ardendo

ainda mais forte diante da nobreza antiga e respeitada, mas voltou o rosto

abruptamente ao ouvir seu nome.

— Nerissa?

A voz era velha, suave e gentil, mas totalmente desconhecida. Nerissa se

aproximou da janela aberta da carruagem, cujo painel de madeira fora repuxado por

uma mão delicada e artrítica, e tentou discernir o rosto em meio às trevas.

— Sim?

— Não fique aí parada, minha filha. Saia da chuva, você deve estar ensopada.

Nathaniel, abra a porta.

O cocheiro desceu com uma postura graciosa e deferente, e a porta se abriu

silenciosamente para ela. Nerissa agradeceu com um aceno altivo de cabeça e entrou

na carruagem, intrigada demais para sentir vergonha e bem feliz de ter saído da

chuva.

Ao se acomodar no banco de madeira, seus olhos começaram a se ajustar à

penumbra, e ela discerniu um rosto enrugado e gorducho, uma profusão de cachos

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brancos e um corpo encolhido pela idade quase do tamanho do de uma criança.

Forçou a memória em busca do nome da senhora, mas não conseguiu nada. Nem um

faiscar de reconhecimento daquela mulher, que obviamente a conhecia e, ao contrário

de parcelas cada vez mais significantes da sociedade de Hespéria, estava disposta a

estender a mão para ajudá-la.

— Mil desculpas — finalmente conseguiu gaguejar, enquanto a mulher a encarava

com benevolência —, mas estou em desvantagem. Eu não consigo lembrar onde foi

que nos conhecemos.

A mulher sorriu com indulgência e bateu de leve no braço gelado de Nerissa. Sua

mão parecia pergaminho ressequido ao contato. — Não se preocupe, querida. Nós não

nos conhecemos, então não me surpreende que você não me reconheça. — Seu sorriso

se ampliou quando a confusão de Nerissa se espelhou em seu rosto. Ela continuou: —

Eu sou uma velha amiga da sua família e tenho andado de olho em você.

Ela piscou? Nerissa não tinha certeza. Mas seu fôlego parou no peito quando

imaginou de repente que a mulher era uma tia esquecida com uma pequena fortuna

para doar a Nerissa e Elizabeth. Logo sentiu vergonha de pensar aquilo, mas, com o

desastre tão iminente, qualquer um que parecesse minimamente um salvador devia

ser tratado com o maior cuidado.

— De olho em mim? Então... então você sabe... — Nerissa se interrompeu, fazendo

um gesto que indicava a espiral descendente da família em direção à penúria, algo que

era melhor não mencionar em boa companhia. A velha acenou quase

imperceptivelmente.

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— Sei, minha filha, infelizmente sei. E, por mais estranho que pareça... — Nesse

ponto, ela olhou pela janela, para a chuva, e fez uma pausa antes de continuar, com um

olhar estranhamente fixo. — Talvez eu tenha uma solução para a sua... situação.

Nerissa lutou para manter a expressão neutra, mas seu coração bateu forte de

expectativa. Ainda estava intrigada com a identidade da senhora, mas agora a ideia de

que ela talvez fosse sua salvadora era real e imediata. Pensou bem antes de falar.

— Uma solução?

— Uma possível solução, minha filha. Quer dizer... bom... você joga cartas?

Nerissa achou aquilo um non sequitur inoportuno, mas acenou afirmativamente.

Na verdade, ela era conhecida em toda Hespéria como uma das melhores jogadoras da

cidade. Nunca sucumbira ao vício do jogo como Ashton, mas havia esvaziado as bolsas

de muitas rivais da sociedade em uma partida "amigável" de "Moira" ou "Ganso

Louco". A velha sabia disso? Estaria ela desafiando-a para uma partida? Nerissa mal

sabia o que pensar. Ashton tinha apostado a propriedade da família e perdido. Será

que ela conseguiria recuperá-la da mesma forma? Sentiu-se quase extática com a

perspectiva, mas apenas sorriu e disse: — Sim. Sim, eu jogo cartas.

Descendo da carruagem diante do portão de casa, Nerissa notou com gratidão que

a chuva havia cessado. De fato, as nuvens tinham se dissipado, e milhares de estrelas

brilhavam sobre a cidade vestida de noite. Ela se voltou de repente e segurou a porta

antes que se fechasse.

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— Mil desculpas, mas ainda não sei o seu nome.

— Ah, essa minha cabeça! Eu não disse o meu nome. Me chamo Carlotta.

— Muito bem, Carlotta. Eu espero você amanhã à noite. Tem certeza de que não

vai jantar conosco antes de jogarmos?

— Certeza absoluta, meu bem. Eu prefiro jantar sozinha. — E, com isso, fechou a

porta, tapou a janela com o painel de madeira deslizante e a carruagem partiu pela

rua.

Nerissa subiu as escadas até a porta da frente sentindo a cabeça girar. A velha

provavelmente tinha uma pequena fortuna e só queria uma desculpa para dividi-la

com Nerissa e Elizabeth. Claro, o jogo era apenas um faz de conta educado, uma

delicadeza social para evitar a aparência de caridade. Ou talvez Carlotta tivesse dito a

verdade e estivesse mais interessada em apostar alto em um jogo de cartas que no

bem estar de Nerissa. Que seja. Já tinha ouvido falar — e sido testemunha — de

comportamentos mais excêntricos entre os velhos ricos de Hespéria. Se Carlotta

queria um jogo, Nerissa a satisfaria prontamente.

Na noite seguinte, enquanto o lusco-fusco do crepúsculo se adensava pela casa,

Nerissa quedava-se inquieta em seus aposentos. E se Carlotta fosse tão avoada quanto

parecia e esquecesse o compromisso? E se fosse apenas uma piada de mau gosto? E

se...?

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Nerissa se empertigou e forçou-se a ficar calma. Então olhou em volta: os

melhores móveis que restaram, um par de lamparinas de azeite brilhando forte, um

carrinho com uma das últimas garrafas de vinho do Kehjistão e duas taças, e, claro, em

cima da mesa escura e polida, um baralho.

Nerissa escolhera esse baralho de propósito. Elas eram adornadas com o brasão

dos Natoli. Achava que, se ia apostar o futuro da Casa Natoli, seria apropriado que

jogasse com cartas que representassem o que estava em jogo.

E quanto ao que estava em jogo... Nerissa olhou outra vez para uma caixa coberta

de veludo ao lado das cartas. Nela estava a última joia que encontrara, uma fortuna

para uma pessoa comum, mas uma bagatela comparada à riqueza que ela tencionava

recuperar. Sabia que teria que vencer, e vencer várias vezes, para que sua família

recuperasse a antiga estabilidade. Mas não podia vencer muito rápido, ou isso

assustaria a velhota querida. Não... seria preciso muita habilidade, delicadeza e

cuidado.

— Nerissa! Olhe!

