BOOK - MORCEAU DE BRAVOURE - NOV 2015

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MORCEAU DE BRAVOURE CÃO SOLTEIRO CADERNO TEXTO #5 COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO

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Cão Solteiro criação e direção com a colaboração de André Godinho ∙ Rui Lopes Graça coreografia ∙ Mariana Sá Nogueira figurinos ∙ Vasco Araújo cenografia ∙ Daniel Worm d’Assumpção desenho de luz ∙ Sónia Baptista escrita de texto ∙ Nuno Fonseca sonoplastia ∙ Francisco Ferreira adaptação musical ∙ Joana Dilão fotografia de cena (Cão Solteiro) Artistas da Companhia Nacional de Bailado e os atores Cecília Henriques, Patrícia Silva e Paulo Lages interpretação CNB / Cão Solteiro produção Mais informações: www.cnb.pt

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MORCEAUDE BRAVOURE

CÃO SOLTEIRO CADERNO TEXTO #5

COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO

MORCEAUDE BRAVOURE

Trecho, ária, cena de bravura, passagem de uma obra cujo estilo é particularmente brilhante e que permite a um intérprete mostrar o seu virtuosismo.

¯¯¯ Dicionário Larousse

Em 2006, Alexander McQueen projecta um holograma numa passagem de modelos. Ao fim de alguns segundos o

público apercebe-se de que a identidade da figura fantasmagórica é Kate Moss e aplaude, quase ininterruptamente,

até esta se desvanecer. Os aplausos transformam, como se lê na epígrafe, cada pessoa da plateia num colectivo,

para que este possa, num gesto, manifestar o seu apreço pelo virtuosismo da performance. Ao projectar a sua roupa

numa Kate Moss ausente, McQueen brinca com a ideia de alusão na passerelle da modelo de identidade reconhecível,

transformando as expectativas da audiência, que bate palmas ao talento do que (a roupa) e de quem (a modelo) não

se encontra fisicamente presente. A noção de talento individual opõe-se ao colectivo indiferenciado que bate palmas

e é sublinhado pelo aplauso do público. O mesmo sucede, como se sabe, no teatro e na dança e os momentos de

virtuosismo, a que correspondem as tiradas, no teatro, e o morceau de bravoure, no ballet clássico, são agraciados com

o aplauso de quem na invisibilidade observa a cena.

É esta relação que o Teatro Cão Solteiro problematiza há tantos anos, ao recusar ou repensar o momento do espectáculo

em que os aplausos têm lugar. Quando os espectáculos desta companhia terminam, os espectadores sabem que o acto

de bater palmas não é recíproco e que a presença dos membros da companhia em palco não terá lugar. Em causa,

encontra-se a recusa do virtuosismo anteriormente mencionado, bem como de uma noção de teatro que privilegia

a ideia de que os actores são pessoas que se destacam por saberem fazer bem habilidades em cena, i.e. que se

transformam noutras pessoas, que têm boa voz e que fazem um uso do corpo que, de algum modo, os modifica. Esta

companhia opõe a ideia de truque ou de habilidade individual que promove as palmas do colectivo à noção de que um

espectáculo se caracteriza pela tentativa de produzir um discurso sobre um tema. A cena transforma-se num local de

questionamento sobre um certo tópico, no sítio onde as pessoas que estão em palco têm de pensar ou de resolver um

conjunto de situações. Percebe-se assim que o acto de reflectir em conjunto não precise, necessariamente, de um

aplauso final.

QUE EXISTE NUM NOME?,SOBRE MORCEAU DE BRAVOURE

¯¯¯ Maria Sequeira Mendes

Applause is a collective gesture. Try to applaud as an individual; it might feel rather as if you quote applause, and you will not be able to sustain it for a very long time. Applause functions in a collective, and it produces collectives1.

