Bia Perrone e Renato Sztutman - Confederacoes Tamoio

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MANA 16(2): 401-433, 2010

Notcias de uma ceRta coNfedeRao tamoio*Beatriz Perrone-Moiss Renato Sztutman

Quand tout ce qui est venu par rapport du pass, jusques nous, seroit vray, et seroit seu par quelquun, ce seroit moins que rien, au prix de ce qui est ignor. Et de cette mesme image du monde, qui coule pendant que nous y sommes, combien chetive et racourcie est la cognoissance des plus curieux ? Non seulement des evenemens particuliers, que fortune rend souvent exemplaires et poisans : mais de lestat des grandes polices et nations, il nous en eschappe cent fois plus, quil nen vient nostre science. [...] Si nous voyions autant du monde, comme nous nen voyons pas, nous appercevrions, comme il est croire, une perpetuelle multiplication et vicissitude de formes. Il ny a rien de seul et de rare, eu esgard nature, ouy bien eu esgard nostre cognoissance : qui est un miserable fondement de nos regles, et qui nous represente volontiers une tres-fauce image des choses. Montaigne. Des coches, Essais, Livre III, Ch. 6 Dos Tamoyos o intrepido ardimento, To fatal colonia portuguesa, Do olvido sorvedor hoje exumemos Gonalves de Magalhes. A Confederao dos Tamoios, Canto I

Costa braslica, 23 de abril de 1563. Os padres jesutas Manoel da Nbrega e Jos de Anchieta, tendo partido de So Vicente, ncleo colonial portugus, chegavam a Iperoig, ncleo de aldeias tupi situado nas imediaes do que hoje a cidade de Ubatuba, estado de So Paulo. Vinham em misso diplomtica ao encontro de Caoquira, um dos chefes que integravam uma coalizao de diversos grupos tupi espalhados por um vasto territrio compreendido entre Bertioga e Cabo Frio unidos em guerra contra os portugueses. Ficaram conhecidos como Tamoio, eram aliados dos franceses e inimigos dos Tupiniquim de So Vicente e dos Temimin de Niteri, estes

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aliados dos portugueses. Representavam uma sria ameaa ao projeto colonial lusitano e, inclusive, colocavam em risco a sobrevivncia de So Paulo de Piratininga, situada no planalto. O objetivo de Nbrega e Anchieta era negociar a paz com Caoquira e os seus, pondo fim assim chamada Guerra dos Tamoio. A misso dos jesutas culminou, em Iperoig, num assim chamado acordo de paz, celebrado em setembro daquele ano, o qual no ps fim guerra, contudo: outros tantos Tamoio, sobretudo aqueles da regio da Guanabara, mais ao norte, prosseguiram com aes hostis at serem violentamente vencidos. Este episdio integra com lugar de honra as narrativas da histria do Brasil, uma vez que diz respeito expulso dos invasores franceses da costa e s duas fundaes (em 1560 e 1567) da cidade do Rio de Janeiro. A regio da Guanabara vinha sendo frequentada por franceses aliados aos Tupi havia dcadas, e s comearia a ser definitivamente incorporada colnia portuguesa quando, em 1560, o governador-geral Mem de S destruiu o Forte Coligny, capital da Frana Antrtica, projeto de colnia que durou apenas cinco anos. Ao longo dos anos que seguiram 1560, sonhando em recuperar a sua Guanabara, vrios franceses que ali tinham permanecido entre seus aliados indgenas continuaram resistindo. Simo de Vasconcelos, autor da Crnica da Companhia de Jesus e responsvel por grande parte das informaes que temos acerca deste episdio, qualifica essa aliana entre amerndios e franceses de confederao, tendo sua frente chefes poderosos como Cunhambebe e Aimbire. Algo prximo teria escrito Jean de Lry, em Histoire dun voyage, quando se refere aos franceses seus [dos Tupinamb] confederados (Lry 1994[1578]:135). Essa intrigante experincia blica perdurou at 1567, quando Estcio de S, sobrinho de Mem de S, com apoio do chefe temimin Arariboia, derrotou na batalha de Uruumirim a brigada franco-tupi, consolidando a fundao da cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro. No seria exagerado afirmar que este episdio atua na historiografia nacional como um mito fundador. A Guerra dos Tamoio foi cantada pelo poeta romntico Gonalves Magalhes no momento mesmo meados do sculo XIX em que o Brasil Imperial buscava para si uma identidade nacional. Como sugere Puntoni, em sua anlise do contexto do romantismo oitocentista em que foi escrito o poema A confederao dos Tamoyos, o nascimento da nao brasileira era atribudo ao sacrifcio herico dos ndios. Nobres selvagens cujas qualidades so constantemente louvadas, os Tamoyo de Magalhes ocupam o lugar de entrave moral ao livre curso da histria nacional (1996:125). Tal como os troianos fizeram despertar um sentimento grego, os Tupi inimigos faziam despertar um patriotismo brasileiro. Sob a gide

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dessa ideologia nacionalista, os Tamoio eram representados como povos martirizados do passado que permitiam as glrias no presente, dizimados, afinal, pelo bem supremo da nao que j existia como pressuposto e como germe. Nota-se o carter poltico do retrato oferecido por Magalhes. Ainda que inteiramente baseado nas cartas e nas crnicas jesuticas para compor a sua pea literria, ele vai alm da imagem veiculada pelos missionrios quinhentistas, de indgenas confederados com os invasores calvinistas, para ressaltar um papel ativo desses mesmos indgenas na composio da tal confederao. O que leva a uma das perguntas que nos animam aqui: o que, exatamente, todas essas descries chamam de confederao? O termo possui, em todas elas, o mesmo sentido? Os Tamoio, que os portugueses viam como rebeldes confederados aos franceses, permanecem uma imagem profcua para o Brasil. No apenas para pensar o nascimento da nao mas, recentemente, inclusive, para pensar os destinos dos povos indgenas atuais que, aos poucos, encontram formas de se representar como um conjunto e como um movimento. Carregado deste aspecto metafrico evento que se presta a pensar outros eventos o episdio que acabamos de trazer baila pouco conhecido do ponto de vista historiogrfico e, ainda menos, do ponto de vista etnolgico. As dificuldades para reconstitu-lo e compreend-lo so muitas. As fontes so escassas: dispomos apenas das cartas, informaes e crnicas jesuticas da dcada de 1560, marcadas por um forte vis ideolgico. De sada, a descrio que elas oferecem para a aliana entre Tupi e franceses carregada pelo sentimento de oposio aos calvinistas, exacerbado nas guerras de Religio, bem como pela imagem de ausncia de organizao por parte dos indgenas. Dos prprios Tamoio no possumos descrio alguma dos eventos que os tornaram famosos. Como os demais grupos tupi da costa, foram varridos do litoral para dar lugar expanso da colonizao portuguesa e, em meados do sculo XVII, j no havia notcia de grupos tupi ao longo da costa de que antes eram senhores. Seu depoimento est dissolvido no discurso de missionrios e viajantes. Como poderamos compreender o que para eles significariam tais alianas e oposies polticas, tais confederaes? Esse aspecto lacunar do material emprico faz com que nosso trabalho de anlise seja menos uma reconstituio de fatos do que um questionamento, uma interrogao sobre o que teriam sido essas experincias de aliana, guerra e/ou confederao, experincias que poderiam lanar luz no apenas sobre um captulo da histria colonial brasileira, mas e este o nosso foco sobre os agenciamentos polticos indgenas e o seu papel em formaes polticas diversas. Por meio de um esforo de imaginao antropolgica,

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buscaremos recompor esse quebra-cabeas, tendo como peas tanto fontes primrias como secundrias, relidas luz de etnografias de populaes tupi-guarani atuais.1 Apesar de toda essa indeterminao, com base nos documentos disponveis, um ponto pode ser afirmado desde j. A guerra dos Tamoio no consistiu num movimento nativista, contra a colonizao e pela retomada da terra e da liberdade dos ndios. No foi uma guerra de ndios contra europeus. As fontes descrevem claramente a guerra que estourou na regio da Guanabara configurada como um duplo sistema de alianas, havendo ndios e europeus de ambos os lados. De um lado, os chamados Tupiniquim (em So Vicente) e os Temimin (ao norte da Guanabara) com seus aliados portugueses, de outro, os chamados Tamoio (ou Tupinamb) e seus aliados franceses. Como veremos, a questo dos etnnimos aplicados a esses grupos, falantes de lnguas da famlia tupi-guarani e imersos num universo cultural compartilhado, como ocorre com os etnnimos de modo geral, bastante complexa. Tanto os colonizadores quinhentistas quanto os modernos de hoje insistimos em nomear entes. No caso moderno, trata-se, alm disso, de projetar um ideal de unidade poltica sobre povos que revelam outras modalidades de segmentao e liderana. Nosso imaginrio poltico e a reflexo acumulada acerca das formas polticas amerndias fazem com que a ideia de uma confederao entre populaes avessas a formas estatais coloque imediatamente a questo da propriedade do termo para expressar o observado. Poderiam tais alianas ser pensadas como extenso ou desdobramento de formas amerndias? Ou, seguindo grande parte dos documentos e das anlises que afirmam a ingerncia europeia como fonte dessas formaes com ares de quase-estado (os Tupiniquim teriam sido organizados pelos portugueses, e os Tamoio, instigados pelos franceses), deveramos ver a contaminao ou ainda imposio de formas polticas europeias?

Notcias da costa tomadaAs fontes que nos do a conhecer a guerra ou confederao dos Tamoio so, em sua maioria, portuguesas; trata-se sobretudo de documentos produzidos pelos missionrios da Companhia de Jesus, na forma de cartas, informaes e crnicas. graas s cartas de Anchieta e Nbrega, nas dcadas de 1550 e 1560, bem como aos escritos posteriores de Simo de Vasconcelos (1977 [1663] e 1943 [1672]) que temos acesso a boa parte das notcias desses terrveis inimigos, contrrios aos portugueses, aliados aos franceses.