Seus pensamentos foram interrompidos e ela pulou de susto quando a irmã

entrou no aposento, esfuziante. Elizabeth estava coberta da cabeça aos pés com o que

pareciam ser grandes folhas farfalhantes cor de âmbar, carmesim e laranja. Nerissa

recuou ao vê-la, mas conseguiu se controlar e deu um sorrisinho, correspondendo à

alegria que irradiava do rosto da irmã. Embora às vezes ela se ressentisse do

alheamento de Elizabeth no que dizia respeito à sua situação preocupante, Nerissa

também era cativada por sua beleza e vivacidade. Ela seria perfeita para muitos

cavalheiros de Hespéria, pelo menos para alguns não tão nobres, se tivesse um dote.

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Mas o dote fora usado para pagar as dívidas de Ashton, e agora Elizabeth tinha pela

frente uma vida longa e solitária — ou pior, talvez acabasse casando com algum

plebeu ambicioso que desejasse comprar o nome da família Natoli. Nerissa

estremeceu e tentou manter o sorriso no rosto enquanto Elizabeth pulava pela sala

num saracoteio de dança.

— Percebeu? Percebeu o que é que eu sou?

Nerissa se conteve e não deu nenhuma das respostas ferinas que lhe ocorreram.

Em um tom indiferente, limitou-se a dizer: — Não sei... é um bobo da corte?

Elizabeth parou no meio de um passo e olhou perplexa para a irmã. — Bobo da

corte? Então eu sou boba, é, mana? — Tentou parecer severa, mas abriu um sorriso e

deu uma gargalhada adorável, rodopiando ao redor de Nerissa e quase a derrubando.

— O baile dos Lancaster é em duas semanas, e dessa vez eu vou poder ir.

Ela agarrou Nerissa pelos ombros com o júbilo franco de uma criança, na

esperança de que a irmã mais velha — tão sem graça e sem imaginação — entendesse.

— Você diz que eu não posso ir porque não podemos comprar vestidos novos. Mas a

Madame Lancaster diz que dessa vez temos fazer nossas próprias fantasias! Então eu

posso ir!

Ela se afastou com um pulo e fez uma pose. Nerissa se ajeitou e foi ver se as cartas

e o vinho não tinham sido perturbados.

— O tema do baile é "Tempo" — disse Elizabeth, fingindo estar séria. — Agora

você consegue adivinhar o que eu sou?

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Nerissa voltou a prestar atenção na moça e a avaliou. Uma inspeção mais

demorada revelou que Elizabeth estava quase toda coberta de pedaços de pergaminho

e tecido cuidadosamente pregados a um vestido marrom velho. Queria animar a irmã,

mas não era hora para brincar de adivinhação. — Uma árvore?

Elizabeth desfez a pose com um suspiro exasperado e sacudiu a cabeça cacheada.

— Não, sua pastel. Eu sou o Outono. Não dá para perceber pelas folhas? — Por um

segundo, Nerissa viu um lampejo de preocupação genuína nos grandes olhos

castanhos da irmã, a leve incerteza de uma moça que, afinal, estava usando um vestido

do ano anterior enfeitado às pressas com pedaços descartados de pergaminho e

tecido. O coração de Nerissa se confrangeu e ela abraçou Elizabeth.

— Claro que dá. Você está igualzinha ao Outono, sem tirar nem pôr. Você vai ser o

assunto da festa.

— Vou sim! — Elizabeth desvencilhou-se do abraço de Nerissa com um gesto

imperioso, depois deu uma risadinha. — Ah, obrigada, Nerissa. Agora eu preciso

continuar cortando as folhas. Maurice está me ajudando, mas é muito demorado.

E com isso ela desapareceu, partindo veloz da sala como um espírito. Nerissa

suspirou e percebeu que não estava mais tensa nem ansiosa. Pegou as cartas e

começou a embaralhá-las. Embora se importasse muito com a casa, sua maior

preocupação era Elizabeth. Recuperar o bastante de sua fortuna para casar bem a

irmã a acalmaria mais que qualquer outra coisa e dissiparia a vergonha que sentia

diariamente quanto ao futuro mesquinho que ameaçava a irmã. Um bom casamento

para Elizabeth, pensou, e rilhou os dentes com impaciência. Agora ela tinha uma

chance e planejava aproveitá-la.

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— Ah, não, querida. Infelizmente eu não bebo mais nada. — Carlotta afastou a taça

de vinho com a mão pequenina e Nerissa a devolveu à mesa, um pouco desapontada.

Às vezes o álcool dava uma pequena vantagem, mas Nerissa não contava com aquilo.

Estava alerta. Atenta, preparada, quase ansiosa para que o jogo começasse.

— Na minha idade, sabe... bom, temos que abrir mão de certas coisas. — Carlotta

sorriu significativamente e Nerissa deu uma risadinha polida em resposta, embora não

fizesse ideia da idade daquela mulher estranha. Só sabia que ela já estava bem além de

"muito, muito velha", mas ainda não chegara a "morta".

— Então... — Nerissa sorriu. — O que vamos jogar? Luz d'Aurora? Moira? Ganso

Louco? — Nerissa queria que fosse Ganso Louco, pois ela se sentia à vontade com as

rápidas apostas e contra-apostas do jogo kehjistanês . Mas estava preparada para

jogar qualquer um deles, ou qualquer outro jogo que sua convidada sugerisse.

— Ah, não. Ganso Louco é rápido demais para mim. Eu prefiro algo mais simples.

Muito simples. — Ela acenou com a cabeça como se concordasse consigo mesma, e

Nerissa aguardou. Começou a sentir a tensão voltar e tomou um gole de vinho.

— Mas primeiro... — disse Carlotta, com a voz áspera. Suas mãos apertavam o

castão de uma bengala de ébano que parecia mais que necessária para sustentar

aquele corpo tão frágil. — A aposta. Precisamos discutir... — e aqui ela enrijeceu

levemente, contraiu-se de uma forma estranha — ... a aposta.

Nerissa terminou a taça de vinho e a depôs desajeitadamente sobre a mesa. Ela

pegou a caixa de veludo, exibindo-a com orgulho, e abriu a tampa. O conteúdo brilhou.

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— Eu tenho minhas joias — respondeu com toda a dignidade que pôde reunir. —

Algumas delas estão na minha família há gerações. Essa aqui, por exemplo — e ergueu

um pente de filigranas de ouro com uma grande safira —, foi dada à minha avó no dia

do casamento. E esse aqui — disse, retirando cuidadosamente uma adaga cuja bainha

era tauxiada de três rubis — meu tio-avô levava consigo quando estava na corte. É só

decorativo, mas ele realmente achava que era um soldado. — Ela deu uma risada

zombeteira, mas percebeu que estava sendo observada por Carlotta com uma

insistência inquietante. Devolveu a faca à caixa e esperou que a senhora falasse.

— Não — disse a anciã, sem deixar de encarar Nerissa. — Não, acho que nossa

aposta devia ser mais... significativa. — Ela rejeitou a objeção gaguejante de Nerissa

com um pequeno gesto. — Acho que devíamos apostar o que temos de mais

significativo. Querida, o que é que você deseja mais que qualquer coisa no mundo?

Nerissa hesitou, sem saber se a velha estava brincando ou era louca. Aquele era o

seu jeito de se oferecer para pagar as dívidas da família? Nerissa sentia-se tonta com

as possibilidades.