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Pense-se ainda no seguinte, se o aplauso decorre – num teatro caracterizado pela construção de personagens – do

apreço pelo virtuosismo do actor, não faz muito sentido que, num teatro que recusa a personagem, se venha agradecer no

final. No fundo, se não se constrói uma ficção, não existe propriamente uma ficção para desfazer. Aqui, o teatro encontra

o seu contraponto no modo como o ballet clássico resolve este dilema, fazendo com que os bailarinos venham agradecer

em personagem. Assim, o bailarino que dança o papel do cisne agradece em cisne, numa ficção que, de tão construída,

não é preciso destruir. Deste ponto de vista, os agradecimentos no ballet têm uma natureza que é, em si, coreográfica.

É talvez necessário mencionar que a recusa de um virtuosismo de determinado tipo em cena encontra correspondência

na objecção a uma ideia de nome individual. Para todos os efeitos, este é um colectivo composto por várias identidades,

que resiste à noção de que deve existir uma estrutura hierárquica, encabeçada pelo encenador, cujo nome representa a

companhia. À pergunta “que existe num nome?” responde-se com uma ideia de colectivo, do grupo de cabeças que em

conjunto reflecte sobre cada espectáculo antes, durante e muito tempo depois de este ser apresentado ao colectivo de

cabeças que o recebe. Colectivo, proveniente do latim collectivus, deriva de collectio, collectionis (reunião, colecção),

e nomeia a acção do verbo colligere (recolher, agrupar), composto por con- (conjuntamente) e legere (eleger, ler). É o

conjunto que, assim, elege ou agrupa o conteúdo do espectáculo, ponderando sobre a leitura que ambiciona dar a ver

ao outro colectivo a que se chama público.

A diferença entre colectivos não é, todavia, de menosprezar, no sentido em que, apesar de as diferenças de opinião na

elaboração de um espectáculo fazerem surgir a necessidade de compromisso, se pode geralmente afirmar que existe algum

tipo de concordância no que diz respeito ao objecto que se tem em mãos. No caso do público, temos uma entidade que se

pode ou não unir através do aplauso e que leva para casa uma ideia do espectáculo que é a sua e, logo, individualizada.

Ao mesmo tempo, acções como vaiar, levantar-se da cadeira em apreço, decidir ou não aplaudir, são decisões individuais

que podem ou não encontrar eco nos restantes espectadores. Como Bettina Brandl-Risi afirma: “existem mais ocasiões

para aplauso do que os agradecimentos; o aplauso provocado por um momento de extraordinária beleza ou dificuldade,

depois da tão aguardada ária na ópera, ou durante os 32 fouettés da bailarina no final do pas de deux”2. Em teatro, a tirada

Shakespeareana do grande actor – esse que tem em si o conhecimento de todas as passagens do Bardo, sendo capaz de

representar todas as suas personagens – imortaliza o momento do grande agradecimento do actor ao seu público.

Neste espectáculo, que por vezes lembra o Anjo Exterminador de Buñuel, os agradecimentos de natureza coreográfica

representam de início a felicidade daqueles que se encontram em cena pelo reconhecimento com que o público os agracia.

Contudo, pode igualmente considerar-se que os agradecimentos encenam – mesmo quando um espectáculo corre bem –

um tipo de felicidade que não é real, a de pessoas com os seus problemas em casa, que sorriem todas as noites do mesmo

modo para o seu público (ou a de pessoas felizes em casa que sofrem todas as noites perante uma plateia ou até mesmo a

mistura destes dois aspectos). A oposição entre colectivo e individual também é sublinhada pela coreografia de aplausos,

que hierarquiza e distingue, de um conjunto, aqueles cujo brilhantismo supostamente separa dos demais. Assim, se é

verdade que todos vêm agradecer, fazem-no dentro de uma ordem pré-estabelecida que destaca uns em detrimento de

outros. E os outros, os que são relegados para um segundo plano, noite após noite, os que não recebem flores e cujo papel

em cena tantas vezes é apenas o de acentuar o virtuosismo da minoria, sorriem, felizes, ao receber o aplauso.

