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Caderno Pedagógico Apender a ler cinema Bamako

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Bamako de Abderrahmane Sissako Em partenariado com a Agence Cinéma Education, a Zéro de conduite:

Actualidade Educativa do Cinema, consagra a Bamako um dossier pedagógico interdisciplinar que propõe uma leitura didáctica do filme.

Zéro de conduite é um blog sobre cinema proposto por professores do ensino secundário, destinados a professores e realizadores, pais e estudantes e a todos os que se interessam por utilizar o cinema nas suas aulas. É um espaço de debate e de reflexão sobre o cinema e sobre os seus olhares sobre o mundo que tem por vocação defender e promover a utilização do cinema como ferramenta pedagógica e como uma ferramenta que permite apreender o mundo. Esta é a razão, pela qual se dirige ao espaço educativo, constituído pelos professores, estudantes e pais, mas também a todos os cidadãos que somos… No documento que agora editamos, disponibilizamos uma tradução de parte dos documentos publicados para a compreensão de Bamako, criados por:

Florence Salé Aude Fonvieille Zero de conduite http://www.zerodeconduite.net/bamako/dossier_pedagogique.htm

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I. A retórica judicial O conjunto do filme assenta no desenrolar dum processo no tribunal dum

bairro residencial de Bamako, capital do Mali. Todos os elementos do dispositivo judicial estão nele representados, desde o

tribunal, os advogados das duas partes, assessores, até às testemunhas. O grande objectivo deste processo é o de estabelecer qual é a responsabilidade

das grandes instâncias internacionais como o Banco Mundial e o FMI na morte lenta, mas certa, de África, tanto dum ponto de vista económico como político e humano.

1. A acusação

Quem representa a parte civil no filme? A parte civil é representada por dois advogados, uma mulher negra e um

homem branco. Estes dois advogados não são actores, mas verdadeiros advogados no exercício das suas funções.

Quais são as suas qualidades? Estes advogados mostram-se particularmente convincentes, na medida em que

não somente dominam os temas sobre os quais falam até mais ínfimo detalhe, mas são igualmente convincentes até pelo vigor com que defendem as suas posições.

Qual é a principal base da sua acusação? Estes advogados querem provar que a miséria da África não é, de modo

nenhum, devida a uma qualquer fatalidade, mas sim que há responsáveis por esta situação: as grandes instâncias financeiras internacionais.

Quais são as provas em que se apoiam para fazerem a sua acusação? Os advogados unem-se para mostrarem o círculo vicioso do qual é vítima a

África. Este círculo vicioso tem os seus defensores nas grandes instâncias internacionais e que são igualmente os responsáveis por estes resultados.

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Em primeiro plano está o problema da dívida. Os Estados africanos devem reembolsar o dinheiro que lhes foi concedido por estas organizações assim como os juros que se têm acumulado desde então.

Esta dívida gera várias consequências nefastas. Agrava os orçamentos dos Estados africanos. Ela submete os Estados africanos às injunções e directivas do FMI e do Banco Mundial, obrigando-os nomeadamente a reduzir o orçamento público da educação e da saúde. Pesa de um tal forma nas suas sociedades que impede qualquer projecção das populações quanto ao seu futuro.

Estes argumentos apoiam-se em números (quando 4 dólares do rendimento per capita são reembolsados para a dívida, continuam outros quatro por pagar) mas também se apoia em testemunhos e em factos históricos confirmados, como a colonização.

Através de que métodos oratórios, particularmente fortes, se apoiam os dois advogados na sua acusação? O vocabulário depreciativo designa as grandes instâncias internacionais através

das expressões seguintes “os guardiães dos campos”, “os guardas de prisão”, mas também as figuras de estilo (as antonomásias) como “os doutores Diafoirus” (referência a Molière), e “os doutores Folamour” (referência ao filme de S. Kubrick) têm a mesma função. O advogado estabelece pois o perfil das organizações governadas pela estupidez, por um saber presumido, mas igualmente louco e perigoso.

As figuras de estilo (as anáforas) como “a dívida”, “ela pôs África de joelhos”, expressam, sobretudo, uma acusação que vai crescendo e imprime uma força oratória que suscita a indignação.

As numerosas comparações exprimem com força a escravidão da África sujeita ao FMI: “a dívida é de uma pedra ao pescoço da África”.