— Antes que você responda, cuidado com o que for pedir. As coisas que

desejamos às vezes se voltam contra nós. — Carlotta sorriu e Nerissa compreendeu

que aquilo era um teste. Claro. A velha não estava só se oferecendo para cuidar da

dívida; estava testando Nerissa para ver o que ela diria. Preparou a resposta

meticulosamente, como se fosse o desejo sincero de uma esposa leal, e não uma

decisão econômica calculada.

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— Eu gostaria que Ashton, meu amado marido, retornasse. Sóbrio, mudado e com

sua fortuna intacta. — Ela tentou fazer com que a última parte parecesse algo sem

importância, e não seu desejo mais premente.

— Muito bem, querida. E em troca? Qual é a sua posse mais valiosa? O que sempre

esteve em seu íntimo e é apenas seu?

Nerissa, que se achava muito boa em charadas, quase disse a resposta óbvia: "Meu

coração". Mas a ideia de aquela velha decrépita desejar seu coração quase a fez rir

alto.

Em vez disso, ela considerou o brilho estranho nos olhos de Carlotta e hesitou

outra vez. Qual seria a melhor resposta? Nerissa atinou com algo e deu a Carlotta um

sorriso indulgente e simpático, dos que se dão a uma criança que pede um doce antes

do jantar.

— Eu prefiro que você escolha, claro. Eu deixo você escolher qualquer coisa minha

que você quiser e, se eu ganhar, recebo meu desejo mais profundo.

—Combinado — respondeu Carlotta, assim que Nerissa terminou. A rispidez de

sua anuência espantou Nerissa, e a dureza em seus olhos pareceu se aprofundar em

uma faísca metálica por um instante. Ou não? Nerissa voltou a si e despejou mais

vinho em sua taça. Aquela mulher estava brincando com a sua mente. Ou — mais

provável — o estresse e a ansiedade, junto com a perspectiva vertiginosa de pagar as

dívidas da família, estavam agitando seus nervos. Olhou com mais atenção para

Carlotta e não viu nada além de bochechas macias e as linhas profundas entalhadas

em um rosto gorducho acostumado a sorrisos e gargalhadas. Repreendeu-se por

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julgar a mulher. Ela podia ser um pouco biruta, mas era sua futura salvadora, uma

velha excêntrica inofensiva, e, se ela queria jogar com apostas intangíveis antes de

doar sua fortuna a Nerissa e Elizabeth, que fosse. Nerissa cantaria cantigas de ninar e

brincaria de pular carniça se a velha tola assim quisesse. Contanto que houvesse ouro

e prata no final.

— Tudo bem, então. — Carlotta pegou as cartas, cortando o baralho agilmente

com uma mão. — Será um jogo simples. Eu tiro uma carta e você tira outra. Nós

repetimos até cada uma ter três cartas. Depois revelamos nossas cartas uma de cada

vez. — Ela fez um sinal para Nerissa como se perguntasse se ela estava

acompanhando. — No final, quem tiver a carta mais alta vence.

O que era isso? Nerissa estava mais convencida do que nunca da falta de juízo da

anciã. Não era um jogo de habilidade; era pura sorte. Será que ela deveria apostar o

que restava da fortuna da família na virada de uma carta? Tudo em Carlotta sugeria

que ela iria querer um jogo revigorante, mas aquilo não passava de uma aposta tola no

acaso. Ainda assim, era ela quem tinha a fortuna, para dá-la ou negá-la, e Nerissa faria

o possível para agradar a velha.

— A carta alta vence. Certamente. — Ela fez um gesto para que Carlotta

comprasse uma carta. A velha acenou ligeiramente com a cabeça, fazendo os cachos

brancos balançarem, e esticou o braço para pegar uma carta. Nerissa a imitou, e logo

cada uma das duas tinha três cartas viradas sobre a mesa. Sem dizer nada, Carlotta

abriu a primeira carta.

— Ah, puxa — murmurou ela, e riu como uma criança. A carta era o três de coroas,

que tinha poucas chances de ganhar o jogo. Carlotta encarou Nerissa com olhos

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ávidos, as mãos juntas no colo. Um pouco desencorajada pela avidez da convidada,

abriu a primeira carta, ansiosa por terminar o jogo para que pudessem passar ao

negócio de verdade. Era o doze de serpentes. Nada mau.

Carlotta virou a carta seguinte, o sete de serpentes, e olhou novamente para

Nerissa com os olhos ávidos, que pareciam arder. Nerissa hesitou. Não havia o que

pensar, não havia estratégia, mas ainda assim ela não gostava da ideia de abrir cartas

às cegas até o jogo terminar. Pensou um pouco antes de escolher qual carta virar e,

por fim, abriu o oito de leões.

Ela relaxou um pouco. Aquilo era tolice. Um jogo tolo, uma aposta tola e uma velha

tola, mas o jogo real — a aposta real — não podia ser mais séria. Nerissa meditou

sobre o que fazer depois que a partida acabasse. Sempre fora hábil em ler o rosto e

julgar o comportamento dos adversários, e examinou Carlotta enquanto a mão da

velha pairava sobre a última carta.

Nerissa ficou boquiaberta ao ver a imperatriz de coroas. Seria difícil ganhar

daquilo. Carlotta ergueu o rosto com um brilho quase predatório no olhar. Nerissa

recuou, depois se recompôs. Que loucura era aquela? Ali estava uma senhorinha

querida, prestes a doar uma fortuna para a sua família, e Nerissa estava tratando esse

jogo de apostas imaginárias como se importasse. Deu uma risada e sorriu para a sua

benfeitora. — Bem, agora você com certeza está na frente, minha cara. Vamos ver o

que eu posso fazer...

Quando Nerissa viu a imperatriz de estrelas, sentiu uma onda de alívio. Carlotta

simplesmente estalou a língua e imediatamente se levantou. Nerissa nem teve tempo

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de sugerir uma nova partida antes de a velha pedir licença e sair do aposento. Foi

atrás dela, com medo de tê-la ofendida ou perdido sua chance.

— Bom jogo, querida. Eu sei onde fica a saída. — Carlotta nem mesmo olhou para

trás, e Nerissa tentou evitar o tom suplicante na voz, mas não conseguiu.

— E que tal mais uma partida? Você quase me pegou agora. Um pouco de vinho

branco do Kehjistão, não quer? Ou um....

— Eu já disse, querida. Eu não bebo. Mas posso vir amanhã à noite, se você quiser.

— Ah, sim, certamente. Com certeza. Eu vou...

— Eu disse "se você quiser", querida. Então pense na sua decisão com cuidado até

amanhã à noite. — E, com isso, partiu. Nerissa sacudiu a cabeça. Daria muito mais

trabalho que o esperado conquistar a ajuda daquela senhora. A mulher parecia um

livro aberto, mas Nerissa achava que ainda havia muito que saber sobre ela.

Parada nos degraus da frente, observando a carruagem partir, Nerissa notou que

havia esfriado de repente. Um frio úmido de amargar cortava sua carne, embora a

noite estivesse agradável havia menos de uma hora. E aquela névoa outra vez —

parecia se adensar do solo feito uma coisa viva, coalescendo para algum propósito

maligno.

Ela voltou rapidamente para a luz e o calor da casa — e para uma taça de vinho —

quando seus pensamentos foram interrompidos por um rangido alto, diferente do

ruído suave da carruagem de Carlotta. Nerissa forçou a vista para discernir algum

detalhe entre os fiapos rodopiantes de névoa.