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Os espectadores de Morceau de Bravoure podem, assim, reflectir sobre o papel que é dado a estes três tipos de

colecções. Temos, em primeiro lugar, a do conjunto de pessoas que pensou sobre o espectáculo, para com ele

dizer algo, entre tantas outras coisas, sobre aquilo que opõe grupos a indivíduos, sobre a oposição entre discurso e

virtuosismo (e a valorização indevida que é tantas vezes dada ao segundo por oposição ao primeiro), sobre o que nos

acontece quando somos colocados num sítio de onde não conseguimos sair, por muito que queiramos. Em segundo

lugar, o das pessoas que se encontram em cena e que, apesar de parecerem um conjunto – e de o serem nalguns

momentos de agradecimento –, foram hierarquizadas por terceiros. Estas são as pessoas a quem foi dado um papel, ou

uma tarefa, ou um lugar, ao qual procuram corresponder, enquanto sorriem, mesmo quando não lhes apetece. Por fim,

o público, ensurdecido pelos aplausos constantes, que se sente confrangido ao observar este conjunto de pessoas que

não sabe mais que fazer para se poder ir embora, e a quem é roubado o papel que tradicionalmente é seu por direito.

Nesta união do teatro e da dança sobressaem as tiradas e os momentos de morceau de bravoure, mas é no desfazer

progressivo da hierarquização da coreografia de agradecimentos que se encontra o espectáculo propriamente dito. Ao

teatro, é retirada a primazia do texto, sendo esta substituída pela variação de um conjunto de acções. Os bailarinos,

por sua vez, são colocados numa situação a que se poderia chamar teatral e perante a qual têm de reagir. Do individual

sobressai a ideia de colectivo, tal como aconteceu este ano, em Abril, quando o holograma de Kate Moss serviu de

inspiração a um conjunto de manifestantes em Madrid. Numa crítica à Ley Mordaza, que proíbe, entre tantas outras

coisas, a presença de manifestações perante o Congresso, milhares de cidadãos foram projectados em holograma,

fazendo frente, em conjunto, ao poder político. O morceau de bravoure de McQueen cedeu assim lugar a uma

coreografia de cariz talvez fantasmagórico, na qual os manifestantes, num colectivo semelhante ao da imagem que

inicia este espectáculo, problematizam uma ideia de liberdade que o virtuosismo técnico tantas vezes contraria.

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1 Bettina Brandl-Risi, “Getting Together and Falling Apart, Applauding

Audiences” (2011), Performance Research – A Journal of the Perfor-

ming Arts, 16:3, p. 12.

2 Ibidem.

NOTAS

O espectáculo acabou. Que comece o espectáculo.

O que há, então, diante do espectáculo? Ou o que está aí, já no espectáculo? Diz-nos uma dialéctica interna à noção

de teatro que se trata de um lugar onde se encontram, frente a frente, aqueles que são vistos e os que vêem, os

corpos que se fazem visíveis pela sua situação espacialmente delimitada – e que assim habitam o espectáculo – e

os corpos que o constituem com os seus olhos e a sua posição, os espectadores. Quis uma histórica evolução da

cultura ocidental que estes corpos, em princípio, soberanos, se atrofiassem durante o espectáculo, concentrando o

seu poder constituinte num olhar silencioso, apenas libertando os músculos dos seus membros em breves momentos

convencionados ou de difícil contenção. Os olhos desses manequins tecidos de sangue, carne e fibras nervosas têm, no

entanto, a força para projectar os seus corpos suspensos naqueles outros que se agitam, contorcem, riem e choram na

cena, acompanhando, com variáveis níveis de atenção e juízo, os gestos das suas figuras e o ritmo das suas revoluções

cardíacas. O que significa também que os espectadores podem sublimar a sua convencionada e voluntária passividade