A metáfora é frequentemente utilizada e ela faz lembrar as imagens “fora do processo” do filme. “A utopia que é em certa medida o carneiro africano que se vem esfregar e rasgar as calças da razão de estado do mercado” recorda a cena em que está em confronto o advogado e o bode. Do mesmo modo a acusação do advogado refere-se a todos os habitantes dos bairros que terá visto a vaguearem durante o filme, através da figura de estilo (a metonímia): “este povo, é o órfão que reclama o seio da sua mãe”.

A antítese permite sacudir, abanar, as nossas ideias, por exemplo mostrando a profunda incoerência e a hipocrisia do discurso do Banco Mundial comparado com as suas políticas: “o Banco Mundial que deveria ser o banco da humanidade tornou-se no banco da inumanidade”

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A riqueza retórica é apoiada por gestos enérgicos que recordam que o orador emprega o pathos(neste caso, a indignação) para ganhar a adesão da sua audiência.

2. A defesa Quem representa a defesa no filme? A defesa expressa-se através de dois advogados, um negro e o outro branco. Da

mesma maneira que os seus parceiros, exercem sob a câmara de Sissako a sua verdadeira profissão.

Fazem prova das mesmas qualidades que os seus confrades? À primeira vista, os dois advogados mostram-se menos convincentes e menos

persuasivos que os seus confrades. As suas defesas são menos impressionantes. A câmara mostra-os contradição com os seus discursos. O advogado negro é chamado à parte por uma maliana que o acusa de traição em relação aos seus. A uma testemunha que lhe responde, ele declara que não é “especialista na matéria”. Quanto ao advogado branco, uma sequência mostra-nos este a querer comprar um par de óculos, certamente de contrafacção, em que ele quer à viva força que tenham a marca “Gucci”, para em seguida se ver a ser atacado por um bode. Ele fará a sua defesa com as suas lunetas sobre o nariz, o que nos faz recordar este episódio cómico.

O desfasamento profundo que nasce entre estas atitudes, entre o cómico e a seriedade do discurso, desvaloriza a postura controversa destes dois advogados.

Qual é a linha da sua defesa? Os dois advogados querem defender “a inocência” das grandes instâncias

internacionais quanto à tragédia africana. O seu propósito é mostrar que, ao contrário, o FMI e o Banco Mundial têm tentado evitar tal situação.

Quais os argumentos que desenvolvem para construírem a sua defesa? O primeiro argumento põe em detalhe as ajudas atribuídas a África por estas

grandes instâncias, a sua política de cooperação. O segundo argumento, que decorre do primeiro, refere-se à corrupção das

administrações africanas. Os advogados mostram que os meios de financiamento são desviados, e que a África é, por conseguinte, a única responsável do seu destino. Além

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disso, a sua refutação consiste em dizerem que é absurdo para a acusação estar a afirmar que as grandes instâncias são responsáveis de “assassinatos por premeditação”, dado que é evidente que o Banco Mundial não procura, por exemplo, aumentar a taxa de mortalidade infantil.

Por último, os advogados insinuam que o tribunal é parcial na medida em que este lastima o sofrimento das testemunhas.

Pode-se concluir que se trata de uma defesa que se constrói às arrecuas e que não dispõe de factos sólidos para apoiar a sua argumentação.

Que métodos oratórios utilizam os advogados? Ao contrário dos seus confrades, os advogados não desenvolvem métodos

retóricos marcantes. No entanto, pode-se sublinhar os traços comuns. O primeiro é o recurso ao argumento de autoridade. Um dos advogados pergunta a uma testemunha se conhece Confucius. Este tipo de argumento pretende esmagar a testemunha por um saber, saber que se revela completamente estranho ao objectivo do processo. O recurso à citação “Quem é excessivo é insignificante” é representativo de uma retórica oca, tanto que o advogado acrescenta, rindo-se do seu saber, “lá marco eu um ponto”.

O outro advogado emprega frases muito enroladas que colocam a sua audiência sob uma avalanche de proposições subordinadas. Ele acentua as últimas sílabas e o seu ritmo lento provoca o aborrecimento: “Presidente, ainda agora fez perguntas que mostram que tem algumas noções e algumas informações a propósito das razões que conduziram ao fracasso...”.