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Nerissa inclinou a cabeça de lado, irritada, e viu uma grande carroça surgir

lentamente da névoa e entrar devagar no pátio com o cocheiro curvado como um

troglodita no assento. Que comerciante iria entregar algum produto àquela hora da

noite? E entrando pela porta da frente ainda por cima. Será que ele pensava que, só

porque Nerissa não era mais rica, já não era mais necessário tratá-la com distinção?

— A senhora é a Madame Natoli? — O plebeu pesadão desceu da carroça puxando

um pergaminho dobrado do cinto.

— Sim, eu sou a Madame Natoli. O que você trouxe aí a essa hora da noite?

— Bom, é o seu marido, infelizmente, madame.

Nerissa sentiu os joelhos cederem ao perceber o caixão de madeira tosco na

traseira da carroça. Maurice correu até ela, que se apoiou nele com a respiração presa

na garganta.

— Ashton? Está... morto?

O homem olhou para ela, demonstrando preocupação e pena no rosto duro. — Ah,

pelos fados, a senhora não sabia? Mil desculpas, madame. Se eu soubesse, não ia

contar assim. Não é certo, não.

Ele entregou o pergaminho a Nerissa, que o recebeu com dedos dormentes. Ela

procurou algo para dizer, qualquer coisa que interrompesse a agonia sem fôlego em

seu peito. — E... e as coisas dele? Onde estão?

O homem raspou as botas no degrau e sacudiu a cabeça. — Bom, tudo o que ele

tem está com ele. Como dizem: "A riqueza que ficou foi a mortalha."

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Nerissa sentiu o rubor deixar-lhe o rosto e o homem olhou em volta, ansioso. —

Eu vou levar ele para os fundos, está bem? — Ele se voltou para subir na carroça. Ela

concordou em silêncio e observou a carroça sair do pátio e ir na direção dos fundos da

mansão. Percebeu que ainda estava segurando o pergaminho. Desenrolou-o e tentou

ler o texto através das lágrimas que lhe pinicavam os olhos.

A letra era tosca e difícil de ler, mas Nerissa entendeu bem do que se tratava: era a

conta da entrega.

Elizabeth, pela primeira vez na vida, ficou inconsolável. Talvez tivesse se dado

conta da extensão do seu infortúnio com a notícia da morte do cunhado. Ashton

sempre gostara dela por se identificar com sua alma alegre e aberta para a vida. Agora

ela soluçava tão forte que Nerissa foi obrigada a afastar o abatimento da sua própria

dor para ir cuidar dela. Enxugou as lágrimas e pensou no que poderia alegrar a irmã.

— Não se esqueça do baile dos Lancaster, coração. Você tem que terminar sua

fantasia. Por que você não procura Maurice e pede ajuda para cortar mais folhas?

Elizabeth concordou e saiu correndo, deixando Nerissa com seus pensamentos

sinistros. Ela sabia o suficiente sobre demônios e bruxaria para não acreditar que

aquilo tinha sido mera coincidência, mas não era capaz de explicar o acontecido de

alguma maneira lógica. Sentia-se tola por imaginar aquelas coisas, mas, por outro lado,

havia boatos de que coisas assim andavam acontecendo em Hespéria. Por um instante,

sentiu pânico: aquela bruxa, aquela megera, havia matado seu marido. E agora estava

metendo a coitada da Elizabeth na história. Que destino horrendo ela estaria...?

Ela sacudiu a cabeça com força. O importante era que a velha iria voltar aquela

noite e Nerissa teria que ficar atenta se quisesse entrar na posse da fortuna esperada.

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— Madame? Madame? Chegou uma convidada... — Maurice claramente foi pego

desprevenido: Carlotta simplesmente avançou porta adentro e ele a seguiu como um

cachorrinho confuso, torcendo as mãos e falando no volume mais alto que se atrevia a

usar quando se dirigia à patroa.

Nerissa se ergueu do banco de onde contemplava a chegada de Carlotta e foi até a

sacada que dava para a entrada, de frente para a grande escadaria. Maurice ainda

seguia Carlotta, que subia as escadas com muito mais vigor que seu porte frágil

sugeria. A bengala de ébano batia com força em cada degrau de mármore. — Por

favor, mostre o caminho a ela, Maurice — respondeu Nerissa, sabendo que a senhora

certamente não precisava de ajuda. Na verdade, o velho porteiro corria para alcançá-la

quando ela chegou aos aposentos da moça. Mas aquele era bem o tipo de mentirinha

que sustentava a alta sociedade.

Após breves amenidades, Carlotta agarrou o castão da bengala com as duas mãos

e se inclinou para frente na cadeira. — Então, filhinha. A aposta...

Carlotta pronunciou a palavra como se fosse uma proposta indecorosa, e Nerissa

reuniu forças. Ela tinha pensado bastante na aposta daquela noite. Assim, empertigou

a espinha, pousou as mãos com cuidado no colo e disse, com vagar e precisão, como

uma aluna prudente recitando o dever: — Mais uma vez, eu aposto qualquer coisa

minha que a senhora desejar.

— O que sempre esteve em seu íntimo e é apenas seu.

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Nerissa simplesmente fez que sim. — Quanto a mim, eu desejo um dote para

Elizabeth. Um dote grande o suficiente para ela poder se casar com qualquer

cavalheiro de Hespéria.

— Combinado.

Nerissa se surpreendeu com a rispidez na voz de Carlotta. E aquele brilho em seus

olhos... "Faminto" seria a palavra certa? Não, mas parecia que o vigor de faces coradas

da velha tinha se tornado algo mais próximo de uma determinação tenaz. Não ficava

bem nela, e Nerissa percebeu que estava perturbada pela extensão da mudança no

comportamento de Carlotta.

Carlotta estendeu o braço sem dizer nada e cortou o baralho com elegância

eficiente. Lançou um olhar para Nerissa, e a luz quase febril em seus olhos — que

parecia incongruente naquele rosto enrugado e flácido — fez com que esta sentisse

pânico. Ela afastou o olhar e mordeu a língua para se manter no controle. Carlotta

comprou uma carta do topo do baralho.

Nerissa pegou sua carta e a colocou diante de si. Carlotta fez o mesmo, e depois

elas repetiram o ato até cada uma ter três cartas. O silêncio pairava pesado no

ambiente. Carlotta finalmente esticou o braço, virou o onze de leões e, em seguida,

olhou para Nerissa. Nerissa sentiu uma vontade súbita de derrubar as cartas de cima

da mesa, mas se conteve. Rezando para que sua mão não tremesse, escolheu uma carta

ao acaso e revelou o arcanjo de coroas.

— Minha nossa. Que sorte. — Carlotta sorriu e estalou a língua fingindo irritação,

mas Nerissa tinha certeza de ter ouvido um descontentamento genuíno e vigoroso em

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sua voz. Nerissa tinha quase certeza de que venceria e relaxou. Só restava saber como

negociar o tamanho exato do dote quando o jogo terminasse.

Carlotta abriu o nove de coroas e Nerissa respondeu imediatamente com o três de

serpentes. Carlotta hesitou pela primeira vez. Sua mão pairava sobre a última carta.