através desse regime da visão espectacular, que submete os actores – os corpos que supostamente agem, segundo

as regras do jogo teatral – ou os performers – os corpos que fazem e cumprem – ao seu olhar crítico e que permite a

esses juízes instantâneos recompensar – mas em que medida é isso uma recompensa e porque se acham no direito

ou no dever de a prestar? – recompensar, dizia, o esforço daqueles corpos exauridos, com um pequeno mas ruidoso

investimento corporal que – mais uma vez – a convenção determinou poder ser executado com o batimento repetido

dos dedos ou das palmas de uma das mãos na palma da outra, eventualmente acompanhado por episódicos silvos e

empolgados brados. Tais manifestações de simpatia revelam tanto de encorajamento como são reveladoras de uma

histeria contida – “Eu também estou aqui!” Porque os espectadores são sujeitos anónimos, reunidos num mesmo

lugar, por um determinado, efémero, período de tempo, mas que não se diluem uns nos outros – salvo para os que

pisam de maneira inquieta os estrados do palco, aos olhos de quem esses sujeitos se aglutinam num horizonte amorfo

e provisoriamente intangível. Os móbiles de uns e de outros serão talvez diferentes, porém, não custa admitir que

todos ali estão para presenciar, para estarem presentes – embora suspensos numa espécie de ausência sublinhada

pelo seu silêncio e imobilidade –; para assistir, colocando-se junto de outros a ver outros que ali também estão, sem,

no entanto, quererem confundir-se com eles; para participar numa espécie de jogo comunitário, estando ao mesmo

tempo separados e sós na sua condição, tal como, afinal, aqueles corpos gloriosos mas isolados que orbitam e parecem

desviar-se entre si, desenhando figuras sobre o linóleo.

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THE SOUND THAT SAYS LOVE

¯¯¯ Nuno Fonseca

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Em Morceau de Bravoure, os espectadores são especialmente confrontados com a sua condição na dinâmica

teatral. Desde logo, porque a sua presença é durante todo o espectáculo convocada pelos olhares e pelos gestos

de gratidão dos actores e dos bailarinos, que denunciam a dialéctica convencional espectáculo/espectadores, numa

linguagem, apesar de tudo, familiar aos códigos que a constituem. Essa linguagem é, não obstante, parodiada através

de um dispositivo cénico que desterritorializa acusticamente os espectadores, colocando-os num tipo de situação

ventriloquista onde se fazem ouvir, a levitar sobre os seus corpos, os espectros acusmáticos das suas pressupostas

manifestações de entusiasmo, e que executa simultaneamente um gesto performativo através do qual como que se

lhe enviam didascálias ou “cue cards” – “cue sounds” – à espera do seu efeito perlocucionário. O espectador é, então,

convidado a assumir o seu próprio papel, com a consciência redobrada de que é um espectador num espectáculo feito

à sua medida, a de um suserano aparentemente insaciável a quem se paga indefinidamente o tributo devido com

façanhas e proezas. Mas o espectáculo em que ele é convidado a participar é um espectáculo depois do espectáculo,

diante dele, à beira do proscénio, no limiar entre a ribalta e a vida.

Subvertendo, num certo sentido, os fluxos de desejo que circulam entre os que tornam visível o espectáculo e os que

o vêem, curto-circuitando mensagens audíveis de amor entre a cena e a plateia, esta peça poderia, num delírio de

inspiração duchampiana, ter-se chamado Le spectateur mis à nu par son célibataire, même.

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É conhecida a história narrada por Plínio1 acerca da filha do ceramista Butades: antes do amante partir para a guerra,

ela pede-lhe que se coloque junto a uma parede branca e, fazendo uso de um foco de luz, desenha a sua silhueta para,

através da sombra agora aprisionada, conservar a memória do amado. Esta história é muitas vezes contada como mito

fundador da Pintura (e há quem a reclame como igualmente fundadora da Cenografia: skene e skia, cena e sombra2) e

diz-nos, entre outras coisas, que a Pintura nasce deste desejo amoroso de conservar a memória de algo ou de alguém.