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No podemos esquecer, todavia, do valor das fontes francesas para compor essa paisagem. Os escritos de Andr Thevet, frei franciscano e cosmgrafo do rei de Frana, e de Jean de Lry, huguenote, so, nesse sentido, fundamentais.2 Ao lado deles, destaca-se o relato de Hans Staden, soldado alemo que tambm viveu desta vez como cativo de guerra e no como agente colonial ou aliado poltico entre os Tupi da costa. bastante provvel que o chefe Cunhambebe, retratado por Thevet e Staden, seja um desses chefes tamoio temidos pelos missionrios portugueses, e por eles tidos como cabea da confederao. Tudo indica que Staden, Thevet, Nbrega e Anchieta tenham estado na mesma regio Ubatuba em um intervalo mximo de dez anos. Nbrega e Anchieta, diferentemente dos outros cronistas, tomavam conhecimento da ameaa tamoio por intermdio de seus aliados Tupiniquim, muitos deles catecmenos em So Vicente e em Piratininga. Decerto, preciso incorporar todos esses aspectos e nveis no escrutnio das fontes que nos conduzem tortuosamente ao caso tamoio. Numa clebre passagem, Nbrega escrevia que os indgenas esto papel branco para neles escrever vontade, o seu problema maior sendo a falta de polcia de poltica, leia-se da a obrigao de corrigi-los, conduzilos ao caminho da civilizao crist (Carta ao Rei D. Joo III, 14/09/1551, Nbrega 1988:125). Sabe-se que foi ele um dos principais responsveis pela investida final de Mem de S, tendo apressado a ao blica contra os Tamoio passveis de serem combatidos em guerra justa com o intuito de povoar a regio da Guanabara.3 Anchieta narra os combates finais entre o exrcito de Estcio de S e as hostes franco-tupi, inscrevendo-os na guerra entre naes e religies e tomando-os como soluo inevitvel para a conquista de almas. Insistia na urgncia de desarraigar dali a sinagoga dos contrrios Calvinos, como porque ali a melhor fora dos Tamujas [Tamoios] e seria grande porta para a sua converso: o Senhor que tem as chaves lhe abra presto, para que lhes entre o conhecimento de seu Criador e Redentor (Carta ao Geral Diogo Lainez, maro de 1562, Anchieta 1933:237). Para os jesutas, o mal maior eram os calvinistas, inimigos da f catlica, bastava expuls-los para abrir alguma porta para a palavra de Deus entrar nos Tamoios (idem:253). Vasconcelos, em consonncia com Anchieta, identifica o mal entre os franceses, que se aliam aos indgenas por estarem interessados em explorar o pau-brasil da regio, e os tornam inimigos dos portugueses. Pautando-se nessa imagem do selvagem inocente e manipulado, o jesuta afirma que Villegagnon, chefe dos franceses, valendo-se de estratgias de seduo, teria assentado liga com os Tamoio, essa nao guerreira de natureza. Com palavras e ddivas liberais se fez senhor dos coraes de todos, feitos em um corpo contra os portugueses (Vasconcelos 1943 [1672]:68).

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Liga seria aqui sinnimo de confederao, os Tamoio e sua multido de arcos sendo confederados dos franceses. O problema, segundo Vasconcelos, era o fato de a confederao aumentar vertiginosamente, representando um enorme perigo para a misso jesutica e para o projeto colonial, da a inevitvel guerra de retomada, o inevitvel massacre. Note-se que, para Vasconcelos, a confederao tamoio confederao de indgenas com franceses, ou melhor, de indgenas aliciados por franceses. Ele utiliza o termo para se referir tambm aos Tupi confederados dos portugueses, os Tupiniquim, o que sinaliza que o sentido quinhentista e seiscentista da palavra confederao talvez no se situe muito alm da ideia de aliana. Veremos abaixo que o termo parece ter guardado a mesma impreciso e, portanto, a mesma capacidade de significar qualquer forma de conjugao poltica. De modo geral, nas fontes jesuticas, a confederao dos Tamoio aparece como imposio de uma forma poltica francesa sobre uma ausncia de polcia. A definio dos Tamoio pela ausncia de qualquer princpio de organizao social e poltica clssica verso do sem f, nem lei, nem rei aplicado indistintamente aos naturais americanos no resiste a investigaes mais detalhadas. Neste caso, basta examinarmos as crnicas de Hans Staden, Jean de Lry e Andr Thevet, relendo-as luz da literatura etnolgica. As crnicas destes viajantes referem-se dcada de 1550, portanto, a um perodo anterior derrocada da Frana Antrtica e intensificao da guerra dos Tamoio. Todos eles escrevem sobre os Tamoio, ou Tupinamb como eram chamados nas fontes os Tupi da costa aliados dos franceses pois viveram entre eles em contextos alheios aos aldeamentos jesuticos. Ainda que comentem a aliana entre franceses e indgenas, Staden, Lry e Thevet no chegam a delinear a imagem de uma confederao propriamente organizada ou em vias de se organizar. Lry, como j assinalado, alude aos franceses como confederados dos Tupinamb, mas s. Todos eles descrevem, cada qual a seu modo, personagens e formas polticas indgenas, como chefes ou principais, ancios, guerreiros eminentes, conselho de ancios, expedies de guerra. No raro depararmos, ao longo destes textos, com o termo provncia para designar territrios compartilhados entre diversos grupos locais e seus chefes, mas este no parece ter exatamente o mesmo sentido poltico que confederao, pois no denota um sistema de organizao poltica propriamente dito, mas apenas uma delimitao territorial.4 Entre Lry e Thevet chega a haver um debate a propsito do poder entre os Tupi da costa. Lry alega que a gerontocracia o termo de Florestan Fernandes (1989 [1948]) a forma de dominao vigente entre eles. No haveria, assim, figuras fortes e permanentes de chefes centralizadores, mas

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sim um espao de deciso conjunta garantido a todos os homens maduros, ou seja, aqueles que participaram de muitas expedies guerreiras e mataram muitos inimigos, tendo obtido para si muitos nomes e marcas. Lry ilumina, nesse sentido, o Conselho dos Ancios como lugar por excelncia de deciso poltica, afastando a ideia, veiculada por Thevet, de que os chefes de guerra referidos por todos eles como morubixabas ou principais seriam verdadeiros reis. Com efeito, Thevet destaca-se pelas suas hiprboles descreve Cunhambebe como um homem enorme, exageradamente paramentado o que revela um esforo de buscar analogias com o mundo europeu por meio de figuras do prprio imaginrio europeu (Lestringant 1991). O grande chefe de guerra Cunhambebe, referido por ele como Quoniambec, retratado como um monarca detentor de jurisdio sobre todo um territrio, especialmente temido e mesmo venerado. Staden descreve este mesmo personagem, agora referido como Konian Bebe, como um grande tirano, e se espanta diante da frieza com que ele parece executar e devorar seus inimigos. Mas Staden menos incisivo que Thevet. Quando de seu primeiro encontro com Cunhambebe, ele afirma estar diante de algum que tem a aparncia de um chefe, uma vez que se mostra inteira e excessivamente adornado. O cativo alemo costuma usar a palavra Huptling (chefe) para designar tanto lderes residenciais descrevendo aldeias com vrios chefes como este personagem temido e eminente que Cunhambebe (Staden 1557). Note-se que, em relao a este ltimo, Staden acrescenta um adjetivo que indica um grau mais elevado supremo, tal a soluo de uma traduo brasileira antes da palavra chefe.5 O termo principal, presente nas fontes, revela um espectro semntico to amplo quanto parece ser o do Huptling de Staden, incluindo chefes de maloca, chefes de grupo local ou aldeia, chefes de guerra com influncia poder? sobre todo um conjunto de aldeias aliadas. Cunhambebe, em Ubatuba, e Aimbire, na Guanabara, poderiam ser classificados como chefes de guerra, e o que deve ser posto em questo se eles possuam algum poder poltico coercitivo (Clastres 2003), e se representavam alguma unidade. Pode-se tambm ver neles com maior probabilidade figuras da circunstncia, tendo sido magnificados6 pelas alianas que lograram atrair e manter, o que no significa, no entanto, nem poder de deciso e coero, nem representao de uma unidade poltica fixa. De todo modo, se o termo principal revela um alto grau de fluidez para quem supe a poltica na figura da centralizao, no seria incorreto afirmar que ele foi empregado de maneira sagaz pelos cronistas que, sua maneira e qui a despeito de suas intenes, nomeavam o que viam diante de si: homens que aglutinam outros numa rede de prestgio, os primeiros da fila, os principais, em suma.