— Nós podemos considerar um empate — sugeriu ela, arqueando a sobrancelha e

adoçando a voz. — Com uma aposta tão alta, nada mais justo dar a você uma última

chance de recuar.

Nerissa agora tinha certeza de que a mulher era louca. Nerissa tinha a segunda

carta mais alta do baralho, e seria quase impossível perder. Por que iria querer

considerar um empate? E quem desiste de uma partida antes da última rodada? O

pavor tomou conta dela quando pensou que a anciã poderia estar cancelando a aposta

completamente. Talvez ela estivesse tão endividada quanto Nerissa. Talvez não tivesse

uma moeda pra doar à família, talvez aquilo não passasse de um jogo demente.

Talvez...

Mas talvez não. Nerissa iria até o fim com aquela farsa se houvesse alguma chance

de casar Elizabeth. Ela respondeu sorrindo com polidez benévola e recusou a sugestão

com um gesto. — E privar você da chance de vencer? Nunca. Quem sabe você não tem

um arcanjo de estrelas?

Carlotta olhou para a carta como se estivesse considerando a possibilidade de o

arcanjo de estrelas estar mesmo sob seus dedos e, em seguida, virou-a na mesa com

tanta força que Nerissa pulou.

O dois de leões.

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Elas riram, a risadinha costumeira que torna triviais momentos constrangedores e

assegura aos presentes de que não houve quebra de decoro. Mas Nerissa sentia a

tensão deixar seu corpo como um líquido vil, e a mão livre de Carlotta apertou o

castão da bengala com força. Seus dedos encarquilhados pairaram sobre a carta, como

se houvesse jeito de abri-la outra vez e produzir um resultado diferente.

— Ah, querida Carlotta. Acho que você me assustou um pouco… — Nerissa

começou a dizer, porém, mais uma vez, a mulher se levantou de repente e saiu do

aposento sem olhar para trás. Nerissa a seguiu, sem saber ao certo como abordar o

assunto do pagamento do dote. Finalmente se convenceu de que, se Carlotta pretendia

cancelar a aposta, não havia nada a perder e, se ela fosse honrá-la, seria necessário

discutir o assunto antes que ela fosse embora.

— Bom, mas então, Carlotta. Nós temos que falar sobre...

— Não.

Essa única palavra pairou feito um vapor vil no rastro da mulher, que caminhava

para a saída, e Nerissa engasgou. Carlotta voltou-se para ela ao alcançar a porta.

— Não, não temos que falar sobre nada. Você... você, Madame Natoli, precisa

considerar a aposta. E se você quiser que eu volte amanhã, eu voltarei. Mas não vamos

falar sobre nada.

E, com isso, ela se foi.

Nerissa observou a carruagem desaparecer rangendo na noite com o coração

pesado. Teria sido tudo em vão? Seria a última vez que veria Carlotta, sua fortuna não

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passaria de uma ilusão cruel? Nerissa cerrou os punhos. Um dote para Elizabeth. Era

tudo o que queria. Se tudo o mais fosse tomado dela, Nerissa ainda poderia aparecer

em público, sabendo que havia conquistado uma vida de conforto e beleza para a irmã,

que não tinha nada além da beleza e nenhum preparo para uma vida sem conforto.

Ela ficou olhando para a escuridão, quase esperando que um dote se

materializasse ali mesmo como uma aparição miraculosa, w sacudiu a cabeça,

repreendendo-se por cair em fantasias tolas. Carlotta se fora, Ashton se fora, o jogo

acabara. E Elizabeth seria forçada a se casar com um aldeão vulgar — isso se tivesse

sorte. Nerissa refletiu sobre suas opções e concluiu que não tiraria pedaço enviar mais

uma rodada de cartas aos credores, implorando a paciência deles. Além disso, não

conseguia pensar em mais nada que fazer. Olhou uma última vez para a escuridão lá

fora, virou-se, entrou em casa e fechou a porta.

— Maurice? — gritou, e o porteiro idoso apareceu.

— Sim, madame?

— Leve uma lâmpada para o meu escritório. Eu tenho que escrever algumas

cartas. — Ela ouviu seu próprio tom duro e se arrependeu. Maurice era leal até não

poder mais, e ela não devia deixar que suas frustrações a fizessem tratá-lo mal. —

Obrigada, Maurice — disse, e Maurice sinalizou que apreciava aquela rara mostra de

intimidade com um aceno de cabeça gracioso enquanto ia se afastando pelo corredor.

Nerissa ficou parada um instante na entrada da casa, odiando a ideia de implorar

mais prazo aos credores. Convenceu-se de que não havia pressa. Não poderia começar

a escrever até que Maurice voltasse com a lâmpada, de qualquer maneira. Ela se sentia

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acossada, cercada, acuada como um animal perseguido por cães. Nerissa se perguntou

se conseguiria adiar o inevitável se ficasse parada, sem mexer um dedo.

A batida na porta foi tão suave que, num primeiro momento, Nerissa pensou ser

sua imaginação. Então ela ouviu o som outra vez, mais forte e mais insistente. Seu

coração saltou no peito e ela se forçou a manter a compostura. Não havia motivo para

suspeitar que aquilo tivesse a ver com sua fantasia infantil de um dote mágico, nem

motivo para acreditar que pudesse acabar melhor que o retorno de Ashton. Foi até a

porta ao som de novas batidas e, ignorando o protocolo, decidiu abri-la ela mesma.

O rapaz à porta não parecia capaz de fazer tanto estardalhaço, mas saudou

Nerissa com a ponta do chapéu e baixou a cabeça ao vê-la, retirando uma carta selada

da bolsa.

— Carta para madame. — Ela pegou a carta e notou o selo elaborado impresso na

cera que, junto com um pedaço de fita de seda negra, mantinha fechada a mensagem

dobrada. Ofereceu uma moeda ao rapaz, mas ele recuou, recusando: — Perdão,

madame, mas não posso aceitar. Eu já fui pago, não é?

Nerissa sorriu diante daquela demonstração de honestidade e estendeu a moeda

outra vez. O rapaz ergueu as mãos em recusa e o sorriso de Nerissa esvaneceu. — Não,

madame, por favor. Eu recebi ordens. — O rapaz evidentemente estava com medo e

recuou, mantendo os olhos na moeda como se Nerissa fosse enfiá-la à força em suas

mãos. Quem tinha enviado aquele jovem com admoestações tão sérias? Que coisa

estranha de se fazer. Ela tentou rir daquilo, mas a voz ficou presa na garganta e

nenhum som foi produzido.

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Fechando a porta atrás de si, examinou o selo. Era um brasão, mas nenhum que

ela conhecesse. Alguém de fora de Hespéria? Quem poderia ter negócios a tratar com

ela...?

Ela sentiu o medo apertar suas entranhas ao perceber que não fazia ideia de onde

Ashton estivera em todos aqueles meses, e era impossível saber de quem ele poderia

ter pedido dinheiro emprestado. Talvez houvesse outros credores, dessa vez com

nomes importantes. Credores dispostos a mandar cartas a grandes distâncias para

cobrar o que era seu.