“A pintura é um cofre onde se deposita o visível”3 ou, generalizando, a imagem é um lugar onde se guarda, conserva e

se cria o mundo: é uma forma (ou a forma) de nos relacionarmos com o mundo e é uma forma (ou a forma) de criarmos

o nosso mundo4. Talvez por isso tenhamos tantas imagens guardadas, tantas memórias que são imagens: de alguma

forma, optamos por ir fazendo stills a cada momento e arquivando estes instantes mais ou menos estáticos.

Quando assistimos a um espectáculo, o processo é semelhante: daquele todo, seleccionamos momentos, frases, sons,

imagens. Aqui, a utilização do termo still adquire mais sentido pois remete para os frames que publicitam determinados

filmes e que, muitas vezes, coincidem com a memória que temos dessas películas. As imagens que guardamos de um

espectáculo são, passado um certo tempo, o espectáculo para nós: são os instantes que nos marcaram porque neles

investimos maior afecto, porque neles nos reconhecemos ou projectámos e, agora, totalmente nossas, essas imagens

seguem o seu caminho, são da nossa história.

Como imagem, como sucessão de várias imagens, a cena submete-se aos princípios da composição e, na criação –

na criação dos corpos ou figuras dos espectáculos do Cão Solteiro –, a relação com as imagens e o cruzamento da

linguagem da Pintura com as particularidades da cena é determinante. Aquilo que sempre foi intuitivo para os artistas

e que foi dissecado no modernismo é a matéria que organiza a criação destas figuras que começam por ser, nada mais,

que blocos de cor, texturas, planos, rectas e curvas que compõem uma partitura visual. O processo de trabalho que

dá origem a este(s) guarda-roupa(s) é, aliás, sintomático: tudo começa por uma imagem que origina uma pesquisa de

imagens (de artistas, de situações); depois, as imagens dos actores e bailarinos são conjugadas com uma panóplia

de outras imagens de peças de roupa, de cores, de diferentes corpos. E, daí, surgem os desenhos, os projectos - até

que, novamente, os rectângulos de amostras de tecidos voltam a criar novidades na composição destas páginas que,

em conjunto, são pequenos cofres onde fica guardado o que se pensou, o que não se chegou a saber que se pensou

mas se intuiu, o que se gostaria de ter feito, o que depois se fez e todas as outras coisas que andam constante e

silenciosamente na cabeça das pessoas e que, no caso dos artistas, são as coisas de que sempre nos falam.

AQUILO QUE AS IMAGENS DIZEM

¯¯¯ Marta Cordeiro

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Em Morceau de Bravoure entram 3 figuras de preto e 3 de vermelho, mais 5 de azul, 1 branca, 1 roxa e 1 amarela, mais

uma ou outra cambiante menos afirmativa e um fato às riscas. Entram figurinos clássicos ou tradicionais e outros que

são pura geometria e, finalmente, outros com muito tecido, manchas de tecido. Elementos de uma composição.

Assim descrita, como estrutura, esta composição reclama aquilo que ficou conhecido na História como a “pureza

modernista” – mas, claro, é uma composição discursiva (aqui, o discurso como condição reintroduzida na arte

contemporânea5) que deve comunicar algo de determinado ao espectador. Este “determinado” prende-se com a

possibilidade de instalar o espectador num dado contexto ou situação que, no caso de Morceau de Bravoure, é a do

espectador se sentir em permanente desequilíbrio entre a reacção a códigos conhecidos e a ausência de regras, entre

o familiar e o estranho. O “grande actor”, a “solista” ou as bailarinas de tutu, vestidos com aquilo que temos como

sendo o figurino tradicional (a época, a caracterização dos personagens) asseguram ao espectador que está, de facto,

num teatro, a assistir a um espectáculo e a reconhecer a acção. Mas, em simultâneo, essas figuras perdem o poder de

reconciliar o espectador com a cena quando convivem com todas as outras figuras sem tempo, sem legenda possível

que rebatem, ponto por ponto, a função ilustrativa muitas vezes associada ao guarda-roupa e – ironia – atacam o

próprio “figurino” quando, por exemplo, um casaco com demasiado tecido impede os movimentos do bailarino.