3. As testemunhas Ao longo do processo observam-se três tipos de testemunhas. Todas têm por

ponto comum o facto de lamentarem o estado actual de África e de assumirem que a responsabilidade está nas grandes instâncias internacionais. Estas testemunhas pertencem à sociedade africana e dão uma visão ao mesmo tempo fortemente contrastada e fundamentalmente unida.

Há em primeiro lugar as testemunhas que pertencem a uma “elite” geralmente intelectual. Trata-se da primeira testemunha, Aminata Traoré (que foi ministro da cultura do Mali de 1997 a 2000) e do terceiro, anónimo, mas professor. Estas duas testemunhas dominam os seus discursos e conhecem bem os temas sobre os quais falam, como o afirma

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A. Traoré: “escritor não tem nada de contraditório com certa capacidade de avaliação, precisamente para não ser maltratado no caso de debates contraditórios relativamente a questões que eu sei e que vivo do interior”. A primeira é enérgica, o segundo é mais calmo, mas ambos têm êxito a pôr em dificuldade a defesa das grandes instâncias, frequentemente orgulhosas e auto-suficientes. Assim o professor não se deixa atrapalhar quando o advogado o interroga a saber se conhece Confucius, ele esboça mesmo um irónico “não o li na sua totalidade” e isto leva-o a ganhar a adesão do espectador. A. Traoré, da mesma maneira, desmonta a argumentação do advogado fundada sobre o “mundo aberto” respondendo “se vocês dizem que vivemos num mundo aberto, então está certamente aberto aos brancos, mas não aos negros”, fazendo, com isso, referência às políticas anti-imigração.

Vêm seguidamente as testemunhas de origem mais modesta, como este “desclassificado” que vem contar o seu deambular pelo deserto à procura dum Ocidente fabuloso, depois esta mulher que fala sobre a desertificação e o empobrecimento dos campos. Estas testemunhas trazem uma densidade emocional ao processo, suscitando a piedade e a compaixão, apoiam-se sobre experiências individuais e desenham um verdadeiro quadro da África em sofrimento.

Por último, pode-se considerar que há os testemunhos mudos. Um homem vem à barra e não diz nada, a duração do seu silêncio põe o espectador pouco à vontade. Mas, é necessário também recordarmo-nos do velho homem do princípio do filme, o camponês que vem para falar, mas que é reconduzido à força para o seu lugar. Este, vê-se reaparecer no fim do filme em que se exprime a cantar, mas em que o espectador europeu não percebe nada.

São estas as vozes de quem o advogado da acusação se propõe fazer o seu porta-voz na sua acusação final, são estas as vozes que não têm voz no capítulo no decorrer normal do processo, são estas as vozes profundas e mudas da África desolada. Aqui é o ethos (a imagem que dá de si-mesma através do seu discurso) que é lembrado.

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II. O Apólogo, ou ensinar divertindo Abderrahmane Sissako escolheu inserir um “filme no filme” na primeira

metade de Bamako, sob forma de western pondo em confronto um justiceiro interpretado por Danny Glover e cinco malfeitores. Esta aposta do filme no interior do filme permite estabelecer uma ruptura deliberada com o estilo geral do filme, dado que nos mergulha no universo da ficção enquanto a encenação do processo utiliza numerosos efeitos do real. Mas, ambas as partes dialogam profundamente.

Propomo-nos analisar este curto extracto como uma forma de apólogo 2.1. A definição de apólogo Este termo designa, de acordo com a definição que dá o dicionário Robert,

uma “pequena fábula que visa essencialmente ilustrar uma lição de moral”. As Fábulas de La Fontaine, mas também os Contos de Perrault são apólogos, da mesma maneira que as parábolas de Cristo narradas pelos Evangelhos.

Qual é o objectivo do apólogo, a quem se dirige? O objectivo do apólogo é convencer, persuadindo, através do recurso ao

divertimento, porque a história faz nascer emoções como o medo ou o rizo com a finalidade de impressionar a mentalidade do público. A via para esta demonstração é por conseguinte indutiva e parece completamente adaptada a um público que não domina os mecanismos da retórica e da argumentação, como as crianças ou os adultos que não teriam tido acesso a uma dada formação.