Frustrada com sua imaginação mais que fértil, Nerissa rompeu o lacre e desatou a

fita. Abriu a carta e a leu, a princípio com apreensão, depois com curiosidade e, por

fim, com mãos trêmulas e um coração leve como não sentia em meses.

Um dote. O impossível acontecera. Um dote para Elizabeth. Nerissa abençoou

Carlotta e os anjos do Paraíso Celestial que a enviaram, e gritou o nome da irmã.

— Elizabeth! Venha cá agora mesmo!

Sua voz soou estranha, indecorosamente alta, quase perturbadora na casa quieta.

Ela leu e releu a carta, e não podia haver dúvidas. Aquele era o milagre prometido.

Apostara tudo e ganhara a única coisa com que se importava.

— Nerissa, meu amor, o que foi? — Elizabeth desceu a escada aos pulinhos,

metida naquele vestido outonal ridículo, com as folhas farfalhando e ondulando atrás

de si. Nerissa percebeu que algumas folhas se soltavam na pressa com que ela descia e

sorriu ao imaginar Elizabeth perdendo folhas como uma árvore no outono. Recompôs-

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se, de alguma forma incomodada com a ideia, e lançou à irmã preocupada um sorriso

gracioso e benevolente.

— Elizabeth, recebi uma ótima notícia. Parece que o visconde — ela deu uma

olhada na carta para se certificar do nome — Delfinus é um parente distante nosso.

Infelizmente, ele faleceu. — Tentou fazer uma expressão séria, mas não valia o esforço.

— Mas, antes de morrer, ele reservou alguns fundos para as parentas solteiras mais

jovens.

Ela fez uma pausa para que Elizabeth expressasse júbilo, mas a moça apenas a

encarou, esperando uma explicação.

— Um dote, Elizabeth. Você recebeu um dote. E bem generoso.

Elizabeth deu um gritinho e bateu palmas como uma criança feliz, pulando de

alegria. Daquela vez, Nerissa achou melhor não cercear a espontaneidade da irmã. Os

meses de economia, de arranjos humilhantes e súplicas finalmente tinham valido a

pena. Elizabeth iria se casar, e toda a sociedade de Hespéria veria Nerisa Natoli erguer

a cabeça mais uma vez.

— Um dote! Eu vou casar direitinho, com um cavalheiro! — Elizabeth fez uma

pirueta e as folhas do vestido farfalharam loucamente. Nerissa resistiu ao impulso de

ralhar com a moça — afinal, aquele era um momento de triunfo. Que ela dançasse e

saracoteasse, se quisesse.

— Maurice! — gritou Elizabeth. Nerissa fez uma careta para o volume da voz da

irmã, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, a moça havia agarrado suas mãos e

estava conversando com ela, e a alegria se estampava em seu rosto.

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— Será que ele vai ser um soldado? Dizem que o capitão Donne está procurando

uma esposa, e ele é um cavalheiro bem bonitão. Ou quem sabe um cortesão? Raymond

Haston dançou comigo quase a noite inteira no baile de Madame Whittington ano

passado, e eu acho que ele gosta de mim. E Celeste disse que vários cavalheiros de

Entsteig vão atravessar o golfo para ir ao baile de Madame Lancaster, e com certeza

haverá alguém adequado entre eles...

Nerissa concordou vagamente em resposta à conversa da irmã. Logo haveria

tempo para escolher um marido, e ela sorriu por sobre o ombro de Elizabeth para

Maurice, que foi apressado na direção delas segurando a lâmpada, com uma expressão

preocupada.

— Ah, eu preciso contar ao Maurice! Eu tenho que... Maurice! — Elizabeth se

afastou de Nerissa com tanto ímpeto que quase colidiu com o velho criado, que

estendeu o braço para sustê-la. A moça foi afastar-se cambaleante, prendeu o pé na

barra do vestido e segurou o braço de Maurice. Nisso, ela o desequilibrou e ele

derrubou a lâmpada no chão de pedra. O azeite em chamas espalhou-se entre os dois.

Nerissa gritou e depois se conteve. Elizabeth e Maurice afastaram-se da poça em

chamas com cuidado e olharam para ela como crianças assustadas. Ela tentou pensar,

mas, por um longo instante, as chamas a hipnotizaram. Então disse a Maurice: — Uma

vassoura. Pegue uma vassoura para bater no fogo. — O velho se afastou e Nerissa

olhou em volta para ver se havia algo inflamável perto do azeite em chamas. Voltou o

olhar para Elizabeth, que tremia de medo e agitação, e se forçou a sorrir. — Está tudo

bem, Elizabeth. Tudo vai ficar...

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Ela se interrompeu. Seus olhos seguiram a trilha de fumaça até a barra da fantasia

de Elizabeth. Uma das folhas de pergaminho estava fumegando e, enquanto observava,

irrompeu em uma chamazinha brilhante. O fogo pulou para outras folhas de

pergaminho e, antes que Nerissa pudesse sair do transe, mais um punhado ardia.

Dessa vez, ela gritou de verdade e se aproximou às pressas da poça em chamas, e

Elizabeth baixou o rosto e viu a labareda com os próprios olhos. Antes que Nerissa

pudesse alcançá-la, a moça uivou de puro pavor e afastou-se correndo do azeite em

chamas, abanando as labaredas que já tomavam metade do vestido. Nerissa correu

atrás dela, mas Elizabeth estava em pânico, correndo pelo salão na frente da irmã,

gritando feito louca. Nerissa finalmente a alcançou e a segurou, sentindo o calor forte

contra o rosto. Elizabeth se sacudia com violência tentando se soltar. Nerissa batia no

fogo com as mãos, mas as labaredas só ficavam mais fortes, envolvendo-a com faíscas.

Elizabeth gritou de dor quando as chamas começaram a devorar seus cabelos e se

afastou com um repelão de Nerissa, que agarrou o vestido com toda a força. As

costuras velhas se soltaram e o vestido se soltou de Elizabeth, que desabou no chão.

Nerissa correu até ela, tentando abafar o fogo que queimava os cabelos da irmã,

enojada com o cheiro de carne queimada.

Nerissa imediatamente mandou Maurice buscar os curadores e, para sua eterna

gratidão, eles chegaram rápido. Trabalharam por horas e salvaram a vida de Elizabeth,

mas não sua beleza. O rosto dela ficou marcado por bolhas vermelhas que iriam virar

cicatrizes, segundo os curadores. Os cabelos tinham sido totalmente destruídos e a

calva estava recoberta de chagas abertas e carne calcinada. Um olho fora arruinado e

parte da testa se afundara de forma grotesca sobre a órbita vazia. O que restara de

seus lábios retorcera-se em um ricto angustiado de zombaria.

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Nerissa ficou ao lado da irmã até o alvorecer, quando as pomadas e remédios

finalmente permitiram que Elizabeth adormecesse levemente. Aí ela pensou em seu

erro. Subestimara a velha, óbvio, mas, mais que isso, Carlotta desfizera tudo o que

Nerissa tentara conquistar. Nerissa percebeu que o dote era tanto para ela quanto

para Elizabeth, e rilhou os dentes, frustrada. Se fosse só com ela, jamais veria a

horrenda senhora outra vez. Aceitaria a pobreza das classes baixas e ficaria lambendo

as feridas, mas não conseguia suportar o que tinha acontecido com Elizabeth. Carlotta

usara os desejos de Nerissa contra ela mesma, e Elizabeth sofrera terrivelmente por

isso. E sofreria pelo resto da sua vida horrenda, a não ser que Nerissa pudesse

desfazer o que acontecera.