Morceau de Bravoure é feito destes binómios: familiar e estranho; estereótipo e desconstrução do estereótipo,

harmonia e quebra. Esta dualidade encontra-se na composição (o fato às riscas que só deseja quebrar a harmonia) e na

sobreposição de signos da tradição clássica, da cultura urbana ou da cultura popular, arriscando novas relações entre

estes elementos quando mostra, por exemplo, que a distância entre o figurino de um bailarino russo e a roupa de um

bailarino de street dance está na mudança de uns ténis…

Nestes achados (uns ténis: mínimo investimento, máximo efeito) encontra-se a mestria – um outro tipo de mestria

– que determina a particularidade do trabalho para a cena: domínio da linguagem visual e domínio de uma série de

saberes quase oficinais que apenas se adquirem com a experiência: a forma como os tecidos e a luz reagem fabricando

qualidades tácteis; a relação entre o actor e o figurino na determinação de um corpo em cena, o domínio do espaço

alargado que é o campo visual do espectador. Isto tudo constitui um enorme ringue de forças, a que se junta aquilo que

se pretende que seja o sentido do espectáculo e mais aqueles pensamentos que não abandonam a cabeça do artista.

Voltemos às cores.

Em conversa, foi explicada a utilização de determinadas cores em maior ou menor quantidade através de relações

formais: o vermelho que é uma cor incontrolável, a necessidade de reservar o preto para determinados momentos de

maior dramatismo, o amarelo e o roxo?, bem, são cores que, dita a tradição, não se usam em palco…por isso sobra o

azul, há mais azul.

Quando Hans Belting6 fala da relação entre espectadores e imagens utiliza as expressões «a parte delas» e «a nossa

parte» para sinalizar uma distância entre estas duas partes e, uma outra, entre as imagens e o real – são estes

deslocamentos que permitem a projecção do sujeito nas imagens. Podemos acrescentar um terceiro elemento, uma

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outra parte, a «parte deles» (dos criadores) e pensar na troca constante – na sobreposição e, simultaneamente, na

enorme autonomia – entre os três vértices da obra: criador-imagem-espectador. A «parte deles» tem a cor amarela.

O amarelo integra sempre as criações do Cão Solteiro e pode designar a última das dicotomias a apontar: aquela entre

forma e informe. Mesmo que não encontremos uma definição sucinta e eficaz para o conceito de Belo podemos, pelo

menos sumariamente, concordar que o ballet clássico produz imagens belas e que apresenta quadros compostos por

corpos belos; também podemos acordar no facto de que a harmonia formal e a depuração dos figurinos remete para

uma certa definição de beleza ou pureza. No entanto, parece existir sempre alguma coisa que desafia este estado,

um mal-estar que, neste espectáculo, se condensa na figura incontornável mas apagada de um morto e no mau

presságio deixado por um par de gémeas (ou não fossem os gémeos e o doppelgänger figuras de má sorte e de morte);

nos figurinos – e neste como em outros espectáculos – também é comum a existência de elementos desajustados

como uma saia demasiado comprida, uma bainha inacabada ou, aqui, peças em que o tecido é excessivo, adereços

que cobrem o rosto, casacos que fazem o actor cair. É como se, do interior dos corpos, se manifestasse sempre um

sinal de desagregação ou, «o informe [como] finitude da forma, (…) o corpo afectado pela certeza do seu fim.»7. Esta

proposta de inquietação torna-se tanto mais eficaz quanto se insinua em “detalhes” e vamos pressentindo uma certa

decomposição no interior do Belo (já nos é difícil a comoção diante do horror, somos quotidianamente espectadores do

sofrimento dos outros8). Talvez aqui, na ideia de Belo e numa certa ambiência melancólica esteja, ainda, uma adenda