2.2. O significado do apólogo Quais são as relações mantidas pelo western com o resto do filme e com as teses defendidas no processo? Segundo o realizador (ver a entrevista em anexo) pode-se ver no western

intitulado Death in Timbuktu (recordemos que Tombouctou é considerada como a capital cultural do Mali) uma metáfora do processo relatado pelo filme.

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Como aquando do processo, trata-se aqui “de fazer justiça”, ainda que de maneira muito mais expedita que na barra do tribunal: as balas (quatro, como quatro são as testemunhas virulentas que estão presentes no processo) do justiceiro interpretado pelo actor americano Danny Glover substituem a acusação da parte civil.

Mas, esta violência vingadora reenvia à violência das grandes instituições financeiras encarnadas aqui por quatro malfeitores. O seu “trabalho” consiste de facto em suprimir os “professores”, o que nos reenvia às restrições impostas aos orçamentos da educação. Fazem igualmente outras vítimas, quando atiram aleatoriamente ou por prazer sobre a população, o que faz lembrar a incoerência das prescrições do FMI ou da OCDE. Um dos malfeitores (interpretado pelo director Elia Suleiman) recorda que o seu campo de acção não se limita a África, dado que menciona o “bom trabalho” feito no Bangladesh.

Poder-se-á sublinhar que a escolha do género datado do western não é inocente: ao mesmo tempo que uma mitologia maniqueísta (os malfeitores, os justiceiros) este evoca um universo selvagem e sem leis que não deixa de nos fazer lembrar o universo da mundialização liberal. Sobretudo, não há género cinematográfico mais “americano” que o western, o que obriga, ao mesmo tempo, a lembrar a dominação cultural americana, e a influência preponderante dos Estados Unidos nas instituições financeiras internacionais Pode-se recordar igualmente que o presidente americano que teorizou e levou a efeito o liberalismo económico, nos anos 80, foi um antigo actor de western: Ronald Reagan; e que os presidentes republicanos Bush pai e filho gostam de nos lembrar os seus laços texanos e gostam de se apresentarem vestidos de “cow-boys”.

Pode igualmente dizer-se que o western dialoga com o filme a nível microestrutural. Os óculos de sol dos malfeitores recordam-nos os óculos que o mestre Rappaport compra num vendedor ambulante. Estes simbolizam a cegueira ao mesmo tempo que são um sinal externo de riqueza das grandes instâncias internacionais. A mulher que atravessa as ruas Tombouctou levando um recipiente sobre a cabeça faz lembrar todas as cenas que pontuam o processo quando os habitantes vão buscar água.

Os grandes-planos incidindo sobre os rostos das crianças um pouco embrutecidas ou chorando a morte dos seus pais fazem pensar nas crianças que são doentes na realidade e no desenrolar do processo. Por último o poder pelas armas no western recorda-nos que uma pistola desapareceu aquando do processo, o que nos leva a questionarmo-nos quanto à sua utilização.

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3. Instruir divertindo. O apólogo alcança o seu objectivo? A quem se dirige o western? Constata-se que o público a quem se dirige este divertimento é composto, na

sua maior parte por crianças do Mali, por detrás das quais estão sentados dois adolescentes e dois adultos. Aqui o processo opõe-se ao western, na medida em que o público visado pelo processo é um público de adultos, e mais particularmente de adultos europeus, dado que a população do Mali não parece dar-lhe muita atenção. Será que Abderrahmane Sissako quis aqui resumidamente dirigir-se aos Africanos, à juventude de um continente, mas também a uma população globalmente pouco instruída, através da presença de adultos?

Em que é que se pode considerar o western como um divertimento positivo? Abderrahmane Sissako mostra-nos um verdadeiro ritual que consiste em

instalar o posto de televisão no exterior e ao cair da noite. Estes preparativos são a ocasião de um encontro intergeracional que não deixa de nos lembrar as vigílias tradicionais onde se contava histórias, mas a modernidade obriga, a televisão substituiu o contador.

O próprio género de western, extremamente codificado, responde às exigências do divertimento. Os grandes espaços dos heróis que se opõem, de acordo com um esquema maniqueísta, desenvolvem a mitologia da aventura e da evasão. A própria história que faz com que se oponha o justiceiro aos malfeitores permite satisfazer a nossa exigência de justiça e de heroísmo, dado que o justiceiro, único contra todos, consegue espalhar o medo a todos os malfeitores.