Apostara duas vezes pela fortuna que desejava tão desesperadamente, e duas

vezes algo horrível acontecera com alguém próximo a ela. A velha bruxa não a

enganaria uma terceira vez. Uma certeza fria e amarga se apossou dela, e Nerissa

compreendeu o que tinha que fazer. Naquela noite, Nerissa estaria pronta. Naquela

noite, aumentaria a aposta. Porém, naquela noite, ganhar ou perder não faria

diferença.

Maurice espiava a rua pelas pesadas cortinas do aposento como um falcão idoso.

Ele se culpava pelo que tinha acontecido a Elizabeth, e, embora Nerissa tivesse feito o

possível para tranquilizá-lo, ela não podia contar a verdade sobre o horrível acidente.

Assim, ele assumiu o novo posto como um soldado em campo e ficou observando a

rua, aguardando a carruagem que os dois esperavam. Se estranhou que Nerissa

recebesse visitas e jogasse logo depois de duas tragédias, não disse nada.

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Nerissa se conteve para não encher outra taça de vinho e refletiu mais uma vez

sobre a chegada iminente de Carlotta. Ocorrera-lhe que não era obrigada a jogar outra

partida com a velha criatura. Poderia mandá-la voltar da porta mesmo. Mas claro que

não seria necessário: sabia que Carlotta só iria aparecer se Nerissa assim o desejasse.

E sabia que Carlotta viria com certeza se ela assim o desejasse.

Ela ouviu um relógio distante dar a hora na cidade e estremeceu. Perguntou-se de

que cemitério decrépito a velha teria saído, e lhe ocorreu que o que havia acontecido

quando ela ganhou nas cartas iria parecer pouco comparado ao que aconteceria se

perdesse. Lembrou-se de lendas contadas aos sussurros sobre corações sangrentos

arrancados ainda batendo dos peitos das vítimas, mas afastou as imagens sinistras.

Carlotta logo chegaria e Nerissa precisava estar alerta. A velha era como um demônio

que podia ser evocado à simples menção do seu nome. Nerissa articulou em silêncio as

sílabas, imaginando que evocava algum espírito vil e horrendo de um fosso infecto.

— Madame — gemeu Maurice —, lá está ela.

O sorriso de Nerissa congelou-se em uma carranca de determinação amarga. —

Muito bem, Maurice. Mande ela entrar. — Ela reclinou-se na cadeira e contemplou as

cartas outra vez. Elas lhe trouxeram a vitória duas vezes e, ainda assim, perdera mais a

cada partida. Mas aquela noite seria diferente, pensou ela, e encheu uma taça de vinho.

Aquela noite, se tudo saísse conforme o plano, pouco importaria o fato de que aquela

era praticamente a última garrafa na casa. Era o que Nerissa imaginava enquanto

bebericava o líquido picante. Claro que, ao lidar com aquela... bruxa, demônio, sabe-se

lá, não havia garantia de que as coisas iriam sair como planejado. Mas estava decidida.

Tinha se comprometido àquilo, e agora era a hora ir até o fim. Deixar Maurice perto

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das cortinas fora a primeira jogada da sua nova estratégia. Não seria pega de surpresa

naquela noite.

No entanto, em vez das batidas na porta, Nerissa ouviu as batidas em staccato da

temível bengala de ébano no chão de mármore. Maurice não poderia ter descido tão

depressa para abrir a porta e, na verdade, ela não ouvira a grande porta de carvalho se

abrir. Mas Carlotta estava em sua casa, já subia a escada, aproximava-se a cada batida

da bengala nos degraus.

Nerissa ouviu o barulho subir a escadaria e depois se aproximar do aposento, com

Maurice correndo logo atrás. Carlotta entrou mais ou menos de supetão, e Maurice a

anunciou, já sem necessidade: — Madame Carlotta.

Propositalmente, Nerissa não se levantou para cumprimentar a visita. Apenas

afundou-se mais na cadeira. Percebeu que Carlotta estava tão ávida pelo jogo quanto

ela e decidiu deixar que a velha corresse um pouco atrás.

Carlotta não passou recibo da afronta, mas Nerissa conhecia bem os protocolos

sociais e não se deixou enganar. A velha sentou-se com um grunhido, as mãos

apertando a bengala. Nerissa finalmente ergueu os olhos das cartas e deu um

sorrisinho artificial.

— Vinho?

Carlotta sorriu de volta, mal mostrando os dentes. — Obrigada. Não.

As mulheres ficaram se encarando, e Nerissa avaliou Carlotta, que já não era a

viuvinha frágil de bochechas rosadas do primeiro encontro. Suas bochechas tinham

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afundado, os lábios estavam rachados, os dentes... pareciam mais afiados. Um quê de

fome desesperada rebrilhava em seus olhos, e Nerissa pensou que as últimas noites

deviam ter sido difíceis para a anciã. Ela se esforçara para levar um sofrimento

horrível à casa de Nerissa e não ganhara nada em troca. Nerissa tomou outro gole de

vinho, permitindo que o silêncio pairasse no ar. Sua mãe tinha lhe ensinado que é um

erro grosseiro deixar o adversário perceber que se deseja muito algo — "Uma

necessidade é uma fraqueza", era o que ela dizia. No entanto, pelo modo como as mãos

ressequidas de Carlotta apertavam inquietas o castão da bengala, Nerissa via que

aquela criatura sentia a urgência do jogo daquela noite. Certo. Aquela seria a alavanca

com que Nerissa a manipularia.

Nerissa pegou a caixa de joias recoberta de veludo e a abriu, segurando-a para que

Carlotta inspecionasse o conteúdo. — Nós apostamos palavras e promessas, mas esses

itens são feitos de diamantes e ouro. Tem certeza de que não quer jogar por... uma

aposta mais substancial?

Algo parecido com pânico adejou pelos olhos de Carlotta, que apertou os lábios

antes de sorrir obsequiosamente. — Não, minha cara. Isso, não. Se eu vou conceder

seu desejo mais íntimo, você tem que me oferecer seu bem mais valioso. — Sua língua

passeou pelos lábios com destreza de réptil, e Nerissa a imaginou bífida, sibilante. Ela

assentiu em silêncio.

Carlotta abriu um sorriso genuíno e profundamente malicioso. — E o que

apostaremos hoje? O que é que você mais deseja esta noite?

Nerissa sorriu calmamente, mas seu coração bateu com força no peito. Não tinha

dúvidas de que Carlotta iria exigi-lo se Nerissa perdesse. Escolheu as palavras com

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cuidado mas as disfarçou com um tom casual. — Eu só quero ver Elizabeth feliz e bela

novamente.

Carlotta inspirou fundo para responder, mas Nerissa a interrompeu com o dedo

levantado.

— Mas eu só jogo hoje com a condição de que Elizabeth possa ter sua beleza e sua

felicidade de volta já durante nossa partida até eu virar minha última carta.

Carlotta a encarou, confusa. — Você quer o prêmio antes de vencer? Absurdo.