à explicação cromática. Porquê mais azul? Nos figurinos…no espaço… Porque o azul – e este azul em particular –

remete imediatamente para a História da Pintura, para o azul de Klein, para os tectos das igrejas, para os frescos de

Giotto e também – ou por isso mesmo – para o céu.

1 Cf. PLINE L´ANCIEN – Histoire Naturelle, XXXV, p.63.

2 Cf. AZARA, Pedro – Architects on Stage.

3 «(…) o seu modelo [o da pintura a óleo] não é tanto o da janela

aberta para o mundo como o cofre-forte inserido na parede – um

cofre onde está depositado o visível.»

BERGER, Jonh – Modos de Ver, p.113.

4 Nelson Goodman fala de “formas de fazer mundo”. Cf. MITCHELL,

W. J. T. – What do Pictures Want? The Lives and Loves of Images, p. xiv.

5 V. Cf. MITCHELL, W J. – Picture Theory.

6 BELTING, Hans – A Verdadeira Imagem, p.142-43.

7 VIDAL, Carlos – O Corpo e a Forma, Lisboa: Mimesis, 2003, p.13.

8 Referência ao livro de Susan Sontag, Olhando o Sofrimento dos

Outros.

NOTAS

AZARA, Pedro – Architects on Stage, Barcelona: Gustavo Gili, 2001.

BELTING, Hans – A Verdadeira Imagem [2006], Porto: Dafne Editora,

2011.

BERGER, John – Modos de Ver [1972]. Lisboa: Edições 70, 1982.

MITCHELL, W.J.T. – Picture Theory [1994], Chicago: The University of

Chicago Press, 1995.

– What do Pictures Want? The lives and Loves of Images, U.S.A.: The

University of Chicago Press, 2005.

PLINE L´ANCIEN – Histoire Naturelle, XXXV, Paris: Les Belles Lettres,

1985.

SONTAG, Susan – Olhando o Sofrimento dos Outros, Lisboa: Gótica,

2003.

VIDAL, Carlos – O Corpo e a Forma, Lisboa: Mimesis, 2003.

REFERÊNCIAS

São dois tempos suspensos que nos interpelam no início deste Morceau de Bravoure: o do final de uma peça que o

espectador não chega a ver, mas que é adiado até à exaustão, e o da marcha republicana de 11 de janeiro de 2015,

organizada no rescaldo do ataque mortífero ao jornal Charlie Hebdo, que surge aqui por meio da fixação fotográfica.

Desafiando as convenções de finitude que lhes são comuns, ambos – peça acabada e imagem fotográfica – reclamam

no palco uma vida póstuma através da perpetuação do movimento.

A imagem da marcha, que pela evocação de Delacroix viria a adquirir a intitulação apócrifa de Le crayon guidant le

peuple, situa-nos no tempo e no espaço de um determinado imaginário social da mobilização que é tão hodierno como

remoto. A memória visual de Delacroix, mas também de Géricault, invocada pela bandeira e a disposição dos corpos no

plano da composição, convive com as iconografias das mobilizações urbanas mais recentes numa temporalidade que