Os grandes-planos mostram-nos as reacções do público, nomeadamente das crianças, alternadamente assustadas ou a rirem. Pode-se por conseguinte concluir que o filme, suscitando emoções como o medo ou rizo, preenche plenamente a sua função de divertimento.

No entanto, alguns índices alertam-nos constantemente para nos forçar a ler este divertimento em desfasamento.

Será que se pode considerar o western como um divertimento negativo? O filme demora a começar devido a “problemas técnicos” como o anuncia a

apresentadora, cujo rosto se altera progressivamente em consequência da expectativa dos

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espectadores. Este incidente é um meio para Sissako para nos recordar que mesmo o acesso ao divertimento não se passa sem dificuldades em África. Além disso, o western aparece-nos, a nós Ocidentais, improvável, metido um pouco à pressa, o que revela uma cruel ausência de meios. Pode-se nomeadamente aperceber-se com as lunetas de sol que levam os malfeitores. Este divertimento coloca-se, imediatamente, sob o sinal do irrisório através de tal anacronismo. O dossier de imprensa (ver a entrevista no final deste dossier) fala de resto de “western spaghetti”, ou seja, duma versão desvalorizada, abastardada do género. Sissako, devido a estes elementos não fará ele um julgamento de desilusão sobre o estado do cinema africano?

O que mais inquieta situa-se ao nível da relação entre espectador e cinema. Apercebemo-nos que as crianças riem quando um dos malfeitores se orgulha de ter abatido habitantes como se fossem moscas e que se adivinha estarem inocentes. Estas crianças nem sequer se dão conta que riem das suas próprias mortes. O divertimento pelo riso afasta-os, por conseguinte, das suas próprias realidades, em vez os aproximar, o divertimento cega-os.

Esta inquietude é corroborada pela música, lenta e nostálgica. Ela imprime ao filme um profundo sentimento de tristeza, bem longe das bandas sonoras enérgicas que ilustram o tipo do western. E é tanto mais assim quanto a música do western ultrapassa o quadro imaginário para se instalar na realidade do amanhecer no tribunal onde se deve realizar o processo. Lancinante, evoca sobre um modo menor, a morte lenta, muito lenta, do continente africano. De facto, esta música encarna-se no personagem do justiceiro, velho e sozinho, o que nos leva a interrogarmo-nos se conseguirá salvar a população dos bandidos que são mais jovens e sem escrúpulos.

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III. Movimento de uniformização e afirmação de identificação Momento muito importante no filme Bamako é o filme Death in Timbuktu

que lá está para denunciar simbolicamente a atitude das instituições financeiras internacionais relativamente a África… mas, tendo escolhido um género emblemático de cinema de Hollywood clássico, é também uma forma de testemunhar sobre a difusão do modelo americano através do mundo e do fascínio que este pode exercer.

Do ponto de vista das práticas religiosas, o cristianismo é uma herança da evangelização levada a cabo com a colonização: deve-se sublinhar que na cena de oração não se coloca um padre católico francófono (estamos no Mali, zona de influência francesa), mas sim um pastor anglo-saxónico, e que está ao pé duma bandeira americana (um outro sinal da difusão do modelo dos Estados Unidos?). Aliás, esta cena da oração cristã faz eco com as cenas da oração muçulmana, e estas são um sinal da progressão do islamismo na África Subsariana.

Enfim de forma mais anedótica pode-se sublinhar que a cena do casamento que se realiza em paralelo com o julgamento é feita “à ocidental” com o vestido de noiva branco e fato com gravata para o noivo.

Mas, por outro lado, a própria iniciativa do julgamento é uma primeira forma de afirmar a voz singular de África, de dar a palavra a países que verdadeiramente nunca foram ouvidos. A mundialização liberal é aqui mesmo apresentada como uma “violação do imaginário” que teria roubado aos africanos a sua verdadeira identidade, fornecendo-lhes somente a imagem de “negros incapazes de se desenvolverem”.

O sentimento de pertença ao continente africano assim como a ideia de solidariedade que lhe está ligada são fortemente evocados ao longo do filme: vontade das testemunhas de verem África levantar a cabeça; o fato de uma das mulheres da tinturaria agarrar o advogado negro da defesa, apresentado como “um traidor” face aos seus irmãos; o colocar em questão a parcialidade do tribunal por empatia com os compatriotas que sofrem.