— Se você pode conceder o prêmio, pode muito bem tomá-lo se eu perder. —

Nerissa sorriu com doçura. — Só peço que Elizabeth ganhe um instante de beleza e

felicidade. A não ser que você queira apostar algo de menor valor, claro... — Fez um

gesto vago em direção à caixa de joias aberta, e Carlotta sacudiu a cabeça; sua

expressão era uma mescla de raiva e ansiedade.

— Não. Claro que não quero. Mas você está pedindo demais. Não pode ganhar o

prêmio antes de vencer.

Nerissa se sentia andando na corda bamba, sopesando a obstinação de Carlotta

em fazer as coisas do seu jeito em contraste com a avidez evidente da criatura vil. Ela

sorriu com calma estudada e mediu a incerteza nos olhos de Carlotta, o tremor

nervoso de seus dedos, a inclinação de seus ombros. Ela era a própria imagem da

necessidade, embora tentasse disfarçar.

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Nerissa encarou Carlotta por um bom tempo, deu de ombros como se aceitasse a

derrota e indicou a caixa de joias. Inclinou a cabeça de lado, insolente, desafiando

Carlotta a aceitar as joias e berloques.

Carlotta fervia de irritação, mostrando os dentes.

— Que seja. — Ela bateu palmas e Nerissa não pôde evitar um arquejo. Por um

instante, as luzes piscaram e, nas sombras, os olhos de Carlotta brilharam feito brasas.

A velha sorriu, triunfante como um predador, e Nerissa lutou para recobrar a

compostura. Carlotta parecia ainda mais ressequida e encarquilhada do que parecera

fazia pouco. Mas jamais parecera tão letal.

Imediatamente, o barulho de pés descalços quase correndo ressoou no corredor.

Carlotta encarou o olhar de Nerissa; a sombra de um sorrisinho satisfeito adejava no

canto de sua boca. Nerissa sorriu com doçura, como se olhasse para um convidado

favorito em um jantar. Seu estômago deu um nó doloroso, mas o rosto irradiava cálida

boa vontade.

A porta se abriu e nenhuma delas se moveu. Elizabeth correu para o lado de

Nerissa só de camisola. As mechas douradas caíam sobre os ombros e os traços

delicados estavam mais radiantes e belos do que nunca.

— Ah, Nerissa, eu tive um sonho tão estranho. Era... era... ah, puxa! — Ela deu uma

risadinha, levando os dedos à boca. — Eu esqueci o que era.

Nerissa finalmente olhou para ela, levantando a cabeça com precisão casual. —

Que interessante, coração. Mas infelizmente eu tenho que dar atenção à visita.

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Elizabeth pareceu perceber Carlotta e recuou levemente. — Ah, desculpe

interromper. O que foi que me deu? — Ela estava confusa, aterrorizada pela horrível

velha, mas fascinada demais para se afastar. — Eu... devo me retirar?

A velha olhou para Elizabeth, que recuou para as costas da cadeira de Nerissa. —

Deve, sim, Elizabeth — crocitou Carlotta, e seus dedos apertaram o castão da bengala

de ébano. — Despeça-se da sua irmã.

Os olhos de Nerissa se apertaram e Carlotta sorriu com crueldade visível. Toda a

fachada de civilidade se fora. Nerissa manteve o olhar fixo na velha por mais um

instante, depois lançou um sorriso genuíno e carinhoso para a irmã desconcertada. —

Adeus, Elizabeth — sussurrou, e Elizabeth afastou-se de forma involuntária.

— Adeus — respondeu Elizabeth, insegura, e quase saiu correndo da sala.

— Agora. — Carlotta cortou o baralho. Nerissa hesitou e pegou uma carta. Quando

as seis cartas estavam sobre a mesa, ela sentiu a dúvida perpassar seu peito outra vez.

Fez um esforço para ignorá-la, determinada a ir até o fim. Revelou a carta da direita e

reprimiu a animação ao ver o bispo de estrelas. Carlotta fez um barulho de repreensão

e virou o cinco de serpentes. Ela olhou para Nerissa com avidez nos olhos, e esta teve

que se conter para não recuar.

Ela esticou o braço e abriu a carta da esquerda. Carlotta deu uma risada rude. O

dois de leões não iria ajudar muito. Nerissa deu uma olhadela na caixa de joias

enquanto a mão de Carlotta pairava sobre as cartas remanescentes. Então a velha

escolheu uma.

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Carlotta crocitou de júbilo ao abrir o arcanjo de estrelas. Deu uma risadinha e

começou a sacudir-se lentamente para cima e para baixo na carteira. A cabeça de

Nerissa girava. A carta mais alta do baralho. Ela olhou para sua última carta, sabendo

que não importava mais. E no entanto...

— Vamos logo, minha cara. — Carlotta nem se deu ao trabalho de disfarçar a

alegria malévola. — Vire. Vamos acabar logo com isso, está bem? — Seu sorriso era

pura destruição, e Nerissa se perguntou como aquela bruxa tomava o coração das

vítimas. Será que o sugava pela boca? Abria o peito das vítimas com as garras? Ou

mastigava costelas adentro feito uma ratazana enorme?

Ela sacudiu a cabeça para afastar aqueles horrores e sorriu para Carlotta. — Claro,

não é tarde demais para considerar um empate. Ou para mudar a aposta... — Apanhou

a caixa de joias outra vez e passou o dedo na safira engastada no pente, depois tocou

as joias do cabo da adaga.

— Não — retorquiu a velha, inclinando-se na cadeira. — Você aceitou. Você

perdeu. Agora vire a carta e vamos terminar o jogo.

— Sim — respondeu Nerissa. Sua voz era puro aço. — Vamos terminar o jogo. —

E, com um movimento rápido, tirou a adaga da bainha. Carlotta gritou e tentou aparar

o golpe com a bengala, que soltou um fogo fora do normal pelo castão, mas Nerissa

virou a lâmina e a enterrou no próprio peito. Sangue espirrou aos borbotões,

salpicando as cartas, e Carlotta se encolheu, grunhindo de fúria animal. O sangue

arterial de cor viva caía na mesa com força decrescente, até que os olhos de Nerissa se

reviraram nas órbitas e ela caiu na cadeira. O sangue escorria suavemente agora,

encharcando com vagar o corpete bordado.

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Carlotta ficou imóvel na cadeira por um bom tempo. Sua respiração vinha em

arquejos curtos. A língua bífida lambia lábios escamosos. Seu olhar passou do cadáver

que esfriava para o jogo por terminar na mesa.

De algum lugar na casa, ela ouviu os passos abafados de Elizabeth e percebeu, com

desgosto crescente, que o feitiço que lançara na jovem duraria até o fim do jogo. A

megera sibilou e estendeu a mão para virar a última carta de Nerissa, mas se deteve.

Seria inútil. Os termos do jogo estavam definidos e não podiam ser quebrados.

"Até eu virar a última carta", dissera Nerissa.

Com grande esforço, Carlotta se ergueu, apoiando-se pesadamente na bengala.

— Bom jogo, querida. Bom mesmo.

Ela deu as costas às cartas ensopadas de sangue e, com passos lentos e dolorosos,

saiu claudicando do aposento.