é própria das imagens, em que figurações de várias épocas se sobrepõem e se actualizam, como sugeriu o historiador

de arte Aby Warburg, que, de forma seminal, entreviu a continuidade entre imagens para além das épocas históricas

em que foram produzidas. Qual partitura coreográfica impossível de cumprir, a imagem da população congregada

na Place de La Nation, conduzida pelo “lápis da liberdade de expressão”, é aqui recriada pelo elenco através de um

tableau vivant que procura dar corpo ao pathos da composição original, resgatando a sua energia cinética ao circuito

de consumo mediático das imagens que rapidamente se deixam iconizar. Ao animar uma imagem estática, a figura do

tableau vivant coloca em cena a polaridade entre imagem (tableau) e vida (vivant), procurando sobrepor dois planos

aparentemente incomensuráveis. Mas esta polaridade é desde logo dinamitada pelo olhar coreográfico que subjaz

à fotografia da marcha, produto de uma requintada organização visual do movimento. A mise-en-scène da estrutura

piramidal, a dramaturgia social dos corpos mobilizados, e o friso de espectadores dentro da própria imagem concorrem

para tornar visível a noção de coreografia como disposição e manipulação dos corpos – e também do olhar – num

determinado espaço. A ontologia estática da imagem é assim contrariada pela sua dimensão coreográfica, pelo que

a imagem fotográfica é já performática por direito próprio, ela contém movimento muito antes da sua translação em

tableau vivant. Ao mesmo tempo, a imobilidade da imagem fotográfica dá-nos a ver o dispositivo através do qual

qualquer movimento é sempre passível de ser apropriado e integrado numa coreografia (social, política) que constrange

a liberdade de circulação. A imagem devém assim dispositivo do olhar que forja um lugar para o espectador e lhe dá

a ver as precondições de possibilidade e de impossibilidade de mobilização num espaço e num tempo que se estende

ao mundo fora da moldura. Mais do que metáfora ou inspiração do espectáculo, a imagem torna visível o contexto e

os meios pelos quais a mobilização se tornará ou não possível em Morceau de Bravoure, bem como as condições de

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IMAGEM E(M) MOVIMENTO

¯¯¯ Daniela Agostinho

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visibilidade através das quais essa mobilização se pode dar a ver. A imagem da Place de la Nation é assim enunciação

da liberdade e das possibilidades de mobilização dos corpos, mas também dos seus mecanismos de interferência,

captação e constrição. Na fotografia, arrancado ao continuum do tempo, o movimento é sujeito à disciplina do olhar

no campo da imagem, que o suspende e fixa de acordo com as suas próprias leis. Fora do campo da imagem, no palco

como na vida, o movimento encontra novas forças que o distribuem e organizam. Tal como Artaud aspirava a dissolver

a divisão entre teatro e vida, pondo a descoberto a continuidade entre ambos, também a continuidade entre imagem,

palco e vida é aqui testada através de um espaço comum em que as possibilidades de movimentação, participação

e liberdade, entre o instantâneo e o coreografado, entre o caótico e o síncrono, podem ser articuladas, negociadas e

postas em prática.

CONTACTOSTeatro CamõesPasseio do Neptuno, Parque das Nações1990 - 193 LisboaTelef. 218 923 470

COMO CHEGARMetroLinha Vermelha > Oriente

Autocarro Carris208, 210, 400, 705, 708, 725,728, 744, 750, 759, 782, 794

Caminhos de Ferro CPGare do Oriente

Parques para AutomóveisParque do OceanárioParque da Doca

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DIREÇÃO ARTÍSTICALUÍSA TAVEIRA

Os textos não foram redigidos segundo

o novo Acordo Ortográfico.

Companhia Nacional de Bailado /

Cão Solteiro

© novembro 2015

BECAUSE

¯¯¯ Beatles,

¯¯¯ Lennon-McCartney (1969)

Aaaaaahhhhhh...Because the world is round it turns me onBecause the world is round...aaaaaahhhhhh

Because the wind is high it blows my mindBecause the wind is high...aaaaaaaahhhh

Love is old, love is newLove is all, love is you

Because the sky is blue, it makes me cryBecause the sky is blue...aaaaaaaahhhh

Aaaaahhhhhhhhhh...Aaaaahhhhhhhhhh...Aaaaahhhhhhhhhh...