No fim do filme, entre a arguição final da defesa e a das partes civis, um feiticeiro africano toma a palavra e questiona o tribunal em língua bambara: uma longa cena, sem legendas, alternando planos do feiticeiro com as caras sérias da assistência… personificação da própria África pela voz daquele que é considerado o guardião da sua cultura tradicional.

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Enfim, esta identidade cultural africana é igualmente sugerida por pequenos sinais, através da sua música (as cenas de canto), das suas roupas (tecidos coloridos estendidos a secar, no pátio, o “ritual” quotidiano do apertar dos laços no vestido)…

Conclusão Como conclusão, a utilização da forma do apólogo por Sissako revela-se rica e

complexa. Se se estabelece um paralelo entre Bamako e Tombouctou, é para nos mostrar que a verdadeira calamidade que atinge a África é a morte da educação da juventude, programada pelas grandes instâncias internacionais em nome de uma lógica contabilística: “dois professores, é demasiado” exclama um dos malfeitores, antes de acrescentar que é necessário poupar as crianças; este acesso de generosidade revela a hipocrisia dos países ricos que são sensíveis às desgraças das crianças e que ao mesmo tempo agem de maneira a matá-las lentamente. Simultaneamente, Sissako mostra-nos os limites do apólogo, através das crianças que não compreendem o que lhes é mostrado.

Entrevista a Abderrahmane Sissako Como nasceu este projecto? Este filme está, em primeiro lugar, ligado ao desejo de filmar na casa do meu

pai, hoje desaparecido. Esta casa encontra-se em Bamako, no bairro popular de Hamdallaye. É uma casa simples, construída em terra. No tribunal estão lado a lado, desde há anos, uma torneira e um poço. Aqui, a água custa caro, e para fazer economias, o meu pai mandou então fazer um poço. Foi, pois, neste pátio que cresci, com os meus numerosos irmãos, irmãs, primos, primas, tias, tios, pais próximos e remotos. Nunca fomos menos de vinte e cinco a dormir, a comer, a aprender, a viver aqui. Hoje, a maior parte de nós deixou esta casa para viver noutros lugares; mas, com isso, a casa não se esvaziou... Novos primos, primas, familiares próximos ou longínquos, vivem aqui, vão à escola ou a abandonam para se agarrarem a um qualquer pequeno trabalho de sobrevivência. Para mim, esta casa está ligada à lembrança de discussões apaixonadas com o meu pai sobre a África.

A outra razão que me levou a fazer este filme tem a ver com o meu olhar sobre a África - África, não como o continente que é o meu, mas como um espaço de injustiças que me atingem directamente. Quando se vive num continente onde o acto de fazer um filme é raro e difícil, diz-se que podemos falar em nome dos outros: perante a gravidade da

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situação africana, senti uma necessidade de sublinhar a hipocrisia do Norte no que diz respeito aos países do Sul.

Dos seus filmes, é, sem dúvida, o que possui a narrativa menos tradicional. Como é que desenvolveu dispositivo? Inicialmente, queria circunscrever o filme ao espaço do processo sem nunca daí

sai Depois, compreendi que podia ir, talvez, um pouco mais adiante se abandonasse esta ideia de espaço único, teatral, e se pusesse em cena personagens externos ao processo.

O que espanta, é precisamente a vida que continua à volta do tribunal: mulheres tingem tecidos, uma mãe trata da sua pequena rapariga, um casal magoa-se entre si, um outro casa-se...

Desenvolvi estas intrigas secundárias porque queria que a vida dos habitantes do tribunal fizesse eco ou interferisse com as palavras proferidas na barra do tribunal. O discurso dos advogados ilustra uma forma de inteligência que monopoliza toda a atenção e era necessário, imperativamente, que esta erudição fosse relativizada por estas vidas que continuam a desenrolar-se à volta do tribunal. As pessoas que gravitam em redor do tribunal acreditam no processo, mas não esperam nada do seu veredicto. Falando do Ocidente, uma das testemunhas disse-me para me encorajar: “pelo menos, saberão que sabemos”.