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Qual confederao?Imortalizada pela historiografia, a confederao dos Tamoio no foi a nica a ser assim designada. L-se, por exemplo, que com a derrota na Guanabara, franceses e indgenas teriam fugido para a regio de Cabo Frio, onde teriam se organizado mais uma vez, para serem massacrados alguns anos depois. No Maranho, meio sculo mais tarde, o grande evento Tamoio como que se repete: aldeias tupi, aliadas aos franceses, opem-se a aldeias tupi, aliadas dos portugueses. Identificam-se, em cada um desses blocos, lderes que se ampliam, se magnificam, inclusive (e sobretudo) mediante ddivas e casamentos com oficiais franceses. Florestan Fernandes aponta que, com a expulso pelos portugueses dos franceses do Maranho em 1615, houve tentativas de constituio de novas confederaes envolvendo, alm dos Tupinamb e dos franceses, povos Tapuia da regio. Segundo Fernandes, essa confederao teria sido derrotada em maro de 1619 pelos portugueses, resultando num enorme extermnio e em fugas em massa em direo regio amaznica e ao serto. Conforme o autor, outro exemplo de confederao seria o de uma unio entre diferentes grupos, tupi e tapuia, na regio do rio So Francisco no final dos Quinhentos (Fernandes 1989 [1948]:41-ss). Embora empregue constantemente o termo confederao, o autor jamais precisa o seu sentido. Como vemos, quando aplicado a realidades indgenas, o termo confederao tem sido usado, do sculo XVI aos dias de hoje, de maneira varivel. Em linhas gerais, tem sido empregado para se referir ao passado indgena, que nos acessvel apenas por meios fragmentrios. Suspeita-se, diante de fontes histricas e arqueolgicas, que este passado tenha abrigado formas polticas mais sofisticadas do que as presentes. No entanto, poucos conseguiram desenvolver anlises adequadas para dar conta dessa suposta sofisticao. A razo para a perda de sofisticao ou involuo, termo decerto discutvel no mais das vezes atribuda Conquista.7 preciso ir alm dessa oposio entre um passado complexo e um presente simplificado, na medida em que complexidade e simplicidade so termos que dizem respeito menos ao que seria a natureza das formas sociais e polticas em questo do que a uma escala predefinida de carter transcultural.8 Poderamos inclusive desconfiar que a palavra confederao atende, antes de tudo, a uma dificuldade de descrio, visto que coloca em pauta uma srie de antinomias, dentre elas, sociedades com e sem Estado. j clssica a tese de Pierre Clastres da sociedade contra o Estado, recusando a ideia de sociedades sem Estado e positivando a ao poltica amerndia por seus mecanismos de conjurao do poder poltico como o

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esvaziamento do lugar da chefia e o processo de fragmentao social movido pela guerra. Note-se que, se contra o Estado no sem, permanece a oposio em relao s sociedades com Estado, ou pelo Estado que na Amrica do Sul encontrar-se-iam nas Terras Altas. Tendo essa imagem em vista, Clastres jamais deixou de se espantar com as informaes sobre os antigos Tupi da costa e os Guarani do Paraguai, uma vez que entre eles parecia ter-se delineado uma espcie de movimento de centralizao poltica, seja pela emergncia de imponentes chefes de guerra que passavam a gozar de influncia supralocal, como Cunhambebe, Japiau e Aimbire, seja pela cristalizao de arranjos territoriais, as tais chamadas provncias. Clastres identificou entre os antigos Tupi e Guarani uma tendncia a construir um modelo de autoridade que ultrapassava muito o mbito da aldeia em si (2003:89), resultando em movimentos de centralizao que, de sua parte, no implicavam o enfraquecimento das autoridades domsticas e locais, tais como os membros dos assim chamados Conselhos dos Ancios. Em suma, Clastres vislumbrou uma verdadeira expanso territorial e poltica, com exerccio da autoridade de certos chefes sobre vrias aldeias (idem:90). Clastres no chegou a aprofundar uma leitura crtica das fontes quinhentistas e seiscentistas; apenas constatou uma transformao em marcha que, segundo ele, teria se iniciado antes da presena dos colonizadores, provavelmente no sculo XV, movida, entre outros fatores, pelo excessivo crescimento demogrfico.9 Baseado nas descries de Lry, Thevet e Staden sobre investidas guerreiras e alianas polticas que envolviam milhares de homens, o autor sugere que havia entre os Tupinamb [de meados do XVI] verdadeiras federaes, agrupando de dez a vinte aldeias (grifo nosso), o que o leva a concluir queOs Tupi, particularmente os da costa brasileira, revelam uma ntida tendncia constituio de sistemas polticos amplos com chefias poderosas, cuja estrutura deveria ser analisada: de fato, ao estender-se, o campo de aplicao de uma autoridade central suscita conflitos agudos com os pequenos poderes locais; surge ento a questo sobre a natureza das relaes entre chefia principal e subchefias: por exemplo, entre o Rei Quonianbec e os reizinhos, seus vassalos (2003:91).

A ideia de que os Tupi da costa quinhentista viviam uma sria transformao, o que poderia t-los conduzido ao desenvolvimento de algo como um proto-Estado, acompanhou Clastres em muitas de suas reflexes.10 Se, de um lado, isto colocava em risco a oposio entre sociedades pelo Estado e sociedades contra o Estado, de outro, permitia desenvolver a tese,

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igualmente cara ao pensamento clastriano, de que o poder poltico no um desconhecido entre os povos indgenas e tem suas maneiras de irromper. Perseguindo as hipteses de Pierre Clastres sobre a transformao poltica entre os antigos Tupi e Guarani, Hlne Clastres (1975) analisa a emergncia de chefes de guerra que, aos poucos, estendiam sua influncia para todo um territrio. A tal perigo a sociedade tupi responderia, segundo a autora, com a intensificao de movimentos profticos. Hlne Clastres situa a centralizao poltica e a delimitao territorial, que salta das fontes sobre os antigos Tupi da costa e sobre os antigos Guarani, como elementos contingenciais, que acabam por ser neutralizados pelos mecanismos contra o Estado, como as migraes profticas em busca da terra sem mal. Permanecemos sem compreender ao certo o que so essas formas polticas por assim dizer potenciais, apontadas tanto nos escritos dos Clastres como em anlises arqueolgicas e histricas. Federaes, confederaes, cacicados, proto-Estados, territrios... Talvez o nico elo capaz de unir estes termos, declarados menos ou mais prximos do Estado, seja a necessidade de descrever algo que no se deixa formular por nosso vocabulrio poltico. A prpria noo de sociedade contra o Estado pode parecer empobrecedora se no for entendida como mquina abstrata de conjurao do poder poltico. E a crtica aos modelos arqueolgicos e etno-histricos pode se tornar estril se no atinar para uma constante transformao das formas polticas amerndias. Todos esses termos foram bastante aproveitados ao longo da histria da antropologia sob um vis evolucionista e ainda o so, se considerarmos certos trabalhos de arqueologia, ecologia cultural e etnohistria ou seja, como instrumentos para pensar a passagem histrica do sem ao com Estado, do pr-poltico ao poltico. Se levarmos a srio a revoluo copernicana proposta por Clastres (2003 [1974]) o descentramento da questo da antropologia poltica em relao apreenso moderna do poltico indo, alis, alm do prprio Clastres, teremos de reformular a questo, tentando redefinir nos termos indgenas o que poderiam significar essas formas e experincias. Mas antes de prosseguirmos com o exame do material tupi, propomos visitar algumas definies da noo de confederao. Se, no Dicionrio Houaiss, a confederao dos Tamoio utilizada como exemplo no verbete confederao, vocbulo definido como liga dentro de um pas, em defesa de uma causa determinada, a mais famosa de todas as assim chamadas confederaes amerndias no a tamoio, mas sim a Liga dos Iroqueses, estudada por Lewis Morgan em The league of the Ho-de-no-sau-nee or Iroquois (1922 [1851]). A formao que Morgan descreve e nomeia confederao parece estar entre as definies de federao e de confederao

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do Dicionrio de poltica (Bobbio et alli 1992). Segundo uma acepo mais restrita, a primeira possuiria um centro superior de deciso poltica [conformando um modelo centrpeto], ao passo que, na segunda, Estados associados manteriam sua soberania e independncia [conformando um modelo centrfugo] (Levi apud Bobbio et alli 1992:218-220). Segundo o autor do verbete, se retirarmos o Estado desta definio, resulta que a confederao seja definida como associao entre unidades soberanas ou seja, que no se submetem a um centro de decises polticas sendo assim uma realidade circunstancial. Nesse sentido, confederao apresentaria um campo semntico diverso do de cacicado e chefatura. Ora, a Liga dos Iroqueses, segundo Morgan, seria uma organizao hierarquizada e centralizada na qual os poderes executivo, legislativo e judicirio se encontravam nas mos do Conselho (tambm chamado de Congresso) dos Sachems, encarregado de tudo o que dizia respeito ao bem-estar pblico de todas as naes da Liga (1922 [1851]:58, 70, 71 et passim). Por outro lado, no que diz respeito ao carter local e domstico, e muitas vezes poltico, as naes eram inteiramente independentes umas das outras (idem:65). De modo que haveria na Liga Iroquesa tanto o movimento centrfugo, que no dicionrio se associa ideia de confederao, quanto o movimento centrpeto, associado ideia de federao. Em outras palavras, ela seria ao mesmo tempo descentralizada e centralizada. O autor do verbete em questo acrescenta a observao de que as confederaes seriam formas polticas instveis, condenadas a dissolverem-se ou a se consolidarem como federaes, e as associa a formas antigas, como as cidades-Estado da Grcia ou o Imprio Germnico. Aqui a comparao com a anlise de Morgan especialmente interessante.11 Pois Morgan parece concordar com isso quando conclui que a fora da Liga dos Iroqueses estava no fato de no ser uma mera confederao (1922 [1851]:72). E o que a distinguia, segundo ele, era justamente a existncia de centralizao com manuteno de independncia das soberanias nacionais. Vale a pena citar na ntegra o seu comentrio a respeito:Numa mera confederao de naes indgenas, a tendncia constante seria a ruptura, dadas as distncias de localizao e interesses e devido fragilidade inerente a tal composio. No caso aqui considerado, visava-se algo mais duradouro do que a simples unio de cinco naes na forma de uma aliana. Uma juno das soberanias nacionais num governo nico era o que buscavam e realizaram tais estadistas da floresta. A Liga fez dos Ho-de-no-sau-nee um povo, com um governo, um sistema de instituies, uma vontade executiva. Contudo, os poderes de governo no eram inteiramente centralizados, a

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ponto de provocar o desaparecimento das independncias nacionais. Muito longe disso. A caracterstica principal da Liga, como estrutura poltica, era a completa independncia e individualidade das soberanias nacionais, no seio de um governo central e englobante, cujo aspecto exterior era to slido que dificilmente suas subdivises poderiam ser descobertas nas transaes gerais da Liga (1922[1851]:72-73).

Para desafiar ainda mais nossas categorias classificatrias, na sociedade iroquesa, em que se poderia ver um germe de Estado, Morgan chama a ateno para um fato que caracteriza as sociedades contra o Estado, tal como definidas por Clastres:Toda a sua poltica (civil policy) era avessa concentrao do poder nas mos de um nico indivduo, tendendo ao princpio oposto da diviso entre um certo nmero de iguais; a mesma poltica aplicavam sua organizao militar tanto quanto organizao civil (1922 [1851]:68).

Morgan apontava ainda para o fato de que, no tendo nem os Sachems poder real, a palavra que os designava significava simplesmente conselheiro do povo (1922 [1851]:66). E sugeria que os chefes iroqueses haviam surgido como uma necessidade, no contexto colonial, acabando por se tornar quase to importantes quanto os Sachems. Algo prximo ao que lemos sobre os Tupinamb e os Tamoio, entre os quais a influncia de chefes de guerra se sobrepunha em certos momentos ao Conselho dos Ancios. Com os Tamoio, de todo modo, estamos longe do aparentemente bem estabelecido sistema de hierarquias e nveis sucessivos de incluso da Liga Iroquesa que Morgan sada como uma bela e notvel estrutura o triunfo da lei indgena (1922 [1851]:71). Os Iroqueses possuam instituies bastante sofisticadas para o comrcio e para a paz, todas elas baseadas numa etiqueta diplomtica. A oratria era fortemente associada funo tradicional da poltica externa, constituda por um sistema de delegados que representavam seus respectivos coletivos. Entre os iroqueses, mesmo o comrcio s poderia ser realizado depois de uma srie de discursos e festas que confirmavam a qualidade das relaes, porque o comrcio supe a aliana, e sua realizao se conforma aos rituais, diplomticos, de renovao desta (Perrone-Moiss 1996:95). Se a comparao entre a realidade tamoio e a iroquesa revela seus limites, visto que os ltimos contam com estruturas mais afiadas para promover a paz ainda que esta seja similarmente concebida como um estado relativamente precrio preciso ter em mente que a diferena posta menos de natureza

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do que de grau. Afinal, como j ressaltado nas linhas acima, para alm de uma suposta anomia poltica e aqum de uma projeo estatal, havia, entre os Tupi da costa, mecanismos centrpetos sutis que precisam ser mais bem esmiuados e conceitualizados. Quem melhor descreveu e analisou em termos positivos a organizao poltica dos Tupi da costa foi certamente Florestan Fernandes, ainda que suas reflexes sobre esses povos, carregadas de funcionalismo, tenham emperrado em temas como a transformao social e a prpria questo da unidade tupi, constituda que era pela guerra. Em Os Tupi e a reao Conquista (1975), o autor volta ao episdio da confederao dos Tamoios para concluir que se trata ali de uma reao ativa Conquista, o que significa conferir agncia aos indgenas, contraposta a uma reao passiva, baseada em movimentos de migrao e fuga em direo ao serto e Amaznia. Note-se que a relao dos indgenas com o mundo colonial , para este autor, sempre reativa; eles no compem com ela. A abordagem de Fernandes sobre a guerra dos Tamoio redunda, ademais, num paradoxo. De um lado, ele assegura que os indgenas, embora imersos em ambiente blico, tinham toda a possibilidade de se organizar poltica e militarmente, no padeciam de limitaes nem tecnolgicas nem organizacionais e estavam aptos a enfrentar os novos inimigos, os colonizadores portugueses (Fernandes 1989 [1948] e 1970 [1952]). De outro lado, no entanto, o autor sugere que os Tupinamb no lograram conduzir at o fim as alianas necessrias para a tal confederao, ou seja, revelaram-se incapazes de compor uma unidade maior, mesmo em se tratando de grupos todos muito prximos do ponto de vista cultural e lingustico. No contexto dessa discusso, Fernandes (1989 [1948]) ilumina uma instituio poltica bsica, descrita sobretudo por Jean de Lry: o Conselho dos Ancios, baseado no princpio da gerontocracia. Homens mais velhos, maduros, pertencentes categoria tujua,12 homens que j tinham matado alguns inimigos e que j possuam filhos casados, reuniam-se no Conselho e tentavam estender sua influncia por meio da oratria e da exibio dos feitos guerreiros. Fernandes (1970 [1952]) focaliza a figura dos morubixabas, chefes de guerra,13 selecionados entre esses tujua por um processo de peneiramento: aquele que possusse maior prestgio por ter matado mais inimigos e obtido, por conseguinte, mais nomes e incises no corpo seria escolhido como chefe de casa ou de aldeia. As confederaes tupi, como a Tamoio, seriam compreendidas por Fernandes como uma espcie de cristalizao das alianas formadoras dos grandes bandos guerreiros, compostos por homens adultos de diferentes grupos locais ligados por obrigaes recprocas entre cognatos e afins. Ou seja, elas existiriam apenas em contextos blicos; no caso, o de guerra permanente com os portugueses.

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Quando Florestan Fernandes trata de responder por que, afinal, os Tamoio perderam a guerra, desgua num paradoxo. Para ele, como j salientado, os Tupi da costa eram capazes de se organizar politicamente, de coordenar suas diferenas. Por outro lado, ele constata que tais formas de organizao no conseguiam perdurar, revelando de sbito sua prpria inviabilidade. As alianas logo seriam desfeitas e, a despeito de proximidades culturais e lingusticas, critrio suficiente, segundo ele, para se criar uma nao, no se alcanaria a construo de uma unidade propriamente dita. A residiria para ele a causa da derrota dos Tamoio, bem como a inexorabilidade de seu extermnio.[A] importncia histrica da [guerra dos Tamoios] provm de comprovar que as populaes indgenas tinham capacidade de opor resistncia organizada aos intuitos conquistadores dos brancos. Ela tambm revela a inconsistncia do sistema organizatrio tribal para atingir semelhante objetivo. Na ocasio, ainda que temporalmente, a desvantagem tecnolgica dos indgenas podia ser amplamente compensada pela supremacia oriunda da preponderncia demogrfica e pela iniciativa de movimentos, combinada ao ataque simultneo a diversas posies dos brancos, do litoral ao planalto. Tudo parecia indicar que os brancos seriam varridos da regio [...]. No entanto, o xito dos ndios foi parcial e efmero. As fontes de funcionamento eficiente da sociedade tribal impediram a formao do sistema de solidariedade supratribal, exigido pela situao. As alianas fragmentaram-se e a luta contra o invasor retornou ao antigo padro dispersivo, que jogava os ndios contra os ndios, em benefcio dos brancos. que os laos de parentesco, que promoviam a unidade das tribos, engendravam rivalidades insuperveis, mesmo em ocasies de emergncia no mbito mais amplo da cooperao intertribal (1975:28).

A confederao dos Tamoio era possvel, dada a capacidade de organizao dos indgenas. E impossvel, porque atravessada por mecanismos de fragmentao. Se o transportarmos para as discusses anteriores sobre a oscilao, por vezes simultnea, entre um movimento centrfugo e outro centrpeto, poderemos nos aproximar de uma compreenso mais razovel dos fatos. O modelo iroqus parece revelar um carter centrpeto muito mais estvel quando comparado com o tupi, no qual o processo de despedaamento no cessa, como havia concludo Pierre Clastres (2004 [1980]). No entanto, como j salientado, essas diferenas podem dizer respeito menos natureza do que ao grau, e a questo passa a envolver tambm o aspecto da temporalidade. Ao tomar como meramente negativos os mecanismos de fragmentao, Fernandes acaba por negligenciar um dado fundamental da

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vida social e poltica tupi, que , como evidenciaram Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985), a lgica da vingana, a necessidade de uma troca de mortes para a constituio tanto da pessoa como da socialidade tupi. Os Tupinamb eram muito belicosos [e] todos os seus fundamentos [so] como faro guerra aos seus contrrios, j dizia Gabriel Soares de Sousa (1971 [1587]:320). Se a inimizade mesmo o princpio fundamental que nos permite pensar a produo das identidades sociais e das unidades polticas tupi, o paradoxo posto por Fernandes nos leva a indagar se os indgenas alguma vez desejaram essa unidade que o autor julga alcanvel ainda que nunca alcanada.

O mistrio TamoioA armadilha das unidades

O problema no apenas conceitualizar o termo confederao, compreender o que poderia vir a ser Tamoio menos para os seus inimigos, que assim os batizaram, do que para eles mesmos. Tamoio ou Tamuja, como os chama Anchieta, um cognato de tamo que, em muitas lnguas tupi-guarani, significa av, homem velho, e no raro tambm chefe, lder domstico, espiritual e/ou poltico.14 Entre os Guarani atuais, como salienta Pissolato, tamoi significa, em princpio, av, mas costuma ser utilizado de modo mais amplo para se referir a homens mais velhos, em particular lderes de grupo de parentesco ou xams prestigiosos. De modo geral, denota respeito para com aquele que referido ento como xeramoi (xe: marcador de 1 pessoa, -amoi: av) (Pissolato 2007:45).15 Tamoi tambm aquele que possui capacidade de liderana, que pode ou no ser estendida para alm de uma parentela. No caso dos Guarani atuais, tais capacidades esto muito ligadas ao conhecimento xamnico. Entre os antigos Tupi da costa (e talvez entre os antigos Guarani do Paraguai), se este conhecimento era ainda constitutivo do processo da liderana, no era possvel dissoci-lo da dimenso mais fundamental, a guerra. Tanto em um caso como em outro, estamos diante de uma forma de dominao gerontocrtica, como descrita por Lry e interpretada por Fernandes. De certo modo, os Tamoio do sculo XVI nada mais seriam do que a extenso, ou melhor, a magnificao, da estrutura local do Conselho dos Ancios, baseada na reunio de lderes de parentelas (tujua), para um mbito supralocal abrangendo um vasto territrio. A palavra Tamoio designaria, assim, no um etnnimo constitudo ou em constituio, mas um coletivo de lderes ou chefes provenientes de dife-

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rentes grupos locais que se aliaram entre si e com os franceses, realizando uma possibilidade familiar de organizao e de ao poltica. Mas antes de levar adiante esta proposio preciso esmiuar melhor os equvocos acerca da delimitao de uma identidade tamoio. Se para os portugueses eles eram Tamoio, para os franceses eram Tupinamb.16 Mas nem Tupinamb nem Tamoio so identidades substanciais; pelo contrrio, s existem (como tudo) por oposio, por exemplo, aos Tupiniquim seus contrrios, aliados dos portugueses. Segundo a lgica moderna da ao poltica, os Tamoio deveriam representar-se como uma entidade una que se contrapunha a outra, a dos colonizadores portugueses, subordinados a uma Coroa, a um Estado-nao. O que se passava na guerra dos Tamoio dizia respeito, no entanto, a um clculo poltico que envolve um nmero maior de termos e de nveis de relao. Os Tamoio definiam-se, antes, como inimigos mortais dos Tupiniquim (ao sul) e dos Temimin (ao norte), aliados dos portugueses. Eles mesmos eram aliados dos franceses. A guerra descortinada apresentava, assim, um duplo carter: de um lado, manifestava-se como recusa do tipo de relao que lhes propunham os portugueses,17 de outro, reproduzia o motor da vingana, em que o inimigo continuava a ser, por excelncia, um Outro Tupi. Que guerra seria essa, alis? Teria a ao tamoio configuraes passveis de serem distintas de outras guerras tupi costeiras em outros contextos? A mesma relatividade manifestada no uso do termo Tamoio pode ser verificada a respeito de termos como Tupiniquim, Temimin, Tupina, Carij, entre tantos outros etnnimos que surgem de maneira flutuante nas pginas dos missionrios, cronistas e viajantes dos sculos XVI e XVII em pontos diversos da costa brasileira. De certo modo, todos eles teimam em encontrar unidades sociopolticas, tribos, etnias bem delimitadas e seus respectivos chefes provinciais, representantes polticos. No entanto, tudo o que tm um processo de fisso e fuso constante, dado pelo jogo das vinganas e das alianas. Staden evidencia que muitos nomes pelos quais os Tupi costeiros chamavam os seus inimigos eram, antes de tudo, qualidades de relaes. Tabajara, por exemplo, significava simplesmente inimigo (Staden 1941 [1557]:54). Tabajara ou tovajar, tabayara, tabagerre etc. como aparece em outras fontes pode ser traduzido como aquele que est adiante, o meu contrrio e, em muitas ocasies, utilizado para se referir ao cunhado, o que evoca a associao entre afinidade e inimizade (H. Clastres 1972; Viveiros de Castro 2002). Note-se, nesse sentido, que todos esses supostos etnnimos eram termos que expressavam relaes de parentesco, de afinidade, de inimizade; seriam, antes, qualificativos de posio (Perrone-Moiss 2008:49). Tamoio, vale repetir, significava av, velho. Temimin, neto, descendente.

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Todos esses Tupi da costa eram, afinal, os mesmos, na aplicao constante e consistente de princpios de diferenciao recproca ao longo do tempo. Para seus contemporneos europeus como para especialistas de sculos seguintes, colocaram o paradoxo: que unidade pode ser essa, cuja dinmica inclui e exclui alternadamente grupos que, do ponto de vista moderno, tudo deveria unir? Iguais nos modos como constantemente se opunham, se juntavam, se separavam, unidos pela guerra, em suma, os Tupi costeiros sempre foram refratrios a qualificaes de tipo tribo ou etnia. Tamoio , em suma, um nome dado pelos colonizadores, que tanto insistem em nomear grupos e chefes (pois o poder poltico s se exerce sobre o poder poltico), para uma configurao possvel de uma aliana para a guerra. Estamos diante de um problema discutido por Wagner (1974): como descrever coletivos que no se apresentam como grupos, tal como gostaramos, ou seja, com limites bem demarcados? Wagner pensava a dificuldade a partir da Melansia, mas a mesma questo se coloca aqui. Segundo Wagner, para evitar uma abordagem grupo-cntrica, na qual recaem tanto os estudos clssicos de antropologia poltica como os estudos mais contemporneos de etnicidade, preciso pensar em associaes que no tencionam se constituir em corpos polticos propriamente ditos. preciso pensar um vocabulrio que d conta de situaes em que as relaes no sejam facilmente capturadas pelos termos. A mirade de etnnimos que invade as fontes causa muitas vezes de mal-entendidos. Povos como os Guaian, do planalto paulista, e Caets, da foz do So Francisco, so referidos ora como Tupi, ora como Tapuia (Monteiro 2001). Com base nas fontes, o que podemos dizer que Tupinamb o nome dos aliados dos franceses, abrangendo, no sculo XVI, um territrio que vai de Bertioga a Cabo Frio, do Recncavo baiano at a foz do So Francisco e, no sculo XVII, do Rio Grande do Norte ao Maranho. Tupiniquim, de sua parte, o nome dado aos aliados dos portugueses, compreendendo o planalto paulista e o litoral norte do atual estado do Rio de Janeiro, estendendo-se pelo Esprito Santo. No se pode, ademais, negligenciar o papel fundamental das migraes na recomposio constante desses quadros. O que algumas fontes definem como unidades sociopolticas provncias, tribos eram muitas vezes blocos migratrios constitudos por mecanismos de fuso e fisso, blocos espao-temporais,18 diramos. A tentativa de reduzir essas descontinuidades a unidades polticas, tnicas (ou tribais) ou culturais fixas advm certamente de uma exigncia de sociedades que se organizam pela gramtica do Estado. Se no podemos reduzir os Tamoio a uma entidade tnica e poltica, tampouco podemos conceb-los em uma oposio esttica em relao aos

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Tupiniquim (ou Temimin, ou...). preciso compreender todas essas oposies e todo o processo de diferenciao sob a lgica da vingana, esta que se aproxima de um regime de multiplicidade, visto que, se h unidades, estas existem contextualmente e so incessantemente gestadas para se entredevorar.19 A oposio o fato primeiro, grupos h porque se opem e na medida em que se opem. Conforme mudam as oposies, mudam os grupos. A ocupao permanente do planalto paulista pelos portugueses provocava tambm cises entre os prprios Tupiniquim, opondo os catecmenos de Piratininga, reunidos pelos jesutas, e os chamados Tupi do serto, avessos ao movimento de aldeamento. Este evento aparentemente menor crucial, como veremos, para entender o evento maior, a guerra e a confederao dos Tamoio.

Fazendo parentes e inimigos

Na capitania de So Vicente, os jesutas ganhavam como grandes aliados os principais Caiuby e Tibiri, o ltimo batizado Martim Afonso. Segundo Anchieta (Carta ao Geral Diogo Lainez, maro de 1563), num perodo de graves epidemias e guerras intensas, Tibiri teria logo se deixado convencer pela mensagem crist, passando a pregar aos seus, alegando que o Deus dos padres garantiria o seu sucesso diante dos inimigos. Assim, o principal teria juntado a sua gente, ento repartida por trs aldeias pequenas, e conduzido-a a Piratininga, onde havia sido erguido o colgio jesuta. A criao de Piratininga, em 1554, produziu, contudo, uma grave ruptura entre os prprios Tupiniquim, fazendo irromper inimizades onde havia parentesco e aliana. Anchieta e Nbrega oferecem relatos perplexos sobre a onda de revoltas que punham cerco ao povoado e, sobretudo, sobre a batalha travada entre parentes. Alguns destes relatos contam as desavenas entre Tibiri e seu irmo Araray, que passara para o lado dos insurgentes na luta pela expulso dos portugueses. Araray tinha um sobrinho, Jagoanharo, que acabou sendo morto numa dessas investidas. Como evidencia Monteiro, entre 1560 e 1563, os Tupiniquim, liderados por Piquerobi e Jagoanharo, respectivamente irmo e sobrinho de Tibiri, fizeram cerco nova vila, ameaando-a de extino (1994:39).20 A guerra entre parentes que ali tinha lugar evidenciava como a inimizade podia ser rapidamente produzida, inclusive dentro de um grupo de cognatos ou aliados prximos. Simo de Vasconcelos resume a perplexidade dos padres:Era para ver pelejar s flechadas irmos contra irmos, primos contra primos, e filhos contra pais. Foram vrios os sucessos da guerra: at que, por fim cansados,

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e desbaratados, se retiraram os contrrios, com morte de muitos, e muitos mais feridos; e sem que morresse um s da nossa parte, posto que ficaram muitos flechados, aos quais acudiram os padres, curando-os; e fizeram todos ao de graas por to grande sucesso. Entre os que morreram da parte do inimigo, foi um sobrinho de Martim Afonso Tibiri, chamado por sua valentia Jagoanharo, que vem a dizer, o Co bravo, que capitaneava um troo: este sabendo que as mulheres se tinham recolhido em nossa igreja, e que ali havia de roubar, veio a dar combate nela pela parte da cerca da horta dos padres, que ele bem sabia: pagou porm o atrevimento; porque dali lhe atirou uma flecha um escravo, to bem empregada, que deu com ele em terra, e a pouco espao acabou a vida. Foi este sucesso grande parte de desmaiar o inimigo; porque considerando os nossos resolutos, e os seus feridos, e mortos muitos, ao segundo dia do cerco, e combate, destruindo o que puderam nos arredores, sobre a tarde deram a fugir com tanta pressa, que no esperava pai por filho. Saram-lhes os nossos em alcance, e tomaram dois deles, que vendo-os abarbados com a morte, gritaram pelos padres, e alegaram catecmenos seus: porm em balde; porque Martim Afonso Tibiri lhes quebrou a cabea com a espada, dizendo que tal delito no era merecedor de perdo (1977 [1663]:77, itlicos nossos).

Os Tupiniquim contrrios opunham aos habitantes de Piratininga um dio fresco e voraz. Seguindo o caminho da carne, afastando-se do caminho de Deus (idem), declaravam guerra aos portugueses e recusavam a vida em ncleos coloniais. Com a extino, por ordem de Mem de S, da vila de Santo Andr da Borda do Campo, Piratininga sofria um grande inchao. Composta pelos aliados dos portugueses, via-se cercada de inimigos por todos os lados. Como conclua Vasconcelos, a gente de So Vicente que, logo aps um lapso de paz, voltava a se entregar s delcias da guerra, deveria ser mesmo cheia de contradio. Diante desse quadro de tenso, da guerra entre parentes em Piratininga e das notcias de uma confederao de contrrios com apoio dos invasores franceses, os padres Anchieta e Nbrega partiam em misso de paz entre os Tamoio, dirigindo-se regio de Ubatuba. Retornamos, assim, ao episdio da paz de Iperoig, com o qual abrimos este ensaio. O episdio parece bastante revelador da especificidade desse suposto grupo que nas fontes jesuticas chamado de Tamoio. Os habitantes de Iperoig, provavelmente um adensamento de dois ou trs grupos locais vizinhos que tinham como principais Caoquira, Pindobuu e Cunhambeba embora aliados aos revoltosos da Guanabara, deixavam-se seduzir pelos padres, uma vez que estes lhes prometiam libertar parentes que tinham sido submetidos a cativeiro em So Vicente e, sobretudo, porque os padres representavam uma possi-

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bilidade de vingana contra seus antigos e odiados inimigos, os Tupiniquim do serto, que haviam se rebelado contra Piratininga. Teriam os Tamoio de Iperoig trado a confederao e a luta contra os portugueses?

De traies e trapaas

Depois de certa resistncia e desconfiana, Nbrega e Anchieta acabaram sendo acolhidos pelos principais de Iperoig. Os padres ergueram ali uma pequena capela e tentaram, com muito esforo, iniciar o seu trabalho de catequese. Durante o cativeiro, Anchieta recebia notcias dos feitos dos Tamoio no Rio de Janeiro e dos estragos causados em Piratininga. Enquanto isso, ele e Nbrega eram frequentemente ameaados de ser devorados, sobretudo quando da visita de principais da regio da Guanabara, como o prprio Aimbire. Conforme a correspondncia de Anchieta, que passou mais tempo do que Nbrega em Iperoig,21 tudo indica que houvesse comunicao de fato entre as diversas aldeias tupinamb. O trnsito intenso de canoas e visitaes de principais e guerreiros vindos da regio da Guanabara, que hora ou outra metiam medo no refm, vinha atestar a vigncia desta rede blica, comercial e poltica aliana, em suma. O jesuta mostrava-se atnito diante dessas formas de organizao poltica, em que todos e ningum pareciam ter autoridade:[...] coisa certa que para ser um principal basta ter uma canoa [...] em que se ajuntem doze ou quinze mancebos, com que possa vir a roubar e saltear, de onde parece quo particular cuidado teve Nosso Senhor o tempo que entre eles estivemos de nos conservar a vida (Carta a Diogo Lainez, janeiro de 1565, 1933:234-235).

Anchieta relata, alm disso, de que maneira a guerra de vingana persistia ali, persistindo tambm o trnsito de cativos e os festins canibais.Dos do Rio j tnhamos o desengano que no queriam pazes, porque tnhamos certas notcias que eu havia mui bem alcanado em Iperoig dos mesmos ndios que tinham cerca de 200 canoas juntas, com as quais determinavam com este ttulo de pazes entrar em nossas vilas, que j muitos deles tinham mui bem miradas, e pr tudo a fogo e a sangue, se pudessem, e ainda que isto no se soubera por outra via, suas obras o estavam pregoando, porque, ultra deles virem sempre com propsito e vontade de nos matar enquanto estivssemos entre eles, em Iperoig, depois de eu vindo, estando c muitos deles, vieram outros por duas vezes e saltearam, levaram e comeram alguns escravos, depois vinham umas 40

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ou mais canoas, para comear a efetuar a sua vontade, mas no chegaram c mais de dez ou onze, os quais logo descobriram que vinham com determinao de tomar um dos lugares do campo, de nossos discpulos (idem:235).

Num tal contexto de desengano quanto possibilidade de paz, em se tratando de to ferozes canibais, Anchieta v a Iperoig de Caoquira, Pindobuu e Cunhambeba como uma frgil ilha de constncia num mar de inconstncia. S os moradores dos lugares de Iperoig ho sido constantes at agora e alguns deles ainda esto entre ns outros; mas por fim faro o que a maior parte dos seus fizeram (idem:236). Em seu cativeiro, ainda que em desesperana, o jesuta consegue o apoio dos habitantes do local sob a condio de proteg-los contra os portugueses e ajud-los na luta contra os Tupiniquim do serto. Um tanto incertos quanto palavra do padre, que prometia trgua, os indgenas permitiram que Anchieta retornasse a So Vicente e trouxesse, enfim, ajuda dos portugueses. Nesse desfecho, notamse duas traies ou melhor, uma traio e uma trapaa, para utilizar uma distino deleuziana:O traidor o personagem essencial do romance, o heri. Traidor do mundo das significaes dominantes e da ordem estabelecida. bem diferente do trapaceiro: o trapaceiro pretende se apropriar de propriedades fixas, ou conquistar um territrio, ou at mesmo instaurar uma nova ordem. O trapaceiro tem muito futuro, mas de modo algum devir. O padre, o adivinho um trapaceiro, mas o experimentador, um traidor. O homem de Estado ou homem de corte um trapaceiro, mas o homem de guerra (no marechal ou general), um traidor (Deleuze 1998 [1977]:55).22

A traio advinha dos habitantes de Iperoig para com os confederados Tamoio, pois que aceitavam se aliar aos padres com o desejo de voltarem a se enfrentar com os Tupiniquim do serto, inimigos de longa data. Preferiam perpetuar a vingana, que se mantinha no cerne da constituio de coletivos e pessoas, a projetar uma forma poltica enrijecida. A trapaa advinha dos prprios padres, que prometiam apoi-los, mas nada fizeram seno dar continuidade a um plano de ao em massa com o intuito de derrotar todos os contrrios e sua aliana com os franceses e, assim, promover um bom futuro para a colnia. Os padres, bem se pode imaginar, jamais pensaram em se aliar com os habitantes de Iperoig contra os Tupiniquim contrrios. Para eles, no se tratava, evidentemente, de perpetuar a lgica da inimizade ali vigente, mas de subjugar os inimigos da empresa portuguesa sob a lgica da unidade uma s colnia, uma s f.

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Os habitantes de Iperoig aliavam-se aos padres tendo em vista o dio que nutriam contra os Tupiniquim do serto de So Vicente. No por quererem unir-se contra quem quer que fosse, antes para perpetuar o opor-se que os fazia quem eram. As configuraes das alianas mudavam no contexto da guerra e isto explicava por que os habitantes de Iperoig dispunham-se a negociar com os padres, opositores principais dos Tupiniquim de So Vicente. Se os padres pediam paz, os indgenas viam neles, contrariamente, um meio de continuar a fazer guerra, uma guerra em seus prprios termos, e no a guerra que se conformava sob a imposio de uma unidade confederada, de uma unidade tnica porque poltica, os Tamoio. Anchieta e Nbrega foram a Iperoig na iluso de que, conquistando o apoio de duas ou trs aldeias e de alguns principais, conseguiriam promover a paz de todos os assim chamados Tamoio. O que eles obtiveram de fato e Anchieta parece t-lo percebido foi uma aliana sem adeso dos demais insurgentes da Guanabara. Afinal, Aimbire e os seus mantinham-se ativos em sua revolta contra os portugueses e em sua aliana com os franceses, assegurada, inclusive, por fortes laos matrimoniais. Este um exemplo claro de que a lgica indgena das alianas, bastante avessa ao princpio de identidade e outros alicerces formais vigentes no Ocidente, no costumava contar com a fidelidade a uma unidade posta para durar, ou seja, era uma lgica que j pressupunha a possibilidade da traio, porque tem na transformao sua fora motriz. Os habitantes de Iperoig traam a unio dos Tamoio porque sua mquina poltica tinha na fragmentao outro vetor crucial. O exemplo aponta para a fico implcita na noo de Tamoio. Eficaz em muitos momentos, ela no pode se justificar por si s. A traio dos habitantes de Iperoig oferecia mais um exemplo da inconstncia epistmica e poltica que Viveiros de Castro to bem notou entre os antigos Tupi da costa:Aparentemente pouco inclinados a qualquer oposio segmentar, os Tupi vendiam as almas aos europeus para continuar mantendo sua guerra corporal contra outros Tupi. Isso nos ajuda a entender por que os ndios no transigiam com o imperativo da vingana; para eles a religio, prpria ou alheia, estava subordinada a fins guerreiros: em lugar de terem guerras de religio, como as que vicejavam na Europa do sculo, praticavam uma religio da guerra (2002:212).

Nesse sentido, preciso separar os Tamoio como fico necessria para o colonialismo e para a reao contra ele de um conjunto de coletivos como o dos habitantes de Iperoig, que procuravam, antes de tudo, continuar guerreando. Assim, se h reao Conquista, um projeto de resistncia e

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certamente h esta no pode ser separada do que era a forma mais plena de existncia: a relao com o inimigo, o tomo da vingana (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985), a segmentaridade no-segmentar ou rizomtica porque independente de unidades preestabelecidas como cls, linhagens etc., e porque flexvel, aberta a traies e fugas, e que descreve um movimento pendular entre momentos de concentrao e disperso.23 Tudo isso pressupunha a presena de inimigos, no quaisquer, mas aqueles que se dispunham a aceitar as regras de seu jogo. Os habitantes de Iperoig aceitaram a paz proposta pelos padres para continuar com a sua guerra, os padres aproveitavam-se da guerra dos ndios para estabelecer a sua paz, ou seja, por meio da declarao de uma guerra justa capaz de banir os povos contrrios e, junto com eles, os franceses insurgentes. A trapaa dos padres consistia no fato de que no era a aliana com os habitantes de Iperoig que eles buscavam, mas o compromisso de extermnio da oposio dos Tamoio, que colocava em risco a integridade e o futuro da colnia portuguesa. Os Tupi faziam guerra para haver futuro (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985), os jesutas queriam guerra tambm para haver futuro, mas um futuro em que a guerra tupi no tinha lugar.

Consideraes finaisDiante de tantas inconstncias e traies, o que se pode afirmar, finalmente, sobre todos esses eventos? A imagem da confederao dos Tamoio, tal como foi veiculada na historiografia brasileira, impregnada de figuras da unidade: a tribo ou liga tamoio, unida em sua reao Conquista, colonizao, e seus heris guerreiros, como Aimbire, suposto chefe supremo, smbolo necessrio da integridade de um povo. Uma variao desta narrativa, que corta os sculos, pode ser encontrada hoje no discurso indigenista catlico que incita o despertar de uma nova conscincia da indianidade, capaz de conduzir a um projeto de ao poltica. Tudo se passa, novamente, como se a ao poltica indgena necessitasse de um critrio de unidade para existir, como se ela no pudesse se definir, justamente, por outros termos. Ou melhor, outras relaes, como as suas linhas de fuga, as suas traies, o prprio da vingana. A confederao dos Tamoio, figura da multiplicidade, acaba por ser reinventada como vanguarda do movimento indgena organizado do sculo XX, como primeira reivindicao pelos direitos e pela posse da terra. Fazemos referncia, mais especificamente, a um caderno produzido em 1984 pelo Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), intitulado Confederao dos

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Tamoios: a unio que nasceu do sofrimento. Aqui a leitura da histria dos Tamoios prossegue na chave crist presente nos textos jesuticos e no poema de Gonalves Magalhes, uma vez que se trata de pensar a criao da unidade por meio de um ato sacrificial. Os Tamoio so recuperados como emblema da reao nativa organizada contra a dominao colonial. Prope-se, assim, um paralelo entre o caso quinhentista e as assembleias e as organizaes pan-indgenas da atualidade. Em ambos os casos, os diferentes povos tomam conscincia, diante da ameaa do mundo no-indgena, de sua condio comum, o que lhes permitiria constituir unidades mais fortes. Mais uma vez, a ideia de reao Conquista e, por conseguinte, de uma necessidade urgente de uma forma poltica una parece nublar os mecanismos prprios da ao poltica indgena. possvel extrair das fontes e dos estudos incompletos e plenos de projees alguma positividade da organizao tupi, contanto que a forma Estado, que orienta as suas descries, seja subtrada. Tendemos, com efeito, a projetar na confederao ou guerra dos Tamoio a figura de uma aliana militar e jurdica de tipo moderno e, assim, vislumbrar nela a unio poltica entre unidades discretas, independentes, estveis, devidamente representadas. Mas as coisas no pareciam funcionar bem assim entre os antigos Tupi, pouco afeitos a essa imagstica da unidade e da hierarquia como englobamento e supresso dos contrrios. Se a tantos pareceu haver um problema poltico de organizao e de representatividade entre esses povos, este no residiria na impossibilidade de compor uma unidade supralocal ou territorial coesa, que se poderia qualificar como tribo, etnia ou nao, mas sim na destreza em descompor quaisquer unidades por meio das linhas de fuga e das traies acima descritas. Temos em vista aqui a ideia da incompletude ontolgica, na qual existir devir, mais especificamente devir-inimigo, como bem notou Viveiros de Castro (2002). Devir-contrrio a servio no da unidade, mas da multiplicidade; no da extenso, mas da intensidade. Ora, podemos pensar essa incompletude, que multiplicidade, num sentido ao mesmo tempo ontolgico e sociopoltico. Os Tamoio no so uma unidade, pois contm em si a multiplicidade, essa possibilidade de uma exploso de diferenas, mesmo entre pessoas prximas. No mundo Tamoio, qualquer unidade, local ou supralocal, no importa, conteria em si o seu contrrio, ou melhor, traria sempre em si o movimento necessrio em direo ao seu oposto, assumindo em seu carter necessariamente efmero uma recusa do Uno, da identidade, da fixidez. Toda unidade apresentada, bem como sua representatividade, consistiria numa realidade momentnea j tendendo a uma traio inevitvel. Recusa do Uno. Isto nos conduz de volta aos escritos de Pierre Clastres. Mas de uma forma heterodoxa. Pois quando Clastres se referia aos antigos

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Tupi da costa, entrevia um movimento sem volta. A partir das evidncias de transformao das formas polticas contra o Estado grupos locais dispersos e autnomos, chefes de paz impotentes em formas mais complexas fortes alianas supralocais, chefes de guerra e profetas capazes de mobilizar uma grande populao Clastres supunha um processo de desnaturao, um malencontro definitivo, tal como imaginado por La Botie. O que propomos, diferentemente de Clastres, que a confederao dos Tamoio no constitua um movimento em direo a um cacicado, um protoEstado, enfim, uma formao do tipo Estado. Sinalizava, antes, a possibilidade de transformaes reversveis, que no podem ser compreendidas como meras reaes Conquista e que dizem respeito a mecanismos pendulares prprios da ao poltica indgena, esta que teima em subordinar o contorno das formas a foras heterogneas. Relendo A sociedade contra o Estado pelo vis do dualismo em eterno desequilbrio, tal como desvelado por Lvi-Strauss (1991), seramos levados a concluir que os antigos Tupi da costa, amerndios que so, evitavam a fixao, quer no polo da disperso, quer no da unificao, mantendo-se num vai e vem pendular entre um e outro. A unificao era uma possibilidade concreta, repetidamente realizada e sempre fadada ao desmantelamento, constituindo-se apenas como vertigem com que a disperso, resposta mesma dessa recusa, teria de conviver. Sempre quase unidade, interrompida por disperso que tampouco chega a termo. Relendo Clastres atravs da metfora da mquina de guerra de Deleuze e Guattari (1980), diramos que em toda linha de fuga, em toda dissoluo, reside a possibilidade de uma nova composio de coletivos, de uma nova segmentao, de uma reterritorializao. A sugesto de Clastres de que os Tamoio confederados talvez estivessem a caminho de uma aglutinao que eventualmente uniria os antigos Tupi da costa numa unidade poltica no parece totalmente descabida. No possvel, decerto, saber o que teria acontecido se os Tamoio no tivessem sido derrotados pelos portugueses e, assim, varridos da costa sudestina. possvel que tudo voltasse a ser como antes, que os grupos voltassem ao seu estado de disperso e que novas inimizades estourassem entre os aliados, tais como aquelas que estouraram entre os Tupiniquim de So Vicente. possvel, por outro lado, que esse conjunto de alianas encontrasse uma forma mais estvel, algo como a replicao de um estado de paz no interior de uma rede multicomunitria, o que pressupe a emergncia de chefias supralocais mais fortes e mais representativas. Nada disso seria impossvel. E nada disso haveria de ser totalmente irreversvel. Os antigos Tupi eram decerto capazes de se organizar politicamente e, inclusive, de encontrar

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solues circunstanciais para o dilema da representao. No entanto, se eram fiis a algo, era recusa de abrir mo de uma multiplicidade e do devir-Outro, devir-inimigo, pois residia ali o nexo de sua existncia, o que implicava assumir qualquer unidade e identidade objeto da representao poltica como estado passageiro, algo que no deve durar. As fontes histricas e arqueolgicas que versaram sobre as terras baixas da Amrica do Sul esto repletas de referncias a grandes formaes sociopolticas amerndias, denominadas confederaes, cacicados, chefaturas e at mesmo imprios. O que une todas o fato de terem invariavelmente se dissolvido, no raro num lapso de poucas dcadas aps as primeiras descries. Tm cabido aos americanistas o desafio de explicar esses desaparecimentos; as causas avanadas so variveis: desastre ecolgico ou esse outro desastre que foi da invaso europeia, ou ainda eventos igualmente imprevisveis mas de menor escala, como rompimentos de alianas em funo de casamentos malfadados. Seria absurdo afirmar que fatores como esses no influenciam de modo algum as transformaes em curso. Mas reduzilas a uma causalidade totalmente externa e sempre imprevista , mais uma vez, esvaziar a ao poltica indgena de algo prprio, desconsiderar seus movimentos internos. Ou talvez continuar supondo que somente eventos alheios ao que seria um movimento natural desses coletivos poderiam dar conta de aparentes desvios de rota. Uma explicao bastante antiga talvez se aproxime mais daquilo que fundamenta todas essas histrias. Diz-se, por vezes, que os indgenas simplesmente no se mantm unidos. De fato, suas unies, bem como suas desunies, so perenemente inconstantes. No em decorrncia de uma incapacidade que justificaria medidas como a tutela e o assistencialismo mas graas sua capacidade de gerar modos outros de agenciamentos, modos outros de subjetivao, modos outros de compor e dissolver coletivos, de fazer e transformar gentes.Recebido em 28 de outubro de 2009 Aprovado em 09 de abril de 2010

Beatriz Perrone-Moiss e Renato Sztutman so professores do Departamento de Antropologia da USP e pesquisadores do Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo NHII/USP E-mails: .

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Notas

* Para Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro. Este artigo uma verso ampliada da comunicao Tamoio: from rebels to confederates, apresentada no V Encontro da Society for the Anthropology of Lowland South America Salsa, ocorrido em junho de 2008, em Oxford. Agradecemos a Andr Drago Ferreira Andrade pela leitura cuidadosa de uma verso anterior deste texto, e tambm aos integrantes do Projeto Temtico Redes Amerndias (FAPESP 05/57134-2; coord. Beatriz Perrone-Moiss), aos quais pudemos apresentar os argumentos centrais aqui presentes, por seus comentrios e sugestes.1 Para uma reviso do material histrico tupi a partir de etnografias sobre povos contemporneos, ver especialmente Viveiros de Castro (1986, 2002). Ver tambm Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro (1985) e Fausto (1992, 2001).

Em relao Frana Antrtica e s fontes francesas do sculo XVI acerca do Brasil, ver Lestringant (1990, 1991, 1994, 2005).2 3 Parece muito necessrio povoar-se o Rio de Janeiro e fazer-se nele outra cidade como a da Bahia, porque com ela ficar tudo guardado, assim esta capitania de Sam Vicente como a do Sprito Santo que agora esto bem fracas, e os franceses lanados de todo fora e os ndios se poderem melhor sojeitar (Carta ao Cardeal Infante D. Henrique de Portugal, 01/06/1560, Nbrega 1988:227). Sobre a definio dessa guerra justa no sculo XVI, ver Perrone-Moiss (2003) e Eisenberg (2000).

4 Note-se que, pouco mais de meio sculo depois, os padres capuchinhos Claude dAbbeville e Yves dvreux, engajados na construo da Frana Equinocial, no Maranho, voltariam a descrever estas formas e personagens, agora para conceber um modo de colonizao capaz de reconhecer nos indgenas alguma positividade poltica, o que permitiria selar no uma relao de total sujeio, mas uma espcie de acordo diplomtico entre as naes. diferena dos missionrios portugueses do sculo XVI, esses missionrios capuchinhos franceses no parecem operar com um conceito de negatividade poltica para lidar com os indgenas. No obstante, em suas propostas de paz estavam includas a eliminao de prticas como a antropofagia e o xamanismo, prticas que no podem ser dissociadas da poltica tupi (Perrone-Moiss 1996).

Obesrten Huptling como Staden qualifica Cunhambebe (Staden 1941 [1557]:85).5

A ideia de magnitude remete reflexo de Roy Wagner (1991) sobre os great-men melansios luz da imagem da pessoa fractal. Um desenvolvimento deste argumento, tendo em vista os casos tupi, pode ser encontrado em Sztutman (2005).6 7 Esta , por exemplo, a tese discutida por Anna Roosevelt (1993, 1994) em sua nova sntese sobre a Amaznia, tendo em vista descobertas arqueolgicas impor-

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tantes na regio da vrzea do Amazonas, mais precisamente Santarm e Maraj. Roosevelt no se refere a confederaes, mas sim a chefaturas (chiefdoms). Sobre o problema da complexidade poltica na Amaznia, ver, entre outros, Whitehead (1994) e Heckenberger (2005). Para uma reviso do conceito de chefatura (chiefdom), ver Earle (1987). No h espao aqui para adentrar este importante debate em curso nos estudos americanistas.8 As escalas de complexidade poltica envolvidas nas anlises dos achados arqueolgicos das ltimas dcadas so comentadas com mais vagar em Fausto (2000), Sztutman (2005) e Perrone-Moiss (2006). Para uma crtica do argumento de Roosevelt em relao s chefaturas de Santarm, ver Gomes (2007).

Que o critrio fundamental, alis, no estabelecimento de uma linha necessria de evoluo das formas polticas. Mas no propriamente para Clastres, que insistia na necessidade de investigar a questo demogrfica a partir das prprias armaes polticas indgenas.9 10

Para uma reflexo sobre este problema em Pierre Clastres, ver Sztutman

(2009). Em sua obra mais conhecida, Ancient society (1877), Morgan analisa a confederao iroquesa em conjunto com outras formas polticas, como as ligas entre cidades-estado gregas e astecas.11 12 Fernandes se vale aqui das informaes de Yves dEvreux quanto aos nomes das categorias de idade entre os Tupinamb. Os tujua estariam entre os participantes exclusivos dos conselhos e das sesses de fumo coletivo (Soares de Sousa 1971 [1587]).

Mencionado por praticamente todas as fontes, o termo morubixaba grafado, alis, de diferentes formas, dentre elas, mburuvicha abrange um campo semntico amplo. Ele pode ser empregado para fazer referncia ao grande guerreiro, ao chefe de guerra, aos chefes locais e supralocais, ou mesmo a qualquer homem de prestgio. Segundo Dominique Tilkin Gallois (comunicao pessoal), o termo morubixaba parece ter a mesma raiz que o termo wajpi rovij (ruvij ou ruvixa), donde mo um causativo, dando a entender aquele que se faz chefe. Entre os Wajpi, rovij (ou jovij) uma categoria ampla que diz respeito aos velhos, queles que sabem. Para uma apreciao mais abrangente e aprofundada do termo entre vrios grupos de lngua tupi, ver Viveiros de Castro (1986:300-320).13 14 No queremos dizer com isso que a associao entre o termo tamo e a posio de liderana seja necessria.

No Vocabulrio tupi-portugus de Lemos Barbosa am ia av (1967:27). Ver F. Grenand (1989:431), artigo tm , significando grand-pre, anctre.15 16 E eram Tupinamb tambm para os Tupiniquim, por quem eram ainda conhecidos como Tabayara (ver Staden 1941 [1557]:54).

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17 E no de toda e qualquer relao com europeus, vale lembrar, pois no se tratava, como afirmamos acima, de uma guerra de ndios contra europeus.

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Ver Sztutman (2005:272-282).

19 Uma multiplicidade no se define pelos seus elementos, nem por um centro de unificao ou de compreenso. Ela se define pelo nmero de suas dimenses; ela no se divide, no perde nem ganha dimenso alguma sem mudar de natureza. Como as variaes de suas dimenses lhes so imanentes, d no mesmo dizer que cada multiplicidade j composta de termos heterogneos em simbiose, ou que ela no pra de se transformar em outras multiplicidades de enfiada, segundo seus limiares e portas (Deleuze & Guattari 1997 [1980]:33; grifos dos autores).

20 Como escreve Simo de Vasconcelos, os Tupi do serto eram confederados nossos, que j andavam meio arruinados, como esta ocasio acabaram de se declarar por contrrios, e iam cada vez mais reforando-se com o poder de outras aldeias circunvizinhas, que estavam neutras, e muitos outros, que de ns fugiam por descontentes, e buscavam a eles por melhor partido (1977 [1663]:74-75).

Alguns meses depois, Nbrega partia para So Vicente para buscar novas pazes e Anchieta permanecia como refm, sob ameaas constantes de devorao, sobretudo da parte de alguns pajs e mulheres, que no aceitavam o fato de ele se recusar a tom-las como esposas. A presena de Anchieta em Iperoig causava oscilaes entre os indgenas: de um lado, via-se nele uma forte capacidade xamnica dada a sua capacidade de batismo, ou seja, cura e, ao mesmo tempo, comunicao com o sobrenatural de outro, ele causava perplexidade em todos ao se negar a integrar as redes de relaes locais.21

O traidor seria uma figura do devir, da metamorfose, visto que recusa potncias fixas e projetos de futuro (e passado) entregando-se ao evento, ao passo que o trapaceiro estaria sempre em compromisso com as formas fixas e institudas da identidade. Se o traidor traa linhas de fuga, o trapaceiro promove enrijecimentos.22

Para uma discusso aprofundada em torno da noo de segmentaridade rizomtica, inspirada em autores como Gilles Deleuze e Flix Guattari, ver Goldman (2001).23

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Resumo

Abstract

Propomos revisitar aqui um captulo muito comentado da historiografia brasileira, mas que permanece espera de uma anlise propriamente etnolgica: a assim chamada confederao dos Tamoio, coalizo de diferentes coletivos tupi da costa quinhentista que ps em risco a colonizao portuguesa, tendo como pano de fundo a disputa entre franceses e portugueses pela regio da Guanabara, hoje Rio de Janeiro. Em que medida essa confederao consiste numa novidade engendrada pela Conquista, que poderia eventualmente conduzir a uma virada em direo centralizao poltica? Ou, ao contrrio, deveramos ver nela a realizao de uma possibilidade j (sempre) presente nas formas de ao e organizao poltica tupi? Estas so as perguntas que deveremos perseguir, lanando mo tanto de fontes histricas como do slido conhecimento a respeito de populaes Tupi-Guarani desenvolvido por vrios autores nas ltimas dcadas. Palavras-chave Confederaes, Tamoio, Antigos Tupi da costa, Antropologia poltica, Pierre Clastres.

In this article we revisit a famous chapter of Brazilian history, yet to be properly analysed from an ethnological perspective: the Tamoio confederation, a coalition of 16th century coastal Tupian groups who threatened to undermine Portuguese colonization during the dispute between the French and Portuguese for the Guanabara region (now Rio de Janeiro). Was this confederation a new phenomenon in Tupian politics, engendered by the Conquest and inducing a shift towards political centralization? Or was it, on the contrary, the actualization of a possibility already (always) present in Tupian forms of political organization and action? These are the questions guiding our inquiry, which we seek to answer through the use of both historical sources and the in-depth ethnological knowledge of TupiGuarani peoples developed by various authors over recent decades. Key words Confederations, Tamoio, Ancient Coastal Tupi, Political Anthropology, Pierre Clastres.