Em à Espera da Felicidade mostrava a impotência dos poderes públicos africanos e as políticas anti-imigração dos países ocidentais. Aqui, ultrapassamos uma nova etapa com um filme em forma de parábola.

Creio profundamente que a vida e a esperança ultrapassam a noção de justiça. O discurso sobre a verdade é hoje extremamente difícil de se fazer escutar e a passagem pela parábola, a mim, parece pois correcta. Quis que os discursos dos protagonistas do processo fossem regularmente cortados por outras realidades que assumem às vezes a forma de parábolas. Imaginar este processo fora de um lugar onde se viva era para mim impossível.

Pode dizer-se que este processo tem uma virtude de catarse? Essa é a verdadeira pergunta: nenhum órgão jurisdicional existe para pôr em

questão o poder dos mais fortes. Não se tratava tanto de designar os culpados, mas sim de denunciar o facto e o destino de centena de milhões de pessoas ser selado por políticas decididas fora do seu próprio universo. Mas, esta posição reenvia-nos para a declaração de Aminata Traoré, uma testemunha, que recusa considerar que a principal característica da África é a sua pobreza: não, diz ela, África é sobretudo uma vítima das suas riquezas!

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Queria por conseguinte dar outra imagem do meu continente que não fosse a das guerras e das fomes. É nisto que a criação artística é útil – não para alterar o mundo, mas para tornar o impossível verosímil, como este processo das instituições financeiras internacionais.

Como elaborou os “diálogos” dos protagonistas do processo? Devo dizer que recorri a magistrados e advogados profissionais e a verdadeiras

testemunhas. Tive uma longa preparação com eles. Determinei o quadro dos debates seguidamente e depois coloquei-os a representa Aquando da rodagem deixei-lhes uma grande liberdade para testemunhar, acusar ou defende Certas testemunhas foram escolhidas entre as vítimas dos famosos “ planos de ajustamentos estruturais” do Banco Mundial e do FMI: são aqueles a que chamamos “os comprimidos”, “os deflacionados”, “os ajustados”, como estes antigos funcionários que se encontram no desemprego porque os serviços públicos foram privatizados e entregues às multinacionais ocidentais... Estes “testemunhos” tinham o sentimento que um autêntico processo se estava a desenrolar e, por conseguinte, declararam na barra do tribunal o que lhes sai na alma. Também aí, eu não inventei nada.

Afirma que são as mulheres que desempenham um papel motor na África e impedem o continente de se tornar num braseiro. Sim, e são também elas que impedem que se seja demasiado pessimista sobre o

futuro do continente... Quando se vê a sua vontade de enfrentar a adversidade, a sua força, é normal dar-lhes um papel essencial no filme, tanto no processo assim como na vida que continua em redor do tribunal.

A que corresponde a cena do western spaghetti? Para mim, era uma maneira de mostrar que nem todos os cow-boys são

brancos e que o Ocidente não é único responsável pelos males de África. Nós temos, nós também, a nossa parte de responsabilidade. É por isso que o cow-boy que atira sobre o professor “é além do mais,” africano. De resto, uma grande parte da elite africana é cúmplice do Ocidente: nunca tiveram a coragem de agir para alterar as coisas porque cada um olha egoistamente só para os seus próprios interesses. Por conseguinte, encarei esta sequência de western como a metáfora de uma missão do Banco Mundial ou do FMI - dado que estas missões são efectuadas conjuntamente por Europeus e Africanos..

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Faz também intervir um personagem munido de uma câmara... A personagem Falaï, o operador de câmara, filma imagens tanto para os

casamentos como para a polícia de investigação criminal. Mas, diz que prefere filmar os mortos, “eles são mais verdadeiros”. Quis mostrar as imagens que filma em câmara subjectiva, sem som. Estas imagens representam para mim o olhar daqueles que não têm direito à palavra.

Tradução livre a partir de Florence Salé, “La rhétorique judiciaire (plaidoyer et réquisitoire, l'éloge et le blâme)/L'apologue, ou instruire en divertissant”, dossier d’accompagnement pédagogique; e de Aude Fonvieille, “Citoyenneté et formes de la mondialisation”, dossier d’accompagnement pédagogique. Ambos os documentos estão disponíveis em http://www.zerodeconduite.net/bamako/dossier_pedagogique.htm